Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Interpretação Simultânea: Coerência Textual e Conhecimento do Mundo, Notas de estudo de Comunicação

Este documento discute a importância da coerência textual e do conhecimento do mundo na interpretação simultânea. Ele aborda a necessidade de ativar estratégias para restaurar ou restabelecer o sentido no discurso de partida, a interação entre a memória de trabalho e o conhecimento do mundo, e a importância de uma preparação prévia para a interpretação. Além disso, o texto discute a importância de se atualizar os elementos cognitivos e suprir informações durante a interpretação para atender às necessidades dos beneficiários.

O que você vai aprender

  • Como o conhecimento do mundo influencia a interpretação simultânea?
  • Qual é a importância da coerência textual na interpretação simultânea?
  • Qual é a importância de uma preparação prévia para a interpretação simultânea?
  • Quais estratégias devem ser utilizadas para restaurar sentido em discursos descontextualizados?
  • Como os frames do intérprete, do palestrante e do público se relacionam na interpretação simultânea?

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Sel_Brasileira
Sel_Brasileira 🇧🇷

4.7

(96)

227 documentos

1 / 27

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
Coerência textual, conhecimento do mundo ... 391
COERÊNCIA TEXTUAL, CONHECIMENTO DO
MUNDO E INTERTEXTUALIDADE: IMPLICAÇÕES NA
INTERPRETAÇÃO SIMULTÂNEA (IS)
Edson Lopes
UFMG
Inicialmente, cumpre relembrar que “a coerência está diretamente
ligada à possibilidade de se estabelecer um sentido para o texto
(KOCH, 1990:21). Em outras palavras, só existirá sentido no texto
se as informações nele contidas estiverem interligadas por uma
noção lógica, se forem coerentes. Portanto, o que o intérprete
procura num texto, é o seu sentido ou a sua lógica interna, que, em
última instância, se liga a uma lógica maior e externa que aqui
chamamos de conhecimento do mundo.
Em algumas circunstâncias, a falta de sentido no discurso de
partida (DP) poderá indicar ao intérprete a necessidade de ativar
estratégias que lhe possibilitem restaurar ou restabelecer o sentido,
o que implica em encontrar informações que supram vazios
existentes na estrutura lógica do texto ou na memória do intérprete.
Algumas dessas estratégias serão analisadas aqui.
Diferentemente do tradutor que, em geral, dispõe de tempo para
consultar o autor do Texto de Partida (TP) a fim de esclarecer
dúvidas de sentido e para vasculhar fontes, o intérprete não pode
fazê-lo. As conseqüências das dificuldades de compreensão podem,
às vezes, ser maquiadas no Texto de Chegada (TC) na IS, mas tal
recurso traz prejuízos ao sentido do texto que podem ser
incongruentes. O exercício da ética e a busca da fidelidade fazem
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa
pfd
pfe
pff
pf12
pf13
pf14
pf15
pf16
pf17
pf18
pf19
pf1a
pf1b

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Interpretação Simultânea: Coerência Textual e Conhecimento do Mundo e outras Notas de estudo em PDF para Comunicação, somente na Docsity!

Coerência textual, conhecimento do mundo ... 391

COERÊNCIA TEXTUAL, CONHECIMENTO DO

MUNDO E INTERTEXTUALIDADE: IMPLICAÇÕES NA

INTERPRETAÇÃO SIMULTÂNEA (IS)

