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Baruc e Jeremias nas duas edições mais antigas do Livro de ..., Notas de aula de Tradução

As Escrituras judaicas foram traduzidas do hebraico ou do ara- maico para o grego entre o século III e o século I. a.C., sobretudo.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Marcela_Ba
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Baruc e Jeremias
nas duas edições mais antigas
do Livro de Jeremias conhecidas
INTRODUÇÃO
Principais diferenças entre a LXX e o TM de Jeremias
As Escrituras judaicas foram traduzidas do hebraico ou do ara-
maico para o grego entre o século III e o século I. a.C., sobretudo
em Alexandria, então um dos centros mais importantes e criadores
do judaísmo. Foram traduzidoso só os livros que viriam a formar
o cânone judaico a partir de fins do século II d.C., mas também
outras obras. Além disso, escreveram-se outros livros ou partes de
livros directamente em grego. Costuma chamar-se à colectânea
resultante desse processo de tradução e escrita a Bíblia dos Setenta
(LXX)1, a Bíblia grega ou a Bíblia de Alexandria2. Foram essas as
Escrituras, mais vastas do que as Escrituras mais tarde delimitadas
pelo cânone judaico, que os cristãos adoptaram. Depois de lhes
terem acrescentado os seus escritos próprios, o Novo Testamento,
os cristãos viram nelas o Antigo Testamento.
Vários livros comuns à LXX e à Bíblia hebraico-aramaica
(TM)3m diferenças de maior ou menor vulto. Elaso flagrantes
1 Deve o nome à carta de Aristeias, uma ficção histórica segundo a qual 72
sábios enviados de Jerusalém pelo sacerdote Eleazar a pedido do rei do Egipto
teriam traduzido a Torá para a biblioteca de Alexandria.
2 La Bible d'Alexandrie é o título adoptado na tradução francesa, em vias de
publicação, por Marguerite Harl e a sua equipa.
3 Por comodidade, designo-a com a sigla TM (Texto Massorético), sem ter em
conta o facto de que, no sentido próprio, o TM é o texto consonântico vocalizado e
pontuado pelos massoretas.
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Baruc e Jeremias

nas duas edições mais antigas

do Livro de Jeremias conhecidas

INTRODUÇÃO Principais diferenças entre a LXX e o TM de Jeremias

As Escrituras judaicas foram traduzidas do hebraico ou do ara- maico para o grego entre o século III e o século I. a.C., sobretudo em Alexandria, então um dos centros mais importantes e criadores do judaísmo. Foram traduzidos não só os livros que viriam a formar o cânone judaico a partir de fins do século II d.C., mas também outras obras. Além disso, escreveram-se outros livros ou partes de livros directamente em grego. Costuma chamar-se à colectânea resultante desse processo de tradução e escrita a Bíblia dos Setenta (LXX)^1 , a Bíblia grega ou a Bíblia de Alexandria^2. Foram essas as Escrituras, mais vastas do que as Escrituras mais tarde delimitadas pelo cânone judaico, que os cristãos adoptaram. Depois de lhes terem acrescentado os seus escritos próprios, o Novo Testamento, os cristãos viram nelas o Antigo Testamento. Vários livros comuns à LXX e à Bíblia hebraico-aramaica (TM)^3 têm diferenças de maior ou menor vulto. Elas são flagrantes

(^1) Deve o nome à carta de Aristeias, u m a ficção histórica segundo a qual 72 sábios enviados de Jerusalém pelo sacerdote Eleazar a pedido do rei do Egipto teriam traduzido a Torá para a biblioteca de Alexandria. (^2) La Bible d'Alexandrie é o título adoptado na t r a d u ç ã o francesa, em vias de publicação, por 3 Marguerite Harl e a sua equipa. Por comodidade, designo-a com a sigla TM (Texto Massorético), sem ter em conta o facto de que, no sentido próprio, o TM é o texto consonântico vocalizado e pontuado pelos massoretas.

XXXV (2005) DIDASKALIA (^) 85-

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no caso de Jeremias. Foram já notadas por Orígenes^4 e S. Jerónimo. Orígenes encara as diferenças na posição de defensor da Bíblia grega, a que era usada pelos cristãos. De uma maneira geral, os Padres da Igreja, tanto os Latinos como os Gregos, seguiram o texto grego anterior às revisões de Teodocião, Áquila e Símaco, que ten- deram a conformá-lo com o texto hebraico de então. A LXX foi sem- pre a autoridade nas Igrejas de expressão helénica ou que estão na sua órbita. Pelo contrário, Jerónimo tomou partido pela Bíblia hebraico-aramaica. No Prólogo à tradução latina de Jeremias a par- tir do hebraico, cerca de 390-392, escreve: «Além disso, corrigimos segundo a autoridade do original a ordem das visões, completa- mente alterada entre os Gregos e os Latinos» 5. No comentário ao mesmo livro, cerca de 415-420, Jerónimo refere também o que julga serem as numerosas omissões do texto grego 6. A tradução hieroní- mica, feita a partir do hebraico-aramaico, tornou-se a Vulgata no Ocidente. A partir do Renascimento, a Vulgata cedeu o lugar ao TM no estudo do Antigo Testamento, continuando assim fora de jogo o texto da LXX. Uma das diferenças mais notáveis entre a LXX e o TM de Jere- mias, já observada por Orígenes e Jerónimo, consiste no lugar que neles ocupam os «Oráculos contra as Nações», assim como na orga- nização interna dessa colectânea. Esses oráculos estão no centro do livro na LXX (25,14-32,24); no fim no TM (46-51). As Nações visadas são as mesmas nos dois casos, mas a sua lista segue ordens diferentes. A outra grande diferença entre a LXX e o TM, já assinalada por Jerónimo, reside na extensão dos dois textos. Há ainda entre ambos pequenas diferenças qualitativas. Por exemplo, em Jr 2,18, ao nome Guion (nascente de Jerusalém) da LXX corresponde Xihôr (Nilo) no TM. No entanto, as principais diferenças são quantitativas. Há pala- vras ou frases próprias à LXX, sem correspondência no TM, mas o inverso é muito mais frequente. De facto, o TM é cerca de um oitavo mais longo. Tem palavras, frases, parágrafos e até trechos bastante

