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Este artigo traz a história da luta pela liberdade e pelos direitos humanos no brasil durante o período do governo juscelino kubitschek e a resistência contra a ditadura militar. Detalha as medidas instituídas pelo golpe de estado de 1964, incluindo a primeira eleição indireta, a suspensão de liberdades e a intervenção federal. Além disso, discute a importância da compreensão desses eventos para as gerações atuais e o papel dos profissionais do direito e da justiça na resistência. Finalmente, reflete sobre a importância da liberdade de não ter medo para a existência de um estado de direito.
O que você vai aprender
Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas
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Brasília a. 45 n. 179 jul./set. 2008 191
Sumário
Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.), o mais eloqüente dos oradores romanos, disse muito bem que a História é “a testemu- nha dos tempos, luz da verdade, vida da memória, mestra da vida e mensageira da antiguidade” ( De Oratore , 2, 9, 36). O ciclo dos governos autoritários que se sucederam, a partir de 1964, findou, em 1985, com a posse de José Sarney, substi- tuindo o pranteado Tancredo Neves, cuja morte antecipada não lhe permitiu realizar o sonho dos brasileiros: a sua posse na pre- sidência da República. Os anos de chumbo , impostos pela ditadu- ra militar, não estão clara e suficientemente conhecidos e analisados pelos profissionais e estudiosos de Direito nascidos nos anos oitenta. A minha geração, diferentemente,
René Ariel Dotti
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participou intensamente do processo de li- berdades, direitos e garantias, proporciona- dos pela experiência do Governo Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956-1961), e pela resistência heróica em favor da posse de João Goulart, ameaçada por militares contrários à ordem democrática, que não admitiam a sucessão constitucional após a renúncia de Jânio Quadros (1961). Mas a ruptura institucional, paradoxal- mente confirmada no dia 1o^ de abril de 1964
do crime de heresia , cujo processo era defe- rido aos tribunais eclesiásticos: “Além das penas corporaes, que aos culpados de dito malefício forem dadas, serão seus bens con- fiscados, para se delles fazer o que a nossa mercê for, posto que filhos tenhão”. A intitulada Revolução de 1964 desar- quivou os variados tipos de autores que circulavam ao tempo das leis do Reino de Portugal: hereges, apóstatas, feiticeiros, blasfemos, benzedores de cães e outros bichos sem autorização do Rei, além de cate- gorias criminais diversas que deambulavam nas salas dos interrogatórios torturantes e nas fétidas celas dos presídios. E, no lado oposto, desfilavam os dirigentes e os inúmeros prepostos do Comando Supremo , inflado pela colaboração de imensas legiões de alcagüetes, prebostes e revolucionários de primeira hora , que, encarnando instâncias do poder civil, eram, ao mesmo tempo, os atores e os espectadores daquele teatro do absurdo. Eles se acasalaram aos militares num contexto de propaganda dirigida con- tra os pilares nos quais estaria assentado o inferno da democracia: a subversão e a cor- rupção. E, extremo paradoxo: os demônios deveriam ser exorcizados pelas marchas da família, com Deus e pela liberdade!
Parodiando trecho de imortal canção popular de Ataulfo Alves (“Meus tempos de criança”), o democrata que, no dia 9 de abril de 1964, ouvisse no rádio a notícia da edição do Ato Institucional no^1 certamente pensaria: “eu era feliz e não sabia”. O Golpe de Estado , e não a Revolução de 31 de Março, como difundiu a propaganda oficial do novo regime, teve a sua decla- ração de abertura formal com a edição do mencionado Ato, de 9 de abril de 1964. O Comando Supremo da Revolução, representado pelos comandantes em chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, resolveu editar o Ato Institucional no^ 1, que vigorou até 31 de janeiro de 1966, e ope-
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sobre matéria de segurança nacional; d) Suspendeu as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício por tempo certo. Os titulares dessas garan- tias poderiam ser demitidos, removidos, dispensados, postos em disponibilidade, aposentados, transferidos para a reserva ou reformados, por decreto do Presidente da República, “desde que demonstrassem incompatibilidade com os objetivos da Revolução” (art. 14, parágrafo único); e) Ex- tingiu os partidos políticos então existentes, para admitir a criação de somente dois: a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB)^2 ; f) Excluiu da apreciação do Poder Judiciário “os atos praticados pelo Comando Supre- mo da Revolução e pelo Governo Federal”, com fundamento nos atos institucionais.^3
O Ato Institucional no^3 , editado em 5 de fevereiro de 1966: a) Instituiu as eleições indiretas para Governador e Vice-Gover- nador de Estado. A eleição de Governador e Vice-Governador deveria ser feita pela maioria absoluta dos membros da As- sembléia Legislativa, em sessão pública e votação nominal; b) Estabeleceu que os Prefeitos das Capitais seriam nomeados pe- los Governadores, mediante prévio assenti- mento da Assembléia Legislativa ao nome proposto; c) Estabeleceu que os Prefeitos dos demais Municípios seriam eleitos pelo voto direto e maioria simples, admitindo-se sublegendas; d) Fixou datas para as eleições de Governadores e Vice-Governadores; Presidente e Vice-Presidente da República; Senadores e Deputados Federais e estaduais (CONSTITUIÇÕES..., 1986, p. 344-345).
