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Este documento aborda a compreensão dos demónios na época precedente à era cristã, diferenciando-se entre ação do diabo e ação de demónios, e apresentando hipóteses sobre a maneira como jesus e a ciência moderna entendem a ação demoníaca. O texto também discute a evolução da compreensão de demónios na antiguidade clássica, suas origens e as manifestações de impureza associadas a eles.
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Tipologia: Exercícios
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Estudos Teológicos, v. 43, n. 2, p. 82-103, 2003
Resumo: O artigo oferece uma análise do fenômeno das possessões e exorcismos nos evangelhos sinóticos, considerando a terminologia usada, a evolução na compreensão dos demônios ao longo dos séculos imediatamente anteriores à era cristã, a diferenciação entre ação de demônios e do diabo, e as hipóteses mais defendidas sobre a maneira de Jesus e da moderna ciência entenderem a ação demoníaca.
Resumen: El artículo ofrece un análisis del fenómeno de las posesiones y exorcismos en los evangelios sinópticos, considerando la terminología usada, la evolución en la comprensión de los demonios a lo largo de los siglos inmediatamente ante- riores a la era cristiana, la diferenciación entre acción de los demonios y el diablo, y las hipótesis mas defendidas sobre la manera como Jesús y la ciencia moderna entienden la acción demoníaca
Abstract: The article offers an analysis of the phenomenon of possessions and exorcisms in the synoptic gospels. It considers the terminology that is used, the evolution in the comprehension of demons throughout the centuries immediately preceding the Christian era, the differentiation between the actions of the demons and the devil, and the most defended hypotheses on the way Jesus and modern science understand demonic action.
Demônios, maus espíritos e a prática exorcista de Jesus segundo os evangelhos
Tese: Todos os evangelhos sinóticos dão testemunho da prática exorcística de Jesus. Esta prática está respaldada pela tradição dos ditos, em especial, os ditos de Mt 12.28 par. e Lc 10.18.
Tabela dos exorcismos praticados por Jesus:
Exorcismos Só exorcismos O possesso de Gerasa (Gadara) 8.28-34 5.1-20 8.26- O possesso de Cafarnaum 1.21-28 4.31- A filha da mulher cananéia 15.21-28 7.24- Exorcismos com cura O menino epiléptico (mudo) 17.14-21 9.14-29 9.37- O possesso (cego e) mudo 12.22-23 11. O possesso mudo 9.32- A mulher recurvada 13.10- 4.24; 8.16 1.32-34,39 4.40- 12.15 3.11-12 6.18- Sumários de exorcismos 7. (16.9) 8. Discussão sobre o poder de exorcizar 12.25-32 3.23-30 11.17- Poder dado aos discípulos 10.1,8 3.15; 6.7-13 9. Exorcismo por um não discípulo 9.38-39 9.49-
NB: Há ainda uma referência a um exorcismo de Jesus feito em Maria Madale- na, da qual teria expulsado 7 demônios (cf. Mc 16.9 par. Lc 8.2). Além disso, Jesus refere-se também à seguinte situação: o ser humano é como uma casa. Se um demônio “for varrido” para fora dela, ele – sob certas circunstâncias – pode voltar a ela com sete espíritos ainda piores e habitá-la novamente: “E o último estado daquela pessoa se torna pior que o primeiro” (Mt 12.43-45 par. Lc 11.24-26).
Nos Atos dos Apóstolos há duas referências explícitas à prática exor- cista, à parte da informação de At 5.16. No primeiro caso (At 16.16-18), Paulo cura uma “jovem possessa de espírito adivinhador” (v. 16). No segun-
Demônios, maus espíritos e a prática exorcista de Jesus segundo os evangelhos
Os termos usados para designar a presença de um ou mais demônios em determinada pessoa são os seguintes:
Daímon: é masculino, singular: demônio. A única passagem a usar o temo é a de Mt 8.31 (no plural, masculino: daímones ).
Daimónion: é adjetivo neutro, singular de daímon. No plural = dai- mónia! : demônio(s). É empregado, aproximadamente, 63 vezes no NT (Mt 7.22; 9.33,34; 10.8, etc.).
Daimonízomai: Ser endemoninhado, ser possesso por um demônio (Mt 4.24; 8.16,28,33; 9.32; 12.22; 15.22; Mc 1.32; 5.15,16,18; Lc 8.36; Jo 10.21).
