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Análise da Narrativa na Ditadura Militar (1964-1985) - Documentários da Agência Nacional, Provas de Construção

Este artigo analisa duas documentários produzidos pela agência nacional durante a ditadura militar no brasil: ‘on the rhythm of the future’ (1970) e ‘brazilian expeditionary force in italy’ (1970). O artigo explora as categorias de ‘espaço de experiência’ e ‘horizonte de expectativa’ para entender como as produções documentárias da agência nacional contribuíram para a construção da imagem do regime e sua compreensão do tempo. Além disso, o artigo apresenta brevemente análises históricas sobre o período da ditadura militar brasileira.

Tipologia: Provas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Tiago22
Tiago22 🇧🇷

4.8

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Palavras-chave: Ditadura Militar; Agência
Nacional; Espaço de Experiência; Horizonte de
Expectativa; Propaganda Potica.
“Space of experienceand “horizon of
expectation”: uses of historical time and
political propaganda of the Brazilian military
dictatorship (1964-1979)
The consolidation of the m il it ar y d ictatorship
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J Ú L I A
B O O R
N E Q U E T E
ESPAÇO
DE
EXPERIÊNCIA
E
HORIZONTE
DE
EXPECTATIVA
:
USOS
DO
TEMPO
HISTÓRICO
E
PROPAGANDA
POLÍTICA
DA
DITADURA
MILITAR
BRASILEIRA
(
1964
-
1979
)
[SURES | Volume 1, número 13, 2019 ]
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[RESUMO] [ABSTRACT]

A consolidação da ditadura militar (1964-1985) foi um processo marcado não somente pelo crescimento do uso do aparato repressivo do Estado como também pela necessidade de construção de uma imagem que legitimasse os governos estabelecidos após o golpe de 1964. Neste sentido, o regime fez uso de uma série de políticas a fim de criar coesão social, além de fazer circular visões sobre o país fundamentadas na narrativa dos militares. A Agência Nacional (AN) foi um dos órgãos que construiu e divulgou a propaganda política militar em formatos audiovisuais. Assim, neste artigo pretende-se analisar dois documentários produzidos pela AN: “Em ritmo de futuro” (1970) e “Força expedicionária brasileira na Itália” (1970), buscando examinar, sobretudo, os usos e aparições das categorias de tempo histórico nas narrativas de tais produções institucionais. Nossa análise se dá através dos conceitos de “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa” de Reinhart Koselleck a fim de observarmos os desdobramentos políticos e discursivos utilizados pela ditadura para criar coesão em torno de seu projeto de nação.

Palavras-chave: Ditadura Militar; Agência Nacional; Espaço de Experiência; Horizonte de Expectativa; Propaganda Política.

“Space of experience” and “horizon of expectation”: uses of historical time and political propaganda of the Brazilian military dictatorship (1964-1979)

The consolidation of the military dictatorship (1964-1985) was a process marked not only by the growing use of the repressive state apparatus but also by the need to build an image that legitimizes the governments established after the 1964 coup. It will use a series of policies to create social cohesion and circulate country views based on the military narrative. The Agência Nacional is one of the agencies that will build and disseminate military political propaganda in audiovisual formats. Through these productions one can find important elements that help in understanding the images constructed by and to represent the regime, emphasizing the look at the uses and appearances of historical times in the narrative construction of the documentaries in question. Thus, this article intends to analyze two documentaries produced by the AN: “On the Rhythm of the Future” (1970) and “Brazilian Expeditionary Force in Italy” (1970), seeking to examine, above all, the uses and apparitions of the categories of historical time in the narratives of institutional documentaries.

