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Redefinindo o questionamento científico: da dúvida metódica ao princípio da descrença, Notas de aula de Epistemologia

Este artigo discute o caráter racionalista da definição de questionamento científico instaurada pela dúvida metódica de rené descartes e sua consequente limitação em termos de método e objeto científicos. Ao mesmo tempo, propõe a substituição da dúvida metódica pelo princípio da descrença, o qual estabeleceria possibilidades e limites mais amplos à ciência.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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InterparadIgmas, Ano 1, N. 1, 2013.
25
DA DÚVIDA METÓDICA AO PRINCÍPIO
DA DESCRENÇA: PARA UMA CIÊNCIA DA
AUTOCONSCIÊNCIA
FROM METHODIC DOUBT TO THE DISBELIEF PRINCIPLE: TOWARDS
A SCIENCE OF SELF-CONSCIOUSNESS
DE LA DUDA METÓDICA AL PRINCIPIO DE LA DESCREENCIA: PARA
UNA CIENCIA DE LA AUTOCONCIENCIA
Alexandre Zaslavsky
RESUMO. O amplo questionamento é uma das marcas distintivas da ciência
moderna. Crê-se que a ciência moderna pode pesquisar tudo, pois tudo pode
questionar. A epistemologia de René Descartes, em particular o procedimento
da dúvida metódica, é aporte conceitual decisivo a essa ideia de omniquestio-
namento científico. Descartes se inspirou no modelo axiomático e dedutivo da
geometria e estabelece um sistema de verdades racionais, com o intento de sus-
tentar toda a pesquisa e conhecimento científicos. O presente artigo problema-
tiza o caráter racionalista da definição de questionamento científico instaurada
pela dúvida metódica e suas consequentes limitações em termos de método
e objeto científicos. Na primeira parte reproduz, sucintamente, o argumento
da dúvida metódica e faz algumas ponderações a respeito. Na segunda parte,
apresenta o princípio da descrença enquanto concepção alternativa de questio-
namento científico e sugere implicações ampliando a concepção de cognição
para a vivência. Na terceira parte, delineia a possibilidade de uma ciência da
autoconsciência, a qual também englobaria as percepções extrassensoriais ou
parapsiquismo, viabilizada pela referida transformação no conceito de ques-
tionamento científico.
Palavras-chaves: dúvida metódica; princípio da descrença; autoconsciência.
ABSTRACT. Broad questioning is a distinctive feature of modern science. The
belief exists that modern Science can research everything, as everything can
be questioned. The epistemology of René Descartes, specifically the process
of methodic doubt, is the decisive conceptual support to the idea of scientific
omniquestioning. Descartes, inspired by the axiomatic model and deductive
geometry, established a system of rational truths with the intent to sustain all
research and scientific knowledge. This article problematizes the rationalistic
character of the definition of scientific inquiry instituted by methodic doubt
and its consequent limitations in terms of scientific method and object. The
first part succinctly reproduces the argument of methodic doubt and consid-
ers specific aspects of it. The second part presents the disbelief principle as
an alternative conception of scientific inquiry and suggests implications that
amplify the conception of cognition in experiences. The third part outlines the
possibility of a science of self-consciousness, which also encompasses extrasen-
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DA DÚVIDA METÓDICA AO PRINCÍPIO

DA DESCRENÇA: PARA UMA CIÊNCIA DA

AUTOCONSCIÊNCIA

FROM METHODIC DOUBT TO THE DISBELIEF PRINCIPLE: TOWARDS A SCIENCE OF SELF-CONSCIOUSNESS DE LA DUDA METÓDICA AL PRINCIPIO DE LA DESCREENCIA: PARA UNA CIENCIA DE LA AUTOCONCIENCIA