Pneúma: espírito (Mt 8.16; Lc 9.39). Este termo pode vir qualificado pelos seguintes adjetivos:
Pneúma álalon: espírito mudo (Mc 7.37; 9.17,25); Pneúma álalon kaì kofón: espírito mudo e surdo (Mc 9.25); Pneúma asthenéias: espírito de enfermidade (Lc 13.11); Pneúma akátharton: espírito impuro (Mt 10.1; 12.43; Mc 1.23,26,27; 3.11,30; 5.2,8,12,13; 6.7; 7.25; 9.25; Lc 4.36; 6.18; 8.29; 9.42; 11.24);
Pneúma daimoníou akathártou: espírito dum demônio impuro (Lc 4.33);
Pneúma ponerón: espírito maligno/mau (Lc 7.21; 8.2 – cf. At 19.12,13,15,16).
A terminologia empregada permite as seguintes constatações:
Estudos Teológicos, v. 43, n. 2, p. 82-103, 2003
a) Os demônios são concebidos como espíritos, ou seja, poderes “sem carne e osso” (cf. Lc 24.39), que incidem sobre as pessoas e lhes causam malefícios.
b) Os evangelhos e o NT, como um todo, curiosamente, empregam uma só vez o termo daímon (no masculino plural: daímones ), em Mt 8.31. No grego daímon é termo para designar o “divino”, expressa, pois, uma di- vindade. A diferença entre daímon e theós = Deus pode ser definida da seguinte forma: enquanto que theós era um termo empregado para referir-se mais à personalidade de Deus, a palavra daímon era usada preponderante- mente para caracterizar o poder e a ação da divindade, da maneira como se apresentavam na natureza e nas vidas dos diversos seres humanos, seja para o seu bem, seja para o seu mal. O termo que nossas Bíblias traduzem por “demônio(s)”, daimónion , é um adjetivo de daímon , sendo a terminação daimónion característica do neutro singular (o plural neutro é daimónia ). A escolha deste adjetivo neutro^2 é, no juízo de muitos teólogos, deliberada. Como exemplo para muitos outros/as, citamos A. Álvarez:
Daimónion não é nem masculino, nem feminino, mas neutro. Não se trata, portanto, de uma pessoa, mas de uma coisa. Além disso, é um adjetivo subs- tantivado. Indica, portanto, a personificação de uma entidade abstrata. A mentalidade popular havia criado este vocábulo para designar poderes impes- soais, potências espirituais ou forças maléficas, capazes de entrar nas pesso- as e provocar-lhes enfermidades. 3 Característico do emprego de daimónion no judaísmo intertestamen- tário e, por extensão, no cristianismo primitivo é que este termo não caracte- riza mais poderes espirituais divinos que incidem para o bem ou mal das pessoas (como entre os gregos), mas exclusivamente poderes espirituais antidivinos , responsáveis por uma série de desgraças físicas, psíquicas, morais (pervertem ao pecado) e religiosas (geram a idolatria). Ou seja: demônios representam, na época de Cristo, seres intermediários entre Deus e as pesso- as que acarretam desgraças em suas múltiplas manifestações.
2 Segundo G. Quevedo, o emprego excepcional de daímones (masc. pl.) em Mt 8.31 se explicaria pelo fato de os demônios terem sido identificados com as pessoas possessas que impediam a passagem aos transeuntes (Mt 8.28): cf. Oscar G. QUEVEDO, Antes que os demônios voltem: explicação dos fenômenos e análise das teorias à luz da psicologia, filosofia, teologia e parapsi- cologia, 2. ed., São Paulo: Loyola, 1989, p. 324. 3 Cf. A. ALVAREZ. ¿El diablo y el demónio son lo mismo?: aclaraciones para una correta com- prensión, Selecciones de Teología , v. 34, p. 61, 1995 (tradução própria). Cf. também Oscar G. QUEVEDO, Antes que os demônios voltem , p. 324, citando uma assertiva de Trench: “ Daimon ou daimonion [ ... ] não são perfeitamente equivalentes. Em daimon há maior implicação de personalidade do que em daimonion ”.
