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BREVE HISTÓRIA DA ÁLGEBRA ABSTRATA, Manuais, Projetos, Pesquisas de Álgebra

BREVE HISTÓRIA DA ÁLGEBRA ABSTRATA

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2021

Compartilhado em 05/02/2021

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matematica-em-conexao 🇧🇷

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Breve Hist´oria da
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Algebra Abstrata
esar Polcino Milies
Instituto de Matem´atica e Estat´ıstica
Universidade de ao Paulo
Caixa Postal 66.281
05311-970 - ao Paulo - Brasil
polcino@ime.usp.br
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Breve Hist´oria da

Algebra Abstrata´

C´esar Polcino Milies

Instituto de Matem´atica e Estat´ıstica

Universidade de S˜ao Paulo Caixa Postal 66. 05311-970 - S˜ao Paulo - Brasil polcino@ime.usp.br

ii

de campos t˜ao diversos como a f´ısica, a filosofia ou a arte, que determinam o progresso desta ciˆencia. Algumas destas influˆencias, se bem que n˜ao todas, resultar˜ao aparentes nesta nossa hist´oria. Este ´e um assunto que tem nos atra´ıdo de longa data, de modo que tratamos dele em outras oportunidades e alguns dos nossos escritos anteriores tiveram influˆencia na reda¸c˜ao deste, particularmente [20], [21], [22] e [24]. E´ claro que algumas referˆencias cl´assicas de hist´oria da matem´atica tiveram tamb´em grande influˆencia no nosso trabalho, como [2], [3], [13] e [31]. Ao longo destas notas fizemos referˆencia tamb´em a uma s´eria de artigos sobre hist´oria da ´algebra e alguns textos originais na esperan¸ca de indicar poss´ıveis dire¸c˜oes de estudo ao leitor interessado.

Sum´ario

  • 1 Um panorama geral
    • 1.1 Introdu¸c˜ao
    • 1.2 O simbolismo alg´ebrico
  • 2 Os campos num´ericos
    • 2.1 Introdu¸c˜ao
    • 2.2 A necessidade dos n´umeros complexos
    • 2.3 Progressos Ulteriores
    • 2.4 O Teorema Fundamental da Algebra´
  • 3 A abstra¸c˜ao em ´algebra
    • 3.1 Introdu¸c˜ao
    • 3.2 O apego `a aritm´etica universal
    • 3.3 A ´algebra abstrata
  • 4 A descoberta dos quat´ernios
    • 4.1 N´umeros Complexos.
    • 4.2 Quat´ernios.
  • 5 Novas estruturas
    • 5.1 Grupos e matrizes
    • 5.2 Teoria de corpos
    • 5.3 An´eis e Algebras´

Cap´ıtulo 1

Um panorama geral

1.1 Introdu¸c˜ao

Durante muit´ıssimo tempo, a palavra Algebra´ designava aquela parte da matem´atica que se ocupava de estudar as opera¸c˜oes entre n´umeros e, principalmente, da resolu¸c˜ao de equa¸c˜oes. Nesse sentido, pode-se dizer que esta ciˆencia ´e t˜ao antiga quanto a pr´opria hist´oria da humanidade, se levamos em conta que esta ´ultima se inicia a partir da descoberta da escrita. De fato, tanto nas tabuletas de argila da sum´eria quanto nos papiros eg´ıpcios, encontramos problemas matem´aticos que lidam com a resolu¸c˜ao de equa¸c˜oes. No Papiro Rhind, por exemplo, documento eg´ıpcio que data apro- ximadamente do ano 1650 a.C. e no qual o escriba conta que est´a copiando material que prov´em do ano 2000 a.C., encontramos problemas sobre dis- tribui¸c˜ao de mercadorias que conduzem a equa¸c˜oes relativamente simples. Surpreendentemente, descobrimos tamb´em que os antigos babilˆonios sabiam resolver completamente equa¸c˜oes de segundo grau (veja, por exemplo o Ca- p´ıtulo III de [3]). Desde os seus come¸cos, a ´algebra se preocupou sempre com a procura de m´etodos gerais e rigorosos. Assim por exemplo, R.J. Gillings [9, Appendix I] comentando os m´etodos que os eg´ıpcios usavam para lidar com a resolu¸c˜ao de equa¸c˜oes diz:

