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Este texto explora a presença de penas e pássaros em insígnias de poder na religião afro-católica dos moradores do pacoval, na bahia, brasil. O autor discute a importância desses símbolos na formação de novas identidades e novas formas culturais a partir da diáspora africana, e o papel fundamental dos representantes da sociedade senhorial naquela processo. O texto também aborda a história do catolicismo na áfrica central e sua influência nas comunidades afrodescendentes no novo mundo.
Tipologia: Resumos
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SANTOS E MINKISI **, UMA REFLEXÃO SOBRE MISCIGENAÇÃO CULTURAL ***
cendentes nas Américas têm sido um campo fértil para a reflexão acerca dos processos de sincretismo, aculturação, transculturação, encontro de culturas, miscigenação cultural, entre várias outras noções que buscam dar conta de situações nas quais novas culturas surgem a partir do con- tato entre povos diferentes. Desde Nina Rodrigues, pesquisador pioneiro dessa área, e principalmente a partir de Melville Herskovits, que muito contribuiu para a reflexão teórica acerca dos processos de aculturação, tem sido destacada a importância de se conhecer as sociedades e culturas de onde vieram os africanos traficados para as Américas, para uma me- lhor compreensão das chamadas culturas afro-americanas. 1 Herskovits é peça central no debate sobre a existência de “africanismos” nas socie- dades americanas. Seu livro The myth of the negro past é de 1941, mas
** ço a ele a leitura feita. 1 Professora do Departamento de História - FFLCH/USP Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil , 3 a^ ed., São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1945; Melville Herskovits, The myth of the negro past , Boston, Beacon Press, 1990.
nos Estados Unidos seus trabalhos só foram valorizados a partir da dé- cada de 1960. No Brasil, depois do pioneirismo de Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Edison Carneiro, Roger Bastide e Pierre Verger foram autores que pensaram sobre o negro na sociedade brasileira.^2
Nos anos 1970 Sidney Mintz e Richard Price, fundamentados em suas pesquisas de campo no Caribe e no Suriname, escreveram juntos um ensaio que influenciou toda uma geração de estudiosos da cultura afro-americana.^3 A idéia de crioulização é o pano de fundo de suas refle- xões, nas quais ocupa primeiro plano a preocupação com a chegada do africano no Novo Mundo, com a formação de novas comunidades e no- vas culturas. Mesmo priorizando os processos de transformação, os au- tores aceitam que eles se dão a partir de bases pré-existentes e retomam uma idéia esboçada por Herskovits, de que as culturas têm uma gramá- tica própria que serve de elemento organizador das novas construções, sociais e culturais. Nas Américas, estas construções resultaram da interação entre grupos de escravos pertencentes a etnias diversas, unidos pelos mecanismos do tráfico e pela escravização, e grupos de coloniza- dores europeus, detentores dos instrumentos de poder.
Do final dos anos 1970 para cá, os sistemas sociais e religiosos criados pelas comunidades negras nas Américas têm atraído a atenção dos pesquisadores e são cada vez mais analisados de uma perspectiva que busca fazer conexões entre as culturas de origem dos escravos trazi- dos para as Américas e as culturas produzidas nas novas situações. A reflexão aqui proposta se enquadra nessa perspectiva de abordagem da religiosidade das comunidades afrodescendentes, tomando como foco não os chamados cultos afro-brasileiros e sim o catolicismo exercido por algumas dessas comunidades.
(^2) Roger Bastide, Les réligions africaines au Brésil , Paris, Presses Universitaires de France, 1960; e As Américas negras, as civilizações africanas no Novo Mundo , São Paulo, Difel, Editora da Universidade de São Paulo, 1974; Artur Ramos, Introdução à Antropologia Brasileira, Rio de Janeiro, Edição da Casa do Estudante do Brasil, 1943, e As culturas negras no Novo Mundo , 4 a ed., São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1979; Edison Carneiro, Antologia do negro bra- sileiro , Rio de Janeiro, Edições de Ouro, 1962; Pierre Verger, Fluxo e refluxo do tráfico de
3 escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos,^ São Paulo, Corrupio, 1987. Sidney Mintz e Richard Price, The birth of African-American culture, an anthropological perspective , Boston, Beacon Press, 1992.