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davam a cada um a “sorte” que lhe era devida, seja para o bem, seja para o mal. Um daímon , segundo a concepção dos gregos, podia ser considerado tanto uma divindade normal, como uma divindade inferior, como, não por último, um ser intermediário – espírito – entre os deuses e as pessoas. Estes espíritos que, em relação às pessoas, eram originalmente neutros ou “polivan- tes” tornam-se gradativamente concebidos mais e mais como espíritos malig- nos e prejudiciais. Costuma-se atribuir a Xenócrates, um discípulo de Platão, a primeira referência explícita à existencia de demônios maus (cf. Is 361b e Def 417c-e). Essa tendência de considerar demônios como entidades exclu- sivamente prejudiciais torna-se predominante nos três séculos anteriores à era cristã e vai determinar decisivamente o entendimento vigente na época de Jesus. Os fatores que contribuíram para esse entendimento exclusiva- mente negativo da ação dos demônios foram, além da influência do pensa- mento filosófico grego e, naturalmente, também da cultura popular predomi- nante, os seguintes:
O cristianismo herdou e assumiu a demonologia como algo exclusiva- mente negativo. Uma atribuição de funções positivas a espíritos ele reserva exclusivamente para os anjos. A atribuição a demônios de males ocorridos a pessoas ou à natureza em forma de doenças, possessão, catástrofes, pragas, etc. desempenhava funções positivas para as perguntas e os questionamen- tos que fatos como estes levantavam. A principal delas é, sem dúvida, a contribuição que dava à pergunta pela teodicéia, ou seja, a explicação que oferecia para a relação existente entre Deus e os males do mundo. A demo-
7 Cf. J. E. M. TERRA (Ed.), Existe o diabo?: respondem os teólogos, São Paulo: Loyola, 1975, p. 232-236. 8 C. STRECKER, Performative Welten: Theoretische und analytische Erwägungen zur Bedeutung von Perfomanzen am Beispiel der Jesusforschung und der Exorzismen Jesu (Habilitationsschrift), Neuendettelsau, 2002, p. 277s. 9 Cf. os vários Dicionários Bíblicos, sob o verbete “demônios”, na parte correspondente ao judaísmo tardio/intertestamentário.
Demônios, maus espíritos e a prática exorcista de Jesus segundo os evangelhos
nologia afirma que o responsável último pelas desgraças não é Deus, mas forças espirituais que lhe são hostis. Dessa forma se eliminava a tensão entre a crença num Deus poderoso e bom e a existência dos males que, aparente- mente, teriam também nele a sua origem! A demonologia afasta Deus como causa última dos males, para atribuí-los à ação de espíritos rebeldes.
Negativamente, este desenvolvimento unilateral na concepção dos es- píritos como exclusivamente malévolos prejudica em muito uma relação de abertura e escuta diante de religiões como as dos indígenas ou afro-brasilei- ras, a exemplo do candomblé, que, como também várias outras, tem uma noção diferenciada dos “espíritos”, admitindo-os tanto malévolos quanto be- névolos. Ao tempo do NT, uma idéia semelhante era defendida pela seita de Qumran, que pressupunha a criação divina de dois espíritos, um da luz, outro das trevas 10.
Tese: Uma característica dos evangelhos é a de distinguirem niti- damente entre ação do diabo e ação de demônios. O diabo é, por exce- lência, o poder que seduz e tenta para o pecado. A ação dos demônios nos evangelhos sinóticos, ao contrário, restringe-se a provocar doen- ças, seja de ordem física, seja de ordem psíquica.
