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Carmen L. Oliveira, Notas de estudo de Construção

À direita, a estrada era margeada por aglomerações de flores de cores vivas. – Maria-sem-vergonha – explicou Lota. Bishop estava deliciada, queria parar, ...

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Fatima26
Fatima26 🇧🇷

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Carmen L. Oliveira

FLORES RARAS

e

BANALÍSSIMAS

A história de Lota de Macedo Soares

e Elizabeth Bishop

À memória de Magu

Sumário Esclarecimento Epígrafe Inicial Boston, 1978 Ó turista O pedúnculo indecente Era uma vez um rei chinês Rio de Janeiro, 1994 Miudezas do cotidiano O verdureiro da sorte Bela Pindorama Dona Lota Why? O barracão A cadela cor-de-rosa O merdô Noite de luar intenso Bububu no bobobó A fundação Qualquer grande esperança é grande engano A porrada de Camões As melaloucas de Lorena Não temos tempo para lógicas O mafuá Sóis se põem Rio de Janeiro, 1994 Boston, 1978 Epígrafe Final Fontes Agradecimentos Créditos A autora

“Aquela miúda e franzina criatura, toda nervos, toda luz, que se chamava Dona Lota.” Carlos Lacerda Rio, setembro de 1967

(Tudo que já se disse a respeito é totalmente falso.) Elizabeth Bishop, “Crusoe na Inglaterra”

E

Ó TURISTA

m 30 de novembro de 51, Mary Morse levou Elizabeth Bishop para o apartamento que dividia com Lota de Macedo Soares no Leme, num 11º andar, de frente para a Avenida Atlântica. Inocente do que estava para acontecer com sua vida depois do que ia propor, Mary informou, afavelmente:

  • O apartamento é seu, pelo tempo que se demorar no Rio.
  • Obrigada – disse Bishop resumidamente. Não deixou transparecer que, vulnerável como estava, por dentro marejava. Instalou-se o natural entre duas pessoas tímidas: a incapacidade de imaginar um assunto para iniciar uma conversação. Mary resolveu abrir a janela, para que Bishop olhasse a vista. Bishop gostava de cenários marinhos. Constatou que aquele era excepcionalmente lindo. Depois olhou em torno da sala, aprovando o extremo bom gosto. Gostava do estilo clean da decoração. Gostava dos quadros. Gostava do móbile de Alexander Calder. Gostava especialmente daquelas duas cadeiras de design moderno. Mary percebeu.
  • Foi Lota quem desenhou.
  • E onde está Lota? – perguntou Bishop, querendo mesmo saber.
  • Está em Samambaia. Não pode vir, por causa da casa. Bishop anotou mentalmente uma bela palavra (samambaia) e passou o olhar aprovador para o rosto aprazível de Mary.
  • Por causa da casa.
  • Estamos construindo uma casa na serra, em Petrópolis.
  • Ah. Bishop quis saber mais sobre a ausente. Mary recordou que tinha conhecido Lota por obra do acaso, em 41, pouco antes de ter conhecido a própria Bishop. Mary estava encerrando a carreira de bailarina e retornando a Nova York. No navio conheceu Lota, que fazia parte da Wcidj gSYWde Portinari, incumbido de pintar os murais da Biblioteca do Congresso, em Washington. Lota adorava arte. Em Nova York internou- se no Museu de Arte Moderna, percorrendo-o de braço dado com Florence Horn, jornalista da revista : dgij cWque, nas palavras de Lota, queria um bem furioso ao Brasil. Lota ficou fascinada com as atividades de difusão cultural do Museu. Só falava em fazer o mesmo em seu país. Ao vir ao Brasil no ano seguinte, 42, Mary espantou-se ao ver que Lota efetivamente já tinha articulado uma associação de artistas e intelectuais para divulgar a cultura brasileira. Com estatutos, conselho consultivo e tudo mais. Com idêntica determinação, Lota a convidou para morar com ela naquele apartamento. Mary aceitou. Já lá iam dez anos. Agora, Bishop que desculpasse, tinha que voltar antes de escurecer, por causa da estrada. Telefonaria depois para marcar o dia em que a levariam para conhecer Samambaia. Desejava-lhe uma boa estada no Rio de Janeiro.