Alexandre Zaslavsky

RESUMO. O amplo questionamento é uma das marcas distintivas da ciência moderna. Crê-se que a ciência moderna pode pesquisar tudo, pois tudo pode questionar. A epistemologia de René Descartes, em particular o procedimento da dúvida metódica, é aporte conceitual decisivo a essa ideia de omniquestio- namento científico. Descartes se inspirou no modelo axiomático e dedutivo da geometria e estabelece um sistema de verdades racionais, com o intento de sus- tentar toda a pesquisa e conhecimento científicos. O presente artigo problema- tiza o caráter racionalista da definição de questionamento científico instaurada pela dúvida metódica e suas consequentes limitações em termos de método e objeto científicos. Na primeira parte reproduz, sucintamente, o argumento da dúvida metódica e faz algumas ponderações a respeito. Na segunda parte, apresenta o princípio da descrença enquanto concepção alternativa de questio- namento científico e sugere implicações ampliando a concepção de cognição para a vivência. Na terceira parte, delineia a possibilidade de uma ciência da autoconsciência, a qual também englobaria as percepções extrassensoriais ou parapsiquismo, viabilizada pela referida transformação no conceito de ques- tionamento científico. Palavras-chaves: dúvida metódica; princípio da descrença; autoconsciência.

ABSTRACT. Broad questioning is a distinctive feature of modern science. The belief exists that modern Science can research everything, as everything can be questioned. The epistemology of René Descartes, specifically the process of methodic doubt, is the decisive conceptual support to the idea of scientific omniquestioning. Descartes, inspired by the axiomatic model and deductive geometry, established a system of rational truths with the intent to sustain all research and scientific knowledge. This article problematizes the rationalistic character of the definition of scientific inquiry instituted by methodic doubt and its consequent limitations in terms of scientific method and object. The first part succinctly reproduces the argument of methodic doubt and consid- ers specific aspects of it. The second part presents the disbelief principle as an alternative conception of scientific inquiry and suggests implications that amplify the conception of cognition in experiences. The third part outlines the possibility of a science of self-consciousness, which also encompasses extrasen-

Zaslavsky, alexandre. Da Dúvida Metódica ao Princípio da Descrença: Para Uma Ciência da autoconsciência. p. 25-39.

sory perceptions or parapsychism, and intends to viabilize transformation of the concept of scientific enquiry. Keywords: methodic doubt; Disbelief Principle; self-consciousness.

RESUMEN El gran interrogante es uno de los distintivos de la ciencia moderna. Se cree que la ciencia moderna puede investigarlo todo, ya que todo se puede cuestionar. La epistemología de René Descartes, en particular el procedimiento de la duda metódica, es el aporte conceptual decisivo a esa idea de omnicuestionamien- to científico. Descartes se inspiró en el modelo axiomático y deductivo de la geometría, y establece un sistema de verdades racionales, con la intención de sustentar toda la investigación y conocimiento científicos. El presente artícu- lo analiza el carácter racional de la definición de cuestionamiento científico, instaurado por la duda metódica y sus consecuentes limitaciones en términos de método y objeto científico. En la primera parte reproduce, brevemente, el argumento de la duda metódica y hace algunas ponderaciones al respecto. En la segunda parte, presenta el principio de la descreencia como concepción al- ternativa de cuestionamiento científico, y sugiere implicaciones ampliando la concepción de cognición para la vivencia. En la tercera parte, delinea la po- sibilidad de una ciencia de la autoconciencia, la cual también englobaría las percepciones extrasensoriales o el parapsiquismo, viable por la referida trans- formación del concepto de cuestionamiento científico. Palabras-llave: duda metódica; Principio de la Descreencia; autoconciencia.

INTROdUçãO

O presente trabalho, apesar da forma de artigo, pode ser considerado um ensaio, devido ao seu caráter exploratório e conjectural, não exaustivo ou exegé- tico. O objetivo é apresentar e tornar plausível uma intuição, conforme a seguinte conjectura: se a dúvida metódica ocupa um lugar central na formação do concei- to de ciência moderna, em sentido amplo; e se esse lugar é simultaneamente de possibilidade e de limite; então sua substituição por outro elemento de questiona- mento, o princípio da descrença, estabeleceria possibilidade e limite mais amplos à ciência. O contexto em que se situa este trabalho é o da crítica às implicações da epistemologia cartesiana, longa e complexa tradição, datando dos dias em que Descartes trouxe a público suas ideias metafísicas. A epistemologia cartesiana demarcou um antes e um depois. Estabeleceu o próprio conceito de epistemo- logia moderna, portanto toda discussão posterior a ela necessariamente tem de considerá-la, seja para concordar ou discordar. As ciências humanas, ou do es- pírito, desde o século XIX debatem com a epistemologia cartesiana, pois neces- sitam estabelecer status epistemológico ao conhecimento sobre o ser humano, excluído por Descartes do campo científico. O problema do status epistemológico das ciências humanas apresenta diversas vertentes, dentro das quais está tam- bém o presente texto. No entanto, trata-se de uma nova ciência que está em jogo,

Zaslavsky, alexandre. Da Dúvida Metódica ao Princípio da Descrença: Para Uma Ciência da autoconsciência. p. 25-39.

