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Capítulo 1 – A coerência e o “discurso esquizofrênico”, Notas de aula de Linguística

o discurso do psicótico é tomado como incoerente, desconexo, etc, porque está fora dos padrões ditos normais de expressão. Se se pensa em uma fala anormal, ...

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Luiz_Felipe
Luiz_Felipe 🇧🇷

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE LETRAS VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA
MARIZA ANGÉLICA PAIVA BRITO
REFLEXÕES SOBRE A (IN)COERÊNCIA NA FALA DO ESQUIZOFRÊNICO
FORTALEZA
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Baixe Capítulo 1 – A coerência e o “discurso esquizofrênico” e outras Notas de aula em PDF para Linguística, somente na Docsity!

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES

DEPARTAMENTO DE LETRAS VERNÁCULAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA

MARIZA ANGÉLICA PAIVA BRITO

REFLEXÕES SOBRE A (IN)COERÊNCIA NA FALA DO ESQUIZOFRÊNICO

FORTALEZA

MARIZA ANGÉLICA PAIVA BRITO

REFLEXÕES SOBRE A (IN)COERÊNCIA NA FALA DO ESQUIZOFRÊNICO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Lingüística da Universidade Federal do Ceará, como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Lingüística. Orientadora: Profa. Dra. Mônica Magalhães Cavalcante

FORTALEZA

DEDICATÓRIA

Para Ruy Pedro, pelo amor de sua existência.

AGRADECIMENTOS

À minha orientadora Profa. Dra. Mônica Magalhães Cavalcante, por ter acreditado nas marcas do vento, no tempo. À minha amiga Profa. Dra. Mônica Magalhães Cavalcante, pelo amor, pela vibração e pelo interesse incansável dedicado a este trabalho. À minha mãe e ao meu pai, pelo amor da vida inteira. Às minhas irmãs: Marizete, Marcinha, Marta e Mon, pelas aperreações do dia-a-dia e pelo apoio e incentivo de sempre. Aos meus irmãos: Mauro, Márcio, Mário e Marcus, pela presença constante. Aos meus sobrinhos e sobrinhas: Marcus, Ana Rachel, Mauro Jr., Ellis, Lais, Analuiza, Artur, Mário Sérgio, Lucas e Ana Clara, pela graça inocente. Às minhas cunhadas e cunhados: Erilma, Valda, Malila, Barros e Arlindo - partes da família. À minha prima Lívia, pelos afazeres cotidianos. Ao meu mestre Prof. Dr. Ricardo Lincoln Laranjeira Barrocas, pelos ensinamentos e pelo carinho. À Profa. e amiga Beth Mota, pelo carisma e pela delicadeza. A toda a equipe do Hospital São Gerardo – Espaço Phoenix: Dra. Marluce, Dra. Helena, Dra. Lucioneide, Dra. Lana, Dra. Nágela, Dra. Cibele e também à Sheila, Francilourdes e à Mônica -, pelo acolhimento com que me receberam. Ao seu Cosmo, à D. Fátima e à D. Raimunda, pela paciência que tiveram comigo. À minha amiga Ana Márcia, pelo apoio sempre presente. Aos meus velhos amigos Cristian e Diana, e ainda à Cícera, Verinha, Le e Val. Aos meus novos amigos: Janaica, Iesse, Beth, Lígia, Julinho, Socorro, Alena, Rubens, Valdinar, Vanderlei, Marilene, Renata, Regina, Michael, Ricardo, Carlos, Luíza, Arnaldo, Lailton, Irene, Helenice, Vicência, Silvana, Ana, Washington, Manu, Joana, Thati, Marino, Helena, Cleide, Wilson e Isaac, pela amizade e pela troca de idéias. À Profa. Maria Elias, pela docilidade e carinho.