Edson Lopes UFMG

Inicialmente, cumpre relembrar que “ a coerência está diretamente ligada à possibilidade de se estabelecer um sentido para o texto ” (KOCH, 1990:21). Em outras palavras, só existirá sentido no texto se as informações nele contidas estiverem interligadas por uma noção lógica, se forem coerentes. Portanto, o que o intérprete procura num texto, é o seu sentido ou a sua lógica interna, que, em última instância, se liga a uma lógica maior e externa que aqui chamamos de conhecimento do mundo. Em algumas circunstâncias, a falta de sentido no discurso de partida (DP) poderá indicar ao intérprete a necessidade de ativar estratégias que lhe possibilitem restaurar ou restabelecer o sentido, o que implica em encontrar informações que supram vazios existentes na estrutura lógica do texto ou na memória do intérprete. Algumas dessas estratégias serão analisadas aqui. Diferentemente do tradutor que, em geral, dispõe de tempo para consultar o autor do Texto de Partida (TP) a fim de esclarecer dúvidas de sentido e para vasculhar fontes, o intérprete não pode fazê-lo. As conseqüências das dificuldades de compreensão podem, às vezes, ser maquiadas no Texto de Chegada (TC) na IS, mas tal recurso traz prejuízos ao sentido do texto que podem ser incongruentes. O exercício da ética e a busca da fidelidade fazem

392 Edson Lopes

com que o intérprete procure aplicar todos os esforços para evitar esses percalços.

Coerência e compreensão

A coerência deve ser também entendida como um “ princípio de interpretabilidade, ligada à inteligibilidade do texto numa situação de comunicação e à capacidade que o receptor tem para calcular o sentido deste texto .” (Ibidem). Essa capacidade é o resultado da concatenação das informações existentes no texto com aquelas que estão armazenadas na memória do intérprete. Ou poderíamos dizer que a coerência interna do texto dependerá de uma correspondência entre os dados existentes na mente do intérprete e aqueles do mundo onde ele se insere. Mais do que uma relação direta e unívoca, todavia, essa relação é múlti-facetada, o que reflete o entrelaçamento geralmente existente entre os diversos dados armazenados na memória. Os dados se cruzam permanentemente e evocam outros que também a eles se associam, tornando o processamento muito complexo. Como explica KOCH:

Evidentemente o relacionamento entre esses elementos não é linear e a coerência aparece assim como uma organização reticulada, tentacular e hierarquizada do texto. A continuidade estabelece uma coesão conceitual cognitiva entre os elementos do texto através de processos cognitivos que operam entre os usuários (produtor e receptor) do texto e são não só de tipo lógico, mas também dependem de fatores sócio-culturais diversos e de fatores interpessoais... (KOCH, op. cit, 25)

Os fatores sócio-culturais e interpessoais são o conhecimento do mundo que o intérprete possui, sendo que esse conhecimento

394 Edson Lopes

É importante que se compreenda também que esses mecanismos dentro dos quais se abriga ou se subdivide a memória são uma idealização de compartimentalizações que a mente estabelece de uma maneira não totalmente conhecida. Cumpre, entretanto, compreender que, por serem formas representativas de organização, elas vêm a ajudar a entender, como sugere TAY- LOR na citação anterior, a estruturação da memória. É graças a essa organização que somos capazes de entender como somos levados a lembrar das coisas (memória) e de relacionarmos essas coisas entre si de forma coerente para podermos compreendê-las. Essa costura dos elementos em um todo que faz sentido, que é coerente, se faz por intermédio de associações textuais superficiais (coesão) e pela interligação de elementos armazenados na memória dentro das citadas compartimentalizações, denominadas de frames, scripts, cenários e esquemas. Quando se menciona costura, é preciso lembrar que as associações que permitem esse relacionamento não se dão apenas entre palavras ou significados individualizados, mas entre as proposições que estão chegando e aquelas que já existem na memória do receptor, o que tem um aspecto sinérgico, que é a produção de conhecimento novo. Conforme explica SINGER (1994), o processamento de inferências depende do conhecimento contido na memória do leitor e de sua capacidade de recuperá-las. Outro aspecto importante relacionado à coerência textual é que por sua natureza reticular e tentacular, ela não está ligada somente à organização lingüística, linear, superficial ou “gramatical” do discurso, mas sim à sua organização subjacente, ou seja, ao significado das proposições. Na IC, mais do que em outras circunstâncias, a construção do discurso do intérprete pode muitas vezes prescindir de coesão, mas não pode abrir mão da coerência. Premido pela velocidade de emissão, processamento e emissão do discurso interpretado, o intérprete simultâneo poderá sofrer uma “sobrecarga” nos canais, como analisa e explica GILE (1988: 4- 22; 1995 161-172). Ele fala dos esforços de escutar e analisar (EA),