10 Cf. 1QS 3.13-4.26: O Espírito da Verdade e o Espírito da Iniqüidade. Cada um deles reina sobre um exército de espíritos subalternos que, segundo a sua influência, dividem as pessoas em “filhos da justiça” e “filhos da iniqüidade”. 11 A falta de clareza a este respeito tem colocado no passado e presente várias pessoas “endemo- ninhadas” em condição de profunda repulsa e discriminação por parte de outros cristãos/ãs, que as consideravam como possuídas pelo diabo. As únicas duas passagens que se referem a uma “entrada” do diabo/Satanás em pessoas – no caso, em Judas – são Lc 22.3 e Jo 13.27. Atos 5. poderia ser interpretado de forma idêntica: “Então disse Pedro: Ananias, por que encheu
Demônios, maus espíritos e a prática exorcista de Jesus segundo os evangelhos
o possesso de Gerasa: loucura, insanidade (Mc 5.1-20 par.); o menino trazido pelo pai: epilepsia (Mc 9.14-29); o possesso da fonte de ditos: cegueira e mutismo ( Mt 12.22s./Lc 11.14); o possesso em Mateus: mudez (Mt 9.32-34); a mulher recurvada: problemas de coluna (Lc 13.10-17). Os pesquisadores se perguntam por que doenças com este tipo de sintomas são atribuídas à ação de demônios e outras, não. Uma primeira resposta plausível parece-nos ser aquela que procura diferenciar entre doen- ças externas, de causas conhecidas, e internas, de difícil explicação. Oscar G. Quevedo, adepto dessa teoria, sintetiza-a nas seguintes palavras:
Chamavam-se “endemoninhados” os que estavam doentes por causas não- aparentes, internas, e como tais inobserváveis e portanto misteriosas para os conhecimentos médicos da época. Falo de doenças internas, não só psicoló- gicas [...]. Quando a causa é perceptível, visível, talvez até palpável, nunca nos Evangelhos o doente é considerado como endemoninhado. 17 Esta regra explica perfeitamente por que doenças como a cegueira, lepra, uma mão atrofiada, um fluxo sangüíneo, entre outras, não são remeti- das à ação de demônios – todas elas apresentam causas exteriormente de- tectáveis. Já outras doenças cujas causas eram desconhecidas ou não plena- mente identificáveis pela medicina eram tidas como demoníacas. Este é o caso da epilepsia, por exemplo. A que atribuí-la, considerando-se os sintomas repentinos e destrutivos, senão à ação de poderes nocivos, fora do controle humano? O mesmo vale em relação a surdez e mudez. Ora, que explicações poderiam ser dadas aos conterrâneos de Jesus para o fato de existirem pessoas com língua, mas sem poder de voz, e com ouvidos, mas sem poder de audição? E, por último, pensemos no caso do demente de Mc 5.1-20. Hoje sabemos que a loucura pode ter causas psíquicas, funcionais, hormonais ou cerebrais. Mas todas elas são internas e não detectáveis no confronto exterior com a pessoa. Logo, creditava-se no passado a insanidade à ação demoníaca 18!
17 Cf. Oscar G. QUEVEDO, Antes que os demônios voltem , p. 316-318. Na p. 317, ele ainda ressalta que a distinção por ele estabelecida não é simplesmente entre doenças físicas e psíquicas, “mas entre doenças com ‘motivo’ perceptível e doenças por uma ‘causa’ não perceptível ”. 18 A aplicação rigorosa do critério exposto permite concluir que a narrativa da cura da mulher encurvada de Lc 13.11-16 não compreende um exorcismo (é o que muitos tendem a deduzir do v. 16: “Esta filha de Abraão, que Satanás prendeu há dezoito anos”). Tanto a expressão “um espírito de doença” do v. 11 quanto a comunicação do v. 12 “Estás livre de tua doença” tendem a indicar que se tratou de uma simples terapia. Ora, “espírito de doença” equivale a “doença” simplesmente, como em expressões semelhantes: “espírito de medo”, “espírito de sabedoria”,
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A identificação das possessões com doenças de causas desconheci- das na época de Jesus é confirmada ainda por dois fatores adicionais:
Primeiro: a possessão pode ser considerada “doença” especial, pois os próprios evangelistas identificam seguidamente os exorcismos com curas, quando constatam que possessos foram curados (no grego, o verbo usado é, nestes casos, therapeúein – daí terapia , no português):
Mt 12.22: “trouxeram-lhe um endemoninhado cego e mudo. E ele o curou ”;
Lc 6.18: “os atormentados por espíritos impuros também eram cura- dos ”;
At 5.16: “trazendo doentes e atormentados de espíritos impuros, e to- dos eram curados ” 19.
Segundo: as próprias histórias de exorcismos por vezes oferecem o diagnóstico da verdadeira origem ou causa da “possessão”, qualificando me- lhor os demônios ou os espíritos que lhes correspondem. É o caso de Lc 11.14, onde se informa que Jesus expeliu um demônio que era mudo , conclu- indo: “E aconteceu que, ao sair o demônio, o mudo passou a falar ”. O exemplo deixa claro: o que para os antigos era obra de demônio, a mudez, hoje é diagnosticada como uma doença natural, cujas causas podem ser de natureza variada. Caso semelhante é narrado em Mc 9.17-25, em que Cristo esconjura um “ espírito surdo e mudo ” (v. 25). Como último exemplo, seja citado Mc 5.15: aí é relatado que, após o “exorcismo”, o possesso foi encon- trado assentado, vestido e em perfeito juízo. Desta notificação pode-se infe- rir: se passou a ter juízo, é porque anteriormente estava sem o mesmo, ou seja, apresentava traços que poderiam indicar demência.
