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CRENÇAS FUNERÁRIAS E IDENTIDADE CULTURAL NO ..., Notas de estudo de Cultura

No Egito ptolomaico, Serápis tem o rosto barbado, iconografia baseada na de Zeus e Hades. Pessoas comuns também eram retratadas de barba.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Fatima26
Fatima26 🇧🇷

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA
PROGRAMA DE ARQUEOLOGIA
CRENÇAS
FUNERÁRIAS E
IDENTIDADE
CULTURAL NO
EGITO ROMANO:
MÁSCARAS DE
MÚMIA
Marcia Severina Vasques
Volume I – Texto
São Paulo
2005
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA

PROGRAMA DE ARQUEOLOGIA

CRENÇAS

FUNERÁRIAS E

IDENTIDADE

CULTURAL NO

EGITO ROMANO:

MÁSCARAS DE

MÚMIA

Marcia Severina Vasques

Volume I – Texto

São Paulo 2005

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUEOLOGIA

CRENÇAS FUNERÁRIAS E IDENTIDADE CULTURAL NO

EGITO ROMANO: MÁSCARAS DE MÚMIA

Marcia Severina Vasques

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Arqueologia, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Arqueologia.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Isabel D’Agostino Fleming

São Paulo 2005

Agradecimentos

Agradeço a todos aqueles que, no decorrer destes anos, me apoiaram, estimularam e auxiliaram na confecção deste trabalho.

Em primeiro lugar, à minha orientadora, Profa. Dra. Maria Isabel D’Agostino Fleming, pela paciência e dedicação em todos estes anos de minha formação no MAE.

Aos professores doutores Antonio Brancaglion Jr. e Pedro Paulo de Abreu Funari pelas importantes sugestões no meu Exame de Qualificação.

Ainda ao Prof. Dr. Antonio Brancaglion pelos constantes auxílios, sugestões e acompanhamento de minha trajetória de estudo do Egito Romano.

À biblioteca do MAE pelos serviços prestados, pela constante disposição em ajudar e pelo carinho com que recebe seus estudantes.

Ao Cnpq pela bolsa de pesquisa, sem a qual este trabalho não poderia ser realizado.

A José Luiz de Magalhães Castro pelo auxílio prestado na diagramação desta tese.

Aos meus colegas do grupo de estudo sobre “Roma e suas províncias”: Irmina, Silvana, Tatiana e Vagner - pelas idéias discutidas e pelos debates estimulantes de nossas reuniões.

E a todos os outros colegas do MAE.

Acrescento ainda meus agradecimentos àqueles que, de alguma forma, me auxiliaram e compartilharam de minha trajetória neste doutorado:

Marly Shibata O grupo seleto das “Divinas Adoradoras de Âmon” E a fada de plantão, sempre presente, Luciana Witovisky

Para encerrar, agradeço à minha família, sem a qual este sonho de estudar o Egito não teria sido realizado.

Por acreditar em meus sonhos agradeço:

à minha mãe ao meu pai à minha irmã e à minha sobrinha

Aos meus ancestrais e a todos aqueles que foram se juntar ao seu ka:

Que teu corpo esteja na terra e teu ba no céu Que sejas um justo de voz junto a Osíris e viajes na barca de Rê como um espírito glorificado...

CRONOLOGIA

a.C. Período Pré-dinástico 3000 Período Dinástico Inicial c. 3000- Antigo Império c. 2686- Primeiro Período Intermediário c. 2180- Médio Império c. 2040- Segundo Período Intermediário c. 1730- Novo Império c. 1550- Terceiro Período Intermediário c. 1080-

Período Tardio/Baixa Época 664-

XXVI Dinastia (“Saíta”) Psamético I 664- Fundação de Náucratis c. 630/ Necau II 610- Psamético II 595- Apries 589- Amasis 570- Psamético III 526-

