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| Cilles Deleuze +» “Flosoh [6] prál Ica Ba Espinosa Filosofia prática O by Editora Escuta para edição em língua portuguesa 1º edição: maio de 2002 Título original em francês: Spinoza — Philosophie Pratique Les Éditions de Minuit, 1981 A primeira edição deste livro foi publicada pela editora Presses Universitaires de France, em 1970. A presente versão foi modificada e ampliada pelo próprio autor, em 1981, que acrescentou os capítulos HI, V e VI. EDITORES Manoel Tosta Berlinck Maria Cristina Rios Magalhães CAPA Ediara Rios, com foto “Isto é a cor dos meus sonhos”, de Juan Miró PRODUÇÃO EDITORIAL Araide Sanches Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro D348e Deleuze, Gilles Espinosa: filosofia prática / Gilles Deleuze. — São Paulo: Escuta, 2002 144p.; 14x2lem ISBN: 85-7137-196-2 1, Filosofia. L. Título. CDD: 193 Editora Escuta Ltda. Rua Dr. Homem de Mello, 351 05007-001 São Paulo, SP Telefax: (11) 3865-8950 / 3675-1190 / 3672-8345 e-mail: escutaQ uol.com.br Sumário Apresentação .... 7 Capítulo I Vida de Espinosa... 9 Capítulo II Sobre a diferença da Ética em relação a uma Moral... 28: Capítulo III As cartas do mal 37 Capítulo IV Glossário dos principais conceitos da “Ética” Capítulo V A evolução de Espinosa . Capítulo VI Espinosa e nós... Apresentação “— Diga-me, o que o levou a ler Espinosa? O fato de ele ser judeu? — Não, Vossa Excelência, eu nem tinha idéia disso quando me deparei com seu livro. Aliás, se o Senhor leu a história de sua vida, pôde ver que não era amado na sinagoga. Encontrei o volu- me em um antiquário na cidade vizinha; paguei por ele um copeque, lamentando naquele momento gastar um dinheiro tão difícil de ga- nhar. Mais tarde, li algumas páginas, em seguida, continuei como se um vento forte me impulsionasse pelas costas. Não compreendi tudo, como lhe falei, mas quando tocamos em tais idéias é como se segurássemos uma vassoura de feiticeira. Eu não era mais o mes- mo homem... — Gostaria que me explicasse qual o significado que tem para você a obra de Espinosa. Noutros termos, se se trata de uma filosofia, em que consiste ela?... — Não é fácil dizê-lo... Conforme o tema abordado nos di- versos capítulos, e embora tudo pareça sorrateiramente coeso, o livro significa diferentes coisas. Todavia, creio que o significado dele é, sobretudo, que Espinosa queria fazer de si mesmo um ho- mem livre — tão livre quanto possível, tendo em vista sua filosofia, se o senhor me entende — e isso indo até o limite de seus pensa- mentos, e interligando todos os elementos uns aos outros, se Vossa Excelência puder desculpar o mal jeito da expressão. 10 Gilles Deleuze Aí reside todo o sentido da solidão do filósofo. Por não po- der integrar-se a nenhum meio, ele também não pertence a nenhum. É, sem dúvida, nos meios democráticos e liberais que ele encontra as melhores condições de vida, ou melhor, de sobrevivência. Mas tais meios são para ele apenas a garantia de que os maus não poderão envenenar ou mutilar a sua vida, nem separá-la da potên- cia de pensar que transcende os fins de um Estado, de uma sociedade e de qualquer outro meio em geral. Em toda sociedade, mostrará Espinosa, trata-se de obedecer e nada mais: é por isso que as noções de culpa, de mérito e de demérito, de bem e de mal são exclusivamente sociais e estão vinculadas à obediência e à deso- bediência. A melhor sociedade será, pois, aquela que isenta o poder de pensar do dever de obedecer, e, em seu próprio interesse, se res- guarda de submetê-lo à regra do Estado, que vale apenas para as ações. Enquanto o pensamento for livre, portanto vital, nada esta- rá comprometido; quando deixa de o ser, todas as outras opressões tornam-se igualmente possíveis, e, uma vez realizadas, qualquer ação se torna culpável, e toda a vida ameaçada. É certo que o filó- sofo encontra no Estado democrático e nos meios liberais as condições mais favoráveis. Contudo, em nenhum caso ele confun- de seus fins com os de um Estado ou com os objetivos do meio, uma vez que solicita no pensamento forças que escapam tanto à obediência como à culpa, e apresenta a imagem de uma vida situada para além do bem e do mal, rigorosa inocência desprovida de mérito e de culpabilidade. O filósofo pode residir em diversos Estados, habitar diferentes meios, mas à maneira de um eremita, de uma sombra, viandante, inquilino de apartamentos mobilia- dos. Daí por que não-se pode imaginar Espinosa rompendo com o meio judeu, supostamente fechado, para entrar nos meios liberais, supostamente abertos, cristianismo liberal, cartesianismo, burgue- sia favorável aos irmãos De Witt... Porque, aonde quer que ele vá; só pede ou reivindica, com mais ou menos possibilidades de êxito, que o tolerem, ele próprio e seus fins insólitos, e julgará, por essa tolerância, o grau de democracia e de verdade que uma sociedade pode suportar, ou senão, ao contrário, o perigo que ameaça todos os homens. Baruch de Espinosa nasceu em 1632 no bairro judeu de Amsterdã, no seio de uma família de comerciantes prósperos, Espinosa — Filosofia Prática n de origem espanhola