






Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
Este documento aborda a categoria dogmática da norma penal em branco, uma técnica de reenvio legislativo intensificada no limiar do século xxi. Ele explica a recorrente utilização da norma penal em branco pelo poder legislativo atual e apresenta breves contornos dogmáticos dessas normas, incluindo suas tensões com o princípio da reserva legal em matéria de competência, sucessão de leis, impactos sobre o princípio da taxatividade da norma e a hierarquia da fonte complementar. O texto também discute a cláusula de remissão inversa e a necessidade da categoria dogmática da norma penal em branco na política criminal econômica e ambiental.
Tipologia: Notas de aula
1 / 10
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
Critérios de compatibilização da Norma Penal em branco com o Princípio da Reserva Legal, no aspecto formal da competência legislativa exclusiva para edição de normas incriminadoras
Fábio André Guaragni^1
1.Introdução: aspectos explicativos da intensificação das normas penais em branco como técnica legislativa penal
A mais que centenária categoria dogmática da norma penal em branco apresenta-se como técnica de reenvio legislativo de uso intensificado no limiar do século XXI. Esta intensificação deriva de um panorama político-criminal que administrativiza o direito penal. Brevemente: a administrativização do direito penal consiste em convocar o direito penal para auxiliar o Estado no controle de parcelas da vida social. Sobretudo, aquelas ligadas à economia e ao meio ambiente. Ou seja: o direito penal é convocado como braço de apoio do direito administrativo. Há evidente comprometimento do princípio da intervenção mínima, pois o direito penal, ao invés de ultima ratio legis, incide como estrutura de ajuda a outro ramo do direito, como que a assegurar que o direito administrativo, a administração pública estatal e seu poder de polícia se façam respeitar.^2 Neste contexto, o direito penal, “que reagia a posteriori contra um fato lesivo individualmente delimitado (quanto ao sujeito ativo e passivo), se converte em um direito de gestão (punitiva) de riscos gerais e, nessa medida, está “administrativizado^3 ”. O acréscimo de tarefas cometidas ao direito penal produz consequente expansionismo da sua normativa. Ao mesmo tempo, amplia-se o direito administrativo sancionador e o consequente emprego de penalidades infringidas diretamente pelo Poder Executivo, na base de seu poder de polícia autoexecutável^4. É claro que a convocação do direito penal para a tarefa de dar suporte ao direito administrativo deriva, também, de um enfraquecimento do aparelho de Estado enquanto agência de poder. Sobretudo com o neoliberalismo dos anos 90^5 , recuou da posição ativa de proporcionar produtos e serviços – reduzindo-se sua “dimensão prestacional”^6 - para assumir um novo papel: o gerenciamento das atividades deslocadas para a iniciativa particular, sobretudo mediante agências de controle. A seu turno, estas atividades, deslocadas à
(^1) O autor é Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais (UFPR), com estágio pós-doutoral na Università degli Studi di Milano. É Professor de Direito Penal Econômico do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA. É Professor de Direito Penal do UNICURITIBA, Fundação Escola do Ministério Público do Paraná - FEMPAR, CEJUR e LFG. 2 O catálogo de crimes contra o meio ambiente contido na Lei 9605/98 constitui uma fotografia deste fenômeno: são tanto os tipos penais em que se condiciona a existência do crime à ausência de licenças e permissões do poder público, autorizações ambientais, leis e regulamentos administrativos que, ao final, fica a dúvida acerca de que bem jurídico se protege: o meio ambiente, uma certa política ambiental da administração pública^2 ou, ipso facto, a própria administração pública ambiental (v.g, arts. 29, 30, 31, 33, II, 34, 35, II, 38, 38-A, 39, 44, 45, 46, parágrafo único, 50-A, 51, 52, 54, parágrafo 2º, V, 55, 56, 60, 62, 63, 64) Sintomaticamente, a seção V do capítulo V - crimes contra o meio ambiente - versa sobre os crimes contra a “administração ambiental”. 3 SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do Direito Penal: Aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. 4 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p.148.