(^2) O primeiro, para dar sustentação ao Governo; o segundo, da oposição. Tais partidos existiram até 29 de novembro de 1979 quando o Congresso Nacional decretou o fim do bipartidarismo. (^3) O Dec.-lei no (^) 898/69 previa a pena de morte e de prisão perpétua.
O Ato Institucional no^4 , de 7 de dezembro de 1966, declara, em sua abertura, que a Carta Política de 1946, além de ter recebido numerosas emendas, não atendia mais às exigências nacionais. Segue-se uma expo- sição de motivos em miniatura: “Conside- rando que se tornou imperioso dar ao País uma Constituição que, além de uniforme e harmônica, represente a institucionalização dos ideais e princípios da Revolução”; “con- siderando que somente uma nova Consti- tuição poderá assegurar a continuidade da obra revolucionária”, “o Presidente da Re- pública resolve”: a) O Congresso Nacional foi convocado para se reunir extraordina- riamente, de 12 de dezembro de 1966 a 24 de janeiro de 1967, para discussão, votação e promulgação do projeto de Constituição apresentado pelo Presidente da República; b) O relator tinha o prazo de 72 horas para emitir parecer pela aprovação ou rejeição do projeto; c) Foi estabelecido o prazo de 4 (quatro) dias para a discussão do projeto em sessão conjunta das duas Casas do Congres- so; d) O Presidente da República poderia baixar Atos Complementares e Decretos-leis em matéria de segurança nacional, até 15 de março de 1967 (CONSTITUIÇÕES..., 1986, p. 346-347).
O mais grave dos éditos revolucioná- rios, o Ato Institucional n o^5 , baixado em 13 de dezembro de 1968, foi conseqüência imediata da resistência parlamentar oposta pela Câmara dos Deputados, que negou a licença para o processo e julgamento do Deputado Márcio Moreira Alves. Os antecedentes daquele episódio fo- ram assim registrados na recente história política brasileira: com a intensificação das atividades da oposição, especialmen- te a partir do movimento estudantil e da atuação de membros da Igreja e das forças
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políticas articuladas na Frente Ampla, 4 o governo passou a reagir, com medidas de repressão institucional e as Polícias Militares. No dia 30 de agosto de 1968, a Universidade Federal de Minas Gerais foi fechada, e a Universidade de Brasília foi invadida pela Polícia Militar, que espan- cou diversos estudantes. O fato repercutiu imediatamente no Congresso Nacional, e, no dia 2 de setembro, em protesto contra a invasão da UnB, o Deputado Federal Már- cio Moreira Alves pronunciou veemente discurso na Câmara, conclamando o povo a fazer um “boicote ao militarismo”, não participando dos festejos comemorativos do 7 de Setembro, data da Independência do Brasil. O discurso foi considerado pelos ministros militares como “ofensivo aos brios e à dignidade das forças armadas”. Diante de tais reações, o Procurador-Geral da República, Décio Meirelles de Miranda, com base no parecer do Ministro da Justiça, Luís Antonio da Gama e Silva, em 12 de outubro, deu entrada no Supremo Tribunal Federal ao pedido de cassação do mandato do Deputado peemedebista, requerendo, ainda, seu enquadramento no art. 151 da Constituição, por “uso abusivo de livre manifestação do pensamento e injúria e difamação das Forças Armadas, com a intenção de combater o regime vigente e a ordem democrática instituída pela Consti- tuição” (ABREU, 2001a, p. 178). O pedido de cassação provocou grande apreensão no Congresso Nacional. No dia 4 de novembro, o Supremo Tribunal Federal enviou à Câmara o pedido de licença para processar o referido parlamentar. No dia