ou portuguesa. Realiza seus estudos teoló- gicos e comerciais na escola judia. Desde os treze anos, trabalha na casa comercial de seu pai, e prossegue os seus estudos (por oca- sião da morte do pai em 1654, ele assume os negócios juntamente com o seu irmão, até 1656). Como vai se operar a lenta conversão filosófica que o fez romper com a comunidade judaica, com os negócios e o levou à excomunhão em 1656? Não devemos imaginar homogênea a comunidade de Amsterdã; ela é tão diversificada, tem tantos interesses e ideologias como os meios cristãos. Ela é com- posta, na sua maioria, de ex-marranos, isto é, de judeus que praticaram exteriormente o catolicismo na Espanha e em Portugal, e tiveram de emigrar nos fins do século XVI. Embora sinceramen- te apegados à sua fé, são impregnados de uma cultura filosófica, científica e médica que encontra dificuldades em se conciliar com o judaísmo rabínico tradicional. O próprio pai de Espinosa, apesar de seu ceticismo, nem por isso deixou de desempenhar um papel importante na sinagoga e no seio da comunidade judaica. Em Ams- terdã, alguns não se contentam apenas em duvidar do papel dos rabinos e da tradição, mas inclusive do sentido da própria Escri- tura: Uriel da Costa será condenado em 1647, por haver negado a imortalidade da alma e a lei revelada, reconhecendo apenas a lei natural; e sobretudo, em 1656, Juan de Prado, acusado de ter sus- tentado que as almas morrem com os corpos, que Deus só existe filosoficamente falando, que a fé é inútil, será castigado e depois excomungado.? Documentos, recentemente publicados, comprovam Os estreitos vínculos de Espinosa com Prado; o que leva a pensar que os dois casos foram agregados. Se Espinosa foi condenado mais severamente, excomungado desde 1656, é porque recusava penitenciar-se e buscava, ele próprio, a ruptura. Os rabinos, como em muitos outros casos, parecem ter desejado uma reconciliação. Mas, em vez de se retratar, Espinosa redigiu uma Apologia para justificar a sua saída da Sinagoga, ou, ao menos, um esboço do futuro Tratado teológico-político. O fato de ter nascido em Ams- terdã, numa comunidade judia, devia agravar o seu caso. A vida se tornara difícil para ele naquela cidade. Talvez, devido a uma 2. Cf. LS. Révad. Spinoza et Juan de Prado. Paris: Mouton, 1959. 12 Gilles Deleuze tentativa de assassinato por um fanático, ele tenha ido à Leyde a tim de prosseguir os seus estudos de filosofia, estabelecendo-se no su- búrbio de Rijnsburg. Conta-se que Espinosa conservava o seu casaco perfurado pela facada, para melhor se lembrar de que o pen- samento nem sempre é apreciado pelos homens; e, se pode ocorrer que um filósofo acabe num processo, é mais raro que ele comece por uma excomunhão e uma tentativa de assassinato. Desconhecemos, pois, a variedade da comunidade judaica e o devir de um filósofo, quando acreditamos necessário invocar in- fluências cristãs liberais para explicar, embora aparentemente, a ruptura de Espinosa. Sem dúvida, em Amsterdã, quando seu pai ainda estava vivo, ele devia ter frequentado os cursos da escola de Van den Ende, como muitos jovens judeus que ali aprendiam o la- tim, os elementos da filosofia e da ciência cartesianas, matemática e física. Francis Van den Ende, ex-jesuíta, ganhou rapidamente a reputação de ser não só cartesiano, mas também de livre-pensador e ateu. e até de agitador político (em 1674, ele será executado na Franca, após a revolta do cavaleiro de Rohan). Não há dúvida também de que Espinosa tenha convivido com cristãos liberais e anticlericais, colegiantes e menonistas, inspirados por certo panteísmo e por um comunismo pacifista. Espinosa deve tê-los reencontrado em Rijnsburg, que era um dos seus centros: ele se une a Jarig Jelles, Pieter Balling, Simon de Vries e o livreiro e editor “progressista” Jan Rieuwertz (em 1665, uma carta de Espinosa para Oldenburg testemunha o pacifismo, assim como uma carta para Jelles, em 1671, o tema comunitário). No entanto, parece certo que Van den Ende permaneceu ligado a um modelo de catolicismo, mal- grado todas as dificuldades desse culto na Holanda. Quanto à filosofia dos menonistas e dos colegiantes, cla é rapidamente supe- rada pela de Espinosa, tanto na crítica religiosa como na concepção ética e na preocupação política. Mais que a uma influência de meno:” nistas, ou mesmo de cartesianos, somos levados a pensar que Espinosa se voltou naturalmente para os meios mais tolerantes, os mais aptos a receber um excomungado, um judeu que recusava 3. O romance de Eugêne Sue, Latréaumont, atribui a Van den Ende o papel de conspirador democrata. spinosa — Filosofia Prática 13 tanto o cristianismo como o judaísmo de onde havia saído, e devia sua ruptura apenas a si próprio. Dentre os seus vários sentidos, a excomunhão judaica tinha um significado político e econômico. Tratava-se de uma medida bastante comum e, às vezes, passível de reversão. Privados do poder de um Estado, os notáveis da comunidade não tinham outra sansão para punir aqueles que se esquivavam das contribuições financeiras ou até das ortodoxias políticas. Ora, os notáveis judeus, não