(^4) O R I G È N E , Philocalie, 1-20 sur les Écritures et la Lettre à Africanus sur l'histoire de Suzanne (Sources Chrétiennes, 302), Paris, Les Éditions du Cerf, 1983, pp. 530-531. (^5) R. W E B E R (ed.), Biblia Sacra iuxta Vulgatam Versionem. I I. Proverbia - Apoca- lypsis, Stuttgart, Württembergische Bibelanstalt, 1969, p. 1166. Jerónimo refere-se à chamada Vêtus Latina, a primeira tradução da Bíblia cristã - Antigo e Novo Testa- mento - feita a partir do grego. (^6) S. R E I T E R , S. Hieronymi Presbyteri Opera. I. Opera exegetica. 3. In Hieremiam, Libri VI (Corpus Christianorum Series Latina, 74), Turnout, Brepols, 1960, p. 1.

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representada por 4Q71 (4QJerb^ )^1 1 e 4Q72a (4QJerd); a segunda por 2Q12 (2QJer), 4Q70 (4QJera) e 4Q72 (4QJerc). Os manuscritos de Qumran tornam assim pouco verosímil a hipótese corrente segundo a qual as diferenças entre a LXX e o TM se deveriam ao tradutor grego. E mais provável que exista u m a continuidade entre as duas formas de Jeremias achadas em Qumran e as duas formas represen- tadas pela LXX e pelo TM. Por outras palavras: o tradutor grego não abreviou o TM ou outro aparentado, mas limitou-se a traduzir um texto curto como o que existia em Qumran. Os manuscritos de Qumran assentaram assim o estudo das relações entre as duas formas de Jeremias em novas bases, dando um grande impulso aos trabalhos sobre a história da formação do livro em geral. No estado actual das pesquisas, a história das últi- mas etapas da sua formação tem que passar forçosamente pela comparação entre as duas formas do livro representadas pela LXX e pelo TM 12. A exclusão da hipótese tradicional que via em JrLXX uma tra- dução de JrTM não resolve a questão da relação entre eles, limi- tando-se a recuá-la para um momento anterior ao da versão do livro em grego. Apesar de haver entre eles diferenças importantes, os dois textos são fundamentalmente idênticos. Para explicar esses factos, existem, teoricamente, três possibilidades: ou uma das for- mas do livro depende da outra ou ambas derivam da mesma fonte, que não se conhece. As três hipóteses têm defensores. A última talvez seja a menos popular^1 3. A hipótese da anterioridade do texto longo continua a ser adoptada por muitos exegetas 14. No entanto, a maioria vê no texto longo uma edição revista e aumentada do texto curto. Embora não existam estudos exaustivos das diferenças entre

(^11) Georg F I S C H E R , «Zum Text des Jeremiabuches», Bíblica 7 8 (1997) 3 0 5 - 3 2 8 , procura desacreditar o testemunho de 4Q71 (4QJerb), mas as suas objecções não convenceram. (^12) Pierre-Maurice B O G A E R T , «Le Livre de Jérémie en perspective: les deux rédactions antiques selon les travaux en cours», Revue Biblique 1 0 1 ( 1 9 9 4 ) 3 6 3 - 4 0 6. (^13) Por exemplo, Andrew G. S H E A D , The Open Book and the Sealed Book. Jeremiah 32 in its Hebrew and Greek Recensions (JSOTS, 347 - Hebrew Bible and its Versions, 3 ) , London-New York, Sheffield Academic Press, 2 0 0 2 , sobretudo pp. 2 5 5 - 2 6 3. (^14) Georg F I S C H E R , «Zum Text des Jeremiabuches» (n. 1 1 ) ; ID., «Jeremiah 5 2 : A Test Case for Jer LXX», in Bernard A. TAYLOR (ed.), X Congress of the International Organization for Septuagint and Cognate Studies. Oslo 1998 (SBL. Septuagint and Cognate Studies Series, 5 1 ) , Atlanta, Society of Biblical Literature, 2 0 0 1 , pp. 3 7 - 4 8 ; Arie VAN DER K O O I J , «Jeremiah 2 7 : 5 - 1 5 : How Do MT and LXX Relate to Each Other», Journal of Northwest Semitic Languages 2 0 ( 1 9 9 4 ) 7 4 - 7 6 ( 5 9 - 7 8 ).