América e Ásia, e que tinha a experiência da catequese na região do antigo reino do Congo como um dos momentos emblemáticos do empe- nho evangelizador de Portugal. 6 No meu entender, a penetração dessa festa entre muitas comunidades negras do Brasil, principalmente do fi- nal do século XVIII a meados do XIX, deu-se devido a uma combinação de fatores que fizeram com que as comemorações em torno de um rei congo tivessem significados importantes tanto para a comunidade negra como para o grupo senhorial, que detinha o poder de permitir ou repri- mir as manifestações dos negros. 7
Ao serem arrancados de seus lugares de origem e escravizados, ao deixarem de pertencer a um grupo social no qual construíam suas identi- dades, ao viverem experiências de grande potencial traumático, tanto físico como psicológico, ao transporem a grande água e terem que se dobrar ao jugo dos senhores americanos, os africanos eram compelidos a se integrarem, de uma forma ou de outra, às terras às quais chegavam. Novas alianças eram feitas, novas identificações eram percebidas, novas identidades eram construídas sobre bases diversas: de aproximação étni- ca, religiosa, da esfera do trabalho, da moradia. Assim, reagrupamentos étnicos compuseram “nações”, pescadores e carregadores se organiza- ram em torno das atividades que exerciam, vizinhos consolidaram laços de compadrio e se juntaram cultuadores dos orixás, os que faziam oferendas aos antepassados e recebiam entidades sobrenaturais sob o toque de tambores. Nesse contexto, os reis negros, presentes em quilombos e grupos de trabalho, mas principalmente em irmandades católicas, ser- viram de importantes catalisadores de algumas comunidades e foram centrais na construção de suas novas identidades.
Enquanto algumas atividades exercidas por comunidades negras eram proibidas e perseguidas pela administração senhorial e demonizadas
(^6) Silvia Lara, em “Significados cruzados: as embaixadas de congos na Bahia setecentista”, in Maria Clementina P. Cunha (org.), Carnavais e outras f(r)estas , (Campinas, Cecult/Editora Unicamp, 2001), pp. 71-100, faz uma análise nessa direção, servindo de guia em alguns aspectos da minha interpretação das festas de reis congos em geral. (^7) No livro mencionado eu utilizo a noção de “rei congo” como de um elemento aglutinador de dife- rentes grupos africanos e afrodescendentes no âmbito do processo de constituição de novas identi- dades. Manifestação que ganha vigor entre os grupos bantos, os festejos de reis do Congo traziam para os africanos a memória da terra natal, mitificada, e para os colonizadores a lembrança de um império que dominou os mares, o comércio, e que se empenhou em disseminar a palavra de Cristo.
pelo discurso cristão (mesmo que delas participassem também brancos católicos e às vezes até mesmo padres), outras eram em grande parte aceitas pelos agentes da administração colonial, pois adotavam formas ibéricas e católicas, ou que por estes eram assim percebidas. No primei- ro caso estão os calundus, nos quais ritos eram realizados em torno de altares que abrigavam objetos mágico-religiosos, havendo a oferenda de sangue de animais, bebida e comida, ao som de tambores e com a pos- sessão de algumas pessoas por entidades sobrenaturais. 8 No segundo caso estão os cortejos e danças que acompanhavam a coroação de um rei negro pelo padre, por ocasião de festas em torno dos santos padroeiros de irmandades nas quais a comunidade negra se agrupava. Enquanto os primeiros eram no geral seriamente perseguidos, assim como os quilombos e as tentativas de rebelião, os segundos eram quase sempre aceitos e muitas vezes estimulados, uma vez que eram vistos como formas de inte- gração do negro na sociedade colonial escravista. Entretanto, a repres- são ou permissão de uns ou outros desses ritos variava em função das posições de cada agente colonial, assim como em função da conjuntura do momento.^9
