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Corpo tradutor, corpo traduzido em Emily Dickinson165, Notas de aula de Poesia

poeta do corpo e eu sou o poeta da alma respondem168 as reticências de Emily no poema. J1090/F1050: Tenho medo de possuir um Corpo.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Florentino88
Florentino88 🇧🇷

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Corpo tradutor, corpo traduzido em Emily Dickinson
165
Michael A. Soubbotnik
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Introdução
Será que atribuir uma função eminente ao corpo na poética de Emily Dickinson é um
paradoxo? Na constelação das estrelas da “Renascença Americana”: Emerson, Thoreau,
Hawthorne, Melville, Whitman e Dickinson
167
, Walt Whitman é o poeta do corpo ele
mesmo é que o diz – e, apesar de tantos anos de pesquisa, Emily permanece “o Mito” descrito
a Mabel Loomis Todd, sua futura editora, na sua chegada em Amherst: uma solteira esdrúxula
sempre vestida de branco, conversando com hospedes atrás da porta entreaberta de seu quarto
e, por assim dizer, desencarnada. A situação é clara: a poesia norte-americana moderna tem
seu papai sensual e sensível e sua mamãe intelectual e pirada, seu corpo e sua alma, com
papéis até mesmo quase politicamente corretos.
Naturalmente, não é bem assim. Vejamos o primeiro terceto da secção 21 do Canto de
Mim Mesmo de Walt:
Eu sou o poeta do corpo e eu sou o poeta da alma,
Os prazeres do paraíso estão comigo e as dores do inferno estão comigo,
Os primeiros eu enxerto e acrescento em mim, as últimas eu traduzo numa língua nova.
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O texto em português é do autor. Poemas traduzidos ou re-traduzidos do inglês pelo autor com a colaboração
da Profa. Dra. Olga MMC Souza Soubbotnik. Quando um poema já existe em português, a fonte é mencionada
em nota para o leitor ter a oportunidade de comparar as versões.
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Universidade Paris-Est, EA 4120 LISAA (Littératures, Savoirs et Arts).
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Apesar de Matthiessen não incluir Emily na sua American Renaissance.
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Corpo tradutor, corpo traduzido em Emily Dickinson^165

Michael A. Soubbotnik^166

Introdução

Será que atribuir uma função eminente ao corpo na poética de Emily Dickinson é um paradoxo? Na constelação das estrelas da “Renascença Americana”: Emerson, Thoreau, Hawthorne, Melville, Whitman e Dickinson^167 , Walt Whitman é o poeta do corpo – ele mesmo é que o diz – e, apesar de tantos anos de pesquisa, Emily permanece “o Mito” descrito a Mabel Loomis Todd, sua futura editora, na sua chegada em Amherst: uma solteira esdrúxula sempre vestida de branco, conversando com hospedes atrás da porta entreaberta de seu quarto e, por assim dizer, desencarnada. A situação é clara: a poesia norte-americana moderna tem seu papai sensual e sensível e sua mamãe intelectual e pirada, seu corpo e sua alma, com papéis até mesmo quase politicamente corretos. Naturalmente, não é bem assim. Vejamos o primeiro terceto da secção 21 do Canto de Mim Mesmo de Walt: Eu sou o poeta do corpo e eu sou o poeta da alma, Os prazeres do paraíso estão comigo e as dores do inferno estão comigo, Os primeiros eu enxerto e acrescento em mim, as últimas eu traduzo numa língua nova.

(^165) O texto em português é do autor. Poemas traduzidos ou re-traduzidos do inglês pelo autor com a colaboração da Profa. Dra. Olga MMC Souza Soubbotnik. Quando um poema já existe em português, a fonte é mencionadaem nota para o leitor ter a oportunidade de comparar as versões. (^166) Universidade Paris-Est, EA 4120 LISAA (Littératures, Savoirs et Arts). (^167) Apesar de Matthiessen não incluir Emily na sua American Renaissance.