Coerência textual, conhecimento do mundo ... 395

da memória de trabalho (M) e do esforço da produção do discurso (P), elementos que fazem parte da interpretação simultânea. Argumenta que à medida que um ou mais desses esforços aumenta (até possivelmente atingir uma sobrecarga), ele causa problema nos outros canais, podendo ocasionar perdas de compreensão, perda de informações armazenadas na memória de trabalho e efeitos negativos na produção do discurso. Todavia, indica:

Les dégradations ne sont pas nécessairement détectable, car il est difficile d´attribuier une phrase maladroite ou l´emploi peu précis d´un mot à un déficit capacitaire par opposition aux variations intervenent spontanément dans la qualité d´un discours prononcé dans des circonstances constraignantes. Même quand elle est détectée, une perte d´information ou une dégradation n´est pas nécessairment facile à attribuer à une difficulté précise dans le discours de l´orateur car elle peut intervenir à distance, après une cascade de reports de la CT d´un Effort à l´autre.^2 (GILE, 1988: 16)

Pelo que se pode depreender da declaração acima, as perdas ou degradações do discurso no processo da interpretação simultânea não podem ser facilmente caracterizados como tendo sido causados por este ou aquele problema específico do discurso do orador (discurso de partida - DP), pois há várias circunstâncias atuando permanentemente sobre o discurso oral (ou seja, memória, compreensão, aspectos pragmáticos, etc.), todos causando certas sobrecargas a um canal ou outro. Seguindo então o raciocínio ante- rior, pode-se adiantar a hipótese de que a comunicação se dá apesar das perdas freqüentes e inevitáveis do discurso oral, até um certo limite difícil de ser estabelecido a priori. Como essa perda pode se dar e, freqüentemente se dá numa interação direta, ou seja, entre duas pessoas conversando face-a-face, pode-se imaginar a sua extensão numa interação tripartite, como aquela existente na interpretação. E o mais importante nessa hipótese é que a

Coerência textual, conhecimento do mundo ... 397

conhecimento contido na memória do leitor e de sua capacidade de recuperá-lo. Um exemplo prático poderá tornar essa explicação mais clara. Tomemos o caso em que o palestrante (A) está se dirigindo a um público determinado (C). O intérprete (B) já tendo identificado de antemão esse público, interpretará o discurso do palestrante não de acordo apenas com as informações de entrada ( input ), mas poderá adaptá-lo às circunstâncias. Assim, o modelo a seguir ilustra esse processamento:

Mensagem ouvida P o s s í v e i s interpretações

“O Itamaraty suou a camisa para tentar convencer, sem sucesso, o governo americano a comprar aviões de treinamento militar da Embraer — embora a empresa desde o ano passado seja de particulares”.

Itamaraty worked hard and un- successfully to try to convince the American government to buy military training aircraft from Embraer — although that com- pany had already been privitized. Itamaraty worked hard and un- successfully to try and convince the American government to buy military training aircraft from Embraer — a Brazilian aircraft industry, although that company had already been privitized.

Itamaraty, the Brazilian foreign affairs office, worked hard and unsuccessfully to try to convince the North-American government to buy military training aircraft from Embraer, a Brazilian air- craft industry, although this com- pany was already privitized.