Danças que podem ser associadas aos calundus são descritas pelo conde de Povolide em carta de 1780, na qual explica a diferença entre as “danças supersticiosas” e as “danças que ainda que não sejam as mais santas” não eram por ele consideradas “dignas de uma total reprova- ção”. Essas últimas eram danças que no século XIX e início do XX eram chamadas de batuques e que ainda existem no seio de algumas comuni- dades negras, muitas vezes conhecidas como jongos. Nos conta o conde
(^8) Ver entre outros textos, de João José Reis, “Magia jeje na Bahia: a invasão do Calundu do Pasto de Cachoeira, 1785”, Revista Brasileira de História , v. 8, n o^ 16 (1988), pp. 57-81, e “Nas ma- lhas do poder escravista: a invasão do candomblé do Accu”, in João José Reis e Eduardo Silva, Negociação e conflito, a resistência negra no Brasil escravista , São Paulo, Companhia das Letras, 1989, pp 32-61; de Luis Mott, “Acotundá: raízes setecentistas do sincretismo afro-brasi- leiro”, in Escravidão, homossexualidade e demonologia , São Paulo, Ícone Editora, 1988, pp. 87-114; “O calundu-angola de Luzia Pinta: Sabará, 1739”, Revista IAC , n o^ 1 (1994), pp.73-82; de Laura de Mello e Souza, “Revisitando o calundu”, in Lina Gorenstein e Maria Luiza Tucci Carneiro (orgs.), Ensaios sobre a intolerância, inquisição, marranismo e anti-semitismo (ho- 9 menagem a Anita Novinski)^ (São Paulo, Humanitas, Fapesp, 2002), pp. 293-317. João José Reis é autor que tem pensado sobre o tema da tensão existente entre a permissão e a repressão de práticas das comunidades negras no Brasil em momentos diferentes e sob o mando de administradores com posições diversas, como por exemplo em “Nas malhas do poder escravista”.
com relação a manifestações de origem africana quando estas se aproxi- mavam ou se combinavam com elementos da comunidade senhorial, de origem lusitana. Mas muitas das motivações que levavam as pessoas a se envolverem em certas festividades, a se unirem em torno de um rei simbólico, de festa, não eram percebidas por aqueles que não partilha- vam as mesmas estruturas culturais. Dessa forma, era desprezada a au- toridade que o rei tinha sobre o grupo e a união deste não era vista como ameaçadora, principalmente porque se dava no interior de irmandades de culto a determinados santos, aprovadas pela Igreja e vigiadas pelos senhores e pelo pároco local. O mesmo não se dava com os ritos religio- sos de origem africana que mantiveram maior grau de autonomia cultu- ral e organizacional e só deixaram de ser abertamente perseguidos no século XX.
Mas mesmo em celebrações católicas as comunidades negras pro- duziam elementos que chocavam e incomodavam o grupo senhorial e principalmente alguns observadores estrangeiros, que não estavam acos- tumados com as mestiçagens que se iniciaram com os primeiros conta- tos, ainda na África, e se intensificaram na sociedade colonial america- na. Esse é o caso, por exemplo, das imagens religiosas que madame Otille Coudreau encontrou num povoado de negros, à beira do rio Pacoval, no Pará, na região da floresta amazônica brasileira.
Ao registrar o levantamento hidrográfico que fez no interior da Amazônia no início do século XX, a cientista francesa expressou os mais estereotipados preconceitos contra as populações afrodescendentes, im- putando-lhes um estado de selvageria e barbárie, acusando-os de menti- rosos e preguiçosos, achando-os fisicamente degenerados. Desaprovou como a vila era construída, com as cabanas jogadas aqui e ali à beira do rio, sem alinhamento e delimitações, uns plantando na porta dos outros. Nessa aldeia de cerca de 15 casas cobertas de palha, que não conhecia a propriedade privada da terra, a qual era usada coletivamente pela comu- nidade, havia uma pequena igreja, de chão de terra batida e paredes de barro, coberta de telha e com uma cruz de madeira à frente.