XXVII Dinastia (Primeira ocupação persa) Cambises 525- Dario I 522- Xerxes 486-

XXVIII Dinastia Amyrtaios 404-

XXIX Dinastia Hakoris 393-

XXX Dinastia Nectanebo I 380- Nectanebo II 360-

Segunda ocupação persa Artaxerxes III 343- Dario III 336-

Dinastia macedônica

Alexandre, o Grande 332- Fundação de Alexandria 331 Filipe III Arrhidaeus 323- Alexandre IV (desde 310) 323-306/ Ptolomeu, filho de Lagos, sátrapa do Egito 323-

∗ (^) A cronologia egípcia baseia-se em datas aproximadas, que variam conforme os autores. Outro motivo de controvérsia são os nomes dos faraós, que podem aparecer na forma grega ou egípcia. Esta cronologia está baseada naquela estabelecida por Bagnall e Rathbone (2004: 292-293). Outros dados acrescentados provêm das seguintes obras: Baines e Malek (1996) e Cornell e Matthews (1996).

Dinastia ptolomaica 306/5 - 30 a.C.

Imperadores romanos

Dinastia Júlio-Cláudia 27 a.C.-68 d.C. Augusto (antes Otávio) 27a.C.-14 d.C.

I. INTRODUÇÃO

O Egito Romano, tema comumente desprezado pela historiografia tradicional, ganhou, nos últimos tempos, maior destaque entre o meio acadêmico. Neste sentido, várias contribuições foram feitas por Bowman (1992, 2000), Alston (2002), Bagnall e Rathbone (2004). De mera continuação da dinastia ptolomaica, o período romano passou a ser considerado como possuidor de características próprias diferentes daquelas instituídas pelos Ptolomeus. Tal especificidade adveio do próprio caráter da dominação romana que, no Egito, não foi diferente daquela introduzida em outras províncias imperiais. No Egito também houve a cooptação e mesmo a “criação” de uma elite local, de origem grega, que colaborou com o governo romano em troca da concessão da cidadania romana e da obtenção de privilégios políticos e sociais. Esta “face” romana do Egito tem ultimamente ficado mais evidente pelas pesquisas arqueológicas desenvolvidas na região (Bailey, 1991). Devido à grande quantidade de papiros produzidos nesta época, as fontes escritas sempre foram prioritárias nas pesquisas dos historiadores e papirólogos. E, apesar de estas revelarem características importantes da sociedade egípcia de então, o destaque sempre foi para o elemento “grego” da população. Sabemos que o Egito Romano era uma sociedade multiétnica e multicultural. Entre uma população nativa que formava a massa da população, as culturas grega e romana se mantiveram no meio da elite local por meio de instituições como o gymnasium e, mais tarde, pela atuação do conselho de cidadãos ( boule ). A atuação romana no Egito não deve ser amenizada, pois apesar de os romanos constituírem uma pequena minoria da população, eles mantiveram de forma eficiente o controle do país e regeram a vida econômica, social e política. Os gregos de origem greco-macedônica, em maior quantidade que os romanos, formavam uma elite que remontava à época ptolomaica e foram privilegiados pelos romanos em detrimento dos nativos. De fato, os egípcios, grande maioria da população, tiveram seus hábitos e costumes mantidos como antes, mas o domínio romano preparou o terreno para as transformações que se desencadearam no século IV d.C., sendo a mais importante delas o cristianismo. A nós interessava estudar a relação entre as culturas grega, romana e egípcia no âmbito das crenças funerárias por meio da cultura material. Escolhemos como fonte material de pesquisa as máscaras funerárias, representativas deste contato e que, mesmo com o crescente aumento dos estudos dos vestígios arqueológicos do Egito Romano, não têm sido alvo de um estudo sistemático desde o trabalho clássico de Grimm, que data de 1974. A maior parte das máscaras funerárias de nosso corpus pertence à região de Tuna el-Gebel e Antinoópolis (Médio Egito) e ao Fayum (principalmente de Hawara, necrópole de Arsínoe). Também importantes, mas com menos representações, estão as máscaras de Tebas Ocidental, no Alto Egito e dos Oásis de Kharga e Bahariya. São áreas que comportam o que os especialistas denominam de chora^1 egípcia. Portanto, a cidade de Alexandria, assim como todo o Delta estão excluídos. Este corte se explica em decorrência de dois fatores básicos: a documentação disponível sobre o Delta egípcio é rara, dado que a região, devido à sua umidade, tornou precária a preservação dos vestígios arqueológicos. Por outro lado, nos interessava observar o contato dos