Positivamente Bishop não estava gostando do Rio. O panorama visto da janela era lindíssimo. Mas a cidade era terrivelmente quente e, como dizer, desmazelada. Desde cedo a praia virava um vespeiro de banhistas. Homens morenos de calção jogavam bola de meia na rua o dia inteiro. Em vez de lhe distender os nervos, aquela gente transitando indolentemente pelas ruas do Leme produzia o efeito inverso, irritava-a. Em compensação, o miolo de Copacabana era um burburinho, reforçava em Bishop a ideia de despropósito. Sentia-se tolhida e atabalhoada. De combinação, suada, ensaiava um poema no apartamento da Antônio Vieira:

Ó turista então é assim que este país vai atender você e sua imodesta exigência de um mundo diferente?

Ficou feliz quando chegou o dia em que Mary e Lota viriam buscá-la para levá-la à sua casa na montanha. Na hora combinada, um Jaguar vermelho de capota arriada aterrou junto à calçada. Dele saltou, com elegância, uma mulher baixinha que lhe estendeu um sorriso. Ao se aproximar, Bishop notou que era bem mais morena do que se recordava. Com a mão direita Lota apertou vigorosamente a mão de Bishop, enquanto com a esquerda lhe afagava o ombro. Olhava-a nos olhos.

  • Vamos? Desacostumada com aquele tipo de contato, Bishop não sabia como proceder. Lota abriu a porta do carro, determinando com um gesto que era para ela se sentar. A seguir, arrancou e saíram avoando. Em pouco tempo Lota desvencilhou-se de carros e lotações e estavam subindo uma serra, em meio a um cenário deslumbrante. À esquerda, as montanhas se sucediam sob nuvens caudalosas. À direita, a estrada era margeada por aglomerações de flores de cores vivas.
  • Maria-sem-vergonha – explicou Lota. Bishop estava deliciada, queria parar, saltar do carro, mas era acanhada demais para pedir. Quando se apercebeu, estavam atravessando uma cidadezinha encantadora, as ruas formadas por casarões solenes, com jardins bem cuidados ornados de hortênsias. Lota contou que o imperador tinha escolhido aquela cidade para construir a residência de férias da família real. A última coisa que teria ocorrido a Bishop, enquanto se esquivava de uma pelada de rua no Rio, era que aquele país também tivesse reis e príncipes e princesas. Registrou mentalmente que quando não estivessem em movimento iria pedir mais informações sobre o assunto. De repente, mudou tudo. Embicaram por uma estrada estreita e esburacada. Enquanto fazia malabarismos para se esquivar de pedras e buracos, Lota seguia conversando normalmente:
  • Isto aqui vai melhorar. – Vupt. – Recebi as terras de Samambaia de herança de minha mãe, há uns dez anos. Primeiro foi o inventário, muito demorado, tive que repartir tudo em partes milimetricamente iguais com minha irmã. Depois resolvi fazer um loteamento de alta classe. O processo de desmembramento também é interminável, envolve uma papelada dos diabos.

Alunos de pintura na Universidade do Distrito Federal, 1935. Ajoelhada em primeiro plano, Lota, de jabot de pois. Atrás de Portinari: Burle Marx e Mário de Andrade.

Em 42, Lota voltou dos EUA para organizar a Artistas Brasileiros Reunidos. A caricatura é de Augusto Rodrigues.

Ande depressa, Mary, que está na hora de você fazer o almoço!

FLORES RARAS E BANALÍSSIMAS

de Carlos Leão para Lota, 49.

poemas. Bishop recusou.

  • Então leia outro poeta. Não era algo a que Bishop estivesse acostumada, mas naquele momento lhe pareceu totalmente adequado. Foi apanhar um livro.
  • Gosta de Marianne Moore?
  • Vamos a ela! Bishop correu as páginas, escolheu “Casamento”.
  • Eva: linda mulher – quando a conheci era tão formosa que me sobressaltei, capaz de escrever simultaneamente em três línguas – inglês, alemão e francês – e conversar ao mesmo tempo; igualmente categórica ao exigir animação e ao estipular silêncio: “9j gostaria de ficar sozinha”; ao que retruca o visitante: “Eu gostaria de ficar sozinho; por que não ficamos sozinhos juntos?”

A cada estrofe Bishop consultava Lota com os olhos claros. Os olhos morenos devolviam a interrogação. A sala ficou cheia de silêncios.

