




























































































Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
Criação ePub. RELÍQUIA. Tradução. OLGA SAVARY. Digitalização. DIGITAL SOURCE. 1974 by Matilde Neruda, representante dos herdeiros de Pablo Neruda ...
Tipologia: Notas de estudo
1 / 362
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
O Jovem Provinciano O bosque chileno Infância e Poesia A Arte da chuva Meu primeiro poema A casa das três viúvas O amor junto ao trigo CADERNO 2 Perdido na Cidade As pensões A timidez A Federação de Estudantes Alberto Rojas Giménez Loucos de Inverno Grandes negócios Meus primeiros livros A palavra CADERNO 3 Os Caminhos do Mundo O vagabundo de Valparaíso Cônsul do Chile num buraco Montparnasse Viagem ao Oriente Alvaro CADERNO 4 A SOLIDÃO LUMINOSA Imagens da selva Congresso na Índia Os deuses reclinados Desventurada Família Humana Tango do viúvo O ópio Ceilão
A vida em Colombo Cingapura Batávia CADERNO 5 Espanha no Coração Como era Federico Miguel Hernández Caballo verde O crime foi em Granada Meu livro sobre a Espanha A Guerra e Paris Nancy Cunard Um Congresso em Madri As máscaras e a Guerra CADERNO 6 Em Busca dos Vencidos Escolhi um caminho Rafael Alberti Nazistas no Chile Isla Negra “Traga-me espanhóis” Um personagem diabólico Um general e um poeta O Winnipeg CADERNO 7 México Florido e Espinhoso Os pintores mexicanos Napoleón Ubico Antologia de pistolas Por que Neruda A véspera de Pearl Harbor Eu, o malacólogo “Araucania” Magia e mistério CADERNO 8 A Pátria das Trevas Machu Picchu
Garrafas e carrancas Livros e caracóis Cristais partidos Matilde Urrutia, minha mulher Um inventor de estrelas Éluard, O Magnífico Pierre Reverdy Jerzy Borezjha Somlyo Georgy Quasimodo Vallejo sobrevive Gabriela Mistral Vicente Huidobro Inimigos literários Crítica e autocrítica Outro ano começa O Prêmio Nobel Chile Chico Bandeiras de Setembro Prestes Codovila Stalin Lição de simplicidade Fidel Castro A Carta dos cubanos CADERNO 12 Pátria Doce e Dura Extremismo e espiões Os comunistas Poética e política Candidato à Presidência A Cmpanha de Allende Embaixada em Paris Retorno ao Chile Frei Tomic Allende
Sobre o Autor
Ao pé dos vulcões, junto aos ventisqueiros, entre os grandes lagos, o fragrante, o silencioso, o emaranhado bosque chileno... Os pés afundam na folhagem morta, um ramo quebradiço crepita, os gigantescos raulíes (1) levantam sua estatura encrespada, um pássaro da selva fria atravessa o ar, esvoaça e se detém entre as ramagens sombrias e logo, de seu esconderijo, soa como um oboé... O aroma selvagem do loureiro e o aroma obscuro do boldo me penetram pelas narinas até a alma.. O cipreste das Guaitecas intercepta meus passos... É um mundo vertical: uma nação de pássaros, uma multidão de folhas... Tropeço em uma pedra, escarvo a cavidade descoberta e uma aranha imensa de pêlo vermelho me olha fixamente, imóvel, grande como um caranguejo... Um besouro dourado me lança sua emanação mefítica enquanto desaparece como um relâmpago seu radiante arco-íris... Ao passar, atravesso um bosque de fetos muito mais alto do que eu; caem no meu rosto sessenta lágrimas de seus verdes olhos frios e atrás de mim ficam por muito tempo agitando seus leques... Um tronco podre, que tesouro!... Fungos negros e azuis deram-lhe orelhas, plantas parasitas vermelhas cobriram-no de rubis, outras plantas preguiçosas emprestaram-lhe seus filamentos e brota, veloz, uma cobra de suas entranhas podres como uma emanação, como se do tronco morto lhe escapasse a alma... Mais adiante cada árvore se separou de suas semelhantes... Erguem-se sobre a alfombra da selva secreta, e cada uma de suas folhas, linear, encrespada, ramosa, lanceolada, tem um estilo diferente,
como cortada por uma tesoura de movimentos infinitos... Um barranco; a água transparente desliza sobre o granito e o jaspe... Voa uma mariposa pura como um limão, dançando entre a água e a luz... A meu lado as calceolárias infinitas me saúdam com suas cabecinhas amarelas... Lá no alto, como gotas arteriais da selva mágica, vergam-se os copihues (2) vermelhos (Lapagéria Rósea)... O copihue vermelho é a flor do sangue, o copihue branco é a flor da neve... Num tremor de folhas, a velocidade de uma raposa atravessa o silêncio, mas o silêncio é a lei destas folhagens... Apenas o grito distante de um animal confuso... A interseção penetrante de um pássaro escondido... O universo vegetal apenas sussurra até que uma tempestade ponha em ação toda a música terrestre. Quem não conhece o bosque chileno não conhece este planeta. Daquelas terras, daquele barro, daquele silêncio, eu saí a andar, a cantar pelo mundo.