(^1) Nem sempre há consenso entre os estudiosos acerca da definição dos limites da chora egípcia. Segundo

Rowlandson (1998: xvii), todo o Egito, com exceção de Alexandria, constitui o território denominado chora.

estrangeiros com a população nativa na chamada chora egípcia, isto é, o Egito com exceção de Alexandria. A falta de dados sobre o Delta egípcio, área intensamente povoada no Egito Romano, constitui um problema que não é restrito ao período romano, pois atinge os estudos de egiptologia como um todo. O material funerário selecionado encontra-se em publicações especializadas, catálogos de museus e exposições em sua maioria, que tratam dos achados arqueológicos de tumbas do período romano (séculos I-IV d.C.), da chora egípcia. A dimensão temporal proposta explica-se pela disponibilidade das fontes, mais abundantes no período romano, e pela intenção que tínhamos de averiguar os traços culturais que acompanham a trajetória destes objetos e de sua iconografia, em uma época em que os gregos já estavam incorporados à sociedade egípcia e o elemento romano vem se impor no quadro do domínio imperial romano sobre o Mediterrâneo. Os catálogos de museus e de exposições publicados, sobretudo, a partir da década de 1990, têm destacado a documentação material proveniente do Egito ptolomaico e romano. No entanto, tais trabalhos, apesar de importantes para o desenvolvimento da pesquisa na área, não trazem discussões a respeito do papel e significado das máscaras para a sociedade egípcia de então. Insere-se neste contexto o importante catálogo do Louvre a respeito das máscaras de gesso pertencentes ao seu acervo, de autoria de Aubert e Cortopassi (2004). Em outras obras também relativamente recentes que tratam da documentação material do Egito Romano, como as de Walker (2000) e Doxiadis (1995), a prioridade têm sido os retratos funerários, os chamados “retratos do Fayum”, pintados com a técnica da encáustica ou da têmpera sobre madeira ou linho e comumente destacados como obras de natureza artística grega ou romana, em detrimento da contribuição egípcia à sua confecção. A obra de Grimm (1974), essencial à nossa pesquisa, foi a primeira a tocar na questão da influência romana sobre as máscaras funerárias. Apesar de considerar que a diferença na confecção das máscaras era um resultado de características regionais do Egito Romano, Grimm não se preocupou em buscar mais detalhadamente as origens de tal diferenciação. Por meio de nosso trabalho tentamos demonstrar que além da variação regional, associada à presença de uma elite “grega” local, as máscaras tiveram um “desenvolvimento” cronológico, quando incentivos esporádicos do governo romano e das elites locais influenciaram ainda que indiretamente nos estilos de máscaras produzidos. Desta forma, o objetivo inicial de nossa pesquisa que era relacionar as culturas grega, egípcia e romana no âmbito dos costumes funerários e procurar trazer à tona a contribuição de cada uma ao complexo sistema de crenças egípcias se ampliou para o domínio das relações sociais e políticas. Uma análise mais detalhada de contexto histórico revelou que as relações políticas e sociais entre romanos e nativos (egípcios ou “gregos”) estavam presentes em vários domínios, inclusive no meio funerário, onde as formas artísticas e o estilo representados denotavam a preocupação com o status social do individuo dentro de um determinado grupo ao qual ele pertencia. Neste sentido, foi imprescindível a abordagem do papel que as elites gregas do Egito, assim como o governo romano, tiveram na influência da escolha das formas utilizadas na confecção do material funerário, como é o caso, por exemplo, das máscaras funerárias. Uma rede social complexa permeava as relações sociais entre as elites locais e o governo romano. A análise das máscaras funerárias por tempo e região nos permitiu tanto situá-las cronologicamente segundo a transformação dos tipos a partir do final do século I a.C., quanto deduzir suas diferenças regionais a partir de características próprias de cada região.