  • Leia mais – pediu Lota.
  • “A um caracol”. Mary suspirou.
  • Vou dormir, boa-noite.
  • Boa-noite, meu bem. Nós já vamos – disse Lota.
  • Boa-noite – disse Bishop. E ficaram. Bishop dormiu inusitadamente bem e acordou inusitadamente cedo. A casa estava em silêncio. Aparentemente Lota e Mary não tinham acordado ainda. Deu uma olhadela pela sala e encontrou revistas e jornais americanos sobre a mesa de canto. Sentou-se e folheou um exemplar atrasado do E Wl Pdg‘ K[b Wh+ Sentindo-se disposta, resolveu retomar seu primeiro poema brasileiro, “Chegada a Santos”. O poema descrevia uma turista de primeiro mundo acabando de aportar numa civilização exótica, onde espera encontrar novo sentido para a vida. Enquanto o navio ancora, ela percorre com olhar desapontado a “frívola folhagem” e as tíbias instalações portuárias. Seu primeiro contato com a mão de obra local também não é animador: um gancho mal operado fisga a saia de uma companheira de bordo, apesar de seus gritinhos de advertência. Com a petulância de quem

se julga superior, a turista faz longa lista de reclamações e comentários desairosos a propósito do país que a está recebendo. Bishop releu o que tinha escrito até então. Lá estava sua viajante, atônita diante de um mundo que se recusava a se ajustar às suas ideias preconcebidas. Agora precisava terminar o poema. Tinha que rever alguns versos, em especial algumas rimas, e definir a última estrofe. Achava que o poema podia agradar os editores americanos. Com sorte, talvez conseguisse vendê- lo a E Wl Pdg‘ Wg+ Contudo, após mourejar por duas horas, sentia-se malograda e exasperada. Não tinha conseguido resolver nada; ao contrário, passara a desgostar de soluções que já tinha dado como boas. Sentia fome. Sentia vontade urgente de beber.

  • Ora, ora, se não é nossa poeta em ação! Lota! Que bom ouvir aquela voz. Bishop voltou-se, salva.
  • Estou com fome – disse, com os olhos pueris.

Mary reparou que Bishop não falava mais em voltar para o Leme. Simplesmente ia ficando. Todo dia, depois do café, ia ver Lota tocar a obra. Morosa e irresoluta no seu fazer literário, Bishop se assombrava com a desenvoltura com que Lota assumia a direção de uma obra tão complexa. Como a maioria das mulheres de classe alta de sua geração, Maria Carlota Costallat de Macedo Soares tinha tido preceptoras e estudado na Europa, mas não tinha cursado a universidade. No entanto, sabia tudo de arquitetura. Sua biblioteca sobre o assunto era exemplar. Acompanhara de perto o trabalho dos jovens arquitetos de vanguarda na construção do Ministério da Educação, no Rio de Janeiro. Era amiga dos mais respeitados arquitetos brasileiros. Foi a um deles, Sérgio Bernardes, que Lota recorreu para concretizar seu projeto de casa. Queria pousar um objeto retilíneo e enxuto no meio das formas ornadas e sinuosas da natureza. Ali coexistiriam a rigidez do ferro e o quebradiço do vidro, o polido do artefato e o tosco das pedras do rio. Diferentes texturas, volumes e planos colocariam o observador sempre diante de ângulos imprevistos, animando-o, por causa da beleza, a aceitar o que transgredia o padronizado. Aquela casa resumia as ideias apaixonadas de Lota sobre arquitetura moderna. Acontece que Sérgio tinha suas próprias ideias apaixonadas sobre arquitetura moderna. Resultado: intenso foguetório quando os dois se sentavam para debater o projeto. Ele era o bacharel em arquitetura, mas ela era Lota de Macedo Soares. Vezes sem fim Mary viu Sérgio clamar aos céus que lhe dessem paciência para aguentar aquela mulher e depois bater a porta do carrinho esporte e zunir estrada abaixo para nunca mais voltar. E Lota não se limitava à prancheta. Tinha construído ela mesma sua primeira casa em Samambaia, projeto do amigo Carlos Leão. Depois pagou os honorários do advogado que cuidou da legalização do loteamento construindo a casa dele. Aquelas duas casas eram cheias de soluções criativas e inesperadas, que levavam a assinatura de Lota. Aristocrata, latifundiária, do que quer que a chamassem, de uma coisa Mary sabia: Lota não tinha medo do batente. No início da construção, as duas se revezavam diariamente em carregar e