BARUC E JEREMIAS NAS DUAS EDIÇÕES MAIS ANTIGAS [...] 89

JrLXX e JrTM 15 , há já um grande número de estudos parciais, cujos resultados me parecem f u n d a m e n t a r a opinião actualmente maio- ritária, que o presente estudo tende a confirmar. A data das duas edições é discutida. Pondo Elam em primeiro lugar na lista das Nações (JrLXX 25,14-20), a LXX supõe a hegemonia persa 16. Talvez remonte a meados do século V a.C. Pondo o Egipto em primeiro lugar (JrTM 46,1-28) e a Babilónia em último (JrTM 50,1-51,64) na lista das Nações, o TM parece revelar uma tendência anti-babiló- nica e pro-egípcia^17. P.-M. Bogaert propõe datá-la cerca de 250 a.C.1 8 A. Schenker e A. Sérandour, entre outros, propõem datá-la cerca de 140 a.C.^1 . Embora se situe dentro da vasta problemática que esbocei, o presente estudo tem um objecto restrito e um alvo muito modesto. Tratarei só de Baruc e de Jeremias, procurando ver se eles desem- penham exactamente o mesmo papel em JrLXX e em JrTM ou se, pelo contrário, cada u m a das formas do texto lhes atribui papéis sensivelmente diferentes. Analisarei primeiro os textos que põem em cena Baruc e Jeremias. Apesar de partir da hipótese de que JrLXX é anterior a JrTM, o estudo será essencialmente sincrónico, considerando os textos na forma que têm em cada uma das edições do livro. Como conclusão, esboçarei as imagens de Baruc e de Jere- mias que ressaltam dos textos analisados, tendo também em conta o lugar que esses textos ocupam em JrLXX e em JrTM.

(^15) Os estudos que se estendem ao conjunto do livro são pouco aprofundados. É o caso de J. G. J A N Z E N , Studies in the Text of Jeremiah (n. 8); Hermann-Josef S T I P P , Das masoretische und alexandrinische Sondergut des Jeremiabuches. Textgeschichtli- cher Rang, Eigenarten, Triebkräfte (OBO, 136), Freiburg Schweiz, Universitätsverlag/ Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1994. (^16) Pierre-Maurice B O G A E R T , «Vie et paroles de Jérémie selon Baruch». Le texte court de Jérémie (LXX) comme œuvre biographique», in E. B I A N C H I et al. (eds.), La Parola edifica la Comunità. Liber amicorum offerto al padre Jacques Dupont, Magnano, Edizioni Qiqajon, 1996, p. 18, n. 7 (15-29). (^17) Pierre-Maurice B O G A E R T , «Vie et paroles de Jérémie selon Baruch» (n. 16), p. 24. (^18) Pierre-Maurice B O G A E R T , «Relecture et déplacement de l'oracle contre les Philistins. Pour une datation de la rédaction longue (TM) du livre de Jérémie», in La vie de la Parole. De l'Ancien au Nouveau Testament. Etudes d'exégèse et d'herméneu- tique bibliques offertes à Pierre Grelot, Paris, Desclée, 1987, pp. 139-150. (^19) Adrian S C H E N K E R , «La rédaction longue du livre de Jérémie doit-elle être datée au temps des premiers Hasmonéens», Ephemerides Theologicae Lovanienses 70 (1994) 281-293; Arnaud S É R A N D O U R , «Jr 33, 14-26 T M. Contribution pour dater la forme longue ( T M ) du livre de Jérémie», in A. C H E H W A N et A. K A S S I S (eds.), Études Bibliques et Proche-Orient ancien. Mélanges offertes au Père Paul Feghali (Fédération Biblique, Subsidia, 1), Dekouaneh/Jounieh, 2002, pp. 247-261.

BARUC E JEREMIAS NAS DUAS EDIÇÕES MAIS ANTIGAS [...] 91

Os vv. 6-15 contam que Jeremias redigiu o contrato de compra, assi- nou-o e fê-lo assinar por testemunhas. Finalmente, por ordem de Iavé, entregou-o, publicamente, a Baruc, a quem mandou metê-lo num vaso de argila para que se conservasse por muito tempo. Não obstante a obscuridade de alguns pormenores relativos aos instru- mentos do contrato^2 1 , não há dúvida de que os vv. 12-15 atribuem a Baruc um papel de arquivista, de notário, de procurador de Jere- mias ou de tudo isso ao mesmo tempo 2 2. Segundo JrLXX 39,6-15/JrTM32,6-15, a compra do campo não é uma mera transacção comercial nem u m a simples medida desti- nada a evitar a alienação do património familiar. É antes de mais uma acção simbólica, uma forma de linguagem (ou meta-lingua- gem) que o livro de Jeremias usa amiúde para expressar a mensa- gem de Iavé^2 3. E o que declara o v. 15: «Porque assim disse Iavé dos Exércitos, o Deus de Israel: Ainda se comprarão casas, campos e vinhas nesta terra» (cf. vv. 43-44). Este anúncio revela o verdadeiro sentido da compra do campo. Confere-lhe uma mais valia simbó- lica, transformando-a numa acção paradigmática, que antecipa o destino de Judá. E verdade que a conquista babilónica, iminente, vai interromper a actividade económica e social em Judá, mas, passado um tempo que se prevê longo, a vida retomará o seu curso. A compra do campo torna-se assim u m a espécie de primícias do que será o futuro de Judá, após ter passado a tormenta. Sendo o depositário dos instrumentos do contrato, Baruc é também o garante do cumprimento da promessa de recomeço que a tran- sacção expressa. Jeremias dá uma ordem a Baruc (v. 13), que está assim ao seu serviço ou, melhor dito, ao serviço da promessa divina contida na acção de Jeremias. Existem algumas diferenças entre JrLXX 39 e JrTM 32. A mais significativa p a r a o nosso propósito é o facto de Jeremias receber o título de profeta em JrTM (v. 2), mas não em

(^21) Pierre-Maurice BOGAERT, «Les documents placés dans une jarre. Texte court et texte long de Jer 3 2 (LXX 3 9 ) » , in G. D O R I V A L et 0. M U N N I C H (eds.), « Selon les Septante»: Trente études sur la Bible grecque des Septante en Hommage à Marguerite Harl, Paris, Les Éditions du Cerf, 1 9 9 5 , pp. 6 9 - 7 2 ( 5 3 - 7 7 ) ; A. G. S H E A D , The Open Book and the Sealed Book (n. 1 3 ) , pp. 1 1 4 - 1 2 4. (^22) Pierre-Maurice B O G A E R T , «Le personnage de Baruch et l'histoire du livre de Jérémie. Aux origines du livre deutérocanonique de Baruch», in Elizabeth A. L I V I N G S T O N E (ed.), Studia Evangelica 7 (TU 126), Berlin, Akademica Verlag, 1982, p. 74 (73-81). (^23) Jr 1,11-14; 13,1-11; 18,1-12; 19, 1-15; JrLXX 34-35/JrTM 27-28.

