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Guias e Dicas
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Poética Gráfica Futurista: A Revolução Tipográfica na Primeira Metade do Século XX, Notas de aula de Comunicação

Este documento discute as avanguardas artísticas da primeira metade do século xx e suas novas formas de perceber as palavras e as letras, chamando atenção para seu aspecto visual. O texto aborda o futurismo, que desenvolveu uma filosofia específica da tipografia, liberando a palavra impressa dos limites tradicionais e subvertendo a sintaxe. Além disso, o documento discute a influência da linotype machine e monotypecaster na criação de um novo entendimento do espaço gráfico.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Pipoqueiro
Pipoqueiro 🇧🇷

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MODERNIDADE LATINA
Os Italianos e os Centros do Modernismo Latino-americano
Comunicação Gráfica Futurista
e Seus Reflexos no Brasil
Vanessa Beatriz Bortulucce
As vanguardas artísticas da primeira metade do século XX desenvolveram
uma nova forma de perceber as palavras, as letras e as frases, chamando
atenção para o seu aspecto eminentemente visual, dando continuidade e apro-
fundando as experiências gráficas surgidas no século anterior. Não se tratava
somente de entender uma palavra, os seus significados, seus fonemas. O alfa-
beto, mais do que formar palavras, formaria desenhos. As palavras tinham de
ser percebidas como imagens, o que significava uma transformação contun-
dente na percepção do espaço de uma página de jornal, de livro, de panfleto.
O Futurismo, ao defender seu projeto de “revolução tipográfica”, asso-
ciando-o intimamente com o desejo de renovação literária, alterou o significado
de termos como narrativa, sintaxe, livro, assim como os conceitos de layout,
composição e tipografia. Com o movimento italiano, a literatura e o design
gráfico estreitaram-se cada vez mais, e em alguns casos foram vistos como uma
única coisa, pois o texto – e a apreensão de seu significado – era inseparável
do seu layout. O Futurismo desenvolveu uma filosofia específica da tipografia,
em consonância com a poética do moderno e do urbano, ao mobilizar poetas e
artistas na revitalização da escrita, da leitura e da gráfica, através de recursos
como onomatopeias, uso de redes de analogias, exploração do poder suges-
tivo das fontes, do itálico, do negrito e da caixa alta, subvertendo a sintaxe
tradicional, alargando o campo da experiência literária e fundando uma poética
da linguagem onde a máquina tipográfica e a experiência pessoal do leitor
possuem a mesma importância.
A renovação gráfica futurista possui suas raízes na poesia e a partir daí
projetou seu programa de renovação da linguagem. Desde 1905 a revista Poesia,
fundada por Marinetti, defendia o uso do verso livre, que pretendia romper com
a uniformidade sintática da literatura do passado. A ideia do verso livre evoluiu
para a concepção das parole in libertà, cuja metodologia foi apresentada no
manifesto Distruzione della sintassi - Immaginazione senza fili - Parole in libertà,
de 1913. Algumas considerações deste manifesto já haviam sido expressas um
ano antes no Manifesto tecnico della letteratura futurista, que reivindicava a
abolição da pontuação, bem como dos adjetivos, advérbios e conjunções.
Embora Mallarmé já tivesse abolido a pontuação no seu Un coup de dés, em
1897, na revista Cosmopolis (e publicado em formato de livro em 1914) o alcance
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Os Italianos e os Centros do Modernismo Latino-americano