Os estudiosos da hist´oria e filosofia da ciˆencia do s´eculo vinte, ao considerar as contribui¸c˜oes dos antigos Eg´ıpcios, se inclinam para atitude moderna de que um argumento ou prova l´ogica deve ser simb´olico para ser considerado rigoroso, e que um ou dois exem-

4 CAP´ITULO 1. UM PANORAMA GERAL

plos espec´ıficos usando n´umeros escolhidos n˜ao podem ser con- siderados cientificamente s´olidos. Mas isto n˜ao ´e verdade! Um argumento ou demonstra¸c˜ao n˜ao simb´olico pode ser realmente rigoroso quando dado p[ara um valor particular da vari´avel; as condi¸c˜oes para o rigor s˜ao que o valor particular da vari´avel seja t´ıpico e que uma conseq¨uente generaliza¸c˜ao para qualquer valor seja imediata. Em qualquer dos t´opicos mencionados neste livro, onde o tratamento dado pelos escribas seguia estas linhas, ambos os requisitos eram satisfeitos de modo que os argumentos colo- cados pelos escribas s˜ao j´a rigorosos... o rigor est´a impl´ıcito no m´etodo.

Quando finalmente se desenvolveu uma nota¸c˜ao apropriada (empregando letras para reperesentar coeficientes e vari´aveis de uma equa¸c˜ao), foi poss´ıvel determinar “f´ormulas gerais” de resolu¸c˜ao de equa¸c˜oes e discutir m´etodos de trabalho tamb´em “gerais”. Por´em, mesmo nestes casos, tratava-se de situa- ¸c˜oes relativamente contcretas. As letras representavam sempre algum tipo de n´umeros (inteiros, racionais, reais ou complexos) e utilizavam-se as pro- priedades destes de forma mais ou menos intuitiva. Como veremos adiante, a formaliza¸c˜ao destes conceitos de modo preciso s´o aconteceria a partir do s´eculo XIX. Foi precisamente nesse s´eculo que alargou-se consideravelmente o conceito de opera¸c˜ao. Alguns autores da ´epoca n˜ao mais se restringem a estudar as opera¸c˜oes cl´assicas entre n´umeros, mas d˜ao ao termo um significado bem mais amplo e estudam opera¸c˜oes entre elementos, sem se preocupar com a natu- reza destes, interessando-se apenas com as propriedades que estas opera¸c˜oes verificam. A passagem da ´algebra cl´assica para a assim chamada ´algebra abstrata foi um processo sumamente interessante. Representa n˜ao somente um progresso quanto aos conte´udos t´ecnico-ciet´ıficos da disciplina como amplia considera- velmente o seu campo de aplica¸c˜ao e, o que ´e mais importante, implica - num certo sentido - uma mudan¸ca na pr´opria concep¸c˜ao do que a matem´atica ´e, da compreen¸c˜ao de sua condi¸c˜ao de ciˆencia independente e da evolu¸c˜ao dos m´etodos de trabalho. J. Dieudonn´e disse, em [1, Cap´ıtulo III] que “... em matem´atica, os gran- des progressos estiveram sempre ligados a progressos na capacidade de elevar- se um pouco mais no campo da abstra¸c˜ao” e, na mesma obra, A. Lichnerowicz [1, Cap´ıtulo IV] observou que “´e uma caracter´ıstica da matem´atica repensar

6 CAP´ITULO 1. UM PANORAMA GERAL

de Diofanto n˜ao chegaram at´e n´os, n˜ao sabemos com toda certeza quais os s´ımbolos que ele usava, mas acredita-se que representava a inc´ognita pela letra ς, uma variante da letra σ quando aparece no fim de uma palavra (por exemplo, em