Assim sendo, procura-se ensaiar a recapitulação de um nó górdio episte- mológico – a dúvida metódica – a fim de reconceptualizar o cerne dubitativo ou questionador da ciência moderna, modificando o limite do escopo e do modo de duvidar e, desse modo, abrindo a possibilidade de atribuir status epistemológico ao conhecimento parapsíquico. Trata-se de sugerir elementos para uma concep- ção de autoconsciência que seja passível de ser pesquisada cientificamente. Se a pesquisa científica das vivências pessoais é possível; e o parapsiquismo faz par- te das vivências pessoais; então a pesquisa científica do parapsiquismo também é possível. Este é o ambicioso programa de fundo, o qual visa fazer uma aproxi- mação ensaística ao problema. Pode-se dizer que o objetivo deste texto é tanto conceitual, quanto viven- cial, pois ambas as abordagens acabam por integrarem-se uma à outra. Ao se transformar a autoconsciência, de dubitante em descrente, a concepção de ciência se transforma, mas também, de um ponto de vista pragmático, a autoconsciência do leitor é implicada, pois o eixo epistemológico deixa de ser uma autoconsciência abstrata e universal, para ser uma autoconsciência concreta e particular, a exem- plo do leitor-pesquisador. Ao substituir a dúvida metódica, no núcleo da episte- mologia moderna, pelo princípio da descrença, a autoconsciência terá, conforme se irá mostrar, os atributos da pensenidade e da teaticidade, ambos tematizáveis pela pesquisa científica, no caso, mais exatamente, autopesquisa. A consciência não apenas pensa, mas se manifesta teaticamente (teórica e praticamente) através de pensenes (pensamentos, sentimentos e energias), não é apenas ser pensante (res cogitans), mas ser pensenizante. A ciência da consciência, a partir destas ba- ses epistemológicas, é a Conscienciologia, proposta pelo médico e pesquisador independente Waldo Vieira, em 1981, no livro Projeções da Consciência – Diário de experiências fora do corpo (1995). Nas duas primeiras partes, será feita a apresentação e a comparação entre dúvida metódica e princípio da descrença, de modo a, na terceira parte, retirar-se implicações para a forma de se definir a autoconsciência e, finalmente, estabele- cer reflexões sobre a possibilidade de uma ciência da autoconsciência que permi- ta estudar as vivências pessoais, incluindo as parapsíquicas.

1. A dúvida metódica

O projeto epistemológico de René Descartes teve papel central na cons- tituição de um arcabouço conceitual para os novos conhecimentos científicos e inovações tecnológicas, os quais colidiam frontalmente com o modelo da ciên- cia clássica, cuja referência era os cânones do mundo grego. Os novos conhecimentos não eram dedutíveis dos sistemas da filosofia gre- ga, seja platônica ou aristotélica, muito menos da Bíblia. Este limbo epistemoló- gico era bastante agudo no tempo de Descartes e também por isto sua contribui- ção teve o alcance que teve. Descartes logrou formular uma epistemologia não

Zaslavsky, alexandre. Da Dúvida Metódica ao Princípio da Descrença: Para Uma Ciência da autoconsciência. p. 25-39.