J Ú L I A B O O R N E Q U E T E

“ESPAÇO DE EXPERIÊNCIA” E “HORIZONTE DE

EXPECTATIVA”: USOS DO TEMPO HISTÓRICO E

PROPAGANDA POLÍTICA DA DITADURA MILITAR

BRASILEIRA ( 1964 - 1979 )

[RESUMO] [ABSTRACT]

Our analysis will take place through Reinhart Koselleck's concepts of “space of experience” and “horizon of expectation” in order to observe the political and discursive developments used by the dictatorship to create cohesion around its nation project.

Keywords: Female bodies, gender violence, abortion, authoritarianism, Brazilian military dictatorship.

J Ú L I A B O O R N E Q U E T E

“ESPAÇO DE EXPERIÊNCIA” E “HORIZONTE DE

EXPECTATIVA”: USOS DO TEMPO HISTÓRICO E

PROPAGANDA POLÍTICA DA DITADURA MILITAR

BRASILEIRA ( 1964 - 1979 )

Neste capítulo, o autor alemão problematiza as questões referentes aos tempos históricos, propondo as concepções de “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”, concedendo novos olhares para a abordagem acerca das análises históricas e dos desdobramentos temporais. Neste sentido, Koselleck aproxima estas concepções como equivalentes às de tempo e espaço (KOSELLECK, 2006, p.307), não havendo a possibilidade de não interligação entre as mesmas, ou seja, não há experiência sem expectativa de futuro e nem vice- versa. Estas categorias estão necessariamente interligadas e se retroalimentam e se influenciam, no sentido de que os tempos, tal qual como conhecemos, são problematizados. O passado não é uma categoria acabada, de maneira que ele é sempre atualizado no presente em tensão com os projetos de futuro. É uma ideia de entrelaçamento total dos tempos. O autor constrói algumas definições sobre estas categorias que é necessário que apresentemos aqui. A “experiência” corresponde ao passado atual, o presente efêmero que se relaciona com as experiências ressignificadas. Neste sentido, o presente atualiza e re-atualiza as experiências vividas consciente ou inconscientemente, em processos de incessantes ressignificações. Já a categoria de “horizonte de expectativa” é ligada simultaneamente ao que ainda não foi experimentado, para o projeto de futuro. Assim, o “espaço de experiência” e o “horizonte de expectativa” se complementam de maneira que “é a tensão entre experiência e expectativa que, de uma forma sempre diferente, suscita novas soluções, fazendo surgir o tempo histórico” (KOSELLECK, 2006, p.313) entrelaçando as ideias de tempo que, até então, são comumente tidas como lineares e acabadas.

Assim, partirmos de uma concepção da experiência completa em seu passado tensionada com a expectativa, constantemente aberta em uma multiplicidade de possibilidades temporais e em constante disputa de projetos de futuro. A experiência acumula uma série de camadas de tempos que estão em contínuo processo de ressignificação e de disputa, pois se relaciona intimamente com os projetos futuros e legitimação de ações do presente. Assim, como assinalado no prefácio pelo autor, é nesta tensão entre as concepções que se situa o tempo histórico, não prescindido de uma ordem cronológica. Ademais, cabe destacar que o “horizonte de expectativa” não significa a concretização, ao contrário, o conceito mensura as infinitas possibilidades de expectativas em relação ao tempo futuro, sejam efetuadas ou não. Esta relação pressupõe a produção de novas relações e olhares com os tempos uma vez que o espaço de experiência é constantemente reinterpretado e as expectativas futuras constroem novos espaços de experiência e vice-versa. Desta maneira, não há nenhuma certeza estática em relação às categorias, elas não se condicionam de maneira engessada, existindo as variações de retro influência que se encontram sempre abertas (KOSELLECK, 2006, p.313). Partindo destas premissas de análise, devemos refletir a respeito dos estudos historiográficos acerca do período da ditadura civil-militar, levando em conta, sobretudo, as novas perspectivas que vêm sendo colocadas por estas pesquisas. Durante muitos anos, principalmente a partir do processo de redemocratização, perdurou uma memória e uma interpretação historiográfica que entendiam o golpe e o regime como oposição entre civis e militares, entre resistentes e ditadores.