menos do que os do partido calvinista, haviam conservado um ódio cristalizado da Espanha e de Portugal e eram politicamente vinculados à casa de Orange, tinham interesses nas Companhias das Índias (em 1640, o rabino Manassés ben Israel, que foi um dos professores de Espinosa, quase foi excomungado por ter criticado a Companhia Oriental; e os membros do conselho que julgou Es- pinosa eram orangistes, pró-calvinistas, anti-hispânicos e, na sua maioria, acionistas da Companhia). As ligações de Espinosa com Os liberais, suas simpatias pelo partido republicano de Jan de Witt que reivindicava a dissolução dos grandes monopólios, tudo isso fazia de Espinosa um rebelde. Demais, não podendo romper com o meio religioso sem romper com o econômico, ele abandona os negócios do pai, aprende o ofício de polidor de lentes e faz-se artesão, filósofo-artesão, provido de uma profissão manual, apto à seguir e a captar o desenvolvimento das leis ópticas. Ele desenha também. Seu antigo biógrafo Colerus relata que ele desenhou um auto-retrato, na postura e indumentária do revolucionário napolitano Masaniello.* Em Rijnsburg, Espinosa expõe aos seus amigos, em latim, o que se tornaria o Breve tratado. Todos anotam, Jelles o traduz em holandês; Espinosa talvez tenha ditado alguns textos que escrevera antes. Por volta de 1661, ele redige o Tratado da correção do in- telecto, que começa com uma espécie de itinerário espiritual, no estilo menonista, focalizado em uma denúncia da riqueza. Esse Tra- tado, esplêndido discurso do método espinosista, ficou inacabado. Em torno de 1663, para um jovem que vivia com ele e lhe dava, 4. Uma gravura conservada em Amsterdã (Gabinete das Estampas do Rijksmu- seum) seria a reprodução desse retrato. 16 Gilles Deleuze o ódio, a tristeza e o remorso? Em 1670 é publicado o Tratado teo- lógico-político, sem nome de autor e em uma falsa edição alemã. Mas o autor foi logo identificado; poucos livros suscitaram tantas refutações, anátemas, insultos e maldições: judeus, católicos, calvinistas e luteranos, todos os meios bem pensantes, inclusive os cartesianos, rivalizam em denúncias. É a partir desse momento que Os termos “espinosismo” e “espinosista” passam a significar injú- rias e ameaças. E até mesmo os críticos de Espinosa, sobre os quais pesa a suspeita de não serem suficientemente severos, são denun- ciados. Com efeito, entre esses críticos, encontram-se certamente liberais e cartesianos divididos, que, ao participar do ataque, dão provas de sua ortodoxia. Um livro explosivo mantém sempre a sua carga explosiva: ainda hoje não se pode ler o Tratado sem nele descobrir a função da filosofia como tentativa radical de desmis- tificação, ou como ciência dos “efeitos”. Um comentador recente afirmou que a verdadeira originalidade do Tratado é a de conside- rar a religião como um efeito. Não apenas no sentido causal, mas em um sentido óptico, efeito cujo processo de produção deve ser buscado, inserindo-o nas suas causas racionais necessárias, tais como elas condicionam os homens que não as compreendem (por exemplo, de que modo as leis da natureza são necessariamente apreendidas como “signos” por aqueles que têm uma imaginação fértil e um frágil entendimento). Espinosa pule lentes inclusive com a religião, lentes especulativas que fazem ver 0 efeito produzido e as leis de sua produção. São os seus vínculos com o partido republicano, talvez a proteção de De Witt, que poupam Espinosa de ser propriamente perturbado. (Desde 1669, Koerbagh, autor de um dicionário filo- sófico cujo espírito espinosista fora denunciado, foi detido e morreu na prisão.) Mas Espinosa deve deixar o subúrbio, onde os pastores tornam sua vida difícil, para se estabelecer em Haia. E, sobretirdo, ao preço do silêncio. Os Países-Baixos estão em guerra. Quando os irmãos De Witt foram assassinados, em 1672, e o partido orangista retomou o poder, Espinosa não podia mais publicar a 6. Cf. J.P, Osier, prefácio do livro L'essence du christianisme (A essência do cristianismo) de Feuerbach. Paris: Maspero (“Ou Spinoza ou Feuerbach”). Espinosa = Filosofia Prática 17 Ética: uma breve tentativa em Amsterdã, em 1675, persuade-o logo a renunciar a isso. “Alguns teólogos aproveitaram-se da oportuni- dade para se queixar publicamente de mim ao príncipe e Ses magistrados: além disso, alguns tolos cartesianos, para afastar a sus- peita de me serem favoráveis, incessantemente apregoaram e continuam a apregoar a repulsa às minhas opiniões é aos itieus escritos.” Espinosa não cogita de modo algum em deixar o país. Ele se sente, porém, cada vez mais solitário e doente. Falta-lhe º ambiente onde poderia viver em paz. Ele recebe, não obstante, vi- sitas de homens esclarecidos que desejam conhecer a Ética, livres a seguir de se juntarem aos críticos, ou mesmo negar as visitas que lhe fizeram (como o fez Leibniz, em 1676). A cátedra de filosofia que o Eleitor palatino lhe oferece em Heidelberg, em 1673, não Ê seduz: Espinosa faz parte dessa estirpe de “pensadores privados que mudam os valores e praticam uma filosofia a martelada, e não daquela dos “professores públicos” (aqueles