RESUMO

Reflexões sobre a (in)coerência na fala do esquizofrênico Nesta pesquisa, elaboramos uma revisão crítica das características de linguagem que têm sido apontadas, nas áreas de Lingüística de Texto e da Psicanálise, para a conceituação da fala do esquizofrênico. A revisão crítica feita da base teórica foi também realizada a partir de nossa experiência clínica com os pacientes diagnosticados como esquizofrênicos, que atendemos em um hospital psiquiátrico, com o propósito de conseguir caracterizar e entender as especificidades da linguagem dos psicóticos. Os estudos realizados seguiram duas orientações. Por um lado, tentaram comprovar que o discurso do psicótico era incoerente. Para tanto se valeram do formalismo lingüístico, principalmente dos conceitos de competência e desempenho em Chomsky e da pragmática com as máximas conversacionais de Grice. Por outro lado, tentaram comprovar que o “discurso do psicótico” era coerente, a partir das considerações sobre manutenção do tópico e sobre digressão postuladas pela Sociolingüística Interacional e seu modelo de interação face-a-face. Este trabalho traz uma contribuição quase que essencialmente teórica, mas apresenta também alguma confirmação empírica pautada pelo acompanhamento que fizemos a psicóticos e pela análise dos processos referenciais construídos na fala de cada um. Defendemos a tese de que mais importante do que avaliar a tessitura do texto do louco é proporcionar uma escuta pautada pela ética de um desejo, não importa se advindo de um psicótico ou neurótico.

(217 palavras)

Palavras-chave: esquizofrenia, coerência, psicanálise, referenciação

ABSTRACT

Reflexions about (in)coherence schizophrenics speech

In this research we elaborate a critical review of language characteristics that has been pointed highlighted out in the areas of Text Linguistics and Psychoanalysis concerning the conceptuation of the schizophrenics speech. The critical review of the theoretical framework was also based on our own clinical experience with patients diagnosed as, which we assist in a psychiatric hospital, with the intent to characterize and understand the particularities of the psychotics language. The studies we carried out followed two lines. On one hand, they tried to reinforce the hypothesis that the psychotic discourse was incoherent. In order to do so that werelied on lingüistic formalism, especially the concepts of competence and performance found in Chomsky, and pragmatics, with Grice‟s conversational principles. On the other hand, they tried to prove that the psychotic discourse was coherent, taking into consideration the maintenance of topic and the digression postulated by the Interational Sociolingüistic approach and its model of face to face interaction. This work brings almost essentially a theoretical contribution, but also presents some empirical confirmation given by the observation of the psychotics we kept up with and by the analysis of the referential processes constructed in the speech of each patient. We defend the thesis that, rather than evaluating the organization of the text of the psychotic, it is more important to provide a listening approach guided by the ethics of a desire, no matter if it concerns a psychotic or a neurotic person.

(242 words) Keywords: schizophrenics, Psychoanalysis, referential processes, coherence

Introdução

I. A problematização

Desde muito que a loucura vem sendo estudada, comentada, diagnosticada, pesquisada por vários saberes, dentre eles - e principalmente - o psiquiátrico, como se a este pertencesse estritamente, mas, ainda, pela Filosofia, pela Psicologia, pela Lingüística e pela Psicanálise, que se debruçam sobre ela na expectativa de entendê-la, aclará-la para uma possível prática clínica ou um interesse teórico. Compreendida por muitos como “demência”, por outros como “debilidade psíquica”, “transtorno mental”, a loucura tem sido designada, de modo geral como “psicose” simplesmente, e é por este termo que vamos optar neste trabalho, em suas várias nuances, inclusive para nos referirmos à esquizofrenia^1. O fato é que, até hoje, a psicose permanece ainda como um campo a ser desvendado e habitado por enigmas cifrados. No entanto, desde a descoberta do inconsciente por Sigmund Freud, no início do século passado, revelando ao mundo que, quando sonhamos, deliramos, o liame entre loucura e normalidade se estreitou; a loucura deixou de ter moradia exclusivamente nos compêndios psiquiátricos e passou a habitar outros saberes. Nesta pesquisa, elaboramos uma revisão crítica das características de linguagem que têm sido apontadas, nas áreas de Lingüística e da Psicanálise, para a conceituação do “discurso do psicótico”. Embora utilizemos a terminologia “discurso do psicótico”, não estaremos nos referindo exatamente a um discurso oriundo de uma formação discursiva, como é proposto pela Análise do Discurso de linha francesa (cf. Maingueneau, 1988), na qual se toma o discurso como uma instituição social, como, dentre outros, o discurso político, o religioso, o literário etc. É por esta razão que aspeamos a expressão “discurso do psicótico” todas as vezes em que a literatura que vem cuidando deste tema se reporta à fala dos esquizofrênicos. Além de não podermos falar exatamente de “discurso”, como produto do entrecruzamento de formações discursivas, também não nos parece adequado tachar de