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JrLXX. No entanto, ele é sujeito do verbo profetizar nos dois (v. 3). Mínimas, as diferenças entre os dois textos não alteram as imagens de Baruc e de Jeremias nem a apresentação das relações entre eles.

2. A escrita dos dois rolos (JrLXX 43/JrTM 36)

Baruc intervém pela segunda vez aquando da escrita das pala- vras de Jeremias (JrLXX 43/JrTM36). Os episódios são datados do quarto e do quinto ano de Joaquim (vv. 1.9). A escrita dos rolos, embora seja relatada depois da compra do campo, teria tido lugar entre 17 e 16 anos antes. Os dois episódios estariam separados por 7 ou 6 anos dos 11 que durou o reinado de Joaquim (2 R 23,36), pelos três meses do reinado de Joiaquin (2 R 24,8) e por 10 anos do reinado de Sedecias ((JrLXX 39,1/JrTM 32,1). Iavé ordena a Jeremias que tome um «rolo de livro» 24 e escreva nele todas as palavras que lhe dirigiu a respeito de Israel, de Judá e de todas as nações (v. 2). Iavé propunha-se com isso levar a casa de Judá a tomar consciência do mal que tencionava fazer-lhe, de modo a que ela se convertesse, obtivesse o perdão e, em última análise, evitasse a desgraça (v. 3; cf. também vv. 7 e 16). «Jeremias chamou, então, Baruc filho de Nérias. Baruc escreveu num "rolo de livro", conforme o ditado de Jeremias, todas as palavras que Iavé lhe diri- gira» (v. 4). Por ordem de Jeremias, que estava impedido de ir ao Templo^2 5 , Baruc vai lá e lê o livro ao povo (vv. 5-10). Informados por Miqueias filho de Guemarias filho de Safan, os altos funcioná- rios convocam Baruc p a r a que também lhes leia o rolo. O que ele faz (vv. 11-15). Apavorados com as ameaças contidas no livro, os altos funcionários pedem explicações a Baruc, o qual lhes conta como escreveu o livro sob o ditado de Jeremias (vv. 16-18). Os altos funcionários m a n d a m Baruc esconder-se, juntamente com Jeremias

(^24) O relato designa o objecto de três maneiras diferentes: o nome composto megillat séfèr, literalmente «um rolo de livro» (vv. 2 e 4) ou só um desses elementos, isto é, rolo (vv. 6. 1 4. 1 4. 2 0. 2 1. 2 3. 2 5. 2 7. 2 8. 2 8. 2 9 e 3 2 ) ou livro (vv. 8. 1 0. 1 1. 1 3 e 3 2 ). E possível que isso seja indício da existência de duas variantes do relato na base do texto actual. Hermann-Josef S T I P P , «Baruchs Erben. Die Schriftprophetie im Spiegel von Jer 3 6 » , in Hubert I R S I G L E R (ed.), »Wer darf hinaufsteigen zum Berg JHWHS?« Beiträge zur Prophetie und Poesie des Alten Testaments. Festschrift für Sigurdur Orn Steingrimsson (ATSAT, 7 2 ) , Erzabtei St. Otilien, EOS Verlag, 2 0 0 2 , pp. 1 6 0 - 1 6 1 ( 1 4 5 - 1 7 0 ). (^23) O texto não dá a razão do impedimento. Veja-se a discussão de William M C K A N E , A Critical and Exegetical Commentary on Jeremiah. Vol. II. Commentary on Jeremiah XXVI-LII, Edinburgh, T & T Clark, 1 9 9 6 , pp. 9 0 1 - 9 0 2.

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Baruc (vv. 26 e 32). Em JrTM 36,26 os dois títulos estão em sime- tria. E sabido que a distribuição generosa de títulos às personagens do livro é uma das características de JrTM. O primeiro beneficiário é o próprio Jeremias, que recebe 31x o título de profeta em JrTM. Como vimos, Jeremias recebe esse título em JrTM 32,2, mas não no seu correspondente, em JrLXX 39,2. De facto, a atribuição do título de profeta a Jeremias não é exclusiva de JrTM. Está também documentada em JrLXX, mas muito menos amiúde, isto é, só 4 vezes^2 7. Por seu lado, Baruc não recebe nenhum título em JrLXX. Curiosamente, o próprio JrTM não se mostra muito generoso com ele, pois só no capítulo 36 (vv. 8 e 22) o contempla com um título: «o escriba». Embora haja informações bíblicas e extra-bíblicas sobre os escribas, não é fácil saber qual é o alcance exacto do título de escriba dado a Baruc. Daí que haja u m a pluralidade de opiniões sobre a questão. A dificuldade vem do facto de que se conhecem muito mal os órgãos de governo e a máquina administrativa do reino de Judá. O substantivo sofér é frequente no livro de Jeremias, onde se encontram 12 das suas 54 ocorrências no TM. Traduzindo também outros termos, o equivalente grego grammateús é muito mais frequente no Antigo Testamento em geral, mas menos frequente no livro de Jeremias em particular, onde se lê só 8 vezes. Excepto em 8,8, onde o plural se refere aos intérpretes da Lei, o livro de Jeremias usa o termo no singular. Fora Jr 52,25 (cf. 2 R 25, 19), todas as ocorrências se concentram em dois capítulos. A maioria encontra-se em JrLXX 43/JrTM 36: quatro no grego^2 8 e 8 no hebraico correspondente^2 9. Os dois restantes empregos situam-se no capí- tulo seguinte: JrLXX 44,15.20/JrTM 37,15.20. Em JrLXX 43,23/ JrTM 36,23, os termos fazem parte dos sintagmas ta'ar hassofér/tò xurón tou grammateôs (navalha/lâmina de escriba), que designam um utensílio do escriba, no sentido fundamental do termo. A. Millard insiste que a palavra escriba conota antes de mais a ideia de uma arte ou de uma profissão, que era apanágio das classes superiores da sociedade^3 0. No entanto, supõe-se geralmente que a