(^4) Frente Ampla: Movimento político lançado ofi- cialmente em 28 de outubro de 1966 com o objetivo de lutar “pela pacificação política do Brasil, através da plena restauração do regime democrático”. Seu principal articulador foi o ex-Governador do então Estado da Guanabara Carlos Lacerda. A Frente contou com a atuação dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek de Oliveira e João Goulart e de correligionário de ambos. Foi extinta em 5 de abril de 1968, pela Portaria n o^ 177, baixada pelo Ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva. (ABREU, 2001b, p. 2331)
12 de dezembro, o pedido foi rejeitado por uma diferença de 75 votos (216 votos contra e 141 a favor). Membros do parti- do governista se aliaram à oposição para consumar aquele que foi um dos maiores atos da resistência parlamentar contra a ditadura militar. O AI no^ 5 autorizou o Presidente da Re- pública a praticar os seguintes atos: a) De- cretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, só voltando as casas legis- lativas a funcionarem quando convocadas pelo Presidente da República; b) Decretar a intervenção nos Estados e Municípios, sem respeito a qualquer limite constitucional ou controle e fiscalização por parte do Con- gresso Nacional, para defesa do “interesse nacional”; c) Suspender os direitos políticos de qualquer cidadão pelo prazo de 10 (dez) anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais, “no interesse de preservar a Revolução”. A suspensão im- portava, concomitantemente, entre outras penalidades, a proibição de participar de atividades de natureza política, gerando, inclusive, “quando necessária”, a aplicação das “medidas de segurança” de liberdade vigiada, de proibição de freqüentar certos lugares e de obrigatoriedade de estabelecer domicílio determinado. O ato que decre- tasse a suspensão dos direitos políticos poderia estabelecer proibições ao exercício de quaisquer outros direitos públicos ou privados; d) Demitir, remover, aposentar, pôr em disponibilidade, transferir para re- serva ou reformar os titulares das garantias legais ou constitucionais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, as quais foram suspensas; e) Decretar o estado de sítio e prorrogá-lo, em qualquer dos casos previstos na Constituição, fixando o respec- tivo prazo; f) Decretar, “após investigação”, o confisco de bens daqueles que tivessem enriquecido ilicitamente no exercício de cargo ou função pública; g) Baixar Atos Complementares para a execução do Ato, bem como adotar, “se necessário à defesa
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não ultrapassar de um (1) dia: Pena
efeitos no país” (§ 1o). “A guerra psicológica adversa é o emprego da propaganda, da contra-propaganda e de ações nos campos político, econômico, psicossocial e militar, com a finalidade de influenciar ou provocar opiniões, emoções, atitudes e comporta- mentos de grupos estrangeiros, inimigos, neutros ou amigos, contra a consecução dos objetivos nacionais” (§ 2o). “A guerra revo- lucionária é o conflito interno, geralmente inspirado em uma ideologia, ou auxiliado do exterior, que visa à conquista subversi- va do poder pelo controle progressivo da Nação”(§ 3 o). O Ato Institucional n o^5 e todos os Atos Complementares foram revogados pela Emenda Constitucional n o^ 11, de 13 de outubro de 1978, no que contrariavam a Constituição Federal, com a ressalva dos atos já praticados e da sua exclusão da apre- ciação judicial. Foi restaurada a proibição das penas de morte e de prisão perpétua em tempo de paz, conforme dispunha o texto original do art. 150, § 11, da Carta Política de 1967.