O que chamou a atenção da francesa foram os santos multicoloridos dispostos ao redor da igreja, ela não diz se em altares ou não, mas sim que alguns eram brancos, outros morenos e muitos negros, “todos de
figura abominável”, que lhe evocaram uma reunião de Quasímodos. Se- gundo ela, estavam vestidos com restos de saiotes velhos, pedaços de tecidos de cores vistosas, e tinham ao redor do pescoço colares de contas de vidro ou de sementes. Na sua opinião, era um sacrilégio que cada uma dessas criaturas tivesse o nome de um santo, São Pedro, São Benedito, Santa Luzia, Santa Rosa, Santa Sebastiana e uma Nossa Senhora negra. Coudreau conta ainda que teve vontade de destruir todos “aqueles horro- res tão pouco artísticos”, estátuas que refletiam os costumes daquela gente, “rebaixada ao menor nível na escala social”. 12
Contribuindo ainda mais para a alteração de tradições católicas e sensibilidades estéticas européias, os mocambeiros acompanhavam sem- pre suas rezas e festas religiosas com danças realizadas em uma constru- ção ao lado da igreja – presente em todos os mocambos que a pesquisa- dora francesa conheceu na região.^13 Essa combinação de ritos religiosos e danças ditas profanas é o padrão da maioria das festas religiosas popu- lares brasileiras, formadas a partir da colonização portuguesa do territó- rio, onde os colonos encontraram indígenas e para onde trouxeram afri- canos. Nesse encontro de povos, culturas, religiões, formas de lidar com as coisas deste e do outro mundo, uma variedade enorme de combina- ções ocorreram. As festas em torno de reis negros, entre as quais estão as realizadas no Pacoval, são fruto dessas combinações, presentes também na confecção de objetos mágico-religiosos, como as imagens de santos que Coudreau achou um sacrilégio serem assim chamadas.
Assim como elegiam reis no seio de irmandades católicas e reali- zavam calundus e candomblés em recintos afastados do universo senho- rial, comunidades negras também confeccionaram objetos, usados em uns e outros ritos, nos quais incorporaram elementos de suas culturas tradicionais. Os santos, comparados a Quasímodos, certamente foram esculpidos a partir de técnicas e escolhas estéticas próprias dos
(^12) Otille Coudreau, Voyage au Rio Curua , 20 nov. 1900 - 7 mars 1901 , Paris, A. Lahure Imprimeur-
13 Editeur, 1903,^ p. 19. Aqui mocambo é uma aldeia de negros, geralmente remanescente de quilombos, que também eram conhecidos como mocambos. Para o caso específico do mocambo do Pacoval ver o estudo de Eurípedes Antonio Funes, “‘Nasci nas matas nunca tive senhor’. História dos mocambos do baixo Amazonas” (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 1995); e artigo com o mesmo título in João José Reis e Flávio dos Santos Gomes (orgs.), Liberdade por um fio, história dos quilombos no Brasil (São Paulo, Companhia das Letras, 1966), pp. 467-497.
Imagem de madeira de São Benedito fotografada por Eurípedes Antônio Funes, em “Nasci nas matas, nunca tive Senhor. História e memória dos mocambos do Baixo Amazonas”, tese de doutoramento apresentada ao departamento de História – FFLCH/USP, 1995, vol 1, Fig 9.
famosos ou embaixadores de potências longínquas, todos paramentados à moda dos selvagens do Brasil, com grandes to- petes de penas, sabres de cavalaria ao lado, e escudo no braço.^15
Mesmo que o cônsul francês tivesse percebido corretamente e “os selvagens do Brasil” tenham dado sua contribuição à festa negra, é mui- to mais plausível acreditar que a presença de penas na cabeça fosse con- tribuição dos africanos, considerando-se as informações a seguir.