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“ESPAÇO DE EXPERIÊNCIA” E “HORIZONTE DE EXPECTATIVA”: USOS DO TEMPO

HISTÓRICO E PROPAGANDA POLÍTICA DA DITADURA MILITAR BRASILEIRA ( 1964 -

A narrativa que se elaborou a respeito da experiência da ditadura superdimensionou a chamada resistência e tendeu a obscurecer camadas amplas da sociedade que apoiaram e colaboraram com a produção e manutenção do regime. No ano de 2000, com a publicação de Daniel Aarão Reis Filho, os limites desta memória são colocados em xeque. O autor coloca, inclusive de forma irônica, a questão central: se todos resistiram, como o regime durou mais de duas décadas? Assim, são trazidas para o debate do caso brasileiro questões que levem em conta as relações de identidade, de consenso e colaboração que serviram de base para manutenção do regime, afinal, nenhum regime autoritário sobrevive apenas pela repressão e pelo medo. É neste contexto que aparece o debate sobre o apoio civil ao golpe e passa a ser questionada a nomenclatura do “golpe militar” o qual não demarca os movimentos que pediram intervenção militar e tampouco o financiamento de empresas privadas na articulação do golpe. A partir de então, há uma série de produções acadêmicas 5 que visam compreender as relações íntimas que se estabeleceram entre a sociedade e o regime autoritário, bem como as articulações destes. A título de exemplo, podemos citar os trabalhos de Aline Presot (2004), Janaína Cordeiro (2009), Tatyana Maia (2012), Carlos Fico (1997), Denise Rollemberg e Samantha Quadrat (2010). A respeito disto, cabe destacar:

Ver o homem, e não o “monstro do torturador”, tem sido uma preocupação desses trabalhos. O homem com a cara- de-qualquer-um, saído da sociedade, nada estranho a ela, portanto. Não sendo suportável acreditar que a barbárie foi aceitável, criou-se a figura do torturador não à imagem e semelhança de homens e mulheres, mas de seres loucos, monstros, anormais, como se o Mal não fizesse parte da humanidade. (...) Enquanto estivermos procurando torturadores sem rostos humanos, longe estaremos de compreender a barbárie como criação de homens e mulheres, gestada em nosso meio. (QUADRAT; ROLLEMBERG, 2010, p.13).

5 Vale ressaltar que estas produções irão partir de análises de relação entre omeio social e a articulação do Estado autoritário. Assim, a preocupação é problematizar e analisar como estes meios funcionaram e se relacionaram.

Assim, além da compreensão da ditadura enquanto um produto social, passa a haver a importância de entender como o regime se estruturou para além do aparato repressivo, visto que esta estrutura faz parte da dinâmica para com a sociedade. Estes trabalhos 6 também trazem a importância de romper com o olhar que insistia em colocar os militares e os governos militares em um bloco homogêneo. Além disto, cabe ressaltar que estas produções passam a incorporar análises que se constroem internacionalmente, sobretudo, a partir dos anos de 1970 e 1980. A partir das análises das experiências do fascismo e do nazismo, passa a haver uma preocupação maior em levar em consideração a relação complexa que se estabelece entre as construções destes regimes e a sociedade. A exemplo, temos o pensamento de Hannah Arendt 7 e Pierre Laborie 8, que irão influenciar inegavelmente os estudos de consenso e legitimidade para as ditaduras do Conesul. Assim, importantes conceitos são apropriados e repensados para analisar as conjunturas das experiências autoritárias militares, considerando não mais enxergar na ditadura ou nos ditadores uma figura do Mal desconhecido, ou do golpe como um simples acidente de percurso, mas como parte da própria sociedade, gestada no meio social (QUADRAT, ROLLEMBERG, 2010, p.13).