que, segundo o elo- eio de Leibniz, não interferem nos sentimentos estabelecidos, na ordem da Moral e na Polícia). “Não tendo jamais sido tentado pelo ensino público, não pude determinar-me, embora gap sobre isso longamente, a aceitar esta magnífica ocasião. o pen- samento de Espinosa encontra-se agora ocupado com o problema mais recente: quais são as chances de uma aristocracia comercial? Por que a república liberal fracassou? De onde provém o fracasso da democracia? É possível fazer da multidão uma coletividade de ho- mens livres, em vez de um ajuntamento de escravos? Todas estas interrogações nutrem o Tratado político, que fica inacabado, sim- bolicamente, no início do capítulo sobre a democracia. Em fevereiro de 1677, Espinosa morre, indubitavelmente de uma infecção pul- monar, em presença de seu amigo Meyer, que lhe preserva, então, os manuscritos. Desde o final do presente ano, as Opera posthuma, foram publicadas, graças a doações anônimas. 7. Carta LXVII, para Oldenburg Apto E 8. Carta XLVII, para Fabritius. — Sobre a concepção espinosista do ensino, cf. Tratado político, Cap: VI, 5 49: “Toda personalidade que fizesse a solici- tação. seria autorizada a ensinar publicamente, às suas custas e com O risco de sua reputação...” Vig EnTe Dé “Is Gilles Deleuze Como explicar que esta vida frugal e sem haveres, consumi- da pela doença, esse corpo delgado, frágil, esse rosto oval e moreno com olhos negros e brilhantes dêem à impressão de serem percor- » Tidos pela própria Vida, de ter um poder idêntico à Vida? Tanto na sua maneira de viver como de pensar, Espinosa oferece uma ima- 9 gem da vida positiva e afirmativa, em detrimento dos simulacros com os quais os homens se contentam. Não só os que com eles se ) comprazem, mas também o homem cheio de ódio à vida, envergo- nhado da vida, o homem da autodestruição que multiplica os cultos à morte, que faz a união sagrada do tirano e do escravo, do sacer- dote, do juiz e do guerreiro, sempre prestes a encurralar a vida, a mutilá-la, assassiná-la lenta ou bruscamente, que a recobre oua t sufoca com leis, propriedades, deveres, impérios: eis o diagnóstico que Espinosa faz do mundo, esta traição do universo e do homem. Seu biógrafo Colerus conta que ele apreciava os combates de ara- > nhas: “Ele apanhava aranhas que punha em luta, ou moscas que atirava na teia de aranha, e observava em seguida essa batalha com tanto prazer que às vezes desatava às gargalhadas”? É que os ani- ê mais nos ensinam ao menos o caráter irredutivelmente exterior da “ morte. Eles não a trazem em si, embora necessariamente a dêem É uns aos outros: a morte como mau encontro inevitável na ordem - das existências naturais. Mas eles não inventaram ainda essa mor- J te interior, esse sadomasoquismo universal do escravo-tirano. A crítica que Hegel fará a Espinosa, de ter ignorado o negativo e a sua potência, é a glória e a inocência de Espinosa, a sua própria descoberta. Em um mundo corroído pelo negativo, ele tem ainda bastante confiança na vida, na potência da vida, para questionar a 9. Esta anedota nos parece autêntica, porque apresenta inúmeras ressonâncias “espinosistas”. A luta entre aranhas, ou entre aranha e mosca, poderia fasci- nar Espinosa por diversas razões: 1º) do ponto de vista da exterioridade da morte necessária; 2º) do ponto de vista da composição das relações na natu- reza (como a teia exprime uma relação da aranha com o mundo, que se apropria como tal das relações próprias da mosca); 3º) do ponto de vista da relatividade das perfeições (como um estado que marca uma imperfeição do Ç homem, por exemplo a guerra, pode ao contrário testemunhar uma perfeição, > se nós a reportarmos a outra essência como a do inseto: er Carta XIX, para Blyenbergh). Reencontraremos mais adiante esses problemas. pinosa — Filosofia Prática 19 morte, O apetite mortífero dos homens, as regras do bem e do mal, do justo e do injusto. Ele confia bastante na vida para denunciar todos os fantasmas do negativo. A excomunhão, a guerra, a tirania, a reação, os homens que lutam por sua escravidão como se fosse a sua liberdade, formam o mundo do negativo no qual Espinosa vive; o assassinato dos irmãos De Witt é para ele exemplar. Ultimi barbarorum. Todas as maneiras de humilhar e de triturar a vida, todo o negativo, têm para ele duas origens, uma voltada para ex terior, e outra para o interior: ressentimento e má consciência, ódio e culpabilidade. “O ódio e o remorso, eis os dois inimigos funda- mentais do gênero humano.”!