ontológica, mas humana, centrada no sujeito cognoscente. A rigor, ele instaurou a epistemologia propriamente dita, enquanto campo disciplinar autônomo. A epis- temologia cartesiana decorre da relação reflexiva de um sujeito pensante consigo mesmo, a autoconsciência em primeira pessoa, que poderia ser qualquer um de nós. Com isto ele diz que o conhecimento é, sim, elaborado pelo ser humano, o qual é, ao menos para si mesmo, um ser pensante, uma res cogitans. É a cons- tatação, hoje trivial, que o conhecimento é, em primeiro lugar, um produto do pensamento humano, ou seja, do pensamento de indivíduos humanos. A dúvida enquanto manifestação de um ser autoconsciente recebeu status central na cons- tituição da ciência moderna. A nova filosofia de Descartes foi introduzida primeiramente no prefácio do livro Discurso do Método, publicado em 1637. Nesse texto, é apresentada uma espécie de súmula do que viria, quatro anos depois, a ser publicado nas Medi- tações. A questão do método, central na ciência moderna, foi em grande par- te introduzida na epistemologia por Descartes. O problema do conhecimento válido foi formulado em termos de meios confiáveis, até certo ponto uma ana- logia à conservação da verdade na estrutura do silogismo, à base do raciocínio geométrico. Se as premissas são verdadeiras, a conclusão também o será. Com o método adequado, é possível assegurar a transmissão da verdade de enunciados simples para enunciados complexos, derivados daqueles. O silogismo ou forma do argumento válido é a estrutura utilizada na geometria, sobretudo nos Elemen- tos de Euclides, considerada, por Descartes, o modelo de conhecimento científico (1996a, p. 79). O método cartesiano consiste, segundo consta no Discurso do Método, de modo sucinto, nos seguintes itens:

a. Critério da evidência ou indubitabilidade: acatar a verdade apenas do que for claro e distinto. b. Procedimento de análise: dividir o problema até as suas partes mais simples. c. Procedimento de composição: seguir a ordem dos conhecimentos sim- ples aos compostos. d. Procedimento de enumerações: fazer revisões gerais de modo a nada omitir.

A dúvida, portanto, está presente no primeiro item do método cartesia- no; ela é o começo ou a base para aplicação deste método. Na obra Meditações, publicada em 1641, Descartes apresenta com maior detalhe e precisão este mé- todo, a começar pela dúvida, ao se propor a duvidar de todos os seus conheci- mentos prévios, hauridos desde a infância, inclusive no colégio em que estudou, a célebre instituição jesuíta de La Flèche. Essa dúvida, no entanto, seria aplicada sobre categorias de conhecimentos e não a cada conhecimento, pois do contrário

Zaslavsky, alexandre. Da Dúvida Metódica ao Princípio da Descrença: Para Uma Ciência da autoconsciência. p. 25-39.

teria de ser indubitável, ou seja, evidente por si mesmo, claro e distinto. O cogito é essa base de sustentação, pois sua verdade é evidente. A existência do ser pensan- te (res cogitans) se evidencia em seus efeitos imediatos, a saber, os pensamentos (co gitationes), pois, diferente do conteúdo das demais classes de representações, o pensamento (cogitatio) está imediatamente vinculado à origem. As represen- tações atinentes à extensão (res extensa) ou à divindade (res infinita) não se vin- culam imediatamente às coisas extensas ou à coisa infinita, contudo vinculam-se imediatamente à coisa pensante, pois são pensamentos. O conhecimento indubitável, ou seja, evidente, é o princípio fundamental da Geometria, no qual todo sistema se apoia. Assim como o ponto é a definição primeira da geometria euclidiana, o cogito é da epistemologia cartesiana. A ana- logia é mais ampla do que parece, pois o critério de verdade de ambas é o mes- mo, a verdade imediata à razão, a autoevidência racional. Mesmo não colocando a Geometria na esfera dos conhecimentos racionais indubitáveis, até mesmo por pressupor a ideia de extensão, o lugar dela é ocupado pelo cogito. O ponto, para Descartes, não seria suficientemente autoevidente, pois não é claro e distinto, en- volve a extensão e o pensamento, sendo composto. Eis justamente a revolução epistemológica de Descartes: a substituição do objeto de conhecimento evidente pelo sujeito de conhecimento evidente. A coincidência entre o sujeito e o obje- to do conhecimento permite um conhecimento indubitável, autoevidente, axio- mático, absoluto. Entretanto, tal verdade primeira, de cunho racional, estabelece na ciência um primado racionalista dificilmente desentranhável. Este elemento racionalista se configura enquanto um conjunto de crenças a priori limitando a possibilidade de tematização científica, ou seja, os limites do método definem os limites dos objetos. A ciência moderna é essencialmente dubitativa, questio- nadora; mas até que ponto? Ela está aberta a quaisquer dúvidas? O que pode e o que não pode ser duvidado na ciência moderna? Ou seja, o que é um proble- ma científico legítimo? O procedimento cético da dúvida metódica faz uma revisão sistemática do legado epistemológico clássico e medieval, no entanto, o faz de modo racio- nalista. Ao justificar a primeira verdade na “razão pura”, Descartes estabelece o primeiro item do seu método, a saber, a autossuficiência da razão sobre os sen- tidos para discernir a verdade, contudo a ciência historicamente decorrente desta epistemologia também é experimentalista. Se o empirismo da ciência moderna é possível a partir de postulados racionalistas, então se pode supor que este em- pirismo é limitado a priori pela razão e, portanto, que a experiência em desacordo com tais postulados da razão não pode ser estudada cientificamente, ou, mais di- retamente, não é científica. É evidente que a ciência é um empreendimento racio- nal, mas não necessariamente racionalista, significando o primado da razão sobre a experiência no conhecimento humano. Se isto é assim, torna-se necessário re- visitar o cogito cartesiano, locus originário da epistemologia da ciência moderna, retomando o procedimento negativo da dúvida metódica, porém de modo não