1 - Rauli (Bot., Chile): árvore da família das Fagáceas, que chega a 50 m de altura e cuja madeira é empregada em todo tipo de móveis e, em arquitetura, para portas, janelas e assoalhos. (N. da T.) 2 - Copihue: planta ornamental da família das Liliáceas, que dá uma flor vermelha e, mais raramente, branca. A flor do copihue é chamada no Chile “flor de la nacionalidad”. (N. da T.)
Começarei por dizer, sobre os dias e anos de minha infância, que meu único personagem inesquecível foi a chuva. A grande chuva austral que cai como uma catarata do Pólo, desde o céu do Cabo de Hornos até a fronteira. Nesta fronteira, o Far West de minha pátria, nasci para a vida, para a terra, para a poesia e para a chuva. Por muito que tenha andado, acho que se perdeu essa arte de chover que se exercia como um poder terrível e sutil em minha Araucanía natal. Chovia meses inteiros, anos inteiros. A chuva caía em fios como compridas agulhas de vidro que se partiam nos tetos, ou chegavam em ondas transparentes contra as janelas, e cada casa era uma nave que dificilmente chegava ao porto naquele oceano de inverno.
a olhei com meus olhos, morreu minha mãe, D. Rosa Basoalto. Nasci em 12 de julho de 1904 e, um mês depois, esgotada pela tuberculose, minha mãe já não vivia. A vida era dura para os pequenos agricultores do centro do país. Meu avô, Dom José Angel Reyes, tinha pouca terra e muitos filhos. Os nomes de meus tios me pareciam nomes de príncipes de reinos distantes. Chamavam-se Amós, Oseas, Joel, Abadias. Meu pai se chamava simplesmente José del Carmen. Saiu muito moço das terras paternas e trabalhou como operário nos diques do porto de Talcahuano, terminando como ferroviário em Temuco. Era maquinista de um trem lastreiro. Poucos sabem o que é um trem lastreiro. Na região austral, de grandes vendavais, as águas arrastariam os trilhos se não se colocassem pedrinhas britadas entre os dormentes. É preciso tirar em cestos o lastro das pedreiras e despejar a pedra miúda nos vagões. Há quarenta anos a tripulação de um trem desses tinha que ser formidável. Vinham dos campos, dos subúrbios, das prisões. Eram peões gigantescos e musculosos. Os salários da empresa eram miseráveis e não se pediam antecedentes aos que queriam trabalhar nos trens lastreiros. Meu pai era o maquinista do trem. Estava acostumado a mandar e a obedecer. Às vezes me levava com ele. Quebrávamos pedra em Boroa, coração silvestre da fronteira, cenário de terríveis combates entre espanhóis e araucanos. A natureza ali me dava uma espécie de embriaguez. Atraíam-me os pássaros, os escaravelhos, os ovos de perdiz. Era milagroso encontrá-los nas quebradas, brônzeos, escuros e reluzentes, com uma cor parecida com a do cano de uma espingarda. Assombrava-me a perfeição dos insetos. Recolhia as madres de la culebra. Com esse nome extravagante se designava o maior coleóptero, negro, luzidio e forte, o titã dos insetos do Chile. Dava calafrios vê-lo de repente nos troncos dos arbustos, das macieiras silvestres e das estevas, mas eu sabia que era tão forte que se podia ficar com os pés sobre ele que não se romperia. Com sua grande dureza defensiva não precisava de veneno. Estas minhas explorações enchiam de curiosidade os trabalhadores. Logo começaram a se interessar pelas minhas descobertas. Assim que meu pai se descuidava, largavam-se pela selva virgem e com mais destreza, mais inteligência e mais força que eu, encontravam para mim tesouros incríveis. Havia um que se chamava Monge. Segundo meu pai, um perigoso cuchillero. (1) Tinha duas grandes linhas na cara morena. Uma era a cicatriz vertical de uma facada e a outra seu sorriso branco, horizontal, cheio de simpatia e