(^27) JrLXX 28,59; 49,2; 50,6 e 51,31/JrTM 51,59; 42,2; 43,6 e 45,1. JrLXX não tem nenhuma atribuição própria do título de profeta a Jeremias. (^28) JrLXX 43,10.12.12.23. (^29) JrTM 36,10.12.12.20.21.23.26.32. (^30) Alan M I L L A R D , «Owners and Users of Hebrew Seals», Eretz. Israel 26 (1999) 129-133.

BARUC E JEREMIAS NAS DUAS EDIÇÕES MAIS ANTIGAS [...] 95

palavra escriba tem um leque de sentidos bastante vasto. Limitar- -me-ei à época da monarquia judaica. Segundo a opinião corrente, numa boa parte dos casos então documentados, a palavra escriba teria um sentido técnico. Designaria a pessoa com a função e o cargo mais elevados na administração real. O escriba seria uma espécie de secretário de Estado (chefe do governo). Entre as perso- nagens mencionadas em JrLXX 43/JrTM 36, admite-se, geralmente, que tal era o caso de Elisamá e de Safan: o primeiro seria então o titular do cargo^3 1 ; o segundo tê-lo-ia sido no reinado de Josias^3 . Poderia ser também o caso de Guemarias^3 3. Poderia ser igualmente a função do Jonatas mencionado em JrLXX 44,15.20/JrTM 37,15. E também opinião comum que o título de escriba se aplicava a um círculo de funcionários mais vasto, nomeadamente aos cola- boradores do que poderia chamar-se o «escriba-mor» 34. Alguns autores entendem o título de Baruc nesse sentido e vêem no seu portador um funcionário ou um ex-funcionário real^3 5. A. Lemaire sugere que Baruc pertenceria a outra categoria de escribas, cuja relação com a administração real é incerta. Esses escribas exerce- riam as funções de notários e de redactores ou copistas de textos religiosos, políticos ou literários. A. Lemaire aduz só o testemunho de JrTM 32 - texto que não dá a Baruc nenhum título - e JrTM 36, 26.32. De facto, ele toma Baruc como modelo e, generalizando as actividades que os textos de Jeremias lhe atribuem, vê nelas as fun- ções de uma categoria particular de escribas^3 6. A sua construção tem um fundamento muito exíguo - unicamente o TM de um só dos

(^31) JrLXX 43,12/JrTM 36,12.20.21. Elisamá recebe o título 3x no texto hebraico, só lx no grego. JrTM 36,20 e 21 referem o gabinete (sala) de Elisamá, o escriba. Em JrLXX 43,20 e 21 lê-se a «casa de Elisama». (^32) 2 R22,3.8.9.10.12; 2 Cr 34,15.18.20. (^33) Em JrTM 36,10, lê-se: «Guemarias filho de Safan, o escriba». Do ponto de vista gramatical, o título «o escriba» deve qualificar Guemarias, não Safan, pois «Guemarias filho de Safan» é o nome completo de Guemarias. A Bíblia Sagrada, para o terceiro milénio da Encarnação, Lisboa/Fátima, 4.a^ ed., Difusora Bíblica, 2003, adopta essa compreensão do texto. No entanto, a esmagadora maioria refere o título a Safan, só porque pensa que o escriba era então Elisamá e que não podia haver simultaneamente duas pessoas com essa função. (^34) Em Jr 52,25 (cf. 2 R 25,19), o escriba parece ocupar-se do recrutamento para o exército. 35 Por exemplo, Nahman AVIGAD, Hebrew Bullae from the Time of Jeremiah. Remnants 36 of a Burnt Archive, Jerusalém, Israel Exploration Society, 1986, p. 130. André L E M A I R E , «Scribes. I. Proche-Orient Ancien. II. Ancien Testament, Ancien Israel», in Dictionnaire de la Bible. Supplément, XII, Paris, Letouzey et Ané, 1996, cc. 253-256 (243-266).

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filho de Neriyahu, o escriba»), publicada há um pouco mais de u m quarto de século. Embora a origem da inscrição seja desconhecida, N. Avigad, que a publicou, não duvidou da sua autenticidade nem hesitou em identificar o proprietário do selo com o Baruc (dimi- nuitivo de Berequiyahu) do livro de Jeremias^3 9. Sobre esses dois pontos, a opinião de N. Avigad é aceite por todos os autores, que vêem na dita inscrição a confirmação da historicidade não só da personagem de Baruc, mas também do título que JrTM 36,26.32 lhe dá. Na verdade, os epigrafistas que t r a t a r a m desta questão - e até muitos exegetas - desconhecem a fragilidade do testemunho de JrTM 36,26.32 como documento histórico sobre o título de Baruc. Sem qualquer pretensão de dirimir a questão da historicidade do título dado por JrTM 36,26.32 a Baruc, limito-me a recordar as precauções que se impõem. Em princípio, só está garantida a autenticidade de um objecto que foi achado num sítio arqueológico, no quadro de uma escavação que permita situá-lo estratigrafica- mente e, por conseguinte, datá-lo. O que se diz de qualquer objecto vale em boa parte para as inscrições. A autenticidade de uma inscri- ção de proveniência desconhecida é a priori suspeita^4 0. 0 escândalo das inscrições declaradas falsas nos últimos dois anos só pode reforçar a vigilância na m a t é r i a^4 1. Admitamos que a inscrição de «Berequiyahu filho de Neriyahu, o escriba» é autêntica e data de fins do século VII ou começos do século VI a.C. Só por si, isso não permite ter a certeza absoluta de que o titular do selo e o Baruc do livro de Jeremias são a mesma pessoa. Como hoje, então existiam