A despeito de uma estreita relação entre doença e possessão, convém notar ainda que, na Antiguidade, havia também pessoas extremamente céti-
etc. A afirmação de que Satanás teria prendido a mulher há 18 anos vincula a doença a Satanás, como o faz também o texto de At 10.38, embora não no sentido de possessão direta: cf. Oscar G. QUEVEDO, op. cit., p. 322. Este critério, aliás, explica a contento por que também a história da cura do surdo e gago de Mc 7.31-37 não foi considerada como exorcismo, mesmo que, comumente, os mudos e surdos sejam apresentados como possessos (cf. Mc 9.14-29, especialmente o v. 25). Na verdade, a pessoa não era “muda”, mas tratava-se de um “gago”. A cura consistiu em que ele voltou a falar corretamente , e não, simplesmente, em que principiou a falar. Ora, daí se depreende que sua “mudez” também não era de nascença. Conclui Quevedo: “Não sendo mudo, não era surdo de nascença, pois aprendeu a falar. Portanto, teria ficado surdo e gago em conseqüência de alguma doença ou acidente. Tendo sido acidente, até possivelmente ficassem cicatrizes. Por acidente ou por uma doença externa , compreende-se que não o chamas- sem endemoninhado” (op. cit., p. 324).
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traposição a causas internas e desconhecidas é útil, mas não explica todos os aspectos do fenômeno. Se fôssemos orientar-nos unicamente por ele, dificil- mente ainda haveria casos de possessão, haja visto que a medicina pratica- mente identificou a origem de todas as doenças. O que acontece na prática, contudo, é justamente o contrário. As possessões não terminaram – elas proliferam em número aparentemente ainda maior que outrora.
Ao longo de sua história, o cristianismo identificou ação demoníaca não primariamente em função de certas doenças que apresentavam as pes- soas possessas, mas, sobretudo, com base em critérios semelhantes aos in- ventariados por Theissen e outros (vide acima). Um texto muito citado é o do Rituale Romanum, que, há alguns séculos, estabeleceu os seguintes critérios para diagnosticar uma possessão diabólica/demoníaca:
Na atualidade, a experiência com maus espíritos e exorcismos tem aprimorado os sintomas de possessão. Há várias listas ou tabelas a esse respeito, parcialmente divulgadas também entre as comunidades. Um autor sintetizou no quadro abaixo um conjunto de sintomas de possessão, com a vantagem de tê-los subdividido em três categorias distintas: sintomas físicos, psicológicos e espirituais. Não será preciso realçar que dificilmente todos esses sintomas afloram, simultaneamente, em cada caso de pessoa endemo- ninhada. Mas quando, num mesmo indivíduo, há uma presença representati- va de um ou mais desses sintomas físicos, psicológicos e espirituais, a proba- bilidade de tratar-se de uma possessão torna-se tanto maior.
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Tabela dos sintomas relacionados à possessão demoníaca 23
Sintomas físicos Sintomas psicológicos Sintomas espirituais Força sobre-humana clarividência caráter imoral (p. ex.: profanidade, nudez, linguajar obsceno) expressão facial telepatia ameaça verbal ou física alterada a tudo que representa Cristo/cristianismo mudança na voz habilidade para entrar em estado de (aspereza, zombaria, predizer o futuro transe quando alguém ora rouquidão) convulsões, prostração habilidade para falar incapacidade de confessar em línguas estrangeiras Jesus de forma reverente desconhecidas da pessoa possuída insensibilidade à dor estado de transe fenômenos poltergeist (p. ex.: ruídos inexplicáveis, objetos em movimento, odores desagradáveis) 24 Mt 8.28; At 19.16; At 16.16-18; At 13.4-11; Mc 5.1-5; Lc 4.33ss.; Mc 9.18-22; Mc 1.21-24, 34; Lc 9.41s.; 1 Jo 4.1-6; 5.1-5 Lc 4.33; 1 Sm 18.10; 1 Co 12.3; 1 Sm 18. Mc 9.18-
Conclusão:
23 Cf. B. J. OROPEZA, 99 perguntas sobre anjos, demônios e batalha espiritual , São Paulo: Mundo Cristão, 2000, p. 131. 24 Felicitas G. Goodman acrescenta ainda outros sintomas de ordem neurofisiológica ou psicológi- ca, que podem acompanhar casos de possessão. Ela faz referência a insônia, febre, agitação, alimentação compulsiva de comida normalmente indigesta ou o seu contrário, na forma de abstenção completa de alimentos, odores repugnantes, musculatura tensa, fortes dores de barri- ga, gritos, ranger de dentes, choro descontrolado e forte tendência agressiva contra si próprio ou contra parentes. Também para Goodman a clarividência, ou seja, o fato de endemoninhados externarem coisas profundamente relevantes e corretas em relação ao contexto e pessoas com quem convivem, é um dos sintomas mais intrigantes relacionados com possessão: Cf. F. G. GOODMAN, Ekstase , Besessenheit, Dämonen: Die geheimnisvolle Seite der Religion, Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus, 1997, p. 149-151.