5 STRATENWERTH, Günter.^ Derecho Penal. Parte General.^ Buenos Aires: Hammurabi, 2005, p. 57. Cujas bases teóricas têm fundamentais pilares nas obras de HAYEK, Friedrich Auguste. O caminho da servidão. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura: Instituto Liberal, 1987, e FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade 6. São Paulo: Artenova, 1977. CALLEGARI, André Luís. “Legitimidade constitucional do direito penal econômico: uma crítica aos tipos penais abertos”, in Revista dos Tribunais. Vol. 851, p. 435. São Paulo: RT – Thomson Reuters, set/2006. Acrescenta com exatidão que “acaba se produzindo o trânsito de uma economia dirigida´ (ou de intervenção) a uma economia
controlada´.”
iniciativa privada, experimentaram imensa expansão e desenvolvimento. Mais: “desterritorializaram-se”^7 , dificultando fossem controladas por agências estatais “territoriais”. Aqui, assume importância a noção de BAUMAN alusiva aos “proprietários ausentes”, extraterritoriais: “O capital pode sempre se mudar para locais mais pacíficos se o compromisso com a ‘alteridade´ exigir uma aplicação dispendiosa da força ou negociações cansativas. Não há necessidade de se comprometer se basta evitar”.^8 O capitalista é o único agente econômico livre, desconectado do espaço e suas imposições, sobretudo legais, derivadas do direito do trabalho, tributário, previdenciário, etc.. Cabe aos acionistas “mover a companhia para onde quer que percebam ou prevejam uma chance de dividendos mais elevados, deixando a todos os demais [fornecedores, trabalhadores] – presos como são à localidade – a tarefa de lamber as feridas, de consertar o dano e se livrar do lixo”.^9 Recorde-se que o aparelho de estado ainda opera em fronteiras de terra delimitadas, zona de exercício do poder tradicionalmente identificado como “soberania de Estado”. Assim, o Estado: 1- desocupou espaços de exercício de poder; 2- não logrou exercê-lo com consistência nos novos espaços (reduzidos em relação aos primeiros) pelos quais enveredou; 3- parte de seu insucesso deriva da noção de que é uma agência de controle territorial que visa controlar fenômenos supraterritoriais (grandes prejuízos derivam disto inclusive para o Ministério Público e Poder Judiciário, agências territoriais de Estado presas ao torrão da Comarca ou Seção). Consequência natural da derrocada do Estado e da respeitabilidade da respectiva estrutura de intervenção administrativa é apoiá-la no direito penal e assegurá-la através dele. Toda esta panorâmica explica a recorrente utilização da norma penal em branco pelo Poder Legislativo atual. Através dela, o legislador “cola” a norma penal à norma administrativa, para que o direito penal exerça um discutível papel de apoio ao direito administrativo. A técnica de remissão penal à normativa extrapenal de cunho administrativo, fundada tanto em lei, como fonte de conhecimento, como em fontes diversas
(^7) Afirma GIDDENS que o capitalismo produziu um desencaixe temporal e espacial – é este que agora interessa – da confiança do indivíduo. Para fundar uma relação de confiança, ele não precisa dividir o mesmo espaço e o mesmo tempo com outro indivíduo como condição para poder nele confiar. As relações de confiança não precisam de simultaneidade de tempo e lugar. Afinal, o indivíduo crê não em outro indivíduo, mas em “sistemas peritos” (GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991, pp. 35-36), que são conjuntos de conhecimentos técnicos aportados em um objeto. Sobre a intercessão entre direito penal e sistemas peritos, GUARAGNI, Fábio André. “A função do direito penal e os ‘sistemas peritos’”. In: Fábio André Guaragni; Luiz Antônio Câmara. (Org.). Crimes contra a ordem econômica - temas atuais de processo e direito penal 8. Curitiba: Juruá, 2010, pp. 72-87.