(^39) Nahman AVIGAD, «Baruch the Scribe and Jerahmeel the King's Son», Israel Exploration Journal 28 (1978) 52-56, pi. 15. O autor retomou várias vezes o assunto. Assinalo só a última: N. AVIGAD, B. S A S S , Corpus of West Semitic Stamp Seals, Jeru- salem, Israel Academy of Sciences and Humanities/Israel Exploration Society, 1997, n.° 417. (^40) Veja-se o estudo pormenorizado de Christopher A. R O L L S T O N , «Non-Prove- nanced Epigraphs I: Pillaged Antiquities, Northwest Semitic Forgeries, and Proto- cols for Laboratory Tests», MAARAV 10 (2003) 135-193; ID., «Non-Provenanced Epigraphs II: The Status of Non-Provenanced Epigraphs within the Broader Corpus of Northwest Semitic», MAARAV 11 (2004) 57-79. (^41) Refiro-me às chamadas inscrições do «ossuário de Santiago, filho de José, irmão de Jesus», do «rei Joás» e da «tâmara do ceptro do sumo sacerdote». As duas primeiras são objecto de um processo actualmente em tribunal em que são arguidos dois coleccionadores, um epigrafista, um negociante de antiguidades e o antigo chefe do laboratório das antiguidades no Museu de Israel (Jerusalém). Cf. «Court delays trial of major antiquities-forgery ring», Haaretz, May 18, 2005, p. 4 (citando The Asso- ciated Press).

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homónimos^4 2. Pode ainda acrescentar-se: a certeza absoluta de que o Berequiyahu da inscrição e Baruc são a mesma pessoa confirmaria a historicidade deste, mas não a do papel que o livro de Jeremias lhe atribui^4 .

b. Um pouco mais de iniciativa de Baruc em JrLXX 43 do que em JrTM 36

JrTM 36 sublinha mais do que JrLXX 43 a dependência de Baruc em relação a Jeremias. Com efeito, enquanto que JrTM 36 assinala 6x o facto de que Baruc escreve sob o ditado de Jeremias (vv. 4,6,17,18,27 e 32), JrLXX 43 só o faz 4x (vv. 4,18,27 e 32). Nesse sentido, a diferença mais significativa situa-se no v. 32. O TM reza assim: «E Jeremias tomou outro rolo e entregou-o a Baruc filho de Nérias, o escriba, que nele escreveu...». Em contrapartida, na LXX lê-se: «E Baruc tomou outro rolo e escreveu nele...». No TM, a iniciativa de todo o processo que levou à escrita do novo rolo cabe exclusivamente a Jeremias: é ele que toma o rolo, o entrega a Baruc e lhe dita o que ele deve escrever. Embora também informe que Baruc escreveu sob o ditado de Jeremias, a LXX atribui a acção de tomar o rolo não a Jeremias, mas ao próprio Baruc, que tem assim alguma iniciativa na escrita do novo rolo 44.

3. Fuga para o Egipto (JrLXX 50,1-7/JrTM 43,1-7)

Baruc volta a aparecer em JrLXX 50,1-7/JrTM 43,1-7. Esses versículos concluem os relatos sobre a fuga para o Egipto. Temendo as represálias babilónicas por causa do assassínio de Godolias, Joanan filho de Caré, os demais chefes e todo o povo puseram-se a caminho do Egipto. Fizeram uma etapa perto de Belém (JrLXX 48,16-18/JrTM 41,16-18). Os chefes e todo o povo pediram então a

(^42) Por exemplo, o livro de Jeremias menciona aparentemente quatro pessoas chamadas Seraías: Seraías filho de Azeriel (JrLXX 43,26/JrTM 36,26); Seraías filho de Tanumet/Tanaemet (JrTM 40,8/JrLXX 47,8; 2 R 25,23); Seraías filho de Nérias filho de Masseias - irmão de Baruc (JrLXX 28,59.61/JrTM 51,59.61); Seraías, sumo sacerdote (JrTM 52,24; 2 R 25,18). (^4 3) Bob B E C K I N G , «Inscribed Seals as Evidence for Biblical Israel? Jeremiah 4 0. 7 - 4 1. 1 5 par Exemple», in L. L. G R A B B E (ed.), Can a 'History of Israel' Be Written? (JSOTS, 245 - European Seminar in Historical Methodology, 1), Sheffield, Sheffield Academic Press, 1 9 9 7 , pp. 7 3 - 8 3 ( 6 5 - 8 3 ). Embora o autor trate de outras persona- gens do livro de Jeremias, as suas observações valem também para Baruc. (^44) Pierre-Maurice B O G A E R T , «De Baruch À Jérémie» (n. 38), p. 171.