º Essas duas origens, ele não deixa de denunciá-las como ligadas à consciência do homem, só poden- do desaparecer mediante uma nova consciência, sob uma nova visão, com um novo desejo de viver. Espinosa sente e experimen- ta que ele é eterno. . d Para Espinosa, a vida não é uma idéia, uma questão de teo- ria. A vida é uma maneira de ser, um mesmo modo eterno em E os seus atributos. E é somente desse ponto de vista que o método geométrico assume todo o seu sentido. O método geométrico, na É ica, opõe-se ao que Espinosa chama de sátira; e sátira é tudo aquilo que se deleita com a impotência e com a pena dos homens, tudo o que exprime o desprezo e o escárnio, tudo O que se nutre de acusações, malevolências, depreciações, baixas interpretações, tudo o que despedaça as almas (o tirano necessita de almas despe- daçadas, como as almas despedaçadas necessitam de um tirano). O método geométrico deixa de ser um método de exposição inte- lectual; não se trata mais de uma exposição professoral mas de um método de invenção. Ele se torna um método de retificação vital e óptica. Se o homem é de certa forma torcido, retificar-se-á este efei- to de torsão religando-o a suas causas, more geometrico. Essa geometria óptica atravessa toda a Etica. Interrogamo-nos se a Eti- ca devia ser lida em termos de pensamento ou em termos de potência (por exemplo, os atributos são potências ou conceitos?). Na verdade, há apenas um termo, a Vida, que compreende o pen- samento, se bem que, inversamente, ela só é compreendida pelo 10. Breve tratado, primeiro diálogo. 22 Gilles Deleuze Encontraremos uma de: ão dos retratos presumidos de Espinosa, dos dados biográficos, dos manuscritos e edições, em um catálogo do Instituto Holandês de Paris: Spinoza, troisiême centenaire de la mort du philosophe, 1977 (Espinosa, terceiro cen- tenário da morte do filósofo, 1977). Capítulo II Sobre a diferença da Ética em relação a uma Moral Nenhum filósofo foi mais digno do que Espinosa, mas também nenhum outro foi tão injuriado e odiado. Para melhor compreen- der a razão disso, não basta relembrar a grande tese teórica do espinosismo: há uma única substância que possui uma infinidade de atributos, Deus sive Natura, sendo todas as “criaturas” apenas modos desses atributos ou modificações dessa substância. Não basta também mostrar como o panteísmo e o ateísmo se conjugam nessa tese, negando a existência de um Deus moral, criador e transcen- dente. É preciso, antes de tudo, partir das teses práticas que fizeram do espinosismo um objeto de escândalo. Tais teses implicam uma tripla denúncia: da “consciência”, dos “valores” e das “paixões tris- tes”. Essas são as três grandes semelhanças com Nietzsche. E, ainda quando Espinosa estava vivo, essas são as razões pelas quais ele é acusado de materialismo, imoralismo e ateísmo. 1. Desvalorização da consciência (em proveito do pensamento): Espinosa o materialista Espinosa propõe aos filósofos um novo modelo: o corpo. Pro- põe-lhe instituir o corpo como modelo: “Não sabemos o que pode o corpo...”. Esta declaração de ignorância é uma provocação: fala- mos da consciência e de seus decretos, da vontade e de seus efeitos, dos mil meios de mover o corpo, de dominar o corpo e as paixões — 4 24 Gilles Deleuze mas nós nem sequer sabemos de que é capaz um corpo.' Porque não o sabemos, tagarelamos. Como dirá Nietzsche, espantamo-nos diante da consciência, mas “o que surpreende é, acima de tudo, O corpo...” Todavia, uma das teses teóricas mais célebres de Espinosa é conhecida pelo nome de paralelismo: ela não consiste apenas em negar qualquer ligação de causalidade real entre o espírito e o cor- po, mas recusa toda eminência de um sobre outro. Se Espinosa recusa qualquer superioridade da alma sobre o corpo, não é para instaurar uma superioridade do corpo sobre a alma, a qual não se- ria mais inteligível. A significação prática do paralelismo aparece na inversão do princípio tradicional em que se fundava a Moral como empreendimento de dominação das paixões pela consciên- cia: quando o corpo agia, a alma padecia, dizia-se, e a alma não atuava sem que 0 corpo padecesse por sua vez (regra da relação inversa, cf. Descartes, Tratado das paixões, artigos | e 2). Segun- do a Etica, ao contrário, o que é ação na alma é também necessariamente ação no corpo, o que é paixão no corpo é por sua vez necessariamente paixão na alma? Nenhuma preeminência, pois, de uma série sobre a outra. Que quer então dizer Espinosa quando nos convida a tomar o corpo como modelo? ) Trata-se de mostrar que o corpo ultrapassa o conhecimento que dele temos, e o pensamento não ultrapassa menos a cons- “ciência que dele temos. Não há menos coisas no espírito que ultrapassam a nossa cons iência que coisas no corpo que superam nosso conhecimento. É, pois, por um único e mesmo movimento que chegaremos, se for possível, a captar a potência do corpo para além das condições dadas do nosso conhecimento, e a captar a força do espírito, para além das condições dadas da nossa consciência. Procuramos adquirir um conhecimento das potências do corpo para descobrir paralelamente as potências do espírito que escapam à consciência, e poder compará-los. Em suma, o modelo do cor- po, segundo Espinosa, não implica nenhuma desvalorização do pensamento em relação à extensão, porém, o que é muito mais ica, 1, 2, escólio. 2. Etica. 