(^1) Esquizofrenia é um tipo de psicose. Restam ainda, entre as mais importantes psicoses, a paranóia e a catatonia. Não é, porém, objetivo de nossa pesquisa discutir aqui essas diferenças.

“psicótica” a fala em si mesma, como um atributo relativo a algo patológico, o que seria uma atitude preconceituosa. A revisão crítica feita da base teórica foi também realizada a partir de nossa experiência clínica com os pacientes que atendemos no Hospital São Gerardo, com o propósito de conseguir caracterizar e entender as especificidades da linguagem dos psicóticos, e apontar as marcas lingüísticas, assim encontradas, a partir das atuais considerações da Lingüística de Texto e de seu conceito de coerência. A partir disso, lançamos os seguintes questionamentos que guiaram nosso estudo: a) Nos manuais psiquiátricos de diagnóstico de transtornos mentais, podem-se encontrar traços especificamente lingüísticos na identificação de uma psicose? b) É lícito sustentar, ainda, com base nos critérios de coerência propostos por Koch (2004), que a fala do psicótico é incoerente e deficitária? c) É possível afirmar que a fala delirante é o protótipo atribuído ao discurso dito patológico? d) Que traços lingüísticos podem revelar o desejo do inconsciente? É possível afirmar que o uso de expressões referenciais é um poderoso recurso que pode auxiliar a escuta psicanalítica? Todas essas perguntas foram acompanhadas pelas teorizações psicanalíticas e, conseqüentemente, pela dimensão inconsciente do discurso, de forma que também nos inquietamos com as seguintes suposições:

  1. Existe diferença substancial nos pressupostos lacanianos de psicose das décadas de 50 e 70?
  2. Pode-se sustentar, conforme defende Veloso (2001), que, a partir da teoria lacaniana da década de 70, não se observaria mais diferença de origem, de base entre neurose e psicose?

III. Sujeitos

Os sujeitos de nossa pesquisa são oitos pacientes que atendemos no Hospital São Gerardo. Passamos nove meses, duas vezes por semana, analisando e gravando as falas dos sujeitos de nossa pesquisa. Esses pacientes tinham o diagnóstico F. 29 (esquizofrenia) de acordo com a Classificação Internacional dos Transtornos Mentais – CID 10. Escolhemos nossos sujeitos apenas pelo diagnóstico dado pelos psiquiatras do hospital. A idade ou o sexo, e a condição social não foram requisitos para a determinação de nossa escolha, uma vez que nossa análise é qualitativa e trabalhamos com o discurso em si, em que sexo, idade e posição social não são relevantes para nossa escuta, porque o controle dessas variáveis não dará nenhum tipo de resposta a nossas indagações. Consideramos importante a diagnose esquizofrênica, tendo em vista que existem outros tipos de psicose, como a paranóia, a catatonia etc. A esquizofrenia foi escolhida porque, em nossa investigação, os estudiosos usam freqüentemente a fala dita esquizofrênica em suas considerações, para exemplificá-la como incoerente e/ou anormal, na medida em que a psicose esquizofrênica é tida como a mais grave dentre as psicoses, uma vez que afeta o sujeito em seu traquejo social-interativo e reúne um maior número de sintomas, dentre os quais ressaltamos os seguintes:

_- eco do pensamento, inserção ou roubo do pensamento, irradiação do pensamento;

  • delírios de controle, influência ou passividade claramente referindo-se ao corpo ou movimentos de membros ou pensamentos específicos, ações ou sensações, percepção delirante;
  • vozes alucinatórias comentando o comportamento do paciente ou discutindo entre elas sobre o paciente ou outros tipos de vozes alucinatórias vindos de alguma parte do corpo;
  • sintomas ‗negativos‘, tais como apatia marcante, pobreza do discurso e embotamento ou incongruência de respostas emocionais, usualmente resultando em retraimento social e_

diminuição do desempenho social; deve ficar claro que esses sintomas não são decorrentes de depressão ou medicação neuroléptica;

- alteração significativa e consistente na qualidade global de alguns aspectos do comportamento pessoal, manifestada por perda de interesse, falta de objetivos, inatividade, uma atitude ensimesmada e retraimento social. (CID 10 p.86/87)

Embora considerando todos esses sintomas colhidos da Psiquiatria para o parecer diagnóstico, não os adotamos como pressuposto, mas os levamos em conta em nossa análise, para questioná-los a partir dos fundamentos psicanalíticos e da pesquisa empírica. Um dos nossos objetivos é, na verdade, discutir, com base em estudos lingüísticos que focalizaram o “discurso do psicótico”, se existem traços ou marcas lingüísticas nesta fala dita “patológica” que possam identificar um discurso como sendo “incoerente, confuso, falho ou deficitário”. Partimos apenas de uma breve consideração a respeito dos manuais psiquiátricos que tratam da amarração desses conceitos cunhados das teorias lingüísticas para justificar a rotulação dos diagnósticos realizados na e pela linguagem dos pacientes. Mantivemos o anonimato dos sujeitos-produtores, para minimizar pelo menos uma questão de ordem subjetiva, que, para o âmbito da pesquisa, não é relevante.

IV. Instrumentos

Utilizamos como primeiro instrumento de nossa pesquisa não a entrevista aos pacientes que tenham um diagnóstico de esquizofrenia, mas o atendimento psicanalítico individual. Realizamos também entrevistas, porém, com os familiares desses pacientes para que pudéssemos obter algumas informações que não fora possível coletar no atendimento a esses pacientes. A entrevista com os parentes visa a investigar a procedência de nosso entendimento acerca da análise que realizamos do discurso desses sujeitos. Não utilizamos essas entrevistas para confrontar uma fala com a outra, ou para comprovar ou refutar o que foi dito pelos pacientes, mas, apenas e exclusivamente, para demarcar a verdade da fala do

Pensamos que, longe de provocar a partilha, acolhemos o fora-da-razão numa tentativa de aceitar o diferente sem enquadrá-lo na armadilha racional. Defendemos, aqui, o cuidado e o respeito à diferença de linguagem, de expressão, daí termos proposto em nossa pesquisa exatamente uma escuta sem partilha entre os insanos e os sãos. Além do direito à interlocução normal, pleiteamos o direito à escuta psicanalítica. Todos os atendimentos foram gravados por nós para que obtivéssemos na íntegra o texto oral produzido pelos pacientes. Deste modo é que pudemos realizar uma análise interpretativa das falas, com base em dados concretos da produção discursiva dos sujeitos. Não usamos convenções de transcrição, como pausa, pontuação, gesto ou entonação da voz, na medida em que esses dados não alteram o conteúdo da fala em escuta e não interessam ao nosso objetivo. Todas as falas foram reproduzidas com autorização dos sujeitos da pesquisa e seus respectivos familiares. Também submetemos nosso projeto ao CEPE – Conselho de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFC^2 , para que o projeto fosse avaliado por uma comissão. Os doutores dessa comissão expediram um parecer com a aprovação do projeto e a autorização para a realização da pesquisa empírica. Os pacientes estavam cientes de que faziam parte de um estudo e de que éramos pesquisadores do Curso de Pós-Graduação em Lingüística da UFC. Redigimos um termo de compromisso e um termo de aceite^3. No primeiro, explicamos e justificamos nossa pesquisa utilizando uma linguagem de fácil entendimento, para que pudesse ser compreendido por leigos. No segundo, os pacientes assinavam, caso concordassem em participar da pesquisa, juntamente com a pesquisadora / responsável pelo estudo.