Emily, claro, nunca se teria exprimido em sílabas tão numerosas e em uma sintaxe tão regular mas ela poderia ter assumido cada uma dessas reivindicações. O seu tom, porém, é bem diferente. À afirmação retumbante de Whitman: "eu sou o poeta do corpo e eu sou o poeta da alma" respondem^168 as reticências de Emily no poema J1090/F1050:

Tenho medo de possuir um Corpo Tenho medo de possuir uma Alma – Essa brevíssima comparação entre os dois gênios da poesia americana de língua inglesa deixa perceber o equívoco de opormos preguiçosamente uma “poesia da alma” em ED, a uma “poesia do corpo” em WW. Nem se trata principalmente do dualismo alma/corpo. Tal dualismo é um quadro conceitual de toda a literatura americana do período. É fundamental mas não é distintivo. Trata-se das formas que toma a tradução desse dualismo em uma “língua nova” para exprimir o que Whitman chama de “prazeres do céu” e de “dores do inferno”. Vamos considerar hoje a forma que lhe dá Emily.

Transcendentalismo, realismo e puritanismo

É preciso em primeiro lugar colocar Emily no momento bem particular da literatura norte-americana que ela compartilha com Whitman. Esse momento é aquele da transição entre o reino do transcendentalismo e a era do realismo. William Dean Howells, chamado “o Deão do realismo americano” (Dean = Deão) entra na comissão editorial do Atlantic Monthly , uma das revistas preferidas de Emily, em 1866 e torna seu redator-chefe em 1871. Escritores como Emerson, Thoreau, Hawthorne e Melville acreditavam todos, mesmo que de maneiras diversas, em uma “realidade superior” atingível pela literatura através das realidades mais

(^168) A comparação encontra-se em Shira Wolosky, “Emily Dickinson: being in the body”, in Wendy Martin (ed.), The Cambridge Companion to Emily Dickinson, Londres, Cambridge University Press, 2002, p. 129.

Uma Palavra feita Carne rara – E estremecidamente se partilha E nem então se relata Mas se não me engano Cada um de nós provou Com êxtases de furto A própria comida pesada Segundo nossas forças específicas –

Uma Palavra que respira distintamente Não tem o poder de morrer Coesa como o Espírito Poderia expirar se Ele –

“Feito Carne e habitando entre nós” Pudesse condescendência ser Como este acordo de Linguagem Esta amada Filologia^170 “ O Verbo fez-se Carne” é substituído por “ Uma Palavra feita Carne”, a encarnação de um Verbo divino eterno é substituída pela encarnação de cada uma palavra nossa ao ser enunciada por nós. Assim, a temática da morte e da imortalidade, trazida de novo à imanência da nossa vida de seres falantes, encontrará, na “possibilidade”, à qual Emily identifica a poesia, sua tensão máxima. O corpo e as analogias relacionadas a ele são os operadores mais importantes nas transações entre as “ personae ” dos poemas e as “possibilidades” que definem a poesia para ED:

J657/F (^170) Outra versão: Nuno Vieira de Almeida (org.), Emily Dickinson. Poemas e Cartas , trad. Nuno Júdice, Lisboa, Cotovia, 2000, p. 149.

Moro na Possibilidade – Uma Casa mais bela que a Prosa – Mais rica em Janelas – Superior – em Portas –

Com Salas como os Cedros – Inexpugnáveis pelo Olhar – E como Teto perpétuo As telhas do Céu –

Como Hóspedes – os mais lindos – Como Ocupação – Este – Abrir amplas as minhas mãos exíguas Para colher o Paraíso –^171 “Cada espírito”, Emerson escrevia em Nature , “constrói uma casa para si mesmo; e além da sua casa, um mundo; e além de seu mundo, um paraíso^172 ”. Essa afirmação é, sim, um intertexto de “Moro na Possibilidade” mas no poema de Emily, se a descrição da Casa da Poesia torna-a pouco a pouco mais “celeste”, os dois últimos versos que tratam da atividade poética (e não mais de uma essência da poesia) substituem o “espírito” evocado por Emerson pelas as mãozinhas da poeta.