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racionalista. Com este objetivo é apresentado e caracterizado, a seguir, o princípio da descrença.

2. O princípio da descrença

O princípio da descrença faz parte do corpus da neociência Conscienciolo- gia e nele representa importante papel. Em todo material publicado ou comuni- cação verbal realizada no contexto da Conscienciologia, o princípio da descrença é explicitamente apresentado, dirigido diretamente ao interlocutor, seja o leitor ou o aluno. Nos periódicos ou livros, o princípio é impresso na folha de rosto ou na última página, enquanto nas aulas ou conferências, aparece em um banner ou painel fixo, legível, para todos os presentes. A razão de tal procedimento, para além da transparência e honestidade institucional, é epistemológica. O princí- pio da descrença é central na proposta científica da Conscienciologia. Não existe Conscienciologia ou pesquisa conscienciológica sem o princípio da descrença. Ou seja, a compreensão do princípio da descrença é prioritária a qualquer pessoa que queira compreender a Conscienciologia, desde o primeiro contato. O princípio da descrença constitui-se de duas partes: uma negativa e outra positiva. As duas primeiras frases são negativas, exortam a não acreditar, ou seja, não admitir as informações ofertadas, sejam da origem que forem: autoridade, livro, imaginação, dentre outras. Acreditar é admitir a verdade de uma informa- ção oferecida, extrapolando por arbítrio o seu caráter tão somente de tese ou hipótese, da perspectiva de quem não a produziu e sim recebeu pronta. O ato de acreditar com base em algum tipo de autoridade é e sempre foi muito co- mum, no mínimo, porque o ato de crer é livre, basta querer, e também porque se pensa (cartesianamente) que seria impossível testar toda informação que se recebe, portanto, que é impossível não acreditar em nada. Não acreditar significa não admitir uma verdade sem vivência, o que é diferente de não admitir uma hipótese enquanto hipótese. As informações são hipóteses, possibilidades, esse é o seu caráter natural para quem não teve experiência pessoal delas. É impossível não ter hipóteses, mas é possível, sim, não acreditar nelas. As vivências não dei- xam de ser colocações à prova, o tempo todo, das hipóteses que se vai coletando e construindo. Ou seja, faz-se uso das informações ou hipóteses que se tem, mes- mo que ainda não se tenha vivência delas. Aliás, sempre se tem hipóteses antes das vivências; a teoria costuma anteceder a prática. Acreditar é admitir a verdade de uma teoria antes da prática. A enunciação do princípio é feita em modo imperativo, dirigindo-se a uma segunda pessoa, conforme segue: Não acredite em nada. Nem mesmo no que está sendo afirmado nesse texto. Experimente. Tenha suas experiências pessoais. A primeira frase é um convite à negação do ato de acreditar, não necessa- riamente a negação de todas as crenças uma a uma, mas operando uma suspensão de juízo por atacado, por assim dizer. O ato de desacreditar é tão incondicional, em si mesmo, quanto o ato de acreditar. Para acreditar ou desacreditar, diferente