(^2) Conferir o termo de aprovação da pesquisa no anexo 01 no final do trabalho. (^3) Conferir o termo de consentimento no anexo 02 no final do trabalho.

V. Procedimentos

Primeiramente, tivemos contato com outros trabalhos de lingüistas e psicanalistas que trataram desse tema com o intuito de levantarmos uma bibliografia consistente e considerável para avaliar, criticamente, o que foi dito e estudado sobre o “discurso do psicótico”. Construímos hipóteses a respeito das possíveis motivações para se considerar a fala do psicótico como incoerente, anormal, fora da realidade, etc. Uma delas é a crença preconceituosa de que existe uma fala normal em oposição direta a uma fala anormal, ou esquizofrênica. A partir desse primeiro passo, procuramos fazer uma análise das falas transcritas baseando-nos numa concepção de linguagem que não se agarrasse unicamente à comunicação entre as pessoas, mas que também levasse em consideração outros pressupostos, como a existência do inconsciente, por exemplo. Essa análise visa a cumprir dois propósitos: fazer possível a concepção de uma fala que queira não somente se fazer entender pelo interlocutor, mas também manifestar uma outra realidade, nem sempre aceita e vista na enunciação. Visa ainda a estabelecer relações que muitas vezes não estão explicitadas no texto diretamente, mas que, no entanto, rondam a fala e querem se fazer escutar e entender, mesmo em produções delirantes.

VI. Tratamento dos dados

O tratamento que realizamos é eminentemente qualitativo; sem pretensões estatísticas, procuramos radiografar a fala do psicótico a partir dos dados que coletamos em nossos atendimentos no hospital psiquiátrico, contrastando com as análises e procedimentos dos outros estudiosos. Para tanto, usamos como aparato teórico os pressupostos psicanalíticos e suas conseqüências ao considerar o inconsciente no discurso dos sujeitos e sua implicação na busca das marcas lingüísticas dos sujeitos esquizofrênicos, o que incide diretamente no entendimento e apreensão dessa fala. Conforme dissemos, a reconsideração da literatura sobre o assunto tomará por parâmetro três noções básicas: o conceito de coerência e o de referenciação para a Lingüística, e o conceito de psicose para Psicanálise.