um todo e uma figuração da variação cronológica dos tipos de penteado; por último, as tabelas que relacionam os demais atributos das máscaras com os seus tipos definidos no corpus – acessórios de cabeça, vestimenta, objetos levados na mão, colares, motivos iconográficos (animais), motivos iconográficos (divindades) e motivos iconográficos (outros elementos). Esperamos que com este trabalho possamos dar alguma contribuição ao estudo do Egito Romano, um tema complexo, mas instigante, que vem sendo objeto de análise cada vez mais freqüente na literatura acadêmica atual.

II. ROMA E SUAS PROVÍNCIAS

1. Considerações teóricas: etnicidade e Romanização

Os estudos relativos ao Império Romano e suas províncias, principalmente os que se referem à relação entre romanos e nativos, têm sido ultimamente alvo de inúmeros debates concernentes aos conceitos amplamente utilizados de Romanização, etnicidade e, até pouco tempo atrás, de aculturação. A abordagem acadêmica deste assunto é variada. Discorreremos a respeito dos aspectos que achamos relevantes e que deram uma contribuição maior à nossa pesquisa. O conceito de Romanização estava associado, nas suas origens, a uma historiografia de cunho colonial, que se desenvolveu no século XIX e início do XX, época na qual a política imperial britânica estava no auge (Mattingly, 1997: 17). Seguindo esta visão imperialista, os teóricos da Romanização defendiam o pressuposto de que os romanos levaram a “civilização” aos povos bárbaros, como faziam os europeus nas suas colônias africanas e asiáticas. Enquanto a Romanização era vista como uma influência direta da cultura romana sobre os povos conquistados, a aculturação era considerada como a aceitação dos povos dominados da cultura do agressor, superior e mais desenvolvida. Pelo menos, de 1920 a 1960, tanto os termos aculturação quanto Romanização foram utilizados neste sentido primeiro. Mais tarde, tais conceitos foram relativizados. Passou-se a considerar a aculturação como uma via de mão dupla, na qual não apenas a cultura do conquistador influenciava, mas também recebia valores e traços culturais do meio indígena (Wachtel, 1995); e os estudiosos da Romanização começaram a debater cada vez mais a visão tradicional que tinha imperado até então. Romanização passou a ser considerada uma relação dialética, onde ambas as culturas (romana e nativa) são avaliadas. Atualmente, o conceito de etnicidade e de identidade tem sobrepujado estas discussões. Aculturação não é mais utilizada pela antropologia atual e Romanização tem sido considerada, muitas vezes, inapropriada para discutir a relação entre Roma e suas províncias (Jones, 1997: 33; Mattingly, 2004: 8-9). Como salienta Barret (1997: 59-60), o Império Romano nunca foi uma realidade e sim uma construção de historiadores que forjaram uma identidade. Quando categorias como “romanos” e “nativos” são abolidas, a questão da Romanização torna-se irrelevante. Realmente, a questão da identidade cultural reduzida ao simples binômio romanos versus nativos é um dos problemas centrais do conceito de Romanização (Mattingly, 2004: 6). Por este ponto de vista, a cultura é vista como homogênea, como uma entidade única e invariável, na qual é possível distinguir perfeitamente quem é romano e quem não é. Este tipo de pensamento estava subjacente também na arqueologia desenvolvida pela escola histórico-cultural, a qual distinguia culturas a partir dos vestígios materiais. Esta prática foi amplamente criticada e hoje sabemos que a cultura material não oferece meios de determinar cultura. No entanto, isto não impede que possamos descobrir nela um importante veículo transmissor de etnicidade. Cultura e identidade fazem parte do debate atual e muito deste interesse tem sido estimulado pelas mudanças que ocorreram nas estruturas de poder que tradicionalmente formavam as comunidades nas esferas locais e internacionais. Antes, cultura e identidade eram percebidas como relações dentro da classe social ou do império. A partir da segunda metade do século XX priorizaram-se discussões sobre questão de gênero e etnicidade para discutir identidade. Segundo Huskinson (2000: 1), no mundo