398 Edson Lopes

O intérprete utilizou no processamento da informação recebida, pelo menos dois frames simultaneamente. Embora não seja possível experimentalmente estabelecer qual frame foi ativado primeiro, suponhamos que tenha sido o frame do posicionamento do público. Na opção 1, ele teria classificado o público como suficientemente informado do significado de “Itamaraty”. No segundo, ele identifica o público como parcialmente conhecedor da função daquele organismo e, para compensar esse conhecimento parcial do público, identifica o citado órgão como parte da administração governamental brasileira encarregada de relações exteriores. Na terceira opção, ele identifica o público como leigo no assunto de relações internacionais (ainda que a nível de conhecimento de jornal) e explicita todos os elementos do texto, colocando-o numa mesma estrutura ( frame ) onde se podem encontrar outros itens tais como Foreign Office , Quay d’Orsay , Itamaraty, State Department, etc, tendo como hiperônimo o significado “órgão nacional encarregado de relações exteriores”. O processamento da informação recebida pelo intérprete ativou diferentes frames. O conteúdo desses frames faz parte da massa de conhecimento que uma pessoa possui e que pode estar constantemente ativa e receptiva a novas informações. As inferências são feitas pelo receptor permanentemente com base no seu conhecimento prévio, fator sem o qual não existirá a compreensão. Como diz WIDDOWSON:

It is your discourse you read into my text. You can only interpret it by relating it to your reality. Where your reality corresponds to mine, or where you are prepared to co-operate in seeing things my way, then there can be convergence be- tween intention and interpretation. Otherwise, there will be a disparity. You will be taking me out of context – out of the context of my reality. (1995: 165)^3

Esse modelo representacional da memória aqui adotado pode ser aplicado para ilustrar uma vasta quantidade de experiências

400 Edson Lopes

alguns dos quais estavam no Brasil pela primeira vez e conheciam muito pouco de nossa cultura e da conjuntura do país, ou, o que é pior, podiam ter idéias pré-concebidas que não se compatibilizassem com a realidade. Os primeiros utilizaram amplamente vocábulos e expressões corriqueiras no dia-a-dia do nosso país que, se simplesmente transliteradas (transverbalizadas?) ou até traduzidas quando possível, pouco ou nenhum sentido teriam, justamente por não se inserirem nos esquemas cognitivos dos demais. Eis alguns exemplos:

Termo Tradução ou transverbalização Plano Real Real Plan, the Federal Government economic plan implemented in July to reduce inflation, which changed the currency into Real. URV Acronym meaning “actual value unit” used as currency in the transition between the pre vious currency and the Real correção “monetary correction”, a public index that monetária corrected monetary values daily to avoid the losses with inflation Política do “Coffee-and-Milk Policy”, a policy of joint Café-com-Leite action in political and economic terms between the States of São Paulo and Minas Gerais, in the 1930´s; the former was the main coffee producer and the latter the main milk pro ducer. politicagem the actions of politicians that are meant either to gain prestige and other advantages or to show that they are working Plano Collor Economic plan devised by Pres. Collor, in 1990, that froze prices and confiscated depos its in banks. “Marajás” Derrogatory reference to public workers that received exceedingly high wages, evoking the affluence of India´s Marajas Casa da Dinda The Private Residence of Pres. Collor, the former President of Brazil, who finally resigned.

Coerência textual, conhecimento do mundo ... 401

“pivetes” street kids, usually poor-class youngsters that live in slums and commit petty crimes.

Um problema facilmente perceptível ao se verificar a lista acima é o relativo ao tempo de interpretação de cada termo, amplamente maior que o tempo gasto no discurso do palestrante. A solução encontrada, na maioria dos casos foi a de utilizar os intervalos entre palestras para fornecer aos estrangeiros informações que lhes permitissem atualizar suas estruturas cognitivas, um procedimento que não satisfaz plenamente, mas que, nas circunstâncias, foi muito apreciado, conforme se expressaram alguns dos participantes estrangeiros. Uma alternativa pode ser a apresentação por escrito de um glossário no qual os verbetes imprescindíveis à compreensão possam ser explicados. Tal iniciativa pode ser tomada tanto pelos organizadores do evento, quanto pelos próprios intérpretes a fim de resguardarem seus próprios interesses. Infelizmente, como já foi explicado, os intérpretes raramente recebem quaisquer informações referentes ao assunto com a devida antecedência, o que torna praticamente impossível partir deles tal iniciativa.