9 BAUMAN, Zygmunt.^ Globalização: as consequências humanas.^ Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 18. BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 15.
material ou de produção.^13 É claro que, em regra, o órgão expedidor do complemento da norma em branco de complementação heterogênea acaba sendo diverso do Poder Legislativo da União, que detém competência privativa para editar normas penais (art. 22, I, CF). Há, porém, quem atente para a fonte de produção já no conceito da categoria. Por exemplo, ZAFFARONI, no Tratado^14. O apelo à fonte formal para definição da norma penal em branco coordena-se melhor com aquilo que a própria leitura dos preceitos primários continentes de normas em branco, que não costumam citar outro órgão legiferante, senão remetem a outra fonte normativa formal (por ex., em desacordo com a lei, sem autorização regulamentar, etc. ). Porém, é inegável que o critério acarreta certa colisão com um dos fundamentos político-criminais da categoria. De fato, as normas penais em branco têm dupla utilidade político-criminal: a) a remissão a complementos cuja edição exige menos formalidades que a lei penal permite uma constante atualização do tipo incriminador, sem que tenha que ser revisado mediante sucessivos projetos de lei^15 ; b) numa sociedade detentora de conhecimentos técnicos profundos, montada sobre o avanço tecnológico produzido pelo cogito e pela Revolução Industrial, na qual um homem “especialista” passa a vida estudando, v.g., um concreto fenômeno da física^16 , o conhecimento técnico é absolutamente necessário para a edição de normas penais tangentes às áreas da vida mais sofisticadas. O direito penal, ao assumir a função de redução de patamares de risco, regulamenta setores que envolvem medicina sanitária, fármacos, atividades nucleares, biogenética, trato com agrotóxicos e respectivas embalagens, dentre outros. Em todas as áreas, abre-se a necessidade de preservar a confiança nos “sistemas peritos”, enquanto conhecimentos técnicos repetida e publicamente testados, viabilizadores de produtos e serviços como bens de consumo^17. Para tanto, necessita de dados técnicos cujo conhecimento, de regra, não é encontrado no âmbito do Poder Legislativo. Usualmente, o Estado conta com técnicos detentores destes conhecimentos no âmbito do Poder Executivo. O executivo, mediante atividade administrativa munida de poder de polícia, realiza controles sobre tais áreas. Com este escopo, os especialistas do corpo funcional do poder executivo produzem regulamentos que completam as normas penais em branco, nutrindo-as de dados técnicos sofisticados que o legislador não possui.
(^13) Consideram a fonte de conhecimento na definição de norma penal em branco: PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. Vol.1. São Paulo: RT, 2010, pp. 183-184; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte geral. Vol. 1. 11ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 170; DOTTI, René Ariel_. Curso de Direito Penal: parte geral_. 2ª. ed.. Editora Forense: Rio de Janeiro, 2004, p. 225; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal (Parte Geral). 16 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004, p. 92. Optando pela fonte de produção, PIERANGELI, José Henrique. Escritos jurídicos penais. São Paulo: RT, 1999, p.176; GOMES, Luis Flávio e GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Direito Penal. Parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, pp. 71-74. Tomando ambos os sentidos em conta, GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 12ª ed. Rio de janeiro: Impetus, 2010, p. 20. Há prevalência das fontes materiais sobre as formais quando se vai à origem da norma penal em branco, em BINDING. Cf. MIR PUIG ( Derecho Penal. Parte General. 7ª. ed. Barcelona: Editorial Reppertor, 2004, p. 76), ela “serviu na Alemanha para explicar os casos em que a lei do Império (Código Penal do Reich) deixava a determinação da hipótese de fato nas mãos dos Estados federados (Länder) ou dos Municípios. A lei penal em branco é concebida (...) como ‘autorização´ ou ‘delegação’ por parte de um órgão legislativo superior em relaço a órgãos de inferior hierarquia...” 14 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de Derecho Penal. Tomo III. Buenos Aires: Ediar, 1981, p. 190. Diferente, utilizando um conceito que apela para fontes formais, ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. 15 Derecho Penal. Parte General. Buenos Aires: Ediar, 2000, p. 108. Destacando favoravelmente este fundamento, CURY, Enrique. La Le Penal en Blanco. Bogotá: Editorial Temis, 1988, pp. 51-52. 16
17 ORTEGA Y GASSET, José.^ La Rebelión de las Masas. 2ª. ed. Santiago: Editorial Andres Bello, 1996, p. 143. V. notas 06. Cf. GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, p. 35, os sistemas peritos são “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje”.