Zaslavsky, alexandre. Da Dúvida Metódica ao Princípio da Descrença: Para Uma Ciência da autoconsciência. p. 25-39.

sensoriais e racionais, dentre outros, cuja separação absoluta não é feita sem im- portantes perdas. A análise é metodologicamente necessária para a compreensão, o que é diferente de distinções categoriais ontológicas, ao modo do que foi feito por Platão e depois por Descartes. O princípio da descrença permite manter o núcleo dubitativo da ciência, legado da epistemologia cartesiana, contudo ampliando o escopo da dúvida, logo, do objeto. Dessa forma, não é necessário se pressupor um conceito racionalista do ser humano, ao contrário, o princípio abarca também essa crença, dando rele- vo à vivência, realidade humana primeira, obscura e confusa perante o formalis- mo geométrico da epistemologia cartesiana, no entanto, inevitável. A proposta até aqui apresentada de redefinir o conceito de questionamen- to no método científico, a saber, da dúvida metódica ao princípio da descrença, traz repercussões ao papel desempenhado pela autoconsciência, também funda- mental à ciência moderna. Se a dúvida metódica evidencia uma autoconsciência exclusivamente pensante, inextensa, sujeito do método científico, mas, por de- finição, excluída dos objetos científicos possíveis, o princípio da descrença evi- dencia uma autoconsciência pensenizante, ou seja, que tem vivências constituí- das por pensamentos (pen), sentimentos (sen) e energias (ene), conectados em uma unidade indissociável, e, ainda assim, objetivamente cognoscível. A seguir, esta transformação no conceito de autoconsciência, decorrente da redefinição do questionamento na ciência, será exposta.

3. dúvida metódica, princípio da descrença e autoconsciência

A autoconsciência instaura a ciência moderna através do cogito, por sua vez resultante da dúvida metódica. A verdade evidente do enunciado “Penso, logo, existo” (Cogito ergo sum), quando pensado, estabelece o ponto de apoio ou ali- cerce fundamental, nas palavras de Descartes, do edifício da ciência. A figura do sujeito autoconsciente representa a grande virada epistemológica moderna, pois transfere o eixo desde o ser para o conhecimento, em termos de produto do pen- samento humano e suas faculdades subjetivas. O ser humano é, na modernidade, a origem do conhecimento. No entanto, tal operação epistemológica de radicação do conhecimento nas faculdades subjetivas, ao mesmo tempo exclui o sujeito do escopo dos objetos legítimos da ciência. A coisa pensante (sujeito, res cogitans) está para o método, assim como a coisa extensa (res extensa) está para o objeto. Foi preciso incluir a subjetividade no conhecimento para dirimir a enorme crise epistemológica então corrente; entretanto foi preciso incluir a subjetividade para excluí-la novamente, “pela porta dos fundos”. A inclusão do sujeito na epistemo- logia, paradoxalmente, é também sua exclusão do escopo investigativo da ciência. A ciência moderna possui, desde sua origem, uma relação conflituosa com a autoconsciência. A dúvida metódica permite suspender o juízo quanto a toda tradição clássica, incluindo a escolástica, e afirmar o primado do sujeito auto-

Zaslavsky, alexandre. Da Dúvida Metódica ao Princípio da Descrença: Para Uma Ciência da autoconsciência. p. 25-39.