Uma fotografia tirada em Angola ou no Congo belga antes de 1922 nos mostra um nganga , ou sacerdote, com uma imponente coroa de penas. Minkisi , objetos mágico-religiosos utilizados em amplas áreas da África Central, onde recebem nomes diversos dependendo da região, também freqüentemente traziam penas na cabeça. Como nos ensina Zdenka Volavkova, a confecção de um nkisi passava por dois momentos: aquele em que a madeira era esculpida, feita por um artesão, e um outro, no qual o nganga , especialista religioso, tornava a escultura portadora de forças sobrenaturais, nela inserindo, conforme ritos específicos, uma série de substâncias do mundo vegetal, animal e mineral, por meio das quais as forças sobrenaturais agiam.^16 Era nesse momento, no qual a um objeto eram atribuídos poderes mágico-religiosos, que as penas eram colocadas nas cabeças das esculturas. Théophile Obenga diz que as pe- nas ornamentando o penteado de algumas figuras com funções religiosas significavam que o objeto havia sido consagrado por um nganga. 17 Se- gundo John Janzen, o uso de penas no alto da cabeça ou saindo fora de uma cabaça ou vasilha (muitos minkisi não eram figuras esculpidas mas recipientes que continham as substâncias que lhes davam os poderes sobrenaturais) é o indicador mais comum de uma aproximação com o mundo dos espíritos. Ainda segundo ele, muitos médiuns usam adereços
(^15) Francis de Castelnau, Expedição às regiões centrais da América do Sul , São Paulo, Compa-
16 nhia Editora Nacional, 1949, p. 172. Ver Zdenka Volavkova, “Nkisi figures of the Lower Congo”, African Arts , no^ 5 (2) (1972), p. 56. Para uma explicação sobre os minkisi, ver Wyatt MacGaffey, “The eyes of understanding Kongo minkisi”, in Astonishment and Power (Washington, National Museum of African Art, The Smithsonian Institution Press, 1993), p. 56, e An Anthology of Kongo Religion: primary texts 17 from lower Zaire , Lawrence, University of Kansas, 1974. Théophile Obenga, “Sculpture et société dans l’ancien Congo”, Dossiers Histoire et Arqueologie n o^ 130 (1988), p. 3.
(^18) John M. Janzen, “14 Figure (nkisi)”, in Expressions of Belief , New York, Rizzoli, 1988. (^19) Wyatt MacGaffey, “Complexity, astonishment and power: the visual vocabulary of Kongo
20 minkisi”,^ Journal of Southern African Studies , vol. 14, n^ o^ 2 (1988),^ p.193. A roupa está num museu em Dresden e pode ser vista no livro de Alisa LaGamma, Art and Oracle.
21 African Art and Rituals of Divination , New York, Metropolitan Museum of Art, 2000, p. 57. Ver Suzanne Preston Blier, Royal Arts of Africa. The majesty of form , London, Laurence King Publishing, Calman & King, 1998.
de penas na cabeça para representar sua ligação com os espíritos. 18 Tam- bém Wyatt MacGaffey informa que algumas vezes os minkisi eram equi- pados com penas que formavam um adereço de cabeça semelhante ao que o nganga podia usar, pois forças espirituais eram associadas a pás- saros. 19 Dessa forma, é evidente o lugar de destaque que as penas têm na confecção de objetos que ajudam a comunicação deste com o outro mun- do no âmbito do universo cultural de povos bantos da África Centro- Ocidental, que engloba também o atual Camarões, já no limite com a região habitada por povos iorubás. Daí uma requintada veste usada em ritos religiosos divinatórios, composta de tecido azul anil arrematado com fios de fibra e enfeitada com conchas e búzios, à qual acompanha uma máscara de crocodilo encimada por uma tiara de penas. 20
Uma figura usada em ritos divinatórios entre os senufos, da atual Costa do Marfim, “coroada com uma carreira de penas”, indica que não só na área cultural banto as penas compõem objetos mágico-religiosos. As penas são, em muitas regiões da África, presença constante em ritos que permitem que o mundo dos homens e o dos espíritos se comuniquem. Nessa relação os chefes têm lugar importante, sendo a idéia de realeza sagrada disseminada por toda África sub-saariana. No golfo do Benim, em áreas nas quais predominavam grupos iorubás, como os chamamos agora, pássaros são insígnias de poder bastante freqüentes, estando pre- sentes em telhados de moradias de chefes, em bastões de mando, em adereços de cabeça usados pelos chefes. 21
Se lembrarmos ainda a presença constante de penas em cocares e outros adereços ameríndios, também associados a posições de poder tem- poral e religioso, e ainda a presença de plumas em chapéus de nobres e reis europeus (objetos altamente apreciados pelos chefes africanos e com lugar quase obrigatório nas negociações comerciais entre estes e os eu- ropeus), podemos pensar que estas penas, por estarem presentes em lu-
Nkisi Mbumba Maza, coletado em Cabinda antes de 1933, acervo do Museu do Homem de Paris. A escultura de madeira contém ingredientes ocultos na barriga e na cabeça, e outros ingredientes nela pendurados, como cabaça, pele de cobra, tiras de tecido, conchas, sementes, garras, chifre, fibra trançada. Cada um desses ingredientes tem uma função mágica que atribui ao nkisi sua força sobrenatural. Em Astonishment and Power , p. 70.