6 A exemplo: D’ARAÚJO, Celina.; SOARES, Gláucio Ary.; CASTRO, Celso. 1964:visões do golpe. A memória militar sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.7 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 8 LABORIE, Pierre. 1940-1944, os franceses do pensar duplo. In: QUADRAT, Samantha Viz.;ROLLEMBERG, Denise (orgs). A construção social dos regimesautoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX, Europa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

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“ESPAÇO DE EXPERIÊNCIA” E “HORIZONTE DE EXPECTATIVA”: USOS DO TEMPO

HISTÓRICO E PROPAGANDA POLÍTICA DA DITADURA MILITAR BRASILEIRA ( 1964 -

[SURES | Volume 1, número 13, 2019 ]

Os tópicos do otimismo – a exuberância nacional, a democracia racial, o congraçamento social, a harmônica integração nacional, o passado incruento, a alegria, a cordialidade e a festividade do brasileiro, entre outros – foram re-significados pela propaganda militar tendo em vista a nova configuração sócio-econômica que se pretendia inaugurar. (FICO, 1997, p.147).

Levando em conta estas análises, destacamos dois documentários 11 produzidos pela Agência Nacional, os dois realizados e divulgados ao ano de 1970: Em ritmo de futuro e Força Expedicionária brasileira na Itália. Não entraremos aqui em uma análise aprofundada, mas sim em uma análise prévia de apresentação destas produções, pensando nas contribuições que as concepções de compreensão do tempo abordadas até então têm a nos fornecer. Neste sentido, é notório que existe uma mobilização de um espaço de experiência, ou seja, experiências coletivas que serão ressignificadas a partir da projeção de futuro que o regime elaborava. Cabe destacar as características de produção destes documentários. Tratam-se de curtas- metragens com duração que varia de cinco a trinta minutos, em média. A narrativa se constrói em um equilíbrio entre imagens e narrador com a utilização da técnica voz-over 12. Estas produções foram construídas a partir da lógica do Cinema Verdade, isto é, a construção narrativa pressupõe que o espectador compreenda o conteúdo a ser apresentado como um reflexo fiel da realidade. Assim, fica perceptível que as marcas autorais são secundárias, havendo a centralidade na narrativa enquanto uma visão neutra e fiel do conteúdo que se apresentava. É evidente que, por toda produção fílmica conter em sua construção os traços da subjetividade humana, produções de sentido e de realidade, ainda que o caráter objetivo seja evidenciado, é possível que se observe os traços

(^11) http://www.zappiens.br/portal/home.jsp> Acesso em 22 de junho de 2019. Documentários disponibilizados através do Portal Zappiens em: 12 Técnica narrativa utilizada em documentários brasileiros, também chamadade “Voz de Deus”. Se trata da gravação em áudio da voz do narrador posterior àapenas faixa desua áudio voz original.se coloca Desta na forma,construção o narrador narrativa não doexiste conteúdo visualmente, a ser apresentado. Sobre isto, ver mais em: RAMOS, Fernão. Mas, afinal... o que émesmo um documentário? São Paulo: SENAC, 2008.

das intenções, das crenças e do imaginário que se apresenta (KORNIS, 1992, p.243). Levando em conta essa narrativa e a lógica da produção do documentário enquanto um “espelho do real”, pode-se perceber a busca por uma legitimidade da visão que está sendo construída. O documentário intitulado Força Expedicionária brasileira na Itália possui uma duração de vinte minutos, imagens em preto e branco e tem como objetivo “reconstruir” a experiência militar brasileira na Segunda Guerra Mundial. Em um primeiro momento, já nos parece interessante destacar que é uma produção do ano de 1970 que tem por objetivo relatar uma experiência de mais de duas décadas antes, o que já nos fornece um importante subsídio para pensar o passado que está sendo mobilizado por novas atribuições de sentidos. A narrativa se inicia com o ano de 1939, apresentando Hitler e Mussolini ascendendo ao poder da Alemanha e Itália, respectivamente. Neste momento, não há trilha sonora, somente a voz do narrador, evidenciando o clima de horror que passa a assombrar a Europa e o mundo, com a promessa de “guerra total a quem se opor”. Após as imagens do nazismo e fascismo europeu, surgem trechos de paisagens brasileiras, precisamente do Rio de Janeiro, enquanto o narrador nos conta que “longe do palco da guerra, o Brasil é um paraíso de paz procurado desesperadamente pelos exilados europeus” (Força Expedicionária Brasileira na Itália, 1970, 00:01:20) Ao passo que decorre o documentário, o narrador coloca que Hitler começa a atacar o litoral brasileiro a partir de 1941. Imagens de sucessivas explosões aparecem à tela, enquanto o narrador aponta o ataque alemão aos “indefesos navios mercantis” brasileiros.