consciente, produtor de conhecimento, instância primeira da realidade humana, anterior inclusive à divindade (res infinita), do ponto de vista epistemológico. Para Descartes, a única coisa que sabemos, com absoluta certeza, sem sombra de dúvida, é que existimos enquanto seres pensantes. A dúvida metódica conduz à autoconsciência, que sustenta epistemologicamente a ciência moderna, mas não pode ser por esta diretamente estudada, ou seja, por si mesma estudada. Vale lembrar que desde Platão a ciência é do inteligível, logo, do univer- sal, nunca do particular. A ciência histórica, no século XIX, veio quebrar esse preceito, mas sem chegar à subjetividade particular, o que, aliás, não foi o seu in- tento. Wilhelm Dilthey e seus colaboradores, a exemplo de Georg Misch (1950), constituem honrosas exceções ao defenderem o papel da autobiografia no méto- do historiográfico. Esse círculo de intelectuais foi chave na discussão do estatu- to epistemológico das ciências humanas ou do espírito (Geisteswissenschaften). A distinção entre ciências nomotéticas e idiográficas, proposta por Windelband (1980), foi emblemática nesse debate. A idiografia seria o método das ciências do espírito e a nomotética, das ciências da natureza. A modernidade é o tempo do indivíduo, cuja principal característica – a autoconsciência – Descartes colocou, com grande perspicácia, no cerne da epis- temologia. Entretanto, a autoconsciência não é objeto legítimo da ciência mo- derna instaurada por ela mesma, pois ela é subjetiva, enquanto a ciência há de estudar o que é objetivo, sinônimo de extenso (res extensa). O subjetivo é o signo da modernidade, base da epistemologia e ciência moderna, mas não é, porque não pode ser, estudado por essa mesma ciência moderna. A subjetividade é si- multaneamente possibilidade e limite da ciência moderna: ela possibilita a ciên- cia moderna, pois esta afinal é fruto tão somente do frágil pensamento humano e não de alguma revelação divina; e o limite da ciência moderna, pois, por ser inextensa, é inefável ao método que a mesma autoconsciência estipula e susten- ta. Se considerarmos que por detrás do cogito existe o procedimento da dúvida metódica, e que ambos são conceitualmente necessários para sustentar a isenção científica em relação à tradição, superstições, imposições, etc., então é necessário garantir estes atributos básicos da cientificidade moderna, hipotética, progressiva e laica. A dúvida metódica e o cogito, estando em contexto racionalista, carregam consigo pressupostos que limitam o escopo da ciência, apesar da aparência de ilimitação de horizontes da ciência moderna, pois se não há mais o limite da tradição, tudo poderia ser estudado, pesquisado e, finalmente, descoberto. Mas a concepção da dúvida metódica e do cogito já limitam conceitualmente este tudo, por isso a virtual ilimitação da ciência é enganosa. O tudo da ciência moderna há de estar subsumido, de alguma forma, à categoria da extensão, ser positivado, como já foi amplamente exposto pelos representantes da denominada teoria crí- tica da sociedade, por exemplo, Adorno e Horkheimer (1985). Como é possível manter o projeto laico e universalista da ciência moderna, mas ampliando o seu escopo epistemológico ao estudo científico da autoconsciência particular?

Zaslavsky, alexandre. Da Dúvida Metódica ao Princípio da Descrença: Para Uma Ciência da autoconsciência. p. 25-39.

o qual importa explicitar aqui, a saber, a indissociabilidade entre teoria e prática ou teática ( te oria+pr ática ). O atributo da teaticidade é decorrente da pensenidade e significa que há uma circularidade incessante e aberta entre teoria e prática. Toda teoria articula- da pela consciência está o tempo todo tendo repercussões práticas, ao passo que toda prática consciencial está o tempo todo sendo, de um algum modo, refletida conceitualmente. É claro que o nível disto varia de acordo com a maturidade e experiência de cada um. A teaticidade, por sua vez, associa-se ao atributo da evolutividade, pois a tendência destes círculos de teoria e prática é a evolução das manifestações da consciência, tornando-se cada vez mais lúcidas. Uma concepção vivencial de autoconsciência, a partir do princípio da des- crença, permite se pensar de modo objetivo determinados atributos conscien- ciais, a exemplo dos acima mencionados, abrindo então a possibilidade da pes- quisa científica da autoconsciência ou autopesquisa.