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sição baad («a favor de, por»). O sintagma hitpalél baad, «rezar/ rogar por, a favor de» conota a ideia de intercessão. E usado várias vezes no livro de Jeremias com esse sentido. Na maioria dos casos tem Jeremias como sujeito e expressa a proibição de interceder a favor do povo que Iavé lhe impõe^4 6. Sendo Jeremias um poderoso intercessor junto de Iavé, capaz de o levar a restabelecer relações com Judá, a renunciar ao mal que decidira fazer-lhe ou a conceder- -lhe tal ou tal benefício (Jr 18,20) 47 , proibir a Jeremias o exercício dessa função era um terrível castigo. No entanto, a intercessão que o povo pede a Jeremias, em JrLXX 49/JrTM 42, não se destina a levar Iavé a poupar-lhe um castigo ou um infortúnio. E verdade que o povo busca um favor, mas esse favor consiste em que Iavé lhe diga o que deve fazer. «Que Iavé, o teu Deus, nos indique o caminho que devemos seguir e o que devemos fazer» (v. 3). A formulação do assentimento de Jeremias prossegue na mesma linha: «Jeremias, o profeta^4 8 , disse-lhes: "Eu ouvi! Eis que vou rogar por vós a Iavé, vosso Deus, segundo as vossas palavras. Tudo o que Iavé vos responder (' ânâh ) eu vo-lo comunicarei; nada vos esconderei"» (v. 4). Ao rogo de Jeremias corresponde a resposta de Iavé ao povo. O verbo responder expressa a acção de Iavé no contexto da sua consulta^4 9. O compro- misso que o povo assume, sob juramento, está formulado em termos semelhantes: «... Que Iavé seja testemunha fiel e verdadeira contra nós, se não fizermos tudo o que Iavé, teu Deus, te m a n d a r dizer- -nos!» (v. 5). No final do relato, o v. 20 reitera as mesmas ideias, nos mesmos termos: «Enganastes-vos a vós mesmos quando me envias- tes a Iavé, vosso Deus, dizendo: "Roga por nós a Iavé, nosso Deus. Tudo o que Iavé, nosso Deus, disser, anuncia-no-lo e nós o faremos"». N u m a palavra, o povo limita-se a consultar Iavé para receber dele instruções sobre o caminho a seguir. Mas, ao passo que na maioria dos casos as ditas instruções parecem ser um direito, em JrLXX 49/JrTM 42, elas são um favor que Judá pede e obtém, graças à intercessão do profeta Jeremias^5 .

(^4 6) Jr 7,16; 11,14 e 14,11. Em JrLXX 36,7/JrTM 29,7, Jeremias exorta os depor- tados a rezar a Iavé pela (interceder junto de Iavé pela) Babilónia, para que ela goze de prosperidade. (^47) A tradição fará de Jeremias um intercessor celeste (2 Mac 15,12-16). (^48) O título de profeta não se lê em JrLXX 49,4. (^49) 1 S 14,37; 28,6.15; Mi 3,7. (^50) Acontece o mesmo em JrLXX 44,3-10/JrTM 37,3-10.

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Segundo JrLXX 49/JrTM 42, Jeremias é um profeta. Goza por isso de uma relação especial com Iavé. A esse título, é intermediário entre Iavé e Judá. No sentido ascendente, comunica a Iavé as ques- tões de Judá. No sentido descendente, comunica a Judá as respostas de Iavé. No entanto, Jeremias é mais do que um simples correio. Está pessoalmente implicado na diligência que faz junto de Iavé em nome do povo. Mais ainda, ele está qualificado para influenciar a decisão de Iavé, levando-o, concretamente, a dar as orientações que Judá lhe pede por seu intermédio^5 .

b. Jeremias e Baruc à mercê dos chefes do povo.

Em JrLXX 50,6-7/JrTM 43,6-7, o narrador pinta uma imagem de Jeremias diferente da que dá no resto do relato da fuga p a r a o Egipto. Esses versículos contam que o profeta Jeremias faz parte do povo que Joanan e os demais chefes militares levam para o Egipto. Na lógica do relato, Jeremias só pode ir para o Egipto contra a sua vontade. A ida para o Egipto é, precisamente, o fruto da desobe- diência dos chefes a uma ordem que Iavé lhes comunicara por meio do próprio Jeremias. Embora seja à força, Jeremias vai assim para o lugar do extermínio do povo. O Jeremias de JrLXX 50,6-7/JrTM 43,6-7 não tem qualquer iniciativa, estando inteiramente à mercê dos chefes, que são movidos pelo medo dos Babilónios. Sob esse ponto de vista, o destino de Jeremias não é diferente do dos vários sectores da população mencionados pelo texto. O que torna trágica esta figura é o contraste que existe entre ela e a outra figura de Jere- mias, profeta e poderoso intercessor, também presente no relato.

B. Imagens esboçadas pelos chefes: Jeremias um impostor manipulado por Baruc (JrLXX 50,1-3/JrTM 43,1-3)

«Quando Jeremias acabou de dizer a todo o povo todas as pala- vras de Iavé, seu Deus - todas essas palavras que Iavé, seu Deus, lhes enviou - , Azarias filho de Osaías, Joanan filho de Caré e todos os homens insolentes^5 2 disseram a Jeremias: "E mentira o que dizes! Iavé, nosso Deus, não te enviou a dizer-nos: 'Não entreis no Egipto para habitardes lá.' Mas é Baruc filho de Nérias que te

(^51) JrTM 27,18 deíine o profeta pela intercessão. (^52) O qualificativo «insolentes/arrogantes» ( zéydím ) é próprio ao TM, não tendo correspondência na LXX.