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“ESPAÇO DE EXPERIÊNCIA” E “HORIZONTE DE EXPECTATIVA”: USOS DO TEMPO

HISTÓRICO E PROPAGANDA POLÍTICA DA DITADURA MILITAR BRASILEIRA ( 1964 -

[SURES | Volume 1, número 13, 2019 ]

Até então, a narrativa construída coloca que o país fora atacado injustamente, tendo permanecido em um isolamento pacífico com relação ao confronto até o governo reconhecer o Estado de Guerra entre o Brasil e os países do Eixo. Assim, o narrador apresenta que, em maio de 1942, a FAB (Força Aérea Brasileira), ao patrulhar o Atlântico Sul, abate um submarino nazista de 1. toneladas, o que aparece como “primeira resposta” dos brasileiros aos “covardes” ataques nazistas. Neste momento, as imagens dos soldados da FAB aparecem juntamente com uma trilha sonora alegre. Este é o pontapé para apresentar a entrada efetiva da Força Expedicionária Brasileira na guerra, em julho de 1944. A participação da Força Expedicionária Brasileira é apresentada como um total sucesso para os brasileiros, com trilha sonora comemorativa e imagens dos soldados enfrentando as dificuldades da guerra com sorrisos, como podemos observar na figura abaixo:

Figura 1 – 00:09:26 de “Força Expedicionária brasileira na Itália”

Fonte : Documentário Agência Nacional, 1970, nº 132.

O bom humor e os sorrisos são destacados na narrativa como elementos “temperados à moda brasileira”.

O destaque dado a esses olhares nos permite refletir como os soldados são apresentados segundo características que são entendidas como “tipicamente” brasileiras. Se levarmos em conta a análise de Fico, podemos observar que estas características não surgem ao acaso, principalmente com o tom que lhes é atribuído. Trata-se de um mecanismo de atribuir significados e sentidos às figuras e valores militares a partir de elementos já presentes no imaginário social brasileiro 13, o que torna estes soldados familiares e identificáveis com o espectador. É interessante que se observe a dramatização que ocorre na narrativa, que dá uma superdimensão à participação das tropas brasileiras na Segunda Guerra Mundial, tendo em vista a valorização das Forças Armadas enquanto defensoras da Pátria. O tom atribuído é acompanhado por uma trilha sonora comemorativa. Esta trilha sonora só ganha uma melodia melancólica ao fim do documentário, quando o mesmo apresenta imagens dos corpos de soldados mortos retornando ao Brasil, intercalando com cenas das famílias chorando e prestando suas últimas homenagens. A isso, o narrador descreve:

A 2 de maio de 1945, cessar fogo. Era a derrota de Hitler e Mussolini. Os pracinhas sorriem. Começa as operações de retorno ao Brasil. O valor desses homens seria reconhecido por todos que fizeram a história da guerra na Itália. A eles coube, diria o General Mark Clark, o mais duro setor da frente dos Apeninos. Navios da nossa Marinha trazem de volta os escalões da força expedicionária. Na imensidão do Atlântico encontram-se as três armas brasileiras. Soldados do mar, do ar e da terra. A alma do povo acolhe com efusão a boa notícia. As transformações políticas do Brasil se fazem em paz.