A Intertextualidade

Os fenômenos relacionados ao conhecimento de mundo que tornam um texto coerente têm uma extensão óbvia que é a intertextualidade. A intertextualidade é um dos princípios ou padrões constitutivos da textualidade, ou seja da condição de ser um segmento considerado ou não um texto, de acordo com GRICE (Apud BEAUGRANDE & DRESSLER, 1981: 3). Embora seja também um conceito de significado transparente, as relações que justificam essa denominação precisam ser muito bem definidas. Apesar de ser uma relação extra-textual do texto que se examina, ela também pode ser, e freqüentemente o é, uma relação que ocorre no co- texto, ou seja, no corpo do próprio texto em questão.

Coerência textual, conhecimento do mundo ... 403

A razão dessa interrelação ser tão difícil de ser dissecada e classificada deve-se, a meu ver, à sua proximidade e à sua realização se dar através dos mesmos mecanismos cognitivos. Na realidade, o próprio indivíduo teria dificuldades, se fosse o caso, em discriminar seu conhecimento como sendo de uma ou de outra origem. HATIM & MASON comentam:

The intertextual link is, in this case, strong, in the sense that it activates knowledge and belief systems well beyond the text itself. Intertextual functions, however, are not always active. There are passive forms of intertextuality which amount to little more than the basic requirement that texts be internally coherent (i.e. intelligible). (1990: 124)^5

Nessa citação pode-se ainda identificar uma dificuldade maior para o intérprete em relação à intertextualidade, pois os autores mencionam formas passivas de intertextualidade. Para o intérprete, na maioria das vezes, as formas passivas serão pouco úteis, pois essas relações freqüentemente precisarão ser transformadas em informação ativa. Se para o leitor ou ouvinte a forma passiva pode ser suficiente para a compreensão do que está lendo ou ouvindo, para o intérprete, que precisará transpor o que está ouvindo para um discurso em outro idioma, dificilmente ela será suficiente 6. Essa relação entre informações passivas e ativas fica clara no indivíduo bilíngüe (proficiente em dois idiomas), mas que é incapaz de fazer interpretação entre essas mesmas duas línguas, por mais simples que seja o conteúdo. Fica também evidente quando, numa dada situação, somos capazes de entender perfeitamente uma mensagem sem, porém, sermos capazes de retransmiti-la com precisão. Isso parece evidenciar que há níveis de compreensão diversificados, não sendo a compreensão apenas um aspecto ligado à memória. Esse argumento nos leva de volta à questão da forma da memória, ou seja, se a memória preserva a forma ou somente o conteúdo das lembranças. Enquanto os que estudam a memória pela perspectiva

404 Edson Lopes

da AD apoiam uma representação através de proposições , outros favorecem um conceito que poderia ser denominado de desconstrutivista da memória, no qual a forma não é precisa, varia de pessoa para pessoa e depende de inúmeros fatores relacionados a experiências únicas vividas pelo indivíduo. Comentando sobre esse tema, BROWN & YULE (1983: 113) referem-se à escola de pensamento da psicologia cognitiva que defende a idéia de que a memória é específica por modalidade (cf. PAIVIO, 1971, apud BROWN & YULE, 1983: 113), ou seja, que a memória do que vivenciamos tem uma representação diferenciada de acordo com a forma como vivenciamos os eventos. As relações internas que possibilitam a compreensão do texto são semelhantes àquelas que possibilitam a compreensão do discurso oral, embora este possa ser externamente incoerente. Existem inúmeros exemplos clássicos da desconexão externa do discurso oral que ilustram justamente todo o contexto existente na mente do Emissor e do Receptor que possibilita a compreensão e a comunicação. Talvez o exemplo mais conhecido seja o diálogo citado por WIDDOWSON (1978: 29, apud BROWN & YULE, 1983: 228):

  • Telefone.
  • Estou no banho.
  • Ok. Na IS raramente os discursos são tão sucintos e lacônicos, pois são geralmente formais e a formalidade pressupõe alguns marcadores de completude que não deixem margem a interpretações muito flexíveis. Além disso, são esses discursos cercados de todo um conjunto de expectativas, interrelações, etc.. Entretanto, muitas marcas de discurso oral aparecem com freqüência na IS, tais como hesitações, repetições, reconstruções de frases, etc., o que pode ser comprovado pela leitura da transcrição do corpus no Apêndice. Em outras palavras, o processo de formação do discurso é desnudado em grande medida pela transcrição de sua formulação oral, haja vista o interesse de psicólogos e psiquiatras no discurso como meio de entender os mecanismos mentais de pacientes.