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chefes. Existem várias diferenças entre JrLXX 50,1-7 e JrTM 43,1-7. De um modo geral o segundo é mais longo do que o primeiro^5 . A diferença mais significativa, para o nosso propósito, consiste no adjectivo «insolentes/arrogantes» ( zéydim ) que qualifica homens no v. 2 do TM. Esse qualificativo não tem correspondente na LXX. Não se vislumbra qualquer razão para a sua supressão pelo tradutor grego. E mais provável que tenha sido acrescentado no TM. Qualifi- cando os homens de insolentes/arrogantes, o autor do acrescento revela a fonte e a razão da mentira. Esta é a expressão da arro- gância, uma maldade radical que caracteriza os detractores de Jeremias e de Baruc 56. Os chefes declaram que Baruc manipula Jeremias e o põe ao serviço de um plano de liquidação do povo. E óbvio que, aos olhos do narrador, o que os chefes dizem nem é sequer uma caricatura de Baruc, pois é o invés da realidade, em toda a linha. A ordem que Jeremias comunica não vem de Baruc, mas de Iavé. O seu objectivo é a prosperidade, não a ruína do povo. Jeremias não está de modo algum ao serviço de Baruc. Pelo contrário, é Baruc que está ao serviço de Jeremias. Melhor dito: Baruc está ao serviço da palavra que Iavé comunica ao povo por meio de Jeremias. JrLXX 50,6/JrTM 43,6 é porventura o texto onde o n a r r a d o r pinta a imagem mais apagada de Baruc, simples companheiro de Jeremias que não esboça um gesto. Como Jeremias, Baruc está à mercê dos chefes, que o levam para o Egipto.

4. Baruc salvo para preservar o livro de Jeremias (JrLXX 51,31-35/JrTM 45,1-5)

«Palavra que Jeremias, o profeta, disse a Baruc filho de Nérias, quando escreveu estas palavras num livro, sob o ditado de Jeremias, no quarto ano do reinado de Joaquim filho de Josias, rei de Judá:

(^51) Johann COOK, «The Difference in the order of the Books of the Hebrew and Greek versions of Jeremiah - Jeremiah 43 (50): a case study», Old Testament Essays 7 (1994) 175-192. (^56) Ao escrever que «o narrador não confirma nem infirma» as acusações dos chefes contra Baruc, Elena di Pede não tem em conta que, no TM - o único que ela estuda - ele os desqualifica de antemão; «Jérusalem, 'Ebed-Melek et Baruch. Enquête narrative sur le déplacement chronologique de Jr 45», Revue Biblique 111 (2004) 74 (61-77). A exegeta reconhece o facto noutro artigo, Elena DI PEDE, «Le refus de l'espoir: L'intrigue de Jr 32-45», Ephemerides Theologicae Lovanienses 80 (2004) 389 (373-401).

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Assim diz Iavé, Deus de Israel^5 7 , a teu respeito, Baruc: "Tu exclamas: Ai de mim! Pois Iavé acrescenta aflição à minha dor. Estou cansado de gemer e não encontro descanso!' Assim lhe dirás: Assim diz Iavé: O que Eu tinha construído, Eu o destruo e o que tinha plantado, Eu o arranco; e isto em toda a t e r r a 5 8. E tu, pedes para ti grandes coisas! Não as peças, porque eis que vou fazer vir a desgraça sobre toda a carne - oráculo de Iavé. Mas dar-te-ei a vida, como despojo, em todos os lugares para onde fores'"». O trecho tem a forma de uma lamentação. Começa com a introdução, continua com a lamentação, posta na boca de Baruc, e termina com a resposta de Iavé. O narrador informa, primeiro, que Iavé se dirigiu a Baruc quando ele escreveu num livro «estas pala- vras», sob o ditado de Jeremias. Depois data esses acontecimentos do quarto ano de Joaquim. Segundo JrLXX 43,1-4/JrTM 36,1-4, foi, de facto, nesse ano que Baruc escreveu, sob o ditado de Jeremias, as palavras de Iavé num livro^5 9. Muitos exegetas pensam que a refe- rência à escrita do livro e a data não se liam no texto original de JrLXX 51,31/JrTM 45,1, o qual não suporia qualquer relação entre o oráculo de Baruc e a escrita do primeiro rolo. A menção da escrita e a data teriam sido acrescentadas por um editor que se propunha associar o oráculo de Baruc com a escrita do rolo, situando o pri- meiro no contexto da segunda^6 0. Quer sejam originais ou acres- centos ulteriores, essas informações determinam a compreensão do trecho que introduzem. Na forma presente, o oráculo de Baruc não pode deixar de ser lido à luz dos rolos e das peripécias que, segundo JrLXX 43,1-4/JrTM 36,1-4, rodearam a sua escrita.

O episódio da escrita dos rolos não é, no entanto, a única chave de leitura do oráculo de Baruc. JrLXX 51,31/JrTM 45,1 supõe um lapso longo entre o momento em que Iavé se dirigiu a Baruc e o momento em que o narrador informou o leitor sobre isso. Entre os dois momentos, a situação de Judá mudou por completo. O reino foi conquistado e Jerusalém destruída pelos Babilónios. Segundo a versão dada pelo livro de Jeremias, uma parte dos habitantes foi

(^57) Sem equivalente em JrLXX 51,32. (^58) «e isto em toda a terra», sem correspondência em JrLXX 5 1 , 3 4. Veja-se W. M C K A N E , A Critical and Exegetical Commentary on Jeremiah (n. 2 5 ) , pp. 1 0 9 6 - 1 0 9 7 e 1106. (^59) O quarto ano de Joaquim é uma data importante no livro de Jeremias. Lê-se também em Jr 25,1 e JrLXX 26,2/JrTM 46,2. (^60) Veja-se a discussão de W. M C K A N E , A Critical and Exegetical Commentary on Jeremiah (n. 25), pp. 1099-1106.