1,2, esc. (e 1H, 13, esc.) » a Espinosa — Filosofia Prática importante, uma desvalorização da consciência em relação ao pen- samento: uma descoberta do inconsciente e de um inconsciente do pensamento, não menos profundo que o desconhecido do corpo. E isso porque a consciência é naturalmente o lugar de uma ilusão. A sua natureza é tal que ela recolhe efeitos, mas ignora as causas. A ordem das causas define-se pelo seguinte: cada corpo na extensão, cada idéia ou cada espírito no pensamento são constituí- dos por relações características que subsumem as partes desse corpo, as partes dessa idéia. Quando um corpo “encontra” outro corpo, uma idéia, outra idéia, tanto acontece que as duas relações se compõem para formar um todo mais potente, quanto que um decompõe o outro e destrói a coesão das suas partes. Eis o que é prodigioso tanto no corpo como no espírito: esses conjuntos de par- tes vivas que se compõem c decompõem segundo leis complexas. A ordem das causas é então uma ordem de composição e de de- composição de relações que afeta infinitamente toda a natureza. Mas nós, como seres conscientes, recolhemos apenas os efeitos des- sas composições e decomposições: sentimos alegria quando um corpo se encontra com o nosso e com ele se compõe, quando uma idéia se encontra com a nossa alma e com ela se compõe; inversa- mente, sentimos tristeza quando um corpo ou uma idéia ameaçam nossa própria coerência. Encontramo-nos numa tal situação que e colhemos apenas “o que acontece” ao nosso corpo, “o que, acontece” à nossa alma, quer dizer, o efeito de um corpo sobre o nosso, o efeito de uma idéia sobre a nossa. Mas o que é o nosso corpo sob a sua própria relação, e nossa alma sob a sua própria | relação, e Os outros corpos e as outras almas ou idéias sob suas | relações respectivas, e as regras segundo as quais todas essas rela-| ções se compõem e decompõem — nada sabemos disso tudo na | ordem de nosso conhecimento e de nossa consciência. Em suma, | as condições em que conhecemos as coisas e tomamos consciên- cia de nós mesmos condenam-nos a ter apenas idéias inadequadas, confusas e mutiladas, efeitos distintos de suas próprias causas.” É 3. Mesmo o espírito possui considerável número de partes: cf. Ética, 1, 15. 4. Ética 1, 28,29. 28 Gilles Deleuze ao ser do qual poderíamos ser função, é o meio de nos incorpo- rarmos nele”. Desvalorização de todos os valores e sobretudo do bem e do mal (em proveito do “bom” e do “mau”): Espinosa o imoralista “Não comerás do fruto...”: Adão, o angustiado, o ignorante, entende estas palavras como a expressão de um interdito. Entre- tanto, de que se trata? Trata-se de um fruto, que, como tal envenenará Adão se este o comer. É o caso do encontro entre dois corpos cujas relações características não se compõem: o fruto agi- rá como um veneno, ou seja, determinará as partes do corpo de Adão (e paralelamente a idéia do fruto determinará as partes de sua alma) ao iniciar novas relações que não correspondem mais à sua própria essência. Todavia, porque Adão ignora as causas, acre- dita que Deus o proíbe moralmente de algo, enquanto Deus lhe revela apenas as consegiiências naturais da ingestão do fruto. Es- pinosa lembra com obstinação: todos os fenômenos que agrupamos sob a categoria do Mal, doenças, morte, são deste tipo: mau en- contro, indigestão, envenenamento, intoxicação, decomposição de relação.” De qualquer maneira, há sempre relações que se compõem na sua ordem, em conformidade com as leis eternas de toda a na- tureza. Não existe o Bem ou o Mal, mas há o bom e o mau. “Para além do Bem e do Mal ao menos não significa para além do bom e do mau.” O bom existe quando um corpo compõe diretamente asua relação com o nosso, e, com toda ou com uma parte de sua potência, aumenta a nossa. Por exemplo, um alimento. O mau para nós existe quando um corpo decompõe a relação do nosso, ainda que se componkã com as nossas partes, mas sob outras relações que aquelas que correspondem à nossa essência: por exemplo, como um veneno que decompõe o sangue. Bom e mau têm pois um 9. Tratado teológico-político, Cap. 4. E Carta XIX, para Blyenbergh. 10. Nietzsche, Genealogia da moral. 1º dissertação, $ 17 inosa — Filosofia Prática 29 primeiro sentido, objetivo, mas relativo e parcial: o que convém à nossa natureza e o que não convém. E, em conseq ncia, bom e mau têm um segundo sentido, subjetivo e modal, qualificando dois tipos, dois modos de existência do homem: será dito bom (ou li- vre, ou razoável, ou forte) aquele que se esforça, tanto quanto pode, por organizar os encontros, por se unir ao que convém à sua natu- reza, por compor a sua relação com relações combináveis e, por esse meio, aumentar sua potência. Pois a bondade tem a ver com o dinamismo, a potência e a composição de potências. Dir-se-á mau, ou escravo, ou fraco, ou insensato, aquele que vive ao acaso dos encontros, que se contenta em sofrer as consequências, pronto a gemer € a acusar toda vez que o efeito sofrido se mostra contrário e lhe revela a sua própria impotência. É que, à força de encontrar indiscriminadamente qualquer coisa, seja sob que relação for, jul- gando que sempre nos sairemos bem à custa de muita violência ou um pouco de astúcia, como não fazer mais encontros maus do que bons? Como evitar que nos destruamos a nós mesmos, à força de culpabilidade, e destruamos os outros à força de ressentimento, pro- pagando por toda parte a nossa própria impotência e a nossa própria escravidão, a nossa própria doença, as nossas próprias indigestões, as nossas toxinas e venenos? Acabaremos por não mais encontrar sequer a nós mesmos." 