, αριθμ´oς - arithmos). Esta escolha se deve provavelmente ao fato de que, no sistema grego de numera¸c˜ao, as letras representavam tamb´em n´umeros conforme sua posi¸c˜ao no alfabeto, mas a letra ς n˜ao fazia parte do sistema e n˜ao correspondia, assim, a nenhum valor num´erico particular. Ele usava tamb´em nomes para designar as v´arias potˆencias da inc´og- nita, como quadrado, cubo, quadrado-quadrado (para a quarta potˆencia), quadrado-cubo (para a quinta) e cubo-cubo (para a sexta). O uso de po- tˆencias superiores a trˆes ´e not´avel uma vez que, como os gregos se apoiavam em interpreta¸c˜oes geom´etricas, tais potˆencias n˜ao tinham um significado con- creto. Por´em, de um ponto de vista puramente aritm´etico, estas potˆencias sim tem significado e esta era a postura adotada por Diofanto. A partir de ent˜ao, os m´etodos e nota¸coes de Diofanto foram se aperfei¸co- ando muito lentamente. Mesmo os s´ımbolos hoje t˜ao comuns para representar as opera¸c˜oes demoraram a ser introduzidos. Muitos algebristas usavam p e m para representar a adi¸c˜ao e a subtra¸c˜ao por serem as iniciais das palavras la- tinas plus e minus. O s´ımbolo = para representar a igualdade foi introduzido s´o em 1557 por Robert Recorde e n˜ao voltou a aparecer numa obra impressa at´e 1618. Autores como Kepler, Galileo, Torricelli, Cavalieri, Pascal, Napier, Briggs e Fermat, entre outros, ainda usavam alguma forma ret´orica em vez de um s´ımbolo, como as palavras aequales, esgale, faciunt, gheljck ou a abreviatura aeq. Para uma hist´oria detalhada da evolu¸c˜ao do simbolismo alg´ebrico, o leitor pode consultar a referˆencia cl´assica de F. Cajori [4]. A nota¸c˜ao de expoentes ´e usada por Nicolas Chuquet (1445?-1500?) na sua Tripary, onde escreve express˜oes como 12^3 , 103 e 120^3 para representar o que hoje escrever´ıamos como 12x^3 , 10 x^3 e 120x^3 e tamb´em 12^0 e 7^1 m^ para 12 x^0 e 7x−^1.

Os primeiros passos para a introdu¸c˜ao do conceito de polinˆomio e seu uso para a formula¸c˜ao de problemas de resolu¸c˜ao de equa¸c˜oes foram dados por Simon Stevin (1548 - 1620). Nascido em Bruges, mudou para Leyden em 1582, foi tutor de Maur´ıcio de Nassau e serviu o ex´ercito holandˆes. Ele foi um defensor do sistema de Cop´ernico e o primeiro a discutir e sugerir o emprego de fra¸c˜oes decimais (por oposi¸c˜ao ao sistema sexagesimal defendido por outros), na sua obra mais conhecida De Thiende, publicada em Flamengo em 1585 e traduzida ao francˆes, sob o t´ıtulo La Disme, no mesmo ano.

1.2. O SIMBOLISMO ALG´EBRICO 7

Al´ı ele usou s´ımbolos como © 0 , © 1 , © 2 , etc. para indicar as posi¸c˜oes das unidades, d´ızimas, cent´esimas, respectivamente. Assim por exemplo, ele es- creve 875, 782 como 875 ©0 7 ©1 8 ©2 2 © 3. No restante do livro, ele estuda as opera¸c˜oes entre d´ızimas e justifica as regras de c´alculo empregadas. O leitor interessado pode ver uma tradu¸c˜ao ao inglˆes de De Tiende em [28, pp. 20-34]. No seu livro seguinte, “L’ Arithmetique”, publicado em 1585, ele introduz uma nota¸c˜ao exponencial semelhante para denotar as v´arias potˆencias de uma vari´avel. As potˆencias que n´os escrever´ıamos com x, x^2 x^3 etc. s˜ao denotadas por ele como © 0 , © 1 , © 2 , e assim, por exemplo, o polinˆomio 2x^3 + 4x^2 + 2x + 5 se escreveria, na sua nota¸c˜ao como:

2 ©3 + 4 ©2 + 2 ©1 + 5 © 0

Ele denomina estas express˜oes de multinˆomios e mostra como operar com eles. Entre outras coisas, observa que as opera¸c˜oes com multinˆomios tem muitas propriedades em comum com as opera¸c˜oes entre “n´umeros aritm´eti- cos”. Ainda, ele mostra que o algor´ıtmo de Euclides pode ser usado para determinar o m´aximo divisor comum de dois “multinˆomios”. E interessante destacar aqui que nos encontramos frente a dois progressos´ not´aveis na dire¸c˜ao da abstra¸c˜ao. De um lado temos a percepc˜ao, cada vez mais clara, de que os m´etodos de resolu¸c˜ao de equa¸c˜oes dependem unicamente do grau da equa¸c˜ao e n˜ao dos valores dos coeficientes num´ericos (vale lembrar que autores como Tartaglia, Cardano e outros, que se utilizavam apenas de coeficientes positivos, consideravam como problemas diferentes, por exemplo, as equa¸c˜oes da forma X^3 = aX + b e X^3 + aX = b). Mais importante ainda, vemos que Stevin trata seus multinˆomios como novos objetos matem´aticos e estuda as opera¸c˜oes entre eles.

Mais interessante ainda ´e o trabalho de Fran¸cois Viete (1540 - 1603). Nascido em Fontenay-le Comte, teve forma¸c˜ao de advogado e, nesta condi¸c˜ao, serviu ao parlamento de Bretania em Rennes e foi banido de suas ativida- des, devidoa oposi¸c˜ao pol´ıtica, entre 1584 e 1589, quando foi chamado por Henri III para ser conselheiro do parlamento, em Tours. Nos anos em que esteve afastado da atividade pol´ıtica, dedicou-se ao estudo da matem´atica e, em particular, aos trabalhos de Diophanto, Cardano, Tartaglia, Bombelli e Stevin. Da leitura destes trabalhos ele teve a id´eia de utilizar letras para representar quantidades. Isto j´a tinha sido feito no passado, at´e por autores como Euclides e Arist´oteles, mas seu uso era pouco frequente.

1.2. O SIMBOLISMO ALG´EBRICO 9

a diferen¸ca entre Algebra e Artim´´ etica: para ele, a Algebra -´ log´ıstica speciosa

  • era um m´etodo para operar com esp´ecies ou formas de coisas e a Aritm´etica
  • log´ıstica numerosa - lidava apenas com n´umeros. Tamb´em tentou “trabalhar algebricamente”, provando, por exemplo, as identidades que os gregos tinham exibido por m´etodos geom´etricos. Assim, no seu Zeteticorum Libri Quinque - Cinco Livros de An´alise^2 - publicado em 1593, ele utiliza o m´etodo de “completar quadrados” numa equa¸c˜ao de segundo grau e tamb´em encontramos ali identidades gerais do tipo:

a^3 + 3a^2 b + 3ab^2 + b^3 = (a + b)^3 ,

que ele escreve na forma:

a cubus + b in a quad. 3 + a in b quad.3 + b cubo aequalia a + b cubo.

Ap´os sua morte, seu amigo escocˆes Alexandre Anderson fez publicar, em 1615, num s´o volume, dois artigos de Vi`ete escritos em torno de 1591, inti- tulados De aequationem recognitione e De aequationem emendationem. 3

(^2) Viete n˜ao usava o termo Algebra que, por ser de origem ´´ arabe, n˜ao considerava ade- quado para a Europa crist˜a; no seu lugar empregava o termo An´alise que, devido talvez a sua influˆencia, foi adotado depois como sinˆonimo de “ Algebra Superior”.´ (^3) Dois epis´odios ilustram muito bem o talento matem´atico de Viete e fama que chegou

a desfrutar ainda durante sua vida Em 1593, o matem´atico belga Adriaen van Roomen (1561-1615) - ou Adrianus Romanus, na vers˜ao latinizada do seu nome - propˆos “a todos os matem´aticos” o problema de resolver uma determinada equa¸c˜ao de grau 45, do tipo:

x^45 − 45 x^43 + 945x^41 − · · · − 3795 x^3 + 45x = K.