Comunicação Gráfica Futurista

e Seus Reflexos no Brasil

Vanessa Beatriz Bortulucce

As vanguardas artísticas da primeira metade do século XX desenvolveram uma nova forma de perceber as palavras, as letras e as frases, chamando atenção para o seu aspecto eminentemente visual, dando continuidade e apro- fundando as experiências gráficas surgidas no século anterior. Não se tratava somente de entender uma palavra, os seus significados, seus fonemas. O alfa - beto, mais do que formar palavras, formaria desenhos. As palavras tinham de ser percebidas como imagens, o que significava uma transformação contun- dente na percepção do espaço de uma página de jornal, de livro, de panfleto. O Futurismo, ao defender seu projeto de “revolução tipográfica”, asso- ciando-o intimamente com o desejo de renovação literária, alterou o significado de termos como narrativa, sintaxe, livro, assim como os conceitos de layout , composição e tipografia. Com o movimento italiano, a literatura e o design gráfico estreitaram-se cada vez mais, e em alguns casos foram vistos como uma única coisa, pois o texto – e a apreensão de seu significado – era inseparável do seu layout. O Futurismo desenvolveu uma filosofia específica da tipografia, em consonância com a poética do moderno e do urbano, ao mobilizar poetas e artistas na revitalização da escrita, da leitura e da gráfica, através de recursos como onomatopeias, uso de redes de analogias, exploração do poder suges- tivo das fontes, do itálico, do negrito e da caixa alta, subvertendo a sintaxe tradicional, alargando o campo da experiência literária e fundando uma poética da linguagem onde a máquina tipográfica e a experiência pessoal do leitor possuem a mesma importância. A renovação gráfica futurista possui suas raízes na poesia e a partir daí projetou seu programa de renovação da linguagem. Desde 1905 a revista Poesia, fundada por Marinetti, defendia o uso do verso livre , que pretendia romper com a uniformidade sintática da literatura do passado. A ideia do verso livre evoluiu para a concepção das parole in libertà , cuja metodologia foi apresentada no manifesto Distruzione della sintassi - Immaginazione senza fili - Parole in libertà , de 1913. Algumas considerações deste manifesto já haviam sido expressas um ano antes no Manifesto tecnico della letteratura futurista , que reivindicava a abolição da pontuação, bem como dos adjetivos, advérbios e conjunções. Embora Mallarmé já tivesse abolido a pontuação no seu Un coup de dés , em 1897, na revista Cosmopolis (e publicado em formato de livro em 1914) o alcance

Os Italianos e os Centros do Modernismo Latino-americano de seu texto foi menor do que aqueles exaustivamente divulgados pelo poeta italiano a partir de 1912. Mallarmé libertou a palavra impressa dos limites tradicio- nais de editoração das páginas de um livro. Un coup de dés foi pioneiro ao mostrar uma nova forma de expressão visual. Mallarmé construiu sua poesia com o uso de diferentes famílias de fonte; a abertura dos espaços na folha, realizada de forma nova, cria na página uma estética bastante próxima das gravuras japonesas, onde os espaços vazios são tão cheios de significado quanto aqueles preenchidos por desenho. As frases assumiram uma qualidade de linha, deslizando na folha em branco: não mais uma partitura, mas a própria música, impressa. Os futuristas foram mais adiante no projeto de Mallarmé, e defenderam a ideia de que as palavras possuíam uma expressão visual para além de seu signi- ficado literal; isto significava usar a palavra de uma forma visual para expressar ideias além das palavras. Contudo, as mudanças de layout realizadas pelos futuristas foram possíveis graças aos avanços tecnológicos que aconteciam na época. É necessário lembrar que tais inovações tipográficas têm as máquinas como principais protagonistas, que proporcionaram aos escritores um novo formato tipográfico, tirado do mundo dos cartazes de publicidade e dos jornais. Além das máquinas, deve-se ressaltar a importante tarefa do impressor, que realiza o ato heroico de tornar visíveis as ideias futuristas. A cruzada contra os elementos tradicionais da sintaxe e do design gráfico tem em Marinetti um dos seus líderes mais importantes. O poeta, teórico e fundador do Futurismo concebeu poemas que subverteram a lógica tipográfica usual, combinando diferentes famílias tipográficas, com tamanhos variados, bem como possibilitando que as linhas de texto ultrapassassem as linhas da página. Ao manipular o processo de impressão, Marinetti explorava os limites da prensa tipográfica, deixando o processo da estrutura tecnológica na super- fície, um exoesqueleto que homenageia o mecânico. A invenção da Linotype Machine, nos Estados Unidos, e da Monotypecaster, na Inglaterra, possibilita- riam a criação de um novo entendimento do espaço gráfico. A tipografia futurista tem a sua força na junção das linguagens visual e literária. Os elementos visuais nas páginas impressas estão de acordo com as ideias tão caras aos futuristas, de dinamismo e velocidade, ao transmitir para a folha de papel (e mais tarde, para a folha de metal) as experiências e o ritmo da vida moderna. A ortodoxia da linguagem e a tipografia clássica são abando- nadas a favor de uma nova forma gráfica, que enxerga de forma igual a arte e o design, e estabelece assim uma nova forma de comunicação, em afinidade com a linguagem publicitária tão em voga desde o século XIX. A comunicação não mais dependia somente do significado da palavra, mas também da sua aparição, rápida e dinâmica, nas superfícies e volumes utilizados para informação. Os futuristas italianos construíram uma “poesia tipográfica”, onde o texto comunica diversos significados, relacionados entre si; engatilha no leitor uma reminiscência de sons, cheiros e imagens: ao expor-se como uma carne estou- rada, dispara memórias. A proposta desta poesia tipográfica vira do avesso os valores poéticos e materiais: a poesia assume uma materialidade, uma textura, uma tangibilidade, livre dos seus aspectos simbólicos e transcendentais, ao