Essa função operativa do corpo vem de seu estatuto ontológico exposto na primeira estrofe de J263/F293:

Um só Parafuso de Carne É tudo o que fixa a Alma Que representa a divindade, à minha,

(^171) Outra versão: N. Júdice, op. cit. , p. 81. (^172) Ralph W. Emerson, op. cit. , p. 48.

Morava, como se Eu estivesse fora, Só meu Corpo dentro Até que uma Força me descubra E insira meu caroço dentro de mim –

E o Espírito virou-se para a Poeira “Velha Amiga, conheces-me”, E o Tempo saiu contando a Notícia E encontrou a Eternidade A “Palavra Vital” que vem “do fundo da Vida” não é transcendente. É palavra proferida:

J1212 / F

Uma palavra é morta, quando é dita Dizem – Digo eu que só começa a viver Nesse dia^175 Enquanto “palavra feita carne” (J1651 / F1715), ela pertence integralmente à imanência de nosso “acordo de Linguagem”, à “amada Filologia” da linguagem comum cujas palavras e, através delas, os objetos e atos do dia a dia, brilham como jóias. Numa carta dos anos 60 a Joseph Lyman, Emily escreveu: Pensávamos, Joseph, quando eu era uma mocinha mal refinada e você tão acadêmico, que as palavras fossem baratas e fracas. Agora não acho nada mais potente. Há aquelas para quem tiro o chapéu quando as olho sentadas como princesas na página. Às vezes escrevo uma e fico olhando seu contorno até que ela brilhe como nenhuma safira^176.

(^175) Outra versão: Emily Dickinson, Alguns Poemas , trad. José Lira, São Paulo, Editora Iluminuras, 2006, p. 303. (^176) Citado em Richard Benson Sewall, The life of Emily Dickinson, (2 v.) New York, Farrar, Straus and Giroux, 1974, fac-simile in 1 vol., Harvard University Press, 1994, p. 675.

O Eu e o Corpo no poema citado trocaram as regiões espaciais que lhes são habitualmente atribuídas: o Eu não é mais a figura da interioridade em oposição a um corpo “exterior”. O corpo é “dentro”, o Eu é “fora”. Nem o corpo é o oposto do “Eu” ou mais exatamente de “Mim”, na medida em que se pode dizer que “Eu estou fora de Mim” enquanto o meu Corpo só está “dentro de Mim”, e que, ao contrário, a “Força” que me descobre, força de cada palavra “viva” ou “encarnada”, é, ao menos parcialmente, uma força que vem de Mim. Assim, a sintaxe (e até morfologia: I/Me, Eu/Mim) opera a separação do Eu de fora e do Eu de dentro. Pois a linguagem do poema é um “corpo-linguagem”, uma palavra comum encarnada que entra em comparação-competição com o “Verbo feito carne e habitando entre nós”. Na versão da sua história bíblica favorita – o combate de Jacó contra o Anjo – que Emily dá em cartas e poemas, Jacó é que abençoa o Anjo vencido. “O Poeta é um lutador”, escrevia. O poder, porém, de “morar na possibilidade” ou, na tradução corporal do “Parafuso de Carne”, de ter “Outras Mãos pra segurar” e “Mais um Nervo novamente trançado de aço”, é um poder de Visão mas também de Veto (J528/F411):

Meu – aqui – em Visão e em Veto! Meu – pela Revogação do Túmulo “ Mine – by the Grave's Repeal ”: a Revogação do Túmulo é um genitivo subjetivo. O segundo verso explica parcialmente o primeiro e explica também porque o momento da re- apropriação do Eu dentro do Corpo é o momento da virada do Espírito para a Poeira. Daí o medo (J1090/F1050): Tenho medo de possuir um Corpo Tenho medo de possuir uma Alma – já que a própria possibilidade de juntar, na possessão, um “dentro” e um “fora” por meio do “parafuso” da carne implica a precariedade e a morte (J1090/F1050):