Esta a essência da autêntica norma penal em branco. Não fosse a necessidade de conhecimentos incomuns – cada vez mais exigidos nas sociedades de corte pós-industrial do limiar do século XXI – atenuar-se- iam as boas razões do legislador para produzir a norma penal com o preceito primário incompleto. E – de fato - é melhor que a norma penal possa contar com a presença dos técnicos, seja para atingir as condutas que, verdadeiramente, são geradoras de riscos para os bens de proteção, seja para evitar sejam atingidos comportamentos inócuos. Diminui-se o risco do erro com a presença do especialista. Numa sociedade de conhecimentos sofisticados, o Poder Legislativo não dá conta de atingir o conjunto de conhecimentos técnicos requeridos para intervir penalmente nos correspondentes setores da vida econômica. Daí produzir-se uma necessidade da categoria dogmática da norma penal em branco, e a intensificação do respectivo uso na política criminal econômica e ambiental^18. Por isso é que, de regra, cabe a nomenclatura norma penal em branco em sentido estrito para aquela que é completada por fontes normativas diversas da lei (formalmente inferiores). Afinal, os órgãos que as produzem são justamente aqueles que dão voz aos especialistas. Já a norma penal que o próprio legislador completa, mediante fonte de igual hierarquia, só pode ser denominada norma em branco por conter incompletude colmatada por outra norma. Daí ser norma penal em branco apenas no sentido amplo de que precisa complementar-se por outra norma. Não se trata uma norma penal em branco na acepção , pois não exige remissão a especialistas que possam integrá-las. Fica claro que: a) a autêntica norma penal em branco carrega a pretensão de dar voz aos especialistas, sobre matérias que exigem conhecimentos intrincados, de caráter financeiro, macroeconômico, ambiental, médico, de engenharias, etc.; b) estes estão no Poder Executivo, bem como em órgãos da administração pública indireta (em especial, as agências reguladoras); c) assim, há uma espécie de apelo à fonte material de complemento da norma em branco, para além da formal, quando se examina a ratio político-criminal da categoria em questão. Impende checar, agora, as tensões entre esta categoria dogmática e o princípio da reserva legal, num particular aspecto: a remissão legislativa efetuada mediante norma penal em branco para autoridades administrativas completarem o preceito primário dos tipos penais incriminadores.
3- Reserva Legal em sentido formal: a competência para edição da norma incriminadora
Para além de suas projeções materiais – lei prévia, estrita, escrita e certa - o princípio da reserva legal tem uma dimensão formal: exige lei em sentido estrito para a produção das normas pelas quais o estado exerce controle social penal. Ficam reservadas ao legislador não só as previsões dos tipos e penas (normas incriminadoras), mas também de normas que agravem de todo modo a posição do sujeito ativo de delito. Tudo é corolário da Filosofia da Ilustração; tudo é consequente com a herança iluminista de limitação da “potestas puniendi” estatal: somente ao próprio povo é dado limitar-se em liberdades e outros direitos individuais, prevendo os limites com que o poder punitivo incidirá sobre si^19. Para reforço da autonomia, a produção legislativa dá-se mediante um rito que garante a participação popular, direta ou mediante representação: é o
(^18) Também assim GOMES, Luis Flávio e GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Direito Penal. Parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, pp. 44-45. 19 PULITANÒ, Domenico. Diritto Penale. 4ª. ed. Torino: Giappichelli, 2011, p. 103: “O conceito de lei se refere à lei formal emanada do Parlamento e promulgada pelo Presidente da República (...) estamos no sulco da fundação iluminista do princípio da legalidade: a lei penal como expressão da vontade formada e expressa pelo órgão representativo.”