Os Italianos e os Centros do Modernismo Latino-americano às marés e fluxos, às ascensões e quedas de estilo que ocorrem na página. Na mesma página, portanto, nós usaremos três ou quatro cores de tinta, ou mesmo vinte tipos diferentes se necessário. Por exemplo: itálico para uma série de sensa- ções similares ou rápidas, negrito para onomatopeias violentas, e assim por diante. Com esta revolução tipográfica e esta variedade multicolorida nas letras eu desejo redobrar a força expressiva das palavras (...) (tradução minha). Algumas das propostas acima não chegaram a ser formalizadas, como por exemplo o uso de três ou mais cores na folha de papel. Mas também temos de considerar a possibilidade de compreender por “cores” as diferentes tonalidades e intensidades da cor negra no espaço gráfico; a variação tonal seria responsável na transmissão de ideias de peso, volume, grito, silêncio, etc. Tratava-se, afinal, de uma declaração a favor de uma poesia gráfica condicionada e inspirada pela imprensa, pela multiplicidade dos tipos e o design industrial da informação escrita – uma poesia rápida, telegráfica, simultânea, ligada à publicidade. Outro trecho do mesmo manifesto afirma a necessidade de criar uma litera - tura veloz, marcada pelo dinamismo: (...) Eu combato a estética decorativa e preciosa de Mallarmé e as suas pesquisas por uma palavra rara, pelo adjetivo único e insubstituível, elegante, sugestivo, saboroso. Não desejo sugerir uma ideia ou uma sensação com as graças e afeta- ções passadista: ao invés disso prefiro agarrá-las brutalmente e jogá-las no peito do leitor. Combato também o ideal estático de Mallarmé, com esta revolução tipo- gráfica que me permite imprimir às palavras (estas já livres e dinâmicas) toda a velocidade, aquelas dos astros, das nuvens, dos aviões, dos trens, das ondas, dos explosivos, dos glóbulos da espuma do mar, das moléculas, e dos átomos. Desta forma aplico o quarto princípio do meu Primeiro manifesto do Futurismo (20 de fevereiro de 1909): 'Nós afirmamos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma nova beleza: a beleza da velocidade' (...) (tradução minha). Os manifestos traziam a teoria tipográfica e ao mesmo tempo mostravam o resultado visual deste programa. Lawrence Rainey observa^1 : Muitos manifestos foram originalmente publicados como panfletos independentes de duas a quatro páginas, e desde o início eles eram bastante diferentes no seu display tipográfico. Sublinhados atravessavam a página, tipos em negrito gritavam comandos, enquanto os itálicos contorciam-se com urgência. Tais características acentuaram-se com o tempo, especialmente após 1912. Cada vez mais os manifestos eram impressos com múltiplos tamanhos de letras; manchetes subiam a página em colunas, ou inclinavam-se em vertiginosas diagonais. A visualidade, em geral, tornou- -se mais pronunciada, e as ilustrações passaram a ser cada vez mais incluídas. O manifesto Il teatro di varietà, escrito por Marinetti em 1913, é um exemplo emblemático ao apresentar o uso de vários recursos tipográficos: diferentes tipologias, letras em caixa alta, listagem com números em negrito, slogans publi- 1 RAINEY, Lawrence; POGGI, Christine; WITTMAN, Laura (orgs). Futurism: an anthology. New Haven: Yale University Press, 2009, pp. 45-46.