Demônios, maus espíritos e a prática exorcista de Jesus segundo os evangelhos
internas e de difícil interpretação. Às características das possessões conta- vam também a perda da identidade própria, um comportamento destrutivo, vinculado à posse de forças incomuns e um enfrentamento entre o demônio e o exorcista. São, sobretudo, as características dessa natureza que, vinculadas ou não a doenças internas e de causas desconhecidas, identificavam na anti- guidade e ainda identificam nos dias atuais os prováveis casos de possessões.
Em razão do exposto, não é possível concordar com a tese de Álvarez, quando escreve o seguinte:
Vemos, pues, que las limitaciones en los conocimientos médicos de entonces están en la raíz de la atribución a los demonios de enfermedades cuyas causas no eran directamente perceptibles por los sentidos. En el linguaje corriente se supone que una persona está “poseída” cuando un ser personal se introduce en ella, la “posee” y le fuerza a hacer cosas contra su voluntad. Esto no lo encontramos en los Evangelios. En ellos siempre se trata de enfermedades para las que la medicina de la época no tenía respuesta.^26 Aquilo que Álvarez chama de “linguagem corrente” e contesta é exa- tamente o que os relatos exorcistas dos evangelhos confirmam unanimemen- te, ou seja, que a pessoa “possessa” realmente não é mais dona de si mesma, passando a realizar não o que ela própria deseja, mas aquilo que é obrigada a fazer a partir do “espírito” que a comanda. Rotular essa característica de “crença popular” é fugir às evidências, não só dos textos bíblicos, mas tam- bém das possessões de maus e bons espíritos que afloram por toda parte.
26 Cf. A. ÁLVAREZ, op. cit., p. 62. 27 Cf. op. cit., p. 325.
Estudos Teológicos, v. 43, n. 2, p. 82-103, 2003
Além disso, “estar endemoninhado” deve ainda hoje, para muitos leitores e pesquisadores, ser tomado ao pé da letra e entendido como “sob influência de poderes espirituais, contrários a Deus”. Ou seja: a tradução será tanto me- lhor quanto mais literal e quanto menos sujeita a interpretações se apresentar.
A partir dos dados colhidos nos itens anteriores, podemos nos ocupar agora com a compreensão que o próprio Jesus teria tido do fenômeno das possessões. Jesus cria em possessões demoníacas, em ação direta de espíri- tos malignos, segundo a mentalidade corrente de sua época, ou ele sabia que as pessoas endemoninhadas não passavam de doentes físicos e mentais, cu- jas causas naturais só estariam a esperar por explicações cada vez mais satisfatórias, de acordo com o progresso da ciência médica? É impossível responder a esta pergunta com certeza absoluta. O que podemos fazer é apresentar e comentar brevemente as hipóteses mais aventadas. Elas são em número de três.
Primeira: Jesus, como filho de sua época, era devedor, como tan- tos outros, da compreensão dos fenômenos na medida em que sua cultu- ra e os avanços da medicina da época o permitiam. Isto significa que o seu nível de conhecimento humano era limitado como o de qualquer outra pessoa. Por isso, é muito provável que também ele cresse em “de- mônios” como sendo “espíritos maléficos e contrários a Deus” e que praticasse exorcismos por ser esta a maneira pela qual, para seus con- terrâneos e para ele próprio, uma libertação dos demônios era espera- da e suscetível de ter eficácia.
Inferência: A inferência que comumente se tira de hipóteses como esta é que então nós, como filhos de outra época, vivendo sob diferentes códigos culturais e sob o avanço da medicina, não seríamos mais necessaria- mente devedores da crença em “possessões demoníacas”.