Nos dias 7 a 12 de maio de 1978, realizou-se, em Curitiba, a VII Conferên- cia Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, coordenada pelo presidente da seccional, Eduardo Rocha Virmond, com o patrocínio do Conselho Federal, liderado por Raymundo Faoro. O evento reuniu mil e quinhentos participantes, entre advoga- dos e estudantes de Direito, que tiveram a oportunidade de acompanhar os debates em torno de 47 teses e assistir a palestras e conferências dos mais renomados causí- dicos e mestres. Uma notável cobertura da imprensa nacional e local já prenunciava os novos tempos que adviriam logo em seguida, com a Emenda Constitucional n o^ 11, de 13 de outubro de 1978, e a Anistia (Lei no^ 6.683, de 28.8.1979). A EC declarou revogados todos os Atos Institucionais , que, mutilando a Carta Política liberal de 1946, vincaram
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as marcas autoritárias na Constituição de 1967 e na chamada Emenda no^ 1, de 17 de outubro de 1969. O eufemismo não escondia a natureza jurídica e institucional desse do- cumento legislativo: era, na verdade, uma nova Constituição, que não era chamada pelo verdadeiro nome somente para evitar o desgaste do conceito do regime militar, que passara a governar o país a partir de 1 o^ de abril de 1964. Fiel às suas origens históricas, a Ordem dos Advogados imprimiu, na VII Conferên- cia Nacional, duas homenagens póstumas para abrir as comemorações cívicas: ao maior constitucionalista do século XIX, José Antonio Pimenta Bueno – o Marquês de São Vicente (1803-1878) – e a Hugo Simas (1883-1941) – Desembargador do Superior Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Em sua posse, ocorrida no ano de 1933, ele dissera alto e bom som: “Não nasci para o servilismo, como aqueles senadores que carregaram nos ombros o corpo de Au- gusto, ou beijaram os pés do Imperador Domiciano”. (CONFERÊNCIA..., 1979) Os profissionais do Direito e da Justiça nascidos a partir dos anos 60, e a juventude acadêmica de hoje, precisam ter referenciais significativos para compreender a grande transformação ocorrida entre o período do Estado autoritário até a chegada do Estado Democrático de Direito , e também a resis- tência heróica dos advogados brasileiros contra a ditadura militar e seus múltiplos atos de exceção.
O documento de clausura da VII Confe- rência Nacional da OAB revelou a dimen- são extraordinária daquele evento e suas repercussões no campo político. Surgia, a partir de então, a oportunidade do diálogo entre o imortal Presidente Raymundo Faoro e o então Presidente Ernesto Geisel, quando o bâtonnier transmitiu a vontade, dos cida- dãos brasileiros, de verem recuperadas as
liberdades públicas e as garantias e direitos individuais. Iniciava-se o processo da cha- mada distensão lenta e gradual. Em homenagem à memória de Raymun- do Faoro, e em consideração aos resultados altamente positivos da VII Conferência, merece transcrição integral a Declaração dos Advogados Brasileiros , por ele redigida, que recebeu o seu autógrafo em primeiro lugar. “Os advogados brasileiros, presen- tes e representados na VII Conferência Nacional da Ordem dos Advogados, ao reiterarem sua unidade e coesão, trazem sua palavra ao povo, ao qual pertencem e devem conta de suas preocupações e de sua conduta pú- blica. Armados da palavra e da razão, sentem-se credenciados, ainda uma vez dentro da sombra autoritária que envolve o País, a expressar mensagem de esperança e de liberdade, clamando pelo Estado de Direito democrático. “O Estado democrático é a única ordem que pode proporcionar as con- dições indispensáveis à existência do verdadeiro Estado de Direito, onde a liberdade–autonomia cede lugar à liberdade–participação que pressu- põe princípios pertinentes ao núcleo das decisões políticas e à sua legitimi- dade institucional. Para isso não basta o voto consentido, pois só ele não constitui a essência da democracia; ao contrário: é a própria democracia que dá conteúdo de participação ao direito de voto. Expressão de ato polí- tico e democrático, a vontade que este representa exige processo normati- vo integrado, desde a organização pluripartidária – representativa das várias correntes de opinião pública