Pieu , amuleto da região dos Yakas, em Angola. In Sculpture Angolaise. Mémorial de cultures , Lisboa, Museu Nacional de Etnologia, Electa, 1994, p. 104.
gares equivalentes em diferentes culturas, tendem a manter um espaço na nova cultura que se forma a partir dos contatos encetados. 22 Mas como a análise aqui proposta busca apenas fazer conexões entre a comu- nidade do Pacoval com os povos aos quais pertenceram seus antepassa- dos, fixo meus olhos no mundo banto centro-ocidental, de onde veio, segundo Eurípedes Funes, a maioria dos africanos escravizados que ali se aquilombaram.
Depois desse passeio por algumas regiões da África percebemos nos panos, cordões, contas e penas adicionadas às imagens encontradas no Pacoval por Otille Coudreau no início do século XX, e por Eurípedes Funes no fim do mesmo século, a expressão do encontro entre o catoli- cismo e as religiões bantos tradicionais. Se em 1901 as imagens da igreja do Pacoval foram comparadas a Quasímodos pela cientista francesa, o que a fotografia tirada no final do século XX nos mostra é um santo entalhado em madeira por mãos de artistas populares, como uma infini- dade de outros o foram, tendo como traço diferenciador o tufo de penas que enfeita seu capacete, semelhante ao dos valsares. Certamente ao lon- go dos anos novecentos a comunidade do Pacoval assumiu mais e mais feições brasileiras, distanciando-se de um passado africano que fora mais preservado enquanto o grupo evitou contatos muito intensos com a soci- edade circundante, para a qual eram descendentes de escravos fugidos. Hoje em dia o que se destaca na religiosidade afro-católica dos morado- res do Pacoval são as danças que acompanham as celebrações dos san- tos, e que não se restringem às comunidades negras, pois são caracterís- tica marcante do catolicismo colonial conforme vivido na América por- tuguesa. Mas específicos das danças realizadas pelas comunidades afro- descendentes são os elementos africanos nelas presentes, como os rit- mos, os passos, as letras das músicas, permeadas de palavras de origem africana, e símbolos que mesmo transformados remetem às suas raízes, como as penas na cabeça indicando uma ligação com o mundo do além.
O tema da dominação não pode deixar de estar presente quando falamos de sociedades afrodescendentes nas Américas, e certamente as
(^22) Um dos muitos pontos para os quais o parecerista anônimo da Afro-Ásia abriu meus olhos foi este, relativo à abrangência da presença de penas e pássaros em insígnias de poder.
atitudes dos representantes da sociedade senhorial, entre eles os agentes da Igreja, tiveram um papel fundamental nos processos de constituição de novas identidades e novas formas culturais a partir da diáspora afri- cana. Mas foram os ajustes e opções empreendidos pelos africanos re- cém-chegados e pelos seus descendentes que definiram as feições das novas culturas que se criaram nas Américas. Nesse processo os santos, imagens do culto católico, absorveram sentidos e papéis das imagens e objetos usados nas religiões bantos tradicionais, o que já havia ocorrido na própria África, a partir da ação de missionários católicos romanos e da conversão ao catolicismo da elite dirigente do antigo reino do Congo, no final do século XV. Com a ocupação portuguesa de algumas áreas do território que ficou conhecido como Angola, missionários continuaram a agir naquelas regiões, sendo alguns dos elementos por eles introduzidos, com destaque para objetos usados em cultos religiosos, incorporados pelas populações nativas, que a eles acoplaram significados pertinentes às suas próprias tradições.