Essa inferência, contudo, é, até certo ponto, precipitada. Em primeiro lugar, já vai longe o tempo em que duas frases de Bultmann marcavam um consenso entre pesquisadores liberais, quais sejam: “Não se pode usar luz elétrica ou aparelho de rádio ou, em casos de doença, valer-se dos recursos medicinais e clínicos modernos e, ao mesmo tempo, crer no mundo dos espí- ritos e milagres do Novo Testamento”, e “Com o conhecimento das forças e das leis da natureza, morreu a crença na existência dos espíritos e demônios”. Hoje em dia usa-se luz elétrica e trabalha-se com computador, mas, simulta- neamente, visita-se também terreiros de umbanda, sessões espíritas e cultos
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Esta hipótese é temerária por uma razão muito simples. Quem, para si mesmo não acredita numa coisa, dificilmente vai conseguir repassar a outros a crença, não só de que acredita, mas também de que os pretende libertar de um mal em que, no fundo, não crê. Ou seja: dentro desta hipótese, a eficácia dos exorcismos de Jesus seria curiosa, difícil de entender. Mas há ainda uma segunda razão que torna esta hipótese improvável. É que Jesus pressupõe a existência de demônios também na tradição dos ditos, a exemplo de Mc 3.22- 27 e Lc 10.17-20, etc. Se ele próprio não cresse em demônios, não seria de esperar que ao menos em seu ensino este detalhe viesse à tona, ou seja, que ao menos para os seus discípulos ele aclarasse o que cria e não cria a esse respeito?
Terceira: Jesus pode ter evoluído em seu pensamento a respeito dos demônios. Num primeiro estágio, pode ter tido uma fé bem à seme- lhança dos seus conterrâneos. Numa fase posterior, “é possível que te- nha caminhado para uma lucidez progressiva quanto à identificação da raiz profunda do mal”. E esta estaria, no dizer do Mestre, “no coração do ser humano”, como o afirma Mc 7.15,21: “Nada há fora do ser humano que, entrando nele, o possa contaminar; mas o que sai do ho- mem é o que o contamina [...].Porque de dentro, do coração dos seres humanos, é que procedem os maus desígnios, a prostituição, os furtos, os homicídios...” 29.
Inferência: Assim como Jesus evoluiu, nós tampouco necessitamos continuar presos a conceitos de uma mentalidade antiga. Se o mal não vem de fora para dentro, mas de dentro para fora, é preciso trabalhar o nosso interior, o nosso “coração”, e não “demônios” que porventura estariam a rodeá-lo.
Essa hipótese não tem apoio concreto nos textos. Mc 7.15,21 poderia valer como estágio final de um pretendido processo evolutivo unicamente se houvesse aí referência ao que nos interessa mais diretamente, ou seja, a doenças e a possessões. Mas esse não é o caso. Além disso, a evolução do cristianismo posterior à ressurreição também fala contra: se Jesus tivesse evoluído para estágios posteriores de entendimento, por que os seus discípu- los e outros apóstolos teriam teimado em perpetuar uma prática segundo o estágio mais primitivo do seu pensamento?
29 Esta é a tese de Juan A. Ruiz de GOPEGUI, op. cit., p. 337.
Demônios, maus espíritos e a prática exorcista de Jesus segundo os evangelhos
O estudo das patologias de ordem física, psíquica e espiritual a que estão sujeitas as pessoas possessas (veja o quadro anterior a respeito) tem dado ensejo também na atualidade para uma gama de interpretações do fe- nômeno. Entre estas podemos citar:
30 Cosmovisão semelhante é igualmente compartilhada por crenças animistas indígenas, por religiões afro-brasileiras e pelo espiritismo, ressalvando-se, naturalmente, as devidas nuanças nos pormenores. 31 O estudo mais criterioso a esse respeito relacionado com os exorcismos de Jesus é o de Oscar G. QUEVEDO, Antes que os demônios voltem. 32 A maior crítica que se tem feito a esta corrente interpretativa é a de que interpreta o fenômeno como “projeção” sobre uma outra pessoa – no caso, sobre os demônios – de sentimentos ou conflitos reprimidos na psique. Ora, neste caso, a origem do problema é interior ao indivíduo, o problema nasce de dentro e é projetado para fora. No testemunho bíblico sobre a possessão, o que acontece é exatamente o contrário: não é algo interior que é projetado de dentro para fora, mas algo de fora que é “introjetado”: Cf. C. STRECKER, Performative Welten , p. 311-319.