etnicidade. Assim, a linguagem e a religião podem ser símbolos de uma identidade étnica, mas a construção da identidade mesma é dada pelo discurso escrito e oral (Hall, 1997: 2). E é tarefa da arqueologia iluminar os modos pelos quais os grupos étnicos empregam ativamente a cultura material marcando as fronteiras étnicas que foram construídas pelo discurso. Esta idéia vai de acordo com os estudos atuais sobre etnicidade, que apontam a necessidade de acesso às reflexões das pessoas sobre elas mesmas, informações estas que são providenciadas pelas fontes escritas ou etnológicas. Sian Jones (1999: 220) aponta problemas nesta interpretação da etnicidade por meio das fontes escritas, porque na arqueologia histórica os marcadores étnicos acabam por ser dados pelas fontes escritas e estas devem ser analisadas enquanto documento e não serem tomadas como fontes objetivas. Elas são pontos de vista de grupos particulares, dominantes na sociedade e possuem um papel ativo na construção da identidade. Papel este que envolve tanto a tradição escrita quanto a material. Podemos obter uma melhor compreensão do modo pelo qual a evidência histórica e arqueológica pode ser usada na análise das etnicidades passadas se levarmos em consideração o processo envolvido na construção da identidade étnica. Nos estudos atuais de Romanização, a variação na cultura material passou a ser vista não mais em termos de etnicidade e cultura e sim em termos de relações sócio- econômicas e políticas. Contudo, achamos que a cultura material pode espelhar tanto os mecanismos de estruturação do poder de uma sociedade explorada e subjugada por outra quanto a identidade ou identidades que os indivíduos ou grupos envolvidos queriam demonstrar num dado momento histórico. Vários autores têm enfocado o papel das elites locais na manutenção e perpetuação do poder romano em nível regional. A cultura romana era um foco de competição (Jones, 1997: 35) e era interessante à elite a adoção do modo de vida romano. A elite, por sua vez, influenciava os outros setores da sociedade. É claro que este modelo teórico deve ser nuançado, pois na prática os vários setores da sociedade reagiam de modo diverso ao domínio romano. Existiam diferentes respostas a Roma, que ia da integração à resistência e o próprio ser “romano” variava conforme os grupos. O que deve ser enfatizado é o fato de que fazia parte da estratégia romana de dominação a cooptação das elites locais^1 , que, ao colaborarem com o governo romano, obtinham vantagens sendo a principal delas a aquisição da cidadania romana. Esta colaboração das elites tem sido vista de maneira distinta pelos historiadores. Alguns consideram que a “Romanização” era uma interferência direta de Roma sobre as províncias, demonstrada pela ação do exército e pela urbanização do espaço dominado. Outros acreditam que a “Romanização” foi um movimento interno incentivado pelas elites locais, interessadas em se aliarem a Roma (Mattingly, 2004: 6). Ambas visões devem ser balanceadas, pois certamente houve uma intervenção direta do poder romano sobre as províncias e, por outro lado, sem o apoio das elites locais o Império não poderia ter se mantido por tanto tempo (Hanson, 1997: 78). A relação entre as elites nativas e os romanos era dialética e se mantinha num jogo de poder e de interesses mútuos. Havia um diálogo entre as elites locais e o poder central, essencial para a manutenção da estrutura imperial (Lomas, 1998: 74).