análise do delito acaba impondo uma remissão a normas extrapenais legais e infralegais em todo e cada caso penal julgado, para fixação do caráter permitido ou proibido dos patamares de risco gerados pela conduta. Além delas, mesmo “normas técnicas de segurança, a lex artis, o chamado princípio da confiança e, por fim, a própria ideia de homem prudente”^22 dão suporte à imputação objetiva do evento ao agente. Neste sentido, diz GRECO, uma remissão a atos administrativos (inclusive de caráter normativo genérico), por parte do direito penal, é legítima ao menos quando “nada mais faça do que concretizar o que é exatamente o risco permitido em determinado dispositivo”^23. Nesta importante posição, a técnica de reenvio serve para fixar, a partir da lei, qual será o critério para determinação da ultrapassagem do risco permitido conducente à imputação de lesão ao bem jurídico. Como regra, as normas penais abrem mão de definir o critério; excepcionalmente, isto não sucede quando há reenvio ao ato administrativo. Enfim, importa é construir os limites para guiar o uso da técnica legislativa e mesmo a solução jurisprudencial dos respectivos casos de emprego.
Na Itália, a Corte Constitucional, pelo precedente 26 de 1966 assentou que a lei deve “indicar com suficiente especificação os pressupostos, as características, o conteúdo e os limites dos provimentos da autoridade não legislativa, a cuja transgressão deve seguir-se a pena”^24. Tratou, pois, de indicar limites e parâmetros para que a norma penal em branco suporte a filtragem constitucional. À guisa de limites: o primeiro consiste no fato de que o legislador não pode renunciar à definição de um “núcleo duro” do preceito primário. A tarefa é definir o que é este núcleo. Sendo concedido somente ao povo se autolimitar, criando normas penais para controle social, a que submete parcialmente suas condutas, faz parte deste núcleo o verbo típico : a expressão linguística da conduta – verbo – só o legislador pode definir. Jamais uma instância diversa do Poder Legislativo pode constituir o comportamento defeso. Ainda: se o objeto material ou outro aspecto do preceito primário do tipo exige complementos técnicos, definir o que precisa de tais complementos é problema do legislador. Uma vez definido o que depende de esclarecimentos técnicos, estes podem ser remetidos à autoridade detentora de conhecimento especializado sem qualquer inconstitucionalidade. Aquilo que depende de contornos técnicos pode se voltar, além de ao objeto material da conduta, a outros aspectos, inclusive competências do sujeito ativo ou circunstâncias definitórias do sujeito passivo. De toda forma: quando houver necessidade de dados técnicos por instância diversa do Poder Legislativo, será preciso que a lei defina o objeto sobre o qual recaem tais dados técnicos. Então, definir o(s) verbo(s) e o que exige complemento técnico é tarefa do Poder Legislativo, indelegável. Quando forem requeridos da fonte complementadora critérios técnicos de definição dos sujeitos destinatários da norma – sobretudo sujeitos ativos – estes devem previamente ser circunscritos pelo legislador. Pode fazê-lo, por exemplo, mediante a menção de que possuem deveres de ofício, de quais são tais deveres, através da indicação do nome da categoria profissional a que pertencem, etc. Já a definição, pura e simples, do destinatário da norma penal pela fonte sublegislativa complementadora, seria integrante da própria escolha político criminal acerca de quem punir, tarefa do legislador. Logo, inconstitucional, como proclamou a Corte Constitucional italiana (precedente Corte Const. 282, 1990) em relação a uma lei que, regulamentando acerca da
(^22) GRECO, Luís. “A Relação entre o direito penal e o direito administrativo no direito penal ambiental: uma introdução aos problemas da acessoriedade administrativa”, in Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol.