Se em territórios africanos, nos quais era pequeno o espaço ocu- pado pelos portugueses e seus agentes (entre eles os missionários), o catolicismo deixou discretos vestígios no período pré-colonial, na Amé- rica portuguesa os africanos muitas vezes a ele se renderam, não sem recheá-lo de contribuições de suas religiões tradicionais. Na América eles eram obrigados pela violência, pela condição de escravos e de es- trangeiros, a se sujeitarem às normas dos que mandavam – a administra- ção colonial portuguesa, para a qual a religião católica era importante meio de dominação. Várias foram as formas pelas quais o catolicismo foi adotado por comunidades afrodescendentes, mas essa área de estu- dos recebeu, no geral, menos atenção do que os cultos religiosos deriva- dos de tradições africanas. Nina Rodrigues e Arthur Ramos tratam com mais vagar das religiões afro-brasileiras e do conjunto cultural iorubano; Roger Bastide, quando aborda o catolicismo negro, é de maneira super- ficial, ignorando as motivações das comunidades negras e tomando o catolicismo apenas como uma imposição do universo senhorial, incorpo- rada geralmente para servir de disfarce a ritos de origem africana. Tam- bém Pierre Verger, por focar apenas a Bahia e a África Ocidental, na qual a penetração das religiões cristãs só se deu após o término do tráfi-
co de escravos, não aborda o cristianismo negro e suas relações com o catolicismo africano dos bantos da África Centro-Ocidental. Só Robert Slenes, mais recentemente, tem se aprofundado no estudo dos povos des- ta região e chamado a atenção para o fato de que muitos escravos que de lá vieram já tinham incorporado elementos de um catolicismo africano, termo cunhado por John Thornton.^23 Eu mesma, seguindo as trilhas aber- tas principalmente por esses dois autores, venho pensando acerca de al- guns aspectos do catolicismo africano e do catolicismo afro-brasileiro. 24
É essa preocupação que me faz prestar atenção no espanto e re- pulsa de Otille Coudreau diante das imagens que viu na igreja do mocambo à beira do rio Curuá, associadas a Quasímodos, aberrações que feriam sua sensibilidade estética educada na Europa, com a qual se orientava no mundo. Bem antes de ela viver essa experiência na Amazônia brasileira, outros europeus tinham tido reações muito parecidas diante dos minkisi , que chamavam de “fetiches”, ou de “imagens demoníacas”, como a es- sas figuras se referiu Olfer Dapper (cujo livro foi publicado em 1676), “rudemente esculpidas em madeira e cobertas de trapos sujos”, como disse J. K. Tuckey em 1816, e com aparência feroz, no entender de H. M. Stanley, em 1895. O tenente Tuckey comparou essas imagens com es- pantalhos, e missionários católicos e batistas do final do século XIX chamaram-nas de indecentes e francamente obscenas.^25
Um século depois de Coudreau, no Brasil, e de alguns missionári- os que viveram na África Centro-Ocidental terem tomado conhecimento dessas imagens, podemos tentar nos despir do etnocentrismo existente em todas as culturas e tempos e buscar entender as motivações prováveis por trás das opções feitas pelos grupos e pelas pessoas. Nesse sentido, os estudos sobre os minkisi centro-africanos lançam novas luzes sobre os santos envoltos em panos gastos, com colares de contas e sementes e adereços de penas na cabeça. À maneira das penas colocadas na cabeça
(^23) Principalmente em Africa and Africans in the making of the Atlantic World. (^24) Em Reis negros no Brasil escravista. História da festa de coroação de rei congo ; “Santo Antonio de nó-de-pinho e o catolicismo afro-brasileiro”, Tempo , vol. 6, n o^ 11, (2001) pp. 171- 188; e “História, mito e identidade nas festas de reis negros no Brasil - séculos XVIII e XIX”, in István Jancsó e Iris Kantor (orgs.) Festa. Cultura a sociabilidade na América portuguesa (São 25 Paulo, Hucitec / Edusp, 2001), pp. 249-260. Conforme Volavkova, “Nkisi figures of the Lower Congo”, p. 52.