A Rapina em Zonas desconhecidas – A Pilhagem do Mar Os Tabernáculos das Mentes Que me disseram a Verdade Em segundo lugar “A Ausência desencarna – assim faz a Morte” (J860/F904). Porque é mortal, O corpo pode fazer-se o tradutor do paraíso na língua deste lado do Véu e sustentar a própria tensão entre morte e imortalidade. Mas assim, como em “Só um parafuso de carne”, o “tenro – solene Alfabeto” que deve traduzir é “subtraído a [seu] olhar”. “E com que Corpo vêm?” pergunta o poema J1492/F1537 citando 1Cor. 15:35. Só uma imortalidade encarnada pode ser desejável; mas seu caráter inacreditável suscita o ceticismo. Violência, dor e ceticismo definem, então, um segundo domínio de possibilidades diretamente gerado pelo primeiro (aquele da Visão paradisíaca). “É difícil”, escreve Emily a Higginson em Junho 1869, “não ser fictícia em um lugar tão lindo” como o mundo extático da Visão; porém, acrescenta, “os reparos austeros da prova são permitidos – todos” (Carta 330). Muitas vezes, os reparos austeros da prova revelam que a possessão era fictícia, despertando a dor de “perder o que nunca possuímos”. Tal perda, “pode parecer […] esdrúxula mas a Presunção tem as suas Aflições tal como a Revindicação” (Carta 429 a Susan Gilbert, 1874^179 ) A falha da visão transcendente gera suas próprias visões e seus próprios êxtases. Aquelas da eternidade implicavam uma mudança adequada do corpo (J263/F293):

Outras Mãos pra segurar – Essas são apenas Duas Mais um Nervo novamente trançado de aço – Concedido em caso de Perigo – Um Amor – a grandes passos – Gigante

Tão maior que aquilo mostrado pelos Deuses

(^179) Mencionada em Weisbuch, loc. cit.

Que fogem envergonhados diante do Barro, Que por nada do que seus Céus vangloriam Abrirá mão da sua prova Não se trata aqui de um “corpo glorioso” mas do próprio corpo de barro que tem de enfrentar a promessa de imortalidade. Uma das experiências-limites que os poemas da falha tentam capturar é aquela do momento da morte do corpo e da recusa da visão última como em J465/F591: Ouvi uma Mosca zumbir – quando morri – O Silêncio no Quarto Era como o Silêncio no Ar – Entre os Ofegos do Temporal – Os Olhos em volta – tinham-nos torcidos – E as Respirações juntavam forças Para esse último Assalto – quando o Rei Comparece diante de testemunhas – no Quarto Leguei as minhas Recordações – Assinei a cessão Da parte de mim Cessível – e foi então Que uma Mosca se interpôs – Com Azul – incerto titubeante Zumbido – Entre a luz – e eu – Então as Janelas falharam – então Não pude mais ver pra ver^180 O corpo conserva aqui sua função de tradutor, agora entre a consciência da persona e a finitude do mundo das coisas. Mas, enquanto o corpo é traduzido, a sintaxe do poema tende a confundi-lo com as coisas através da inversão da relação de agência como no verso “Os Olhos em volta – tinham-nos torcidos –” ( The Eyes around – had wrung them dry – ). A analogia inicial entre os olhos das pessoas que assistem a cena de agonia e os panos ensopados e (^180) Outra versão: José Lira, op. cit. , p. 267.

“dores do inferno” na experiência poética. É o preço que paga a “Rainha do Calvário”, como Emily gostava de se chamar, para gozar do paraíso bem mais real de seu trabalho de escrita.