picardia. Monge me trazia copihues brancos, aranhas peludas, filhotes de pombas, e uma vez descobriu para mim a coisa mais deslumbrante: o coleóptero do cohiue (2) e da luma_. (3)_ Não sei se vocês já o viram alguma vez. Eu só o vi naquela ocasião. Era um relâmpago vestido de arco-íris. O vermelho e o violeta e o verde e o amarelo deslumbravam em sua carapaça. Como um relâmpago me fugiu das mãos e voltou à selva. Monge já não estava perto para recapturá-lo. Nunca me refiz daquela aparição deslumbrante. Tampouco esqueci aquele amigo. Meu pai contou-me sua morte: caiu do trem e rolou por um precipício. O trem parou; porém, disse meu pai, já era só um saco de ossos. É difícil dar uma idéia de uma casa como a minha, casa típica da fronteira há sessenta anos. Em primeiro lugar, as casas se intercomunicavam. Pelo fundo dos pátios os Reyes e os Ortegas, os Candia e os Mason trocavam entre si ferramentas e livros, tortas de aniversário, ungüentos para fricções, guarda-chuvas, mesas e cadeiras. Estas casas pioneiras bastavam para todas as atividades de um povoado. Dom Carlos Mason, norte-americano de melenas brancas, parecido com Emerson, era o patriarca desta família. Seus filhos eram profundamente criollos. Dom Carlos Mason tinha Código e Bíblia. Não era um imperialista mas um pioneiro nato. Desta família, sem que ninguém tivesse dinheiro, surgiam oficinas gráficas, hotéis, açougues. Alguns filhos eram diretores de jornais e outros trabalhavam nas oficinas gráficas. Tudo acabava com o tempo e todo mundo ficava tão pobre como antes. Só os alemães mantinham essa preservação irredutível de seus bens, que os caracterizava na fronteira. Nossas casas tinham, portanto, algo de acampamento. Ou de empresas precur-soras. Ao entrar viam-se barricas, utensílios agrícolas, arreios e objetos indescritíveis. Sempre ficavam casas por terminar, escadas inconclusas. Falava-se toda a vida de continuar a construção. Os pais começavam a pensar na universidade para seus filhos. Na casa de Dom Carlos Mason celebravam-se as grandes festas. Nos dias santos havia perus com aipo, carneiros assados no espeto e ovos nevados de sobremesa. Faz muitos anos que não provo ovos nevados. O patriarca, de cabelos brancos, sentava-se na cabeceira da mesa interminável com sua esposa, D. Micaela Candia. Atrás dele havia uma imensa bandeira chilena, à qual haviam prendido com um alfinete uma minúscula bandeirola
O ano de 1910 chegou à cidade de Temuco. Neste ano memorável entrei no liceu, um vasto casarão com salas desarrumadas e subterrâneos sombrios. Do alto do liceu, na primavera, se divisava o ondulante e delicioso rio Cautín, com suas margens cheias de maçãs silvestres. Fugíamos das aulas para mergulhar os pés na água fria que corria sobre as pedras brancas. Mas o liceu era um território de perspectivas imensas para meus seis anos de idade. Tudo tinha possibilidade de mistério: o laboratório de Física (onde não me deixavam entrar), cheio de instrumentos deslumbrantes, de retortas e pequenas cubas; a biblioteca, eternamente fechada. (Os filhos dos pioneiros não gostavam da sabedoria.) No entanto, o lugar de maior fascínio era o subterrâneo. Havia ali um silêncio e uma escuridão muito grandes. À luz das velas brincávamos de guerra. Os vencedores amarravam os prisioneiros nas velhas colunas. E conservo na memória o cheiro de umidade, de lugar escondido, de túmulo, que emanava do subterrâneo do liceu de Temuco. Fui crescendo. Os livros começaram a me interessar. Nas façanhas de Buffalo Bill, nas viagens de Salgari, foi se estendendo meu espírito pelas regiões do sonho. Os primeiros amores, os puríssimos, se desenvolveram em cartas enviadas a Blanca Wilson. Esta menina era filha do ferreiro e um dos rapazes, perdido de amor por ela, pediu-me que escrevesse por ele suas cartas amorosas. Não me lembro como seriam estas cartas que foram talvez meus primeiros trabalhos literários, pois, certa vez, ao encontrar-me com a estudante, esta me perguntou se era eu o autor das cartas que seu namorado lhe levava. Não me atrevi a renegar minhas obras e muito perturbado respondi que sim. Então ela me deu um doce de marmelo que, é claro, não quis comer e guardei como um tesouro. Afastado assim meu companheiro do coração da menina, continuei escrevendo intermináveis cartas de amor e recebendo doces de marmelo. Os meninos no liceu não conheciam nem respeitavam minha condição de poeta. A fronteira tinha esse caráter maravilhoso de Far West sem preconceitos. Meus companheiros se chamavam Schnakes, Schlers, Hausers, Smiths, Taitos, Seranis. Éramos iguais entre os Aracenas e os Ramirez e os Reyes. Não havia sobrenomes bascos. Havia sefarditas: Albalas, Francos. Havia irlandeses: McGyntis. Poloneses: Yanichewkys. Brilhavam com luz escura os sobrenomes araucanos, com um perfume de madeira e água: Melivilus, Catrileos.
Combatíamos, às vezes, no grande galpão fechado, com bolotas de azinheira. Só quem levou um bolotaço sabe o quanto dói. Antes de chegar ao liceu enchíamos os bolsos de munição. Eu tinha habilidade escassa, nenhuma força e pouca astúcia. Sempre levava a pior. Enquanto me entretinha observando a maravilhosa bolota, verde e perfeita com sua carapuça rugosa e cinzenta, enquanto tratava desajeitadamente de fabricar com ela um desses pitos que logo me arrebatavam, já me havia caído um dilúvio de bolotaços na cabeça. Quando estava no segundo ano me ocorreu usar um chapéu impermeável verde bem vivo. Este chapéu pertencia a meu pai, assim como sua manta de lã, suas lanternas de sinais verdes e vermelhos que estavam carregados de fascínio para mim que, sempre que podia, levava ao colégio para me pavonear... Certa vez chovia implacavelmente e nada parecia mais formidável que o chapéu de oleado verde como um papagaio. Apenas cheguei à sacada meu chapéu voou como um papagaio. Eu o perseguia e quando ia pegá-lo, voava de novo entre a gritaria mais ensurdecedora que jamais escutei. Nunca mais voltei a vê-lo. Nestas recordações não vejo bem a precisão periódica do tempo. Confundem-me acontecimentos minúsculos que tiveram importância para mim e parece que esta foi minha primeira aventura erótica, estranhamente misturada à história natural. Talvez o amor e a natureza foram desde muito cedo as jazidas de minha poesia. Em frente à minha casa viviam duas meninas que continuamente lançavam olhares que me ruborizavam. O que tinha eu de tímido e de silencioso, tinham elas de precoces e diabólicas. Uma vez, parado na porta de minha casa, tratava de não olhar para elas mas tinham nas mãos algo que me fascinava. Aproximei-me com cautela e me mostraram um ninho de pássaro silvestre, tecido com musgo e pluminhas, que guardava em seu interior maravilhosos ovinhos de cor turquesa. Quando fui tomá-lo, uma delas disse que primeiro deviam tirar minhas roupas. Tremi de terror e escapuli rapidamente, perseguido pelas jovens ninfas que exibiam o instigante tesouro. Na perseguição entrei por um beco até uma padaria fechada de propriedade de meu pai. As assaltantes conseguiram me alcançar e começaram a tirar minhas calças quando pelo corredor se ouviram os passos de meu pai. Era uma vez um ninho. Os maravilhosos ovinhos se quebraram na padaria abandonada enquanto, debaixo do balcão, assaltado e assaltantes contínhamos a respiração.