4 . Eis, pois, o que é a Ética, isto é, uma tipologia dos modos | de existência imanentes, substitui à Moral, a qual relaciona sem: | pre a existência a valores transcendentes. A moral é o julgamento “de Deus, o sistema de Julgamento. Mas à Ética desarticula o siste- ma do julgamento. A oposição dos valores (Bem/Mal) é substituída pela diferença qualitativa dos modos de existência (bom/mau). A ilusão dos valores se confunde com a ilusão da consciência: por- que a consciência é essencialmente ignorante, porque ignora a ordem das coisas e das leis, das relações e de suas composições, porque se contenta em esperar € recolher o efeito, desconhece toda a Natureza. Ora, basta não compreender para moralizar. É claro que uma lei, desde o momento em que não a compreendemos, nos apa- rece sob a espécie moral de um “Deve-se”. Se não compreendemos 11. CE. o texto sobre o suicídio, Ética, IV. 20, esc. aa 30 Gilles Deleuze a regra de três, nós a aplicamos, nós a consideramos um dever. Se Adão não compreende a regra da relação de seu corpo com o fru- to, entende a palavra de Deus como uma proibição. Mais ainda, a forma confusa da lei moral comprometeu de tal modo a lei de na- tureza que o filósofo não deve falar de lei da natureza, mas somente de verdades eternas: “É por analogia que a palavra lei se encontra aplicada a coisas naturais e, de maneira geral, por lei, entendemos um mandamento...”.!? Como diz Nietzsche a respeito da química, ou seja, da ciência dos antídotos e dos venenos, é preciso resguar- dar-se da palavra lei, pois tem um ranço moral. Não obstante, é cômodo separar os dois domínios, o das ver- dades eternas da Natureza e o das leis morais de instituição, mesmo que seja apenas por seus efeitos. Tomemos consciência da pala- vra: a lei moral é um dever, a obediência é o seu único efeito e a sua única finalidade. É possível que essa obediência seja indis- pensável, é possível inclusive que os mandamentos estejam bem fundados. Mas não é esta a questão. A lei, moral ou social, não nos traz conhecimento algum, não dá nada a conhecer. Na pior das hipóteses, impede a formação do conhecimento (a lei do tirano). Na melhor, prepara o conhecimento e torna-o possível (a lei de Abraão ou do Cristo). Entre esses dois extremos, a lei supre 0 co- nhecimento naqueles que são incapazes de o obter em função do seu modo de existência (a lei de Moisés). Mas, de qualquer modo, não deixa de se manifestar uma diferença de natureza entre o co- nhecimento e a moral, entre a relação mandamento-obediência e a relação conhecido-conhecimento. Segundo Espinosa, o drama da teologia, a sua nocividade, não são apenas especulativos; provêm da confusão prática que ela nos inspira entre essas duas ordens di- ferentes por natureza. A teologia considera pelo menos que os dados da Escritura são bases para o conhecimento, mesmo que esse deva ser desenvolvido de forma racional, ou até transposto, tradu- zido pela razão: dhí a hipótese de um Deus moral, criador e transcendente. Há, aqui, como o veremos adiante, uma confusão que compromete toda a ontologia: a história de um longo erro onde se confunde o mandamento com algo a compreender, a obediência 12. Tratado teológico-político. Cap. 4. Espinosa — Filosofia Prática 31 com o próprio conhecimento, o Ser com um Fiat. A lei é sempre à instância transcendente que determina a oposição dos valores Bem/ Mal, mas o conhecimento é sempre a potência imanente que de- | termina a diferença qualitativa dos modos de existência bom/mau. J 3. Desvalorização de todas as “paixões tristes” (em proveito da alegria): Espinosa o ateu Se a Ética e a Moral se contentassem em interpretar diferen- temente os mesmos preceitos, sua distinção seria apenas teórica. Mas não é nada disso. Espinosa, em toda a sua obra, não cessa de denunciar três espécies de personagem: o homem das paixões tris- tes; o homem que explora essas paixões tristes, que precisa delas para estabelecer o seu poder; enfim, o homem que se entristece com a condição humana e as paixões do homem em geral (que tanto pode zombar como se indignar, essa mesma zombaria constitui um mau risco).3:0 escravo, O tirano e o padre... trindade moralista. Nunca, desde Epicuro e Lucrécio, se mostrou melhor o vínculo pro- fundo e implícito entre os tiranos e os escravos: “O grande segredo do regime monárquico e seu profundo interesse consistem em en- ganar os homens, dissimulado, sob o nome de religião, o temor ao qual se quer acorrentá-los; de forma que eles combatem por sua servidão como se fosse sua salvação”. É que a paixão triste é um complexo que reúne o infinito dos desejos e o tormento da alma, a cupidez e a superstição. “Os mais ardentes ao aceitarem qualquer tipo de superstição não podem deixar de ser aqueles que desejam o mais imoderamente os bens exteriores.” O tirano precisa da tris- teza das almas para triunfar, do mesmo modo que as almas tristes precisam de um tirano para se prover e propagar. De qualquer for- ma, o que os une é o ódio à vida, o ressentimento contra a vida. À Ética traça O retrato do homem do ressentimento, para quem qualquer tipo de felicidade é uma ofensa, e faz da miséria ou da impotência sua única paixão. “Os que não sabem fortificar os 13. CE. a denúncia da “sátira” por Espinosa: Tratado político, Cap. 1, 1, e Ética, III, prefácio. 