O embaixador dos Pa´ıses Baixos na corte de Fran¸ca afirmou ent˜ao que nenhum matem´atico francˆes seria capaz de resolver esta equa¸c˜ao. O rei, Henrique IV, fez Viete saber deste de- safio e ele notou que a equa¸c˜ao proposta resultava de expressar a igualdade K = sen(45.θ) em termos de x = sen θ e conseguiu achar, nessa primeira audiˆencia, uma raiz positiva. No dia seguinte, ele achou todas as 23 ra´ızes positivas da equa¸c˜ao. Van Roomen ficou t˜ao im- pressionado que fez uma visita especial a Viete. Este publicou sua solu¸c˜ao em 1595, num tratado intitulado Ad problema, quod omnibus mathematicis totius orbis construendum propusuit Adrianus Pomanus, responsum. Outro epis´odio que ilustra sua extraordin´aria capacidade ´e o seguinte. Durante a guerra com a Espanha, ainda a servi¸co de Henrique IV, ele pode decifrar o o c´odigo utilizado pelos espanhois a partir de cartas que foram interceptadas e, dali em diante, conhecer o conte´udo de novas cartas escritas nesse c´odigo. Os espanhois achavam seu c´odigo t˜ao dif´ıcil de ser quebrado, que acusaram a Fran¸ca, perante o Papa, de usar feiti¸caria.

10 CAP´ITULO 1. UM PANORAMA GERAL

O uso de letras para representar classes de n´umeros e assim tratar das equa¸c˜oes de forma mais geral demorou a ser aceito. Um aperfei¸coamento desta nota¸c˜ao foi devido a Ren´e Descartes (1596-1650) que, na sua obra intitulada utiliza pela primeira vez a pr´atica hoje usual de utilizar as primei- ras letras do alfabeto para representar quantidades conhecidas e as ´ultimas, como x,y z para as inc´ognitas. E precisamente nesta obra que Descartes´ apresenta as id´eias que deram or´ıgem a Geometria Anal´ıtica, junto com as contribui¸c˜oes de Pierre de Fermat. Esse texto n˜ao foi apresentado como um livro independente mas como um apˆendice da obra pela que seria mais co- nhecido, o Discours de la m´ethode pour bien conduire sa raison et chercher la v´erit´e dans les sci´ences, em 1637^4 A obra foi publicada em francˆes e n˜ao latim, que era a linguagem cient´ıfica universal da ´epoca. Frans Van Scho- oten (1615-1660), um matem´atico holandˆes, publicou em 1649, em Leyden, uma tradu¸c˜ao ao latim que incluia material suplementar e que foi ampli- ada a dois volumes em 1654-1661. Foi devido a esta publica¸c˜ao e a a¸c˜ao de Von Schooten e seus disc´ıpulos que a geometria cartesiana se desenvolveu rapidamente. Tal como Viete, Descartes utilizava as letras para indicar apenas n´umeros positivos, embora n˜ao hesitasse em escrever diferen¸cas de coeficientes literais. O uso de letras para representar tanto n´umeros positivos quanto negativos aparece pela primeira vez em 1637 numa obra de John Huddle (1633-1704) intitulada De reducrione a equationenum, que tamb´em fez parte da edi¸c˜ao de Schooten da Geometria de Descartes de 1654-1661.

O progresso final, em rela¸c˜ao ao uso da nota¸c˜ao consistiu em usar uma letra tamb´em para representar o grau de uma equa¸c˜ao. Nossa nota¸c˜ao mo- derna que utiliza expoentes negativos e fracion´arios foi introduzida por Isaac Newton (1642-1727) numa carta dirigida a Oldenburg, ent˜ao secret´ario da Royal Society, em 13 de junho de 1676, onde diz:

Como os algebristas escrevem a^2 , a^3 , a^4 , etc., para aa, aaa, aaaa, etc., tamb´em eu escrevo a^1 /^2 , a^2 /^3 , a^5 /^4 para

a, 3

a^2 , 4

a^5 ; e es- crevo a−^1 , a−^2 , a−^3 , etc., para (^1) a , (^) aa^1 , (^) aaa^1 ,etc.