prevenção de incêndios, “reenviava a um decreto ministerial a individualização dos destinatários do preceito penalmente sancionado”^25. A inconstitucionalidade derivou do fato de que os sujeitos obrigados pertencem ao “núcleo essencial” do tipo, não podendo ficar a mercê da “persistência do poder da administração de modificar o próprio ato [i.é, o decreto]”^26 , mudando a escolha política dos sujeitos ativos destinatários da norma penal. Já se vê que a delegação integral do preceito primário do tipo à instância material diversa do Poder Legislativo da União (norma penal em branco de remissão integral) para complemento da norma penal mediante fonte normativa que não constitui lei em sentido estrito, mostra-se necessariamente inconstitucional. Admite-se somente a remissão parcial. É vedado transferir ao poder regulamentar “apreciações ou valorações de caráter político (...) na escolha autêntica da conduta punível, mas não se o privará totalmente de qualquer aporte, que se revela precioso, por exemplo, no aspecto técnico”^27 , evidenciou MARIO ROMANO. Mediante a definição do verbo, do que exige complemento técnico, da seleção de destinatários da norma, dá-se vida à orientação de MARINUCCI e DOLCINI, de que as escolhas político-criminais não podem ser objeto de remessa à instância diversa da legislativa, detentora da posição de fonte material da lei a que se reserva a matéria penal. Também sustentam que uma “reserva de lei tendencialmente absoluta” é... “...a única em posição de garantir o respeito do monopólio das escolhas político criminais atribuído pela Constituição ao legislador. A natureza puramente técnica da especificação confiada pela lei a outra fonte, e a presença na lei dos critérios técnicos aos quais deve ater-se a fonte subordinada, excluem de fato que a fonte sublegislativa concorra com a lei no cumprimento das escolhas político-criminais.”^28 Com o que, anunciam o segundo limite: a matéria remetida para instância complementadora deve ser eminentemente técnica. Assim, a necessidade de um complemento técnico autoriza o uso da norma penal em branco. E esta necessidade também pode ser estruturada a partir de critérios. Quando é preciso um complemento técnico para uma norma penal? Quando a verticalização de conhecimento é sofisticada; quando a área do conhecimento é pouco testada; quando o conhecimento é recente; quando, sobretudo, interessa uma atualização do conhecimento para adequada proteção do bem jurídico. Um terceiro limite: a instância que recebe a missão de completar a norma penal deve ter atribuição in genere de expedir regulação extrapenal sobre a mesma matéria sobre a qual deverá regulamentar para completar o branco. Outra opção é que possua não o poder regulamentar, mas o de controlar aquela matéria, gerenciando-a administrativamente. Enfim, suas atribuições genéricas devem estar conectadas de antemão com a área da vida sobre a qual irá, em parte, emitir preceitos normativos integradores de tipos penais. Aqui, é interessante a lição de CARLO RUGA RIVA, no sentido de que o complemento da norma penal em branco por poderes legislativos estaduais ou municipais também representa vontade popular, já que atuam em seus âmbitos de competência, a partir de mandatos eletivos. Comentando norma penal em branco que pune inobservância de regulamentos de edificação e instrumentos urbanísticos (como plano diretor), i.é, completadas por direito administrativo municipal, afirma tratarem-se... “...de integrações operadas por um órgão democrático e representativo também das minorias (a Câmara Municipal), o qual, entre pilares fixados pela lei urbanística (...) e por vínculos paisagísticos ambientais (...), e em parte por fontes estaduais, emana regras (...) como resultado de
(^25) PULITANÒ, Domenico. Diritto Penale. 4ª. ed. Torino: Giappichelli, 2011, p. 108. (^26) PULITANÒ, Domenico. Diritto Penale. 4ª. ed. Torino: Giappichelli, 2011, p. 108. (^27) ROMANO, Mario. Repressione della Condotta Antisindacale. Profili Penali. Milano: Giuffrè, 1974, p. 171. (^28) MARINUCCI, Giorgio e DOLCINI, Emilio. Corso di Diritto Penale. 3ª. ed. Milano: Giuffrè, 2001, p. 104. Aceitando a constitucionalidade das remissões de caráter técnico, v. FIANDACA, Giovanni & MUSCO, Enzo. Diritto Penale. Parte Generale. 3ª. ed. Bologna: Zanichelli Ed., 1995, p. 57.