Os Italianos e os Centros do Modernismo Latino-americano citários, onomatopeias, enfim, uma “imagem gráfica das teses de Marinetti”, conforme nota Perloff, assim como uma estreita ligação com a linguagem publi - citária dos fins do século XIX e início do XX: uso de cabeçalhos em negrito, letras em caixa alta, aforismos destacados no texto, uso de numeração nos pontos programáticos. A poética gráfica futurista assume, assim, como características essenciais o uso de letras sem serifas, a variação do tamanho da fonte para dar a ideia de volume e de som, uso de onomatopeias para acentuar a sonorização do texto, cores nas letras (embora numa carta de cores reduzida), palavras colo - cadas em ângulos não-habituais, o que dificultava a impressão. O uso variado de famílias de tipos é um elemento marcante da tipografia futurista. Enquanto no século XIX os impressores preferiam o uso de um tipo humanista, bastante próximo à caligrafia e ao movimento da mão, as fontes modernas são mais abstratas, sem aquele caráter orgânico, de referências históricas e tradicionais de um ofício. A crescente industrialização que propor- ciona o desenvolvimento da sociedade de consumo de massas permite o pleno desenvolvimento da propaganda, que, por sua vez, necessita, além de muitos outros recursos e ferramentas gráficas, da criação de novas famílias tipográficas. No que concerne à diagramação, novas experiências do diagrama já estavam ocorrendo através das páginas dos jornais desde o século XIX, que, contraria- mente ao livro, expunham várias colunas próximas umas às outras. Trata-se de uma diagramação fortemente marcada por linhas verticais e horizontais, uma grade rígida. Os artistas e poetas de vanguarda atacaram as barreiras que sepa- ravam a arte do cotidiano, criando novos objetos e práticas que se misturavam à experiência urbana. Os diagramas mecânicos da tipografia foram expostos pelos futuristas e dadaístas, que atacaram as limitações lineares dos tipos de metal. Eles se transformaram em evidentes ferramentas teóricas, e assim, toda aquela estrutura tipográfica criada para permanecer nos bastidores, ocupava, desta vez, a superfície da página. O processo lógico tipográfico, o raciocínio da máquina, enfim, o ofício em seu fazer-se, agora estavam no centro da gráfica futurista: técnica e poética passaram a ser vistas como uma única coisa. Todo este programa voltava- -se para a criação de uma arte que estivesse incrustada na vida, participante na experiência cotidiana, algo que, dois anos mais tarde, seria reforçado no impor- tante manifesto Ricostruzione futurista dell'universo , de Balla e Depero. Os periódicos foram o suporte mais importante na divulgação da poesia futurista; em alguns casos, coletâneas de poemas foram publicadas em formato de livro. Além de Poesia , periódicos importantes foram Lacerba , Noi , de Enrico Prampolini, Dinamo Futurista , de Fortunato Depero, e Stile Futurista. Os poemas futuristas são um engenhoso híbrido literário-visual: o conteúdo gráfico reforça o conteúdo literário, social, político. Os conceitos de Arte e Design são tão próximos que a própria poesia também pode ser vista como obra gráfica, como trabalho plástico, para além da literatura. Neste sentido, destacamos os poemas Battaglia, peso+odore (1912), Les mots en liberté futuristes: lettre d’une Jolie femme à un monsieur pass é iste , (1912), CHAIRrrrrrrRR (1912), todos poemas de Marinetti. A teoria das parole in libertà de Marinetti foi decisiva para a renovação tipo- gráfica do século XX. Seu livro Zang Tumb Tumb , de 1914, que agrupa poemas