que eram despachadas às pressas pelas mulheres. Era preciso embarcar as camas no trem. Os colchões estavam ainda quentes quando partiam para a estação próxima. Enfermiço e fraco por natureza, sobressaltado na metade do sonho, eu sentia náuseas e calafrios. Entretanto, na casa os carregamentos continuavam sem terminar nunca. Não havia coisa que não levassem para essas férias de pobres. Até secadores de vime, que eram colocados sobre os fogareiros acesos para secar lençóis e a roupa perpetuamente umedecida pelo clima, eram etiquetados e colocados na carroça que esperava os volumes. O trem percorria um pedaço daquela província fria desde Temuco até Carahue. Atravessava extensões imensas e desabitadas, sem cultivo, atravessava os bosques virgens, soava como um terremoto por túneis e pontes. As estações ficavam ilhadas no meio do campo, entre acácias e macieiras floridas. Os índios araucanos, com seus trajes rituais e sua majestade ancestral, esperavam nas estações para vender aos passageiros carneiros, galinhas, ovos e tecidos. Meu pai sempre comprava algo com interminável regateio. Com sua barbicha loura, erguia uma galinha em frente a uma araucana impenetrável que não baixava nem meio centavo o preço de sua mercadoria. Cada estação tinha um nome mais bonito, quase todos herdados das antigas possessões araucanas. Essa foi a região dos combates mais encarniçados entre os invasores espanhóis e os chilenos primitivos, filhos profundos daquela terra. Labranza era a primeira estação, Boroa e Ranquilco a seguiam. Nomes com aroma de plantas selvagens, que me cativavam com suas sílabas. Sempre estes nomes araucanos significavam algo delicioso: mel escondido, lagoas ou rio perto de um bosque, ou monte com nome de pássaro. Passávamos pela pequena aldeia de Imperial, onde o poeta Dom Alonso de Ercilla quase foi executado pelo governador espanhol. Nos séculos XV e XVI aqui foi a capital dos conquistadores. Os araucanos, na guerra pela sua pátria, inventaram a tática de terra arrasada. Não deixaram pedra sobre pedra da cidade descrita por Ercilla como bela e soberba. E, em seguida, a chegada à cidade fluvial. O trem dava seus apitos mais alegres, escurecia o campo e a estação com imensos penachos de fumaça de carvão, tilintavam os sinos e já se percebia o curso amplo, azul e tranqüilo do rio Imperial que se acercava do oceano. Descer as bagagens inumeráveis, organizar a pequena família e dirigirnos em carro de bois até o vapor que desceria pelo rio Imperial, era um espetáculo dirigido pelos olhos azuis e pelo apito ferroviário de meu pai. Metíamo-nos com as bagagens no barquinho
que nos levava ao mar. Não havia camarotes. Eu me sentava perto da proa. As rodas moviam com suas pás a corrente fluvial, as máquinas da pequena embarcação resfolegavam e rangiam, a taciturna gente sulina ficava como mobílias imóveis dispersas pelo convés. Um acordeão lançava seu lamento romântico, uma incitação ao amor. Não há nada mais envolvente para um coração de quinze anos que navegar por um rio amplo e desconhecido, entre ribeiras montanhosas, a caminho do mar misterioso. Bajo Imperial era só uma fileira de casas de tetos vermelhos. Estava situada sobre a frente do rio. Da casa que nos esperava e, ainda antes, dos cais desconjuntados onde atracou o vaporzinho, escutei a distância o estrondo marinho, uma comoção distante. O marulhar entrava em minha vida. A casa pertencia a Dom Horácio Pacheco, agricultor gigantesco que, durante esse mês de nossa estada em sua casa, ia e levava pelas colinas e pelos caminhos intransitáveis seu trator e sua debulhadora. Com a máquina colhia o trigo dos índios e dos camponeses, isolados na povoação costeira. Era um homenzarrão que de repente irrompia em nossa família ferroviária falando com voz estentórea e coberto de pó e palha de cereais. Depois, com o mesmo estrondo, voltava às suas tarefas nas montanhas. Foi para mim mais um exemplo das vidas duras de minha região austral. Tudo era misterioso para mim naquela casa, nas ruas maltratadas, nas existências desconhecidas que me rodeavam, no som profundo da distância marinha. A casa tinha o que me pareceu um imenso jardim desordenado, com um caramanchão central castigado pela chuva, caramanchão de vigas brancas cobertas pelas trepadeiras. A não ser minha insignificante pessoa, ninguém entrava nunca na solidão sombria onde cresciam as heras, as madressilvas e minha poesia. É certo que havia naquele jardim estranho outro objeto fascinante: um bote, órfão de grande naufrágio, que jazia ali no jardim sem ondas nem tormentas, encalhado entre as amapolas. O mais estranho naquele jardim selvagem era que, intencionalmente ou por descuido, havia somente amapolas. As outras plantas tinham-se retirado do lugar sombrio. Algumas eram grandes e brancas como pombas; outras, escarlates como gotas de sangue, ou cor de amora e negras como viúvas esquecidas. Eu nunca tinha visto tanta quantidade de amapolas e nunca mais voltei a ver. Ainda que as olhasse com muito respeito, com certo supersticioso temor que só elas infundem, entre todas as flores, não deixava de cortar de vez em quando alguma, cujo talo quebrado deixava um leite