Tamb´em sua f´ormula para o binˆomio foi anunciada nesta carta, usando letras para representar inclusive expoentes racionais. Antes de Newton, j´a

(^4) Neste livro ele descreve o uso da d´uvida met´odica como forma de tornar a id´eias claras e precisas a partir das quais poderia-se chegar a conclus˜oes v´alidas. Por esta e muitas outras contribui¸c˜oes, ele veio a ser considerado o ‘pai da filosofia moderna’.

12 CAP´ITULO 1. UM PANORAMA GERAL

Cap´ıtulo 2

Os campos num´ericos

2.1 Introdu¸c˜ao

As or´ıgens da no¸c˜ao de n´umero ou opera¸c˜ao s˜ao t˜ao antigas quanto a pr´o- pria cultura humana. Parece claro que os n´umeros naturais; i.e., os elementos da seq¨uˆencia 0, 1 , 2 , 3 ,... desenvolveram-se a partir da experiˆencia cotidiana e os seu emprego foi generalizando-se gradativamente. Algo an´alogo aconte- ceu com os n´umeros racionais n˜ao negativos; i.e., os n´umeros da forma a/b, onde a e b s˜ao n´umeros naturais. J´a encontramos o uso destes n´umeros no Egito, na Babilˆonia, e os gregos fizeram deles usos muito sofisticados.

Algo bem diferente aconteceu com os n´umeros negativos. O primeiro uso conhecido dos inteiros negativos encontra-se numa obra indiana, devida a Brahmagupta, de 628 d.C. aproximadamente, onde s˜ao interpretados como d´ıvidas. Desde seu aparecimento, eles suscitaram d´uvidas quanto a sua le- gitimidade. Assim por exemplo, Stifel em 1543 ainda os chama de n´umeros absurdos e Cardano, de quem nos ocuparemos adiante, os considerava solu- ¸c˜oes falsas de uma equa¸c˜ao.

Uma coisa semelhante aconteceu com os n´umeros irracionais; isto ´e, aque- les que n˜ao podem ser escritos na forma a/b com a e b n´umeros inteiros; por exemplo, os n´umeros que hoje representamos como

3 , π, e, etc. J´a n´a ´epoca dos pitag´oricos, no s´eculo VI a.C. se sabia da existˆencia de segmentos cuja medida n˜ao era um n´umero racional: dado um quadrado de lado 1, pode- se provar facilmente que sua diagonal de ter medida igual a

  1. Para autores como Pascal e Barrow, s´ımbolos tais como

2 representavam apenas mag- nitudes geom´etricas que n˜ao tinham existˆencia independente, e cuja medida

2.1. INTRODU ¸C AO˜ 15

d.c.. Num c´alculo sobre o desenho de uma pirˆamide aparece a necessi- dade de avaliar

81 − 144. A quest˜ao parece n˜ao causar nenhum problema simplesmente porque logo em seguida os n´√ umeros aparecem trocados como 144 − 81 =

63 que ´e calculado aproximadamente como 7^1616. Novas referˆencias `a quest˜ao aparecem na matem´atica indiana. Aproxi- madamente no ano 850 d.c., o matem´atico indiano Mahavira afirma:

... como na natureza das coisas um negativo n˜ao ´e um quadrado, ele n˜ao tem portanto raiz quadrada.

J´a no s´eculo XII o famoso matem´atico Bhascara (1114-1185 aprox.) escreve:

O quadrado de um afirmativo ´e afirmativo; e a raiz quadrada de um afirmativo ´e dupla: positiva e negativa. N˜ao h´a raiz quadrada de um negativo; pois ele n˜ao ´e um quadrado.