13 Segundo Carlos Fico, os tópicos do otimismo se consolidam no imagináriosocial brasileiro constituindo a própria identidade do que significa ser brasileiro,congraçamento social, a harmônica integração nacional, o passado incruento, sendo “(...) a exuberância natural, a democracia racial, o a alegria, a cordialidade e a festividade do brasileiro entre outros” (FICO, 1997,p.147). Assim, a propaganda política da ditadura militar utiliza estes elementos de maneira ressignificada, explorando seu potencial simbólico numa narrativaque produza sentido nos valores militares.

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“ESPAÇO DE EXPERIÊNCIA” E “HORIZONTE DE EXPECTATIVA”: USOS DO TEMPO

HISTÓRICO E PROPAGANDA POLÍTICA DA DITADURA MILITAR BRASILEIRA ( 1964 -

Há a nítida mobilização de duas categorias temporais que se entrelaçam, se complementam. A participação das Forças Armadas na Segunda Guerra Mundial é “reconstituída” através das lentes da Agência Nacional em formato de documentário, o que já nos diz muito sobre a visão que foi construída, uma vez que a narrativa documentária se coloca como objetiva, neutra e respaldada no real. Conforme aponta Fernão Pessoa Ramos (2008), a finalidade da narrativa do documentário é a produção de asserções sobre o mundo de modo objetivo. As imagens e os personagens que são apresentados são colocados como encarnações no mundo do universo que quer ser mostrado, ou seja, a materialização “real” da visão que o documentário apresenta. Desta maneira, o olhar do espectador já parte deste pressuposto, seja para questionar ou absorver, sendo, então, “uma narrativa com imagens-câmera que estabelece asserções sobre o mundo, na medida em que haja um espectador que receba essa narrativa como asserção sobre o mundo” (RAMOS, 2008, p.25). Ainda, ao mobilizar este “passado”, a narrativa o ressignifica a partir dos valores que são caros aquele momento presente. Traz para o coletivo uma experiência comum passada, apresentada através das lentes do presente, atribuindo-lhe novos sentidos. A participação se superdimensiona, uma vez que devemos levar em conta que apenas um contingente é levado à Itália, somente ao fim da guerra, o que o narrador fala rapidamente. Entretanto, se torna uma experiência que se desenrola por vinte minutos de produção audiovisual, com o enfoque na coragem, no bom humor, na confiança e preparo militar à guerra. Esta ênfase que é dada pelo documentário é interessante de ser analisada se pensarmos que o contexto apresentado era o de guerra, um polo geralmente oposto ao de alegria.

Ou seja, a experiência passada é mobilizada por intermédio de olhares que buscam atribuir sentidos de comemoração e exaltação no poder militar presentificando o passado, uma vez que esta “reconstituição” tenha a nos dizer muito mais sobre os militares de 1970 do que os militares encenados da década de 1940. É também notório que existe a busca no “espaço de experiência” de vivências passadas que ampliem a atuação militar no tempo, o que, no caso, se concretizou a partir do caso da Segunda Guerra, o que confere caráter de legitimidade às Forças Armadas ao serem apresentadas como defensoras da Nação desde antes do regime. Já Em ritmo de futuro , ao apresentar o presente projetado pelo “horizonte de expectativa”, traz a ideia de um país do futuro que está sendo construído em razão do presente. Este presente é o presente do poder militar. A produção reforça conceitos caros à ideia de Brasil que a ditadura empenhou-se em construir. O “futuro” é uma dimensão temporal concretizada enquanto projeto e igualmente disputada enquanto valor. Para os militares, o projeto de futuro é legitimado e edificado no presente, graças à intervenção política das Forças Armadas. Os documentários evidenciam uma disputa política que constrói o presente enquanto um entrelaçamento de visões pautadas pelo “espaço de experiência” e o “horizonte de expectativa”. As duas categorias se unem e se complementam de maneira a tornar legítimo e imbuir significados ao presente do Brasil de 1970, marcado, é claro, pelos desdobramentos do golpe de 1964.