Os Italianos e os Centros do Modernismo Latino-americano tipo de papel, o brilho e status efêmero daquele suporte. A obra foi impressa no formato de um jornal (45,8 x 34,8 cm). A tipografia futurista, contudo, não se limitou às paginas de livros e revistas, aos poemas e aos panfletos, integrando frequentemente outros suportes. Na pintura, temos o Manifestazione interventista (1914) de Carrà; no mesmo ano, no teatro, Balla propôs a Diaghilev a encenação do balé Macchina Tipografica , uma visualização de um linótipo em movimento, realizado por seis dançarinas-engre- nagens. Em Máquina tipográfica , a única coisa que aparece no palco é a palavra “Tipografia”, em letras gigantescas, onde os atores, dentro delas, criam baru- lhos e onomatopeias. Fortunato Depero aplica o letrismo futurista na pesquisa arquitetônica, e em 1927, para a III Mostra Internazionale delle Arti Decorative di Monza, criou o Padiglione del Libro, para os editores Bestetti-Tumminelli e Treves; nele, o volume e a plástica de letras gigantes de impressão transformaram-se em material de arquitetura. Angelo Rognoni preconiza a criação de esculturas de letras tipográficas. Todos estes exemplos manifestam o projeto futurista de uma arte total, inserida e participante da vivência humana, liberta das categorizações limitadoras. A “revolução tipografia” estaria, de fato, imersa no cotidiano, onde o conceito de palavras de liberdade ampliar-se-ia para além do livro e do texto; trata-se de deslocamentos dinâmicos do espaço tipográfico. Retornando à questão específica da plástica gráfica futurista nos seus suportes mais tradicionais, não podemos deixar de destacar as transformações ocorridas no suporte livro, onde experiências extremamente interessantes ocor- reram. Os livros futuristas – em toda a contradição que este termo pode provocar na vanguarda italiana – foram emblemas do progresso técnico e cultural do país, e aproveitaram todas as mídias possíveis de produção em série, transformando- -se em verdadeiras obras de arte interativas, midiáticas e profundamente cria- tivas. Se durante a década de 1910, os livros futuristas concentravam-se nos experimentos tipográficos das parole in libertà (experimentos estes recolhidos e publicados por Marinetti no livro de 1919, Les mots en liberté futuristes ), na década de 20 a vanguarda redirecionou seu projeto para um contato mais íntimo com a estética da máquina, que deu novo fôlego ao movimento. Neste período, os futuristas, em particular Depero, Panaggi, Paladini, aprofundam o seu interesse pela publicidade nos mais variados suportes. Esta década teste - munhou a ampliação da experiência tipográfica para além dos jornais, mani - festos e periódicos, para concentrar-se em outras experiências. O modelo da máquina foi usado na valorização da plástica do livro. Na década anterior, o lugar por excelência da revolução tipográfica era no interior do livro, no “miolo”, naquilo que precisa ser aberto para ser descoberto. As capas também são espaço para brincadeiras tipográficas. O próximo passo seria mudar o livro em seu aspecto essencialmente material: material da capa, folhas, encadernação, pigmentos: logo, “(...) é a physis que domina a segunda fase das palavras em liberdade futuristas”^2. As transformações iniciais ocorrem no âmbito do papel; mais tarde ele foi substituído pelo metal, pois para o Futurismo a página impressa é uma espécie de “placa”, ou “mesa”, onde o 2 LISTA, Giovanni. Le futurisme: création et avant-garde. Paris: Les Éditions de l´Amateur, 2000, p. 272.