Estas duas questões discutidas acima, a da etnicidade e identidade cultural mais a estrutura de governo romano baseada na cooptação das elites locais, foram imprescindíveis para a realização deste trabalho. Em relação à etnicidade, sabemos que a identidade cultural e étnica poderia variar conforme o contexto e estava

(^1) Procedimento adotado desde a conquista da Itália no período republicano (Cornell, 1995).

implicitamente associada aos interesses de indivíduos e grupos sociais. Neste sentido, a cultura material pode retratar várias identidades culturais, pois o seu significado depende do contexto e a leitura da imagem do ponto de vista do observador. Por exemplo, era interessante aos imperadores romanos serem retratados como faraós nos relevos dos templos egípcios. A sua representação iconográfica dependia do contexto e da situação histórica dada. O poder atua como um fator de criação de cultura e de identidade. Mesmo as construções romanas como os anfiteatros, teatros, banhos etc., consideradas como símbolos de “Romanização”, só são aparentemente derivadas de uma cultura homogênea, pois estavam sujeitas a interpretações variadas. Os retratos e as máscaras de múmia deste período demonstram que os indivíduos poderiam transitar em várias esferas culturais e serem considerados egípcios, romanos ou gregos conforme o contexto. O mesmo indivíduo durante sua vida poderia ter várias identidades, que podem ser identificadas na cultura material por meio de certas características específicas como a vestimenta, o tipo de cabelo e símbolos religiosos. Outros dados provenientes do contexto arqueológico também colaboram para tal análise, como é o caso do tipo de sepultamento, da estrutura das tumbas, as oferendas funerárias depositadas etc., os quais revelam informações sobre as crenças funerárias envolvidas. O Egito como mais uma província romana, não ficou isento da estratégia política romana de cooptação das elites locais. Houve a criação de uma elite de origem “grega”, cuja identidade foi valorizada em contraposição aos elementos egípcios autóctones. Apesar disto, esta elite transitava em várias esferas culturais e escolhia a identidade mais propícia a ela num determinado momento. Ambos os fatores, a etnicidade e a elite “grega” do Egito, serão retomados no capítulo seguinte, quando será abordado, mais sistematicamente, o contexto histórico em questão.

2. Egito: o olhar estrangeiro

O Egito tem sido, até hoje, considerado como uma terra de mistério e de magia, de crenças esotéricas que remontam a uma antiguidade remota. O Ocidente herdou este quadro dos gregos e romanos, cuja literatura permaneceu, durante muito tempo, a única fonte de referência sobre os povos do Oriente Próximo. Said (1996), ao abordar a visão ocidental do Oriente, tocou em pontos em comum com a descrição já estabelecida desde a antiguidade, embora trate especificamente da época moderna. O Oriente, tal como é visto pelo Ocidente, é uma representação, uma “miragem” do Ocidente, um lugar idealizado de terras exóticas onde acontecem coisas maravilhosas e bizarras (1996: 32):

“O orientalismo tem suas premissas na exterioridade, ou seja, no fato de que o orientalista, poeta ou erudito, faz com que o Oriente fale, descreve o Oriente, torna os seus mistérios simples por e para o Ocidente, tanto existencial como moralmente. O principal produto desta exterioridade é, claro, a representação (...)”.

Um exemplo de representação Said vai buscar entre os gregos antigos:

“A dramática imediaticidade da representação em Os Persas obscurece o fato de que a audiência está assistindo a uma demonstração altamente artificial daquilo que um não-oriental transformou em um símbolo de todo o Oriente.”

Esta visão da cultura ocidental sobre Oriente é oriunda, em grande parte, dos antigos gregos, que consideravam os povos não falantes de sua língua e de costumes