14. Tratado teológico-político. prefácio 34 Gilles Deleuze diríamos que sua potência se adiciona à nossa: as paixões que nos afetam são de alegria, nossa potência de agir é ampliada ou favo- recida. Esta alegria é ainda uma paixão, visto que tem uma causa exterior; permanecemos ainda separados de nossa potência de agir, não a possuímos formalmente. Esta potência de agir não deixa de aumentar de modo proporcional, “aproximamo-nos” do ponto de conversão, do ponto de transmutação que nos tornará senhores dela, egpor isso dignos de ação, de alegrias ativas. É o conjunto dessa teoria das afecções que estabelece o es- tatuto das paixões tristes. Sejam elas quais forem, justifiquem-se como se justificarem, representam o grau mais baixo de nossa po- tência: o momento em que estamos separados ao máximo de nossa potência de agir, altamente alienados, entregues aos fantasmas da superstição e às mistificações do tirano. A Ética é necessariamen- te uma ética da alegria: somente a alegria é válida, só a alegria permanece e nos aproxima da ação e da beatitude da ação. A pai- xão triste é sempre impotência. Este será o tríplice problema prático da Ética: Como alcançar um máximo de paixões alegres, e, a par- tir daí, como passar aos sentimentos livres ativos (quando o nosso lugar na Natureza parece condenar-nos aos maus encontros e às tristezas)? Como conseguir formar idéias adequadas, de onde emer- gem precisamente os sentimentos ativos (quando a nossa condição natural parece condenar-nos a ter de nosso corpo, de nosso espí- rito e das outras coisas apenas idéias inadequadas)? Como chegar a ser consciente de si mesmo, de Deus e das coisas — sui et Dei et rerum aeterna quadam necessitate conscius (quando a nossa cons- ciência parece ser inseparável de ilusões)? As grandes teorias da Ética — unicidade da substância,” univocidade dos atributos, imanência, necessidade universal, pa- ralelismo etc. — não são separáveis das três teses práticas acerca da consciência, dos valores e das paixões tristes. Ética é um li- vro simultaneamente escrito duas vezes: uma vez no fluxo contínuo das definições, proposições, demonstrações e corolários, que explanam os grandes temas especulativos com todos os rigores 20. Sobre as duas espécies de paixão, cf. Érica, Il, definição geral dos senti- mentos. 35 Espinosa — Filosofia Prá do raciocínio; outra, na cadeia quebrada dos escólios, linha vulcâni- ca descontínua, segunda versão sob a primeira, que exprime todas as cóleras do coração e expõem as teses práticas de denúncia e li- bertação.? Todo o caminho da Ética se faz na imanência; mas à imanência é o próprio inconsciente e a conquista do inconsciente. A alegria ética é o correlato da afirmação especulativa. 21. É um procedimento corrente que consiste em ocultar as teses mais audacio- sas ou menos ortodoxas nos apêndices ou nas notas (a exemplo do dicionário de Bayle). Espinosa renova a prática mediante seu método sistemático dos escólios, que remetem uns aos outros e se ligam eles próprios aos prefácios e apêndices, formando assim uma segunda Érica subterrânea. Capítulo HI As cartas do mal (Correspondência com Blyenbergh) A correspondência com Blyenbergh forma um conjunto de oitas cartas conservadas (XVIIL-XXIV e XXVII), quatro para cada um, entre dezembro de 1664 e junho de 1665. Ela representa um grande interesse psicológico. Blyenbergh é um corretor de sementes que escreve a Espinosa para questioná-lo sobre a problemática do mal. De início, Espinosa acredita que seu correspondente é movido pela procura da verdade. Ele percebe rapidamente que Blyenbergh de- monstra antes de tudo uma disposição pela disputa, pelo desejo de ter razão e pela mania de julgar: mais do que um filósofo, ele é um teólogo calvinista amador. A certas insolências de Blyenbergh Espinosa reage friamente, e isto desde a segunda carta (XX). Mas, apesar de tudo, continua a correspondência como se ele próprio estivesse fascinado pelo tema. Espinosa apenas romperá a corres- pondência após uma visita de Blyenbergh, quando este começa a questioná-lo sobre temas aleatórios, estranhos à problemática do mal. Ora, é precisamente o interesse profundo desse conjunto de car- tas: os únicos textos longos nos quais Espinosa considera em si o problema do mal, e tenta análises e fórmulas sem equivalência com os seus outros escritos. Não temos absolutamente a impressão de que Blyenbergh seja estúpido ou confuso, apesar do que dele foi dito (seus defeitos encontram-se alhures). Apesar de não conhecer a Ética e de iniciar sua primeira carta com observações alusivas à exposi- ção da filosofia de Descartes, ele não cessa de questionar acerca dos temas essenciais diretamente vinculados ao espinosismo, ele obriga Espinosa a multiplicar os exemplos, a desenvolver paradoxos,