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mente necessários e suficientes, res- pondendo pelos abusos ou excessos que cometer, quer pela via política, administrativa ou judicial. “No Estado de Direito, a defesa das instituições não legitimaria exclu- sões, ostensivas ou dissimuladas, da efetiva participação política e social do povo. Cumpre, para suprimir obstáculos arbitrariamente criados, rever a legislação trabalhista do país, de nítida inspiração autoritária, ao ponto de alguns de seus dispositivos violarem a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Sem liberdade sindical não pode existir um verda- deiro e autêntico direito coletivo de trabalho, que encontra nos sindicatos seus sujeitos de direito e seus agentes dinâmicos. Sem liberdade sindical não há democracia possível, não há Estado de Direito. Só o Estado de Di- reito reconhece os conflitos, legitima- os e os supera. Os direitos políticos, longe de obstarem os direitos sociais, constituem a única via pacífica para a sua obtenção e o seu exercício. Direitos sociais e direitos políticos são o conteúdo do Estado de Direito, que, por ser um Estado ético, repele a idéia da injustiça, situada nas desi- gualdades decorrentes da excessiva riqueza de uns, da extrema miséria da maioria. Uma política fiscal justa e eficiente há de atenuar essa situação, e, ao tempo em que se volte contra a desigualdade, estará isenta de arbí- trio, com a criação de tributos, sem aumento e discriminação por atos que atendam ao consentimento popu- lar e às normas constitucionais. “Para sua honra, os advogados debatem e estudam a realidade nacio- nal, com a inteligência, o equilíbrio e o senso de responsabilidade que his- toricamente lhes reconhecem os bra- sileiros. Identificam no autoritarismo o principal desvio ao livre desenvol-
vimento da vida jurídica, política e social do país. Situam na liberdade de participação a maior preocupa- ção dos seus estudos, participação cuja amplitude exige a pacificação nacional, que lance o esquecimento sobre os ódios do passado. A anistia, embora não leve, por si só, ao Estado de Direito, será passo necessário ao seu aperfeiçoamento. Sabe a Nação que o Estado de Direito, clamor da consciência jurídica do país, não é reivindicação exclusiva de classes ou grupos, mas constitui o necessário pacto de convivência de todos. As promessas governamentais, para que atendam aos reclamos da opinião pública, devem converter-se em ação, com brevidade, em favor da paz e da concórdia dos brasileiros. “Curitiba, 12 de maio de 1978.”
Nada mais oportuno que lembrar um pedaço do verso de Camões, quando pas- sou do pessimismo angustiado da miséria e do desterro, para a atitude de observação ansiosa do sentido da realidade que o cer- cava, quando o soneto foi publicado pela primeira vez (1595): “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, / muda-se o ser, muda-se a confiança;” ( Lírica Completa , II). A Carta Política de 1988 proclama, em seu primeiro artigo, que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito. Gomes Canotilho e Vital Moreira (2007, p. 204), interpretando o art. 2o^ da Consti- tuição portuguesa, que também declara a existência do Estado como um Estado de Direito Democrático, afirmam que este é um dos “conceitos chave”, e salientam: “O Estado de Direito é democrático e só sendo-o é que é Estado de direito; o Estado
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democrático é estado de direito e só sendo-o é que é democrático. Há uma democracia de Estado-de-direito , há um Estado-de-direito de democracia ”. Com efeito, a lei fundamental de Portu- gal declara, pelo seu segundo artigo, que a República “é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organiza- ção política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da de- mocracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”. Comentando esse dispositivo no con- texto da Constituição brasileira de 1988, o prestigiado José Afonso da Silva sustenta: “A democracia que o Estado Demo- crático de Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3 o, I), em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por repre- sentantes eleitos (art. 1 o^ , parágrafo único); participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos do governo; 5 pluralista, porque respeita a pluralidade de idéias, cul- turas e etnias 6 e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de con- vivência de formas de organização e interesses diferentes da sociedade; há de ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos di- reitos individuais, políticos e sociais, mas especificamente da vigência de
(^5) Cf. arts. 10; 14, I a III; 29, XII e XIII; 31, § 3o; 49, XV; 61, § 2 o; 198, III; 204, II. (^6) Cf. arts. 1 o, V; 17; 206, III.
condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício”.^7 É relevante destacar que, em todas as Constituições brasileiras anteriores – 1824, no Império, e depois na República, a partir de 1891, compreendendo 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969 –, os primeiros dispositivos sempre destacam a existência, o modelo e a organização do Estado, enquanto que as normas sobre garantias e direitos civis e políticos estão relacionadas em Títulos muito distantes.^8 Vencida a doutrina fascista que levou a Itália a formar o eixo da II Guerra Mundial (1939-1945), a Constituição aprovada pelo Parlamento livre, em 27 de dezembro de 1947, proclama que “a liberdade pessoal é inviolável. Não se admite forma alguma de detenção, de inspeção ou busca pessoal, nem qualquer outra restrição à liberdade pessoal senão por ato fundamentado da autoridade judicial, nos casos e nos ter- mos da lei” (art. 13). A Constituição da República Federal alemã, promulgada em 23 de maio de 1949, quatro anos após o holocausto e derrotado o pesadelo dos mil anos do Terceiro Reich, de Adolf Hitler, assim declarou, em seu primeiro artigo: “A dignidade da pessoa humana é sagrada. Todos os agentes da autoridade pública têm o dever absoluto de a respeitar e pro- teger”. Em relação à nossa Carta de 1988, vale repetir o preâmbulo: “Nós, representantes do povo brasilei- ro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e in- dividuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, (^7) Curso de Direito Constitucional Positivo , 20. ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 119/120. (^8) Constituição de 1824, art. 173 e seg.; CF, 1891, art. 72 e seg.; CF, 1934, art. 113 e s.; CF, 1937, art. 122 e 123; CF, 1946, art. 141/144; CF, 1967, art. 150/151; CF, 1969 (EC), art. 465 e s.
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metido por Jesus aos apóstolos como Consolador, do que do homem que as pronunciava. Entretanto, com o decorrer dos anos, lembrei-as em vá- rias circunstâncias. A exortação ‘Não tenham medo!’ precisa ser lida numa dimensão muito ampla. Num certo sentido, era uma exortação dirigida a todos os homens, uma exortação para superar o medo da situação mundial atual, tanto no oriente quan- do no ocidente, tanto no norte como também no sul. Não tenham medo daquilo que vocês próprios criaram, não tenham medo nem mesmo de tudo aquilo que o homem produziu e que está se tornando, dia após dia, cada vez mais um perigo para ele. Enfim, não tenham medo de vocês mesmos”. A pregação de destemor e esperança do pontífice e poeta atinge o ponto alto com a lembrança de que o 13 de maio de 1981 – quando foi atingido por um tiro na praça de São Pedro – era exatamente o aniversário do dia em que Maria aparecera às três crianças de Fátima, em Portugal. “Por esse evento Cristo não quis talvez dizer, mais uma vez, o ‘Não tenham medo!’? Não repetiu ao Papa, à Igreja e, indiretamente, a toda a família humana estas palavras pascais?”. Esse é o iluminado ser humano, Carol Wojtyla, que esteve conosco e manifestou especial carinho pelo povo brasileiro.
Segundo valiosa lição de Filosofia (FER- RATER MORA, 2001, p. 1733), o conceito de liberdade foi entendido e usado de maneiras muito distintas nos contextos da Filosofia grega até os dias de hoje. Eis alguns modos como foi compreendida: como possibilida- de de autodeterminação, de escolha, como ato voluntário, como espontaneidade, como margem de indeterminação, como ausência de interferência, enfim, como libertação para alguma coisa, como realização de uma
necessidade. Além disso, o seu conceito tem sido sentido de diversos modos, segundo a esfera de ação ou alcance da liberdade. Fala- se, então, em liberdade pessoal ou privada, liberdade pública, liberdade política, liber- dade social, liberdade sexual, liberdade de expressão, liberdade de opinião, liberdade de religião etc. O termo liberdade pode ser compreendi- do em três significados essenciais: a) Como autodeterminação ou autocausalidade , segun- do a qual tal fenômeno não contém limites ou condições; b) como necessidade ; c) como possibilidade ou escolha , hipótese em que ela é limitada e condicionada, isto é, finita. (ABBAGNANO, 1970, p. 577-578) Independentemente da perspectiva que se adote para refletir sobre o tema, ou mesmo para exercer essa faculdade, é certo que a liberdade constitui o mais valioso dos bens espirituais, porque é por ela que o ser humano pode receber, recolher e transmitir as impressões acerca da vida, do mundo e das pessoas que existem em suas relações sociais. E qual será, dentro desse aspecto, a mais essencial das liberdades? A liberdade de pensar? De manifestar o pensamento? De expressão? De criação? A