No capítulo seguinte, mostramos a concepção de incoerência da fala esquizofrênica a partir de diferentes explicações e suas incidências conceptuais, tais como: a visão da Psiquiatria e da Lingüística. Podem ser incluídos nestes últimos estudos os de Novaes (1995, 1997), que tratam dos dizeres nas esquizofrenias , abordando o tema em uma perspectiva crítica à luz da Lingüística. Com base em uma leitura muito acurada do DSM III (Manual Estatístico de Diagnóstico), a autora aponta as falhas da medicina psiquiátrica, que, ao se aproveitar da cientificidade conferida à Lingüística, toma emprestados alguns pressupostos teóricos para referendar um diagnóstico de transtorno mental realizado estritamente por aspectos lingüísticos. Tais pressupostos concebem a linguagem como uma expressão clara e coerente dos pensamentos. Desta forma é que a fala torna-se o principal meio para justificar os rótulos a que são submetidos aqueles sujeitos que não se enquadram na concepção “normal” de linguagem. Uma vez que não existe, para os transtornos mentais, uma causa orgânica a ser explicada através de exames, torna-se difícil a precisão de seu diagnóstico. No entanto, a imprecisão dos sintomas é absolutamente sanada na classificação objetiva dos compêndios psiquiátricos, daí a crítica profunda, realizada por Novaes (1997) à Psiquiatria, de que o paciente, quando é atendido, tem que se enquadrar no rol das características elencadas nos manuais. Um outro ponto ressaltado por Novaes (1997) e por Picardi (1997) é de que alguns autores dizem reiteradamente que a esquizofrenia é caracterizada por déficits : tanto cognitivo quanto lingüístico, na medida em que as sentenças de seus discursos seriam mal- formadas e faltariam elos coesivos, para sua compreensão. Muitos ainda afirmam, respaldados na visão chomskiana de língua, que o problema estaria na deficiência de sua competência nos períodos de surto, o que afetaria conseqüentemente seu desempenho lingüístico quando da estabilização da doença. Não existe equívoco maior do que há neste raciocínio, e Novaes (1995) retifica ao afirmar que a competência estaria fora de qualquer fato de empiria e nada tem a ver com um problema na enunciação. Deste modo, a autora, com muita propriedade, adverte-nos para o preconceito subjacente à lógica diagnóstica feita pela Psiquiatria em relação aos pacientes ditos “mentais”, apontando, destarte, a exclusão social embutida nestes procedimentos. A autora, no entanto, se limita apenas às suas

críticas, eximindo-se de apontar outros novos caminhos. Um outro trabalho importante é o de Picardi (1997) que segue a mesma trilha de Novaes, na crítica aos manuais psiquiátricos e aos lingüistas que se utilizam da Pragmática para corroborar suas crenças num discurso incoerente do psicótico, por violar constantemente as máximas conversacionais de Grice. Ainda com relação à abordagem pragmática da fala dos loucos, destacamos um outro ponto de vista baseado na teoria dos atos de fala de Austin: o de Leite (1996), no qual a autora lança um novo olhar, através da teoria psicanalítica freudiana, para a importância do inconsciente numa análise que possa ser examinada para além da superfície textual. Picardi (1997) também atentou para essa sutileza de abordagem, para resolver uma questão, aparentemente sem saída, de como compreender a psicose. Picardi observou que a psicose, na Psicanálise lacaniana, era entendida como diferença, diferença estrutural, e não mais como déficit ou deficiência mental. A autora ressaltou as teses lacanianas como minas de ouro a serem escavadas em busca de um suporte que viesse fortalecer as crenças acerca da compreensão da psicose como diferença a ser respeitada e não mais discriminada. Nisto, compartilha com Novaes (1995) o fato grave do preconceito implícito em todos os discursos que versam sobre o tema. No capítulo 3, abordamos a visão de coerência da fala do esquizofrênico a partir das concepções da Sociolingüística Interacional. Já no capítulo 4, abordamos os principais conceitos lacanianos e sua reelaboração e transformação do conceito de “significante” – para, desta forma, estabelecer sua supremacia sobre o significado - a partir da lingüística estrutural de Saussure. Posteriormente, lançamos mão de uma discussão fundamental para a compreensão da psicose, a visão psicanalítica da linguagem dos loucos. Para tanto, recorremos a Veloso (2001), que sustenta que podemos reconhecer na teoria lacaniana dois momentos em sua elaboração do conceito de psicose: o primeiro datado de 1950, com seu seminário sobre as psicoses; o segundo, das décadas de 60/70, quando da elaboração de seus últimos escritos. A primeira abordagem é eminentemente edificada a partir do conceito de foraclusão, Verwerfung em alemão, o qual Lacan cunhou da obra de Freud. Foraclusão é um termo jurídico usado para indicar que o prazo legal de um processo está esgotado, foi abolido, ou ainda para denotar aquilo que não está mais incluído no circuito. Desta forma é que o advento da psicose é entendido a partir da foraclusão da metáfora paterna, o que acarretaria