Tamb´em na matem´atica europ´eia aparecem observa¸c˜oes desta natureza; Luca Paccioli, na sua Summa di Arithmetica Geometria, publicada em 1494, escreve que a equa¸c˜ao x^2 + c = bx ´e sol´uvel somente se 14 b^2 ≥ c e o matem´a- tico francˆes Nicolas Chuquet (1445-1500 aprox.) faz observa¸c˜oes semelhantes sobre “solu¸c˜oes imposs´ıveis” num manuscrito n˜ao publicado de 1484. O pr´oprio Cardano se deparou com este tipo de quest˜oes e, embora man- tivesse a atitude dos seus contemporaneos, no sentido de entender que ra´ızes de n´umeros negativos indicavam apenas a n˜ao existˆencia de solu¸c˜oes de um determinado problema, pelos menos num caso ele deu um passo a mais. No Cap´ıtulo 37 do Ars Magna ele considera o problema de dividir um segmento de comprimento 10 em duas partes cujo produto seja 40.

x 10 − x

Se chamamos de x o comprimento de uma das partes, a outra ter´a com- primento 10 − x e a condi¸c˜ao do problema se traduz na equa¸c˜ao:

x(10 − x) = 40.

Isto leva a equa¸c˜ao x^2 − 10 x + 40 = 0 cujas solu¸c˜oes s˜ao x = 5 ±

Ele reconhece que o problema dado n˜ao tem solu¸c˜ao mas, talvez a t´ıtulo de

16 CAP´ITULO 2. OS CAMPOS NUM´ERICOS

curiosidade, ele observa que trabalhando com essas express˜oes como se fossem n´umeros, deixando de lado as torturas mentais envolvidas e multiplicando 5 +

− 15 por 5 −

− 15 se obt´em 25 − (−15) que ´e 40. Em consequˆencia, ele chama estas express˜oes de ra´ızes sof´ısticas da equa- ¸c˜ao e diz, a respeito delas, que s˜ao t˜ao sutis quanto in´uteis.

2.2 A necessidade dos n´umeros complexos

Raphael Bombelli (1526-1573) era um admirador da Ars Magna de Car- dano, mas achava que seu estilo de exposi¸c˜ao n˜ao era claro (ou, em suas pr´oprias palavras: ma nel dire f`u oscuro). Decidiu ent˜ao escrever um livro, expondo os mesmos assuntos, mas de forma tal que um principiante pudesse estud´a-los sem necessidade de nenhuma outra referˆencia.

Publicou ent˜ao uma obra que viria a se tornar muito influente, sob o t´ıtulo de l’Algebra, em trˆes volumes, em 1572, em Veneza. No cap´ıtulo II desta obra, ele estuda a resolu¸c˜ao de equa¸c˜oes de grau n˜ao superior a quatro.

Em particular na p´agina 294 e seguintes, ele considera a equa¸c˜ao x^3 = 15 x + 4. Ao aplicar a f´ormula de Cardano para o c´alculo de uma raiz, ele obt´em:

x = 3

3

Seguindo Cardano, ele tamb´em chama esta express˜ao de sof´ıstica mas, por outro lado, ele percebe que x = 4 ´e, de fato, uma raiz da equa¸c˜ao proposta.

Assim, pela primeira vez, nos deparamos com uma situa¸c˜ao em que, ape- sar de termos radicais de n´umeros negativos, existe verdadeiramente uma solu¸c˜ao da equa¸c˜ao proposta. E necess´´ ario ent˜ao compreender o que est´a acontecendo.

Bombelli concebe ent˜ao a possibilidade de que exista uma express˜ao da forma a +

−b que possa ser considerada como raiz c´ubica de 2 +

i.e., que verifique (a +

−b)^3 = 2 +

−121. A forma em que ele calcula esta raiz ´e um tanto peculiar; ele assume que a raiz c´ubica de 2 −

seja da forma a −

−b. Como ele sabe que 4 deve ser raiz da equa¸c˜ao, tem que a +

−b + a −

−b = 4. Neste ponto felizmente as quantidades n˜ao existentes se cancelam e obtemos a = 2. Com esse resultado, ´e muito f´acil voltar `a equa¸c˜ao (a +

−b)^3 = 2 +

−121 e deduzir que b = 1. Assim, ele