Constituição Federal, em diversos títulos e capítulos, destaca as liberdades públicas e individuais. Os constituintes inseriram, no preâmbulo da Carta Política, a opção religiosa e mística para um Estado laico e exerceram, por outro lado, a liber- dade de crença, ao promulgar a Constitui- ção “sob a proteção de Deus”. O primeiro dispositivo já é fruto da liberdade política do Estado, para se organizar em Estado Demo- crático de Direito, que faz as opções sobre os fundamentos que arrola. Uma sociedade livre é um dos objetivos fundamentais da República. Liberdade de consciência; de cultos religiosos; de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação; de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, mediante condições; de locomo- ção física no território nacional; de reunião pacífica, sem armas, em locais abertos; de
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associação para fins lícitos, e muitas outras expressas ou implicitamente declaradas e protegidas. Pode-se afirmar que as hipóte- ses de liberdade que podem ser exercidas pelo homem têm o seu limite no infinito das hipóteses imagináveis, não faltando aquelas que se concentram na intimidade da vida privada, como a liberdade de amar ou a liberdade de morrer a própria morte. Não há método seguro para se distin- guir, entre todas, qual é a liberdade mais necessária e mais importante no universo das liberdades que possam ser conside- radas como fundamentais. Salvo por um critério personalíssimo e inerente às reações individuais, no cotidiano da existência. Esse critério é o das emoções, que, conforme sua natureza, têm repercussões orgânicas e efeitos morais. A ciência médica distingue as emoções em primárias ou simples , e s e- cundárias ou complexas. Estas últimas são as reações afetivas que repercutem no psiquis- mo e envolvem o intelecto, assumindo, por essa razão, caráter mais estável e duradouro (bem-estar, otimismo, satisfação, alegria, júbilo, felicidade e até mesmo êxtase). As primárias, ou simples, “são as que emanam diretamente da vida instintiva. Represen- tam respostas aos estímulos que ameaçam ou favorecem a conservação do indivíduo e da espécie. São elas o medo, a cólera e o amor”. (MANIF, 1991, p. 149) O medo, portanto, é essa emoção pri- mária, sobre a qual Shakespeare disse ser “a mais amaldiçoada de todas as paixões baixas”.^9 Em seu discurso de posse (1933), o Presidente Franklin Delano Roosevelt afirmou: “A única coisa de que devemos ter medo é o próprio medo”. Penso, assim, que a maior das liberda- des é a liberdade de não ter medo. Sem ela, isto é, com o medo, não se pode exercer com plenitude qualquer outro tipo de liberda- de. O medo, durante os anos de chumbo da ditadura militar, era facilmente transmitido pelos rumores e boatos, alastrando-se como
(^9) Henrique VI , Primeira Parte, Ato V.
epidemia em núcleos da sociedade civil, que pretendia resistir contra o governo, pacificamente ou pela força das armas. Uma imensa legião de profissionais da advocacia, do magistério, da magistratu- ra, do Ministério Público, parlamentares, jornalistas, líderes sindicais e, de um modo geral, as pessoas que tinham capacidade e competência para formar opinião sofriam a cada anúncio de novos atos institucionais, complementares ou de outra natureza. A expectativa das novas medidas de ex- ceção produzia novos reféns do medo. Os beneficiários civis ou militares dos éditos revolucionários , muitas vezes interpretando os prebostes de ocasião, faziam o coro para que as sinfonias inacabadas do preconceito e da intolerância fossem executadas fiel- mente. Com o retorno das práticas e convivên- cias democráticas em função das garantias, direitos e interesses consagrados na Consti- tuição de 1988, o país, a sociedade, o Estado e a Nação se libertaram do medo. E o cida- dão, antes marginalizado, perseguido ou preso, respira outros ares de liberdade. Até mesmo a liberdade para saber que, quando soa a campainha da casa ou do apartamento no início da manhã, é o carteiro ou o leiteiro, e não o policial do Departamento de Ordem Política e Social, com um mandado de prisão.
Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. São Paulo: Mestre Jou, 1970. ABREU, Alzira Alves de. et AL. Dicionário histórico biográfico brasileiro. v.1. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001a. ______. Dicionário histórico biográfico brasileiro. v.2. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001b. CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Consti- tuição da república portuguesa anotada. 4.ed. Coimbra/ São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. CONFERÊNCIA NACIONAL DA OAB, 7., 1979. Curitiba. Anais ... Curitiba: OAB-PR, 1979.