CONSIdERAçõES fINAIS: PARA UMA AUTOCOgNIçãO PARAPSíqUICA

O procedimento da dúvida metódica, à base da epistemologia cartesiana, é um elemento central no pensamento moderno em si e, logo, na ciência mo- derna. Todo pensamento moderno parte da negação da tradição, preconceitos, dogmas, e estabelece uma espécie de “ponto zero” do pensamento, em que há abertura para se construir um novo conhecimento. A dúvida é uma característica inextricável da ciência moderna. O senso comum já entende que a ciência não propõe verdades absolutas, mas hipóteses que ora são confirmadas e ora refu- tadas. Descartes inaugurou epistemologicamente essa forma de pensar, em suas linhas elementares, na dúvida metódica. A ciência deve se valer sistematicamente da dúvida para conhecer, e essa dúvida volta-se, sobretudo, à tradição. A noção de hipótese, tão cara à ciência moderna, é devedora da dúvida metódica. A partir da dúvida metódica, conhecimentos válidos foram sendo pro- postos por Descartes a ponto de realizar distinções ontológicas e também epis- temológicas. Existiriam, assim, três modalidades de seres ou substâncias: a res cogitans (ser pensante), a res extensa (ser extenso) e a res infinita (ser infinito). A diferenciação entre as três categorias permitiria aplicar o critério da evidên- cia ou clareza e distinção, pois as principais indistinções são as que combinam as substâncias. Por exemplo, o ser humano é uma combinação de pensamento e extensão, substâncias categorialmente distintas. Para conhecer o ser humano, é preciso estudar em separado as substâncias que o compõem, para depois inves- tigar a interação delas. Trata-se de um método analítico. O conhecimento, para Descartes, poderia ser representado por uma árvore cuja raiz seria a Metafísica, o tronco seria a Física e os galhos, as ciências particu- lares, com destaque à Medicina, de fato, o objetivo final visado por ele. A Meta-

Zaslavsky, alexandre. Da Dúvida Metódica ao Princípio da Descrença: Para Uma Ciência da autoconsciência. p. 25-39.

física trataria da res cogitans e da res infinita, enquanto as ciências propriamente ditas tratariam da res extensa. De fato, a Física se tornou a ciência moderna por excelência, modelo para as demais. Apesar de tudo, pese a intenção cartesiana de obter conhecimentos confi- áveis sobre a matéria, para melhorar a qualidade de vida da humanidade, a his- tória ou os sucessores estenderam essa pretensão sobre a totalidade da ciência, tornando-a restrita ao descritível geometricamente, mesmo em sentido amplo. A experiência pessoal, ou autovivência, incluindo o parapsiquismo, ficou de fora desse escopo, a partir da sólida, porém racionalista, epistemologia estabelecida por Descartes. A retomada do núcleo dubitativo ou questionador da ciência, oficialmen- te instaurado por Descartes, substituindo o racionalismo da dúvida metódica pelo pragmatismo do princípio da descrença, permite conceber a autoconsciên- cia de modo vivencial, complexo e integrado ao invés de abstrato e metafísico. E esta concepção, por sua vez, ao romper com o dualismo e integrar a consciência no meio, permite propor novos atributos ao modo da pensenidade, teaticidade e evolutividade. Vale a ressalva que compreender a ciência a partir de uma autoconsciência pensênica, não mais apenas pensante, não significa, é lógico, opor-se e abandonar a gama de conquistas da ciência moderna, com bases assentadas no materialis- mo ou na objetividade da extensão (res extensa). A vivência consciencial abran- ge campos de pesquisa inexplorados, pois, até então, sem estatuto epistêmico. A qualidade de vida consciencial não tem limites de expansão, quando pesqui- sada a partir das vivências pessoais pela pensenidade. O princípio da descrença descortina campos de atuação da consciência onde ela nem sequer suspeitava, na antes inefável realidade intraconsciencial. Se a autoconsciência não é concei- to abstrato, mas realidade ativa, o trabalho da autoconsciência sobre si mesma é não só possível, mas um campo convidativo a ser explorado. Se autoconsciência é ação objetiva, quais as implicações éticas e políticas de uma ciência desta au- toconsciência tão prática? São questões a serem estudadas, considerando que as aporias trazidas pelo novo não justificam a negação deste novo, mas, ao contrário, o aprofundamento dos estudos para serem superadas. A negação da autoridade (ou autoritarismo) da tradição, mediante a dúvi- da ou questionamento, e a afirmação da autoconsciência são elementos centrais e indispensáveis da ciência moderna. A questão, conforme se procurou delinear no presente artigo, é refazer esse caminho, reciclando os preconceitos raciona- listas e colocando em seu lugar o princípio da descrença, cuja base é a raciona- lidade autoevolutiva ínsita às vivências pessoais. A autoconsciência evidenciada pelo princípio da descrença é pensenizadora e teática, integrando pensamento, extensão e infinitude no contínuo de suas manifestações energéticas. O presente artigo procurou, criticando elementos da epistemologia carte- siana, abrir possibilidade lógica para novos objetos de pesquisa científica, dentro