etc.; 3) que a instância complementadora do branco já tenha atribuições atinentes à área da vida sobre a qual incide a norma penal, sobretudo regulação extrapenal ou atividade de gestão, controle, etc. Com tais limites, a reserva constitucional à lei - como fonte formal da norma incriminadora, editada pelo Poder Legislativo da União enquanto fonte material privativa (art. 22, I e parágrafo único, CR) - não sofre menoscabo.
Referências Bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. A vida fragmentada: ensaios sobre a moral pós-moderna. Lisboa: Relógio d´Água, 2007. _________________ Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte geral. Vol. 1. 11ªed. São Paulo: Saraiva, 2007. CALLEGARI, André Luís. “Legitimidade constitucional do direito penal econômico: uma crítica aos tipos penais abertos”, in Revista dos Tribunais. Vol. 851. São Paulo: RT, set/2006, pp. 432 e ss.. CURY, Enrique. La Le Penal en Blanco. Bogotá: Editorial Temis, 1988. DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal. Parte geral. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. FIANDACA, Giovanni & MUSCO, Enzo. Diritto Penale. Parte Generale. 3ª. ed. Bologna: Zanichelli Ed., 1995. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal (Parte Geral). 16 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense,
FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. São Paulo: Artenova, 1977. GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991. GOMES, Luis Flávio e GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Direito Penal. Parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. GRECO, Luís. “A Relação entre o direito penal e o direito administrativo no direito penal ambiental: uma introdução aos problemas da acessoriedade administrativa”, in Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol.
MANTOVANI, Ferrando. Diritto Penale. Parte Generale. 6ª. ed. Padova: CEDAM, 2007. MARINUCCI, Giorgio e DOLCINI, Emilio. Corso di Diritto Penale. 3ª. ed. Milano: Giuffrè, 2001. MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal. Parte General. 7ª. ed. Barcelona: Editorial Reppertor, 2004. ORTEGA Y GASSET, José. La Rebelión de las Masas. 2ª. ed. Santiago: Editorial Andres Bello, 1996. PIERANGELI, José Henrique. Escritos jurídicos penais. São Paulo: RT, 1999. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. Vol.1. São Paulo: RT, 2010. PULITANÒ, Domenico. Diritto Penale. 4ª. ed. Torino: Giappichelli Editore, 2011. RIVA, Carlo Ruga. Diritto Penale dell´Ambiente. Torino: Giappichelli Editore, 2011. ROMANO, Mario. Repressione della Condotta Antisindacale. Profili Penali. Milano: Giuffrè, 1974. SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do Direito Penal: Aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. STRATENWERTH, Günter. Derecho Penal. Parte General. Buenos Aires: Hammurabi, 2005. STRECK, Lenio Luiz. “O Dever de proteção do estado (schutzpflicht): o lado esquecido dos direitos fundamentais ou ‘qual a semelhança entre os crimes de furto privilegiado e o tráfico de entorpecentes´?”, disponível em www.leniostreck.com.br/site/wp-content/uploads/2011/08/Versão-final-da-Untermassverbot-08- 07-art-33-1.pdf. Acesso em 10 de maio de 2013. WELZEL, Hans. El nuevo sistema del derecho penal. (Trad. José Cerezo Mir). Buenos Aires: B de F, 2004. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de Derecho Penal. Tomo III. Buenos Aires: Ediar, 1981. ______________________ ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho Penal. Parte General. Buenos Aires: Ediar, 2000.