406 Edson Lopes

interrelacionados com esta cresce... esta questão do desenvolvimento sustentado que tem que a ver com a reaplicação da natureza como meio de produção. Algo que às vezes não vai nem mesmo refletir com clareza, hoje em dia, no discurso ou até mesmo do comandante Marcos, mas essas são forças básicas... ahh... de alicerce porque as culturas vêm se desenvolvendo há séculos com base... nessas relações culturais... ah... com a natureza. Agora a condição básica para a emergência dessa consciência... de repente é uma condição para a existência da democracia. Se não tivermos essa condição da participação social de expressão para a transformação da estrutura, é muito difícil trazer à baila esses... essas... eh... tentativas de crescimento sustentado, mas isso não significa que não haja um potencial muito importante para... a mudança social... o que é um novo paradigma e tem a ver absolutamente com essa... esse grande avanço repentino dessa cosmovisão que foi estabelecida... neste conceito de sustentabilidade.

Existem no texto dois elementos que podem, para uns, parecer referir-se a uma mesma idéia, enquanto que para outros parecerá não terem qualquer vínculo: A referência ao movimento Zapatista e ao Comandante Marcos. O movimento Zapatista foi uma tentativa revolucionária ocorrida na segunda década deste século no México, enquanto que o Comandante Marcos é um dos líderes de um outro movimento revolucionário, que coincidentemente também ocorre no sul do México, só que na atualidade. As duas referências estão ligadas numa relação de intertextualidade, ou seja, revoluções mexicanas no Século XX, que poderia estar “arquivada” como um script ou em um frame específico na mente do falante. As informações sobre ambas, no caso do intérprete, vieram de leituras de textos diferentes em termos de objetivos, de datas e de conteúdo. Devido ao contexto de ocorrência do texto, caso o intérprete desconhecesse o fundo histórico dos dois movimentos, praticamente nenhum efeito negativo sobre a compreensão ou interpretação ocorreria, por que,

Coerência textual, conhecimento do mundo ... 407

aparentemente, as referências são periféricas ao assunto princi- pal. Supondo-se entretanto que um aprofundamento da questão se fizesse necessário durante o debate que se seguiu à palestra, um conhecimento errôneo poderia causar dificuldades comunicativas. Os assuntos ou temas apresentados em contextos onde se utiliza a IS, em geral, não apresentam dificuldade para a retomada do sentido original, pois o nível de redundância informacional e o by- pass cobrem as eventuais ausências de informações. No entanto, no micro-processamento, nas questões relativas à coesão textual. 7

Estratégias para Ajuste de Estruturas Cognitivas

Uma estratégia que é utilizada para evitar a ocorrência desses descompassos entre o(s) frame(s ), cenários e scripts das pessoas envolvidas na interpretação simultânea é a ampliação consciente e planejada, por parte do intérprete, da principal peça do processo, os seus próprios frames para que estes se aproximem o máximo possível em conteúdo daqueles do palestrante e do público. Essa ampliação deverá dar-se não apenas em termos de conhecimento específico (terminologia, fraseologia e processos ( scripts ), mas também em termos de outros fatores de “conhecimento do mundo” (origem e formação do palestrante, idiossincrasias, etc) que proporcionarão maior possibilidade de produção de um discurso mais coerente. Com isso concordam intérpretes e pesquisadores, explicitando a seu modo essa mesma necessidade. Como indica TAYLOR (op. cit, 25):