Os Italianos e os Centros do Modernismo Latino-americano alimento poético e as imagens visuais podem ser rapidamente consumidos. Surge então o que Perloff chama de Livro de artista, que “(...) põe em questão a estabilidade do gênero (...)”^3. A rejeição das formas tradicionais de alinhamento de palavras está ligada a uma nova fluidez da linguagem, que acentua a intensi - dade das emoções. Ignorando todo padrão de composição, palavras e fonemas, sílabas e vogais são absorvidas pela superfície das páginas, deslizam como negativos fotográficos na superfície das folhas de metal, exploram o espaço e deixam-se fixar em locais inesperados. A relação do livro – entendido cada vez mais pelos futuristas em seu valor de objeto, ou seja, sua fisicalidade seria valo - rizada em igual medida a seu conteúdo – com o leitor tornar-se-ia simbiótica, transformada, pois ambos testemunhariam a visão unitária e global do mundo estético futurista. Uma obra importante deste período é o libro bullonato (livro aparafusado), como ficou conhecido o livro Depero Futurista , de 1927. A obra, editada pelo também futurista Fedele Azari, é tida como o primeiro livro-objeto, com capas duras encadernadas com dois parafusos e duas porcas: é a celebração da vida industrial e a defesa da estética da máquina, assim como uma estratégia inova- dora de marketing e objeto de design. Apresenta a trajetória criativa de Depero, o futurista mais próximo do conceito de designer gráfico. Cada página do livro possui uma diagramação diferente, onde imagens dividem espaço com textos, palavras constroem imagens, e ilustrações dialogam ativamente com a escrita. Depero Futurista é um exemplo de integração entre palavras em liberdade e estética mecânica, obra que resume a pesquisa multidisciplinar de Depero como pintor, escultor, poeta, arquiteto. Praticamente todas as inovações gráficas futu- ristas estão presentes: folhas dobradas, papeis coloridos, impressão cromática do texto, jogos tipográficos, todo tipo de surpresas criadas a partir de uma expe - riência lúdica. Segundo Azari, o livro é “aparafusado como um motor” 4 , o que torna possível desmontar a estrutura para trocar as folhas, ou reorganizá-las. O processo de reordenação das páginas, afinal, reflete a mesma práxis realizada com as palavras. Este processo contribuiu para a destruição de qualquer ideali - zação da obra, ao explorá-la como um objeto. É o livro-máquina, uma nova onto - logização destinada a celebrar as categorias mentais e espirituais inerentes ao pensamento e à criação estética do homem moderno. Já os exemplos de livros futuristas produzidos na década de 30 refletem a estética de outra máquina idolatrada pelos futuristas: o avião. A celebração dos materiais e metais leves utilizados no fabrico desta e de outras máquinas, como estanho, folha de flandres, e outras ligas, ganhou largo espaço no movimento, que produziu a partir destas matérias primas convites, cartazes, telas, poemas em pranchas, calendários, cartões postais, programas e folhetos. Em 1930, Oscar Fusetti e Nicolay Diulgheroff publicaram o livro Programma Almanaco Italia veloce. As páginas eram impressas em serigrafia e ilustradas com composições de Munari, Balla, Dottori, Prampolini, Diulgheroff, Pozzo, dife- 3 PERLOFF, M. O momento futurista: avant-garde, avant-guerre e a linguagem da ruptura. São Paulo: EDUSP, 1993, p. 21. 4 LISTA, op. cit., p. 274.

Os Italianos e os Centros do Modernismo Latino-americano com o dadaísmo, esquecendo-se que este bebe de águas inegavelmente futu- ristas. Estão lá as fontes diversas, a imensa letra “A” vermelha que, soberana, consegue integrar todas as palavras no espaço da página, números deitados, um verdadeiro manifesto visual que permaneceu inalterado ao longo dos seus nove números. Aliás, negar o Futurismo seria um passatempo de alguns escri - tores modernistas como Mario de Andrade, que publica, em 1922, pela Casa Mayença, Paulicéia Desvairada , de que consta o "Prefácio Interessantíssimo", com capa do autor, inspirada na capa de Arlecchino (1921), de Ardengo Soffici. Também destacamos a edição número 1 da RASM (Revista Anual do Salão de Maio), de 1939, cuja capa foi confeccionada em alumínio por Flávio de Carvalho (um dos nomes brasileiros que mais declaradamente interessou-se pela estética do Futurismo italiano) e remete diretamente ao libro bullonato (Depero/Azari), de 1927, e do Libro di latta (Marinetti/Albissola, 1932). Os livros táteis de Lygia Clark, produzidos décadas mais tarde, seriam um dos muitos desdobramentos que a gráfica futurista, profundamente associada com as pala- vras em liberdade, no país.

Bibliografia

BORTULUCCE, Vanessa Beatriz. “Dois manifestos inéditos de Fedele Azari”. Revista de História da Arte e Arqueologia do IFCH/UNICAMP, n 13, jan-jul 2010. LISTA, Giovanni. Le futurisme: création et avant-garde. Paris: Les Éditions de l´Amateur, 2000. LUPTON, Ellen. Pensar com tipos. São Paulo: Cosac Naify, 2006. MELO, Chico Homem de; RAMOS, Elaine (orgs.) Linha do tempo do Design gráfico no Brasil. São Paulo: Cosac & Naify, 2011. PERLOFF, M. O momento futurista: avant-garde, avant-guerre e a linguagem da ruptura. São Paulo: EDUSP, 1993. RAINEY, Lawrence; POGGI, Christine; WITTMAN, Laura (orgs). Futurism: an anthology. New Haven: Yale University Press, 2009.