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“ESPAÇO DE EXPERIÊNCIA” E “HORIZONTE DE EXPECTATIVA”: USOS DO TEMPO

HISTÓRICO E PROPAGANDA POLÍTICA DA DITADURA MILITAR BRASILEIRA ( 1964 -

Considerações finais Este trabalho buscou traçar considerações a respeito das contribuições teóricas acerca das categorias de tempo propostas por Reinhart Koselleck para pensarmos a experiência do regime militar. Neste sentido, procuramos evidenciar como a visão do regime pode ser analisada a partir das noções de “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa” enquanto concepções tensionadas e complementares para compreendermos as ideias de temporalidade de uma conjuntura. É importante que se diga que as utilizações destas concepções temporais não se tratam de uma exclusividade da ditadura militar brasileira. Ao contrário, os efeitos e sentidos que se ligam à concepção dos tempos históricos são articulados e rearticulados ininterruptamente e inerentemente às experiências humanas. A maneira como as sociedades pensam a si próprias se relaciona intimamente com sua visão de tempo e aos sentidos colocados através destas categorias temporais. Neste sentido, compreendemos que é extremamente enriquecedor levarmos estas concepções em conta, uma vez que elas permitem analisarmos não somente as visões sobre os tempos, mas os sentidos que lhe são atribuídos. Tanto quanto o “espaço de experiência” como o “horizonte de expectativa” são dimensões temporais de intensa disputa e processos de ressignificação. Estas duas concepções se retroalimentam e são cotidianamente absorvidas, construídas e reconstruídas. Assim, enquanto construções sociais e culturais, também se relacionam diretamente com a dimensão política. A mobilização de experiências “passadas” ao lado da concepção de futuro que se colocava indica que tanto uma categoria quanto outra são igualmente espaços essenciais de disputa de significados.

Assim, o “passado” não pode ser compreendido como um espaço fechado e acabado pois as experiências se presentificam e se ressignificam. Conforme Koselleck, “o que distingue a experiência é o haver elaborado acontecimentos passados, é o poder torná-los presentes, o estar saturada de realidade, o incluir em seu próprio comportamento as possibilidades realizadas ou falhas” (KOSELLECK, 2006, p.312). Logo, as camadas de tempo constantemente se influenciam e se complementam. A análise esboçada neste trabalho encontra-se em fase inicial, construída para começar a se pensar as possibilidades de olhares que as duas categorias do autor alemão podem fornecer. E, neste sentido, é essencial destacar que, a partir delas, podemos analisar leituras de tempo e espaço para além do debate de “usos políticos do passado”, pois compreendemos que estas leituras não se resumem a “simples” manipulações ou ideologias, mas constituem olhares sobre as complexidades das camadas temporais. O jogo político que permeia estas interpretações é uma das dimensões que articulam a narrativa entre o “espaço de experiência” e o “horizonte de expectativa” da ditadura militar. Entretanto, acreditamos que estas categorias trazem importantes contribuições para se pensar também a questão da identidade militar e da identidade brasileira como elementos que estão em jogo e disputa dentro da lógica das narrativas apresentadas. Afinal, os pilares que constituíram a elaboração do consenso e da legitimidade do regime em questão se utilizaram nitidamente da construção de sentido temporal de maneira que a própria identidade da ditadura fosse ampliada para além de seu próprio tempo.

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“ESPAÇO DE EXPERIÊNCIA” E “HORIZONTE DE EXPECTATIVA”: USOS DO TEMPO

HISTÓRICO E PROPAGANDA POLÍTICA DA DITADURA MILITAR BRASILEIRA ( 1964 -