... there is scientific evidence to support the more mundane notion that studying a subject prior to listening to it (and in our specific case interpreting it) makes that listener better able to process and understand the discourse he hears. 8

Coerência textual, conhecimento do mundo ... 409

commit to a particular position. As the speaker continues, a picture begins to emerge. We begin to understand the speaker´s position, how strongly he advocates it, and why; we adjust to his style, his accent and intonation, his cadence of speech, his sense of humor or lack of humor, his personal idiolect. Gradu- ally, almost imperceptibly, for the duration of the speech, the interpreter slips into the speaker´s mind. 10

Infelizmente, na grande maioria dos eventos, essa interação não atinge esse nível descrito acima, simplesmente porque o evento não dura tempo suficiente. É, portanto, importantíssimo que todo esforço seja feito no sentido de suprir antecipadamente aquilo que o intérprete adquiriria através de um período relativamente longo de treinamento “em serviço”, período este inexistente na maioria dos casos. A solução, portanto, é a criação de estratégias, algumas delas indicadas já anteriormente, que possam atuar sobre a estrutura de memória e de conhecimento do intérprete, para que ele comece sua atuação no evento com o “motor afinado” e na “temperatura certa”, como um piloto de carro de corridas, que não pode se dar ao luxo de ter esses ajustes feitos ao longo da competição. Algumas dessas estratégias são correlatas àquelas de aprendizagem de vocabulário utilizadas pelos estudantes de línguas estrangeiras e que empregam elementos como associação de idéias, associação de imagens com significado, e agrupamento por categorias, por funções ou outras características comuns, como regência idêntica, uso com pares específicos, etc..

Coerência de Recepção e Coerência de Emissão

Ao abordarmos o aspecto de coerência no discurso, temos que subdividir esse discurso em dois: (a) o que o intérprete ouve e tem que compreender e (b) o que o intérprete emite para ser compreendido pelo público. O intérprete precisa, em primeiro lugar,

410 Edson Lopes

entender o discurso do palestrante e, para isso, é necessária a confluência de vários fatores. É muito comum culpar-se o intérprete por erros eventuais, mas como sustenta KOCH (op.cit. 35) “Não se deve pensar que a questão de estabelecimento de sentido esteja apenas do lado do receptor. A questão é mesmo de interação.” Isso nos leva a considerar todo o conjunto de fatores ligados ao emissor ou palestrante. Além de seu discurso ter de ser coerente para poder ser entendido, outros aspectos relacionados à sua habilidade como orador devem ser levados em consideração. Quaisquer elementos que tendam a dificultar a compreensão do discurso, sejam eles de ordem física ou mental, colocarão carga extra em um dos canais de processamento do intérprete. Um palestrante que tenha problemas de dicção, de articulação, de tonalidade de voz, de habilidade de usar um microfone ou mesmo tenha coesão ruim e uma coerência fraca de seu discurso irá exigir maior esforço de compreensão por parte do intérprete, ocasionando assim uma concentração de atenção maior na audição e compreensão, podendo fazer cair a qualidade de sua própria emissão. Além de estratégias pessoais de preparação que possam minimizar tais percalços, uma vez que eles fazem parte da realidade e nem sempre podem ser eliminados, faz-se necessária uma ação junto ao palestrante e ao público, no sentido de fazê-los interagir com a realidade da IS, realidade essa que poderá não fazer parte dos esquemas mentais desses participantes do processo. As pessoas que desconhecem todo o esforço mental, todo o treinamento e todo o estudo que são necessários para se fazer IS tendem a menosprezar a atividade e a imputar à natureza da tarefa (excessivamente difícil, dizem, as eventuais falhas. Se um palestrante tiver má dicção, emitir frases incompletas e incoerentes, em suma, se não for totalmente compreendido pelo intérprete, haverá, como já foi observado anteriormente, uma sobrecarga sobre os canais de entrada e de processamento do discurso e essa sobrecarga poderá prejudicar sensivelmente o resultado final da IS. Como afirma TAYLOR: