









Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
Este documento analisa a hipótese de que a textualização sincroniza os conflitos culturais na síria-palestina do período persa aquemênida em relação ao século 9º a.e.c., contextualizando a cultura de sociedade baseada em linhagem de parentesco e problematizando as interações e as trocas materiais transformadoras do meio ambiente. O estudo é baseado em inscrições cuneiformes decifradas do primeiro milênio a.e.c., no documento hebraico como registro tradicional inibidor da monolatria e das religiões populares praticadas no antigo yiśrā’ēl, e em evidências do século 5º a.e.c. De culto icônico no templo judaico de elefantina no egito.
O que você vai aprender
Tipologia: Esquemas
1 / 17
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
131
DOI: http//dx.doi.org/10.15448/2178-3748.2017. 2. 23675 João Batista Ribeiro Santos Doutorando em Ciências da Religião (Universidade Metodista de São Paulo) Docente da Universidade Metodista de São Paulo joao.ribeiro@metodista.br RESUMO: Esta pesquisa tem por objetivo abordar o documento textual hebraico, presente entre os anais da Bíblia hebraica, no qual um profeta lidera um etnocídio no reino norte de Yiśrā’ēl. A nossa hipótese é que a textualização sincroniza os conflitos culturais na Síria-Palestina do período Persa Aquemênida em relação ao século 9º A.E.C.; por isso, a análise transdisciplinar contextualiza a cultura de sociedade baseada em linhagem de parentesco, problematizando as interações e as trocas materiais transformadoras do meio ambiente. O etnocídio contra as religiosidades canaanitas resultantes das interações culturais recebe o plano de fundo dos símbolos e divindades locais, a fim de sacralizar o acontecimento de política estatal. PALAVRAS-CHAVE: Etnocídio. Profetismo. Antigo Oriente-Próximo. ABSTRACT: This research aims to address the textual document Hebrew, present among the annals of the Hebrew Bible, in which a prophet leads an ethnocide in the Kingdom North of Yiśrā’ēl. Our hypothesis is that the textualization synchronizes cultural conflicts in Syria-Palestine in the Achaemenid Persian period 9th century A.E.C.; so the transdisciplinary analysis puts the culture of society based on kinship line, questioning the interactions and exchanges processing materials on the environment. The ethnocide against the Canaanites religiosities resulting from cultural interactions receives the background of local deities and symbols, in order of sanctifying the event of State policy. KEYWORDS: Ethnocide. Prophetism. Ancient Near East. Introdução “A comunicação e a expressão significativa são mantidas por meio do uso de elementos simbólicos – palavras, imagens, gestos – ou de sequências destes” (WAGNER, 2014, p. 110). Desta maneira, compreende-se que as realizações cúlticas têm em seu santuário invenções corpóreas para a divindade evocada. Evita-se com isso os movimentos arbitrários e sons
132 desconexos ao associar a divindade às experiências cotidianas da cultura. Por esses postulados, nesta pesquisa evitaremos enunciar uma estrutura social – indicada como plano de fundo imagético na epigrafia da Bíblia hebraica a ser analisada – na qual se projete divindades fundadoras. Introdutoriamente, é razoável significar o contexto não como o local geográfico mas como o lugar de vivências no qual a religião é praticada. O meio ambiente impõe por si mesmo fronteiras distintivas; no interior, os ícones e demais elementos simbólicos se relacionam com a gente (pessoa) na invenção de culturas; no entanto, o contexto não impõe uma geografia restritiva. Roy Wagner (2014, p. 112) afirma que “não há limites perceptíveis para a quantidade e a extensão dos contextos que podem existir em uma dada cultura”, pois pode variar de uma grandeza socioétnica para outra na medida em que as expressões lhe são compreensíveis, além da possibilidade de inclusões, que perfazem inter-relações em ambientes antes de algum modo imutáveis e permanentes, produzindo a própria vida cotidiana. Assim, como diferenciador conceitual, “o comportamento humano torna-se agência social ao se fundar menos em regulações instintivas selecionadas pela evolução que em regras de origem extrassomática historicamente sedimentadas” (VIVEIROS DE CASTRO, 2013a, p. 297); ainda que existam regras, elas adequam-se aos princípios organizacionais da sociedade, cuja distintividade cultural é construída por sujeitos. Segundo Eduardo Viveiros de Castro (2013a, p. 298), há grandeza em que se pode definir o quadro sociopolítico institucional – morfologia, normas, características sociais – , o quadro da univocidade populacional e o quadro cultural. São nesses quadros definíveis que as sociedades constituídas por linhagem de parentesco da Síria-Palestina se destacam, pois visam os conteúdos afetivos e cognitivos de vivências comunitárias por meio de representações. Nelas, seus discursos e interpretações. Epigrafia e materialidade Memórias documentárias e monumentais dos domínios de acontecimentos históricos e dos valores imateriais do antigo Oriente-Próximo que foram preservadas têm sido objeto de deciframento epigráfico – a epigrafia como estudo dos tabletes, “inscrição”, cujos artesãos são chamados de escribas;^1 mas também estes, assim como os decifradores, são chamados de “epigrafistas”. Uma narrativa epigráfica é uma inscrição decifrada, ou a ser decifrada ou (^1) Para especialização nos domínios da História, podem ser classificados como histor , martus , autoptes , superstes (quem sobreviveu a uma tragédia e pode referi-la a outros), scriptor , compilator , testis (testemunha que intervém), autor (indica a testemunha enquanto a sua palavra deve ser convalidada).
134 primeiro milênio A.E.C., num longo processo de constituição, cristalizaram-se na linhagem de parentesco identificada como Yiśrā’ēl. Não devemos negar às pessoas da periferia sua criatividade, vendo-as meramente como receptores passivos de uma tradição formada em outros lugares e muito complicada para eles dominarem plenamente. Em vez de ver a literatura babilônica como local para aquela região, devemos considerá-la um exemplo de literatura mundial – o primeiro exemplo dessa literatura, de fato. A literatura mundial pode derivar das literaturas “nacionais”, através de um processo de seleção de obras que podem ganhar significado na tradução. Tal literatura convida uma leitura que vai além do lugar e do tempo. Ele perde seu caráter “nacional” e se torna parte de uma comunidade mais ampla que interage ativamente com o material.^3 Fica de certa forma claro, nas inscrições hebraicas, que os escribas israelitas tinham conhecimento de produções literárias regionais – sem olvidar que o desenvolvimento da escrituração israelita deu-se efetivamente em Bāb-ilī no século 6º A.E.C. – , mas também capacidade intelectual para decifrar inscrições semitas e pictografias ao afixar suas percepções, ainda que essas sejam reconhecidas atualmente como retroprojeções – a nosso ver, novas realidades num quadro legitimador, no qual situamos o documento deuteronomista de 1Reis 18.19-40. 1Reis 18.19- 40 v.19 (^) E, agora, envia, junta a mim a todo o Yiśrā’ēl para a montanha do Karĕmel ; e os profetas do Ba‘al , quatrocentos e cinquenta, e os profetas da ’Ăšērāh quatrocentos os que comem da mesa de ’Îzābel. v.20 (^) E enviou ’Aḥ’āb a todos os filhos de Yiśrā’ēl ; e juntou os profetas para a montanha do Karĕmel. v.21 (^) Então se achegou ’Ēliyyāhû a todo o povo, e disse: “Até quando vós trotareis [ pōsĕḥîm ] sobre duas muletas [ hassĕ‘ippîm ]? Se Yhwh [é] o ’Ĕlōhîm , ide atrás dele, e se [é] Ba‘al , ide atrás dele”. Mas não responderam o povo a ele palavra [ wĕlō’-‘ānû hā‘ām ’ōtô dābār ]. (^3) “We should not deny the people of the periphery their creativity, seeing them merely as passive recipients of a tradition formed elsewhere and too complicated for them to master in full. Rather than viewing Babylonian literature as local to that region, we should consider it an example of world literature – the earliest example of such literature, in fact. World literature can derive from ‘national’ literatures, through a process of selecting works that can gain meaning in translation. Such literature invites a reading that reaches beyond place and time. It loses its ‘national’ character and becomes part of a wider community that actively interacts with the material.”
135 v.22 (^) E disse ’Ēliyyāhû ao povo: “Eu restei profeta [ nābî’ ] para Yhwh somente eu, e os profetas do Ba‘al [ ûnābî’ê haBa‘al ] quatrocentos e cinquenta homens”. v.23 (^) E deem para nós dois novilhos, e escolham para eles o novilho, o um [ happār hā’eḥād ], e que o despedacem [ wiynattĕḥuhû ], e que ponham sobre as madeiras, e fogo não ponham; e eu prepararei o novilho, o outro [ ’et-happār hā’eḥād ], e instalarei sobre as madeiras, e fogo não porei. v.24 (^) E gritareis [ Ûqĕrā’tem ] em nome de vosso ’Ĕlōhîm , e eu gritarei [ ’eqĕrā’ ] em nome de Yhwh , e será o ’Ĕlōhîm que responder no fogo [ bā’ēš ] ele [será] o ’Ĕlōhîm. E respondeu todo o povo, e disseram [ wayya‘an kāl-hā‘ām wayyō’mĕrû ]: “Boa a palavra”. v.25 (^) E disse ’Ēliyyāhû aos profetas do Ba‘al : “Escolhei para vós o novilho, o um [ happār hā’eḥād ], e preparai primeiro, porque vós [sois] os numerosos [ hārabbîm ]; e gritai em nome de vosso ’Ĕlōhîm , e fogo não poreis”. v.26 (^) E pegaram o novilho que deu para eles, e prepararam, e gritara em nome do Ba‘al , desde a manhã e até o meio dia, exclamando [ lē’mōr ]: “Ó Ba‘al , responde-nos! [ haBa‘al ‘ănēnnû ]”. E não houve voz e inexistiu quem respondesse; e trotavam diante do altar que fez [ ‘āśāh ]. v.27 (^) E aconteceu, ao meio dia, e ironizou deles ’Ēliyyāhû , e dizia: “Gritai em grande voz [ qirĕ’û bĕqōl-gādôl ], porque ’Ĕlōhîm ele, porque preocupação [ kî śîaḥ ], e porque ausência para ele, e porque caminho para ele [ wĕkî-śîg lō wĕkî-derek lō ]; talvez adormecido ele e despertará”. v.28 (^) E gritaram em voz grande, e retalharam-se conforme o costume deles [ wayyitĕgōdĕdû kĕmišĕpāṭṭām ], com os punhais e com as lanças [ baḥārābôt ûbārĕmāḥîm ], até despejarem sangue sobre eles. v.29 (^) E aconteceu, com passar o meio dia, e anunciavam [ wayyitĕnabbĕ’û ], até para elevarem o dom [ ‘ad la‘ălôt hamminĕḥāh ]; mas inexistiu voz, e inexistiu quem respondesse, e inexistiu atenção [ wĕ’ên qāšev ]. v.30 (^) E disse ’Ēliyyāhû para todo o povo: “Acercai-vos a mim”. E acercaram-se todo o povo a ele; e restaurou o altar de Yhwh , o que [estava] destruído. v.31 (^) E pegou ’Ēliyyāhû doze pedras, conforme o número das tribos dos filhos Ya‘ăqōb que aconteceu; que aconteceu palavra de Yhwh [ hāyāh dĕbar-Yhwh ] a ele, dizendo: “ Yiśrā’ēl será teu nome”.
137 Embora muitas narrações do ciclo de ’Ēliyyāhû não contenham descrições históricas, podem ter sido originadas em tradição oral antiga preservada por pastoralistas em rota de peregrinação e trânsito comercial norte-sul – por exemplo, Š ō mĕrôn - Kuntillet ‘Ajrud – , desde a costa fenícia do Mediterrâneo. Na travessia leste-oeste do vale do Jordão, os acontecimentos envolvendo o profeta estão ligados a Š ō mĕrôn , ao vale de Yizre‘e’l e ao território de Gil‘ād. As evidências históricas são fornecidas pelos relatórios de pesquisa arqueológica. Israel Finkelstein (2015, p. 132) afirma que “o ciclo de Elias-Eliseu [ ’Ēliyyāhû - ’Ĕlîšā‘ ] no livro dos Reis [Bíblia hebraica] contém material genuíno sobre o Reino do Norte no tempo da dinastia omrida, por exemplo, em relação a Jezrael [ Yizre‘e’l ], o fim da dinastia e o ataque de Hazael [ Haza’el , c. 842 - 800 A.E.C.], rei de Aram Damasco [ ’Ărām-Dammeśeq ] contra Israel [ Yiśrā’ēl ]”. Há evidências do século 5º A.E.C. de culto icônico no templo judaico de Elefantina no Egito; consta daquele templo uma lista de oferendas dedicadas a Yhwh , em inscrições Yhw / Yhh , juntamente com a deusa ‘Anat-Yahu , “consorte” de Yhwh , e ‘Anat-Betel. Essas trocas materiais na cultura religiosa estão documentadas, segundo S. David Sperling (2007, p. 431), por meio da figura de ’Ēl , o maioral do panteão do norte da Sūriyā. A emergência da ideologia política como plano de fundo do monoteísmo objetivamente restritivo, presente nos livros da Bíblia hebraica dos períodos exílico (século 6º A.E.C.) e pós- exílico, não chegou a dizimar as culturas de mobilidade. A construção teológica da aliança com Yahweh refletia o fato mundano da união política. Yahweh tornou-se, em essência, “a bandeira” que todo israelita saudou. Como o próprio Yahweh não tinha conexões prévias conhecidas com o culto e o mito cananeus, a lealdade exclusiva a ele serviu para fortalecer a solidariedade do grupo recém-formado. Inicialmente uma vantagem, a ausência de Yahweh das tradições míticas locais significava que as necessidades religiosas servidas por deuses do tempo, da agricultura, da fertilidade e dos corpos celestes não seriam cumpridas. Em um ambiente monoteísta, a monolatria é perfeitamente sensata; você adora um deus porque é o único. Em contraste, restringir o culto a um deus quando outros são reconhecidos por existir é difícil de defender. Na verdade, ignorando poderes que se sabia serem potentes poderia ser perigoso, e relativamente poucos israelitas no início do primeiro milênio A.E.C. assumiram o risco.^5 (^5) “The theological construct of covenant with Yahweh mirrored the mundane fact of political union. Yahweh became, in essence, ‘the flag’ that every Israelite saluted. Because Yahweh himself had no known prior connections to Canaanite cult and myth, exclusive loyalty to him served to strengthen the solidarity of the newly formed group. Initially an advantage, the absence of Yahweh from the local mythic traditions meant that the religious necessities served by gods of weather, agriculture, fertility, and the heavenly bodies would be unmet. In a monotheistic environment, monolatry is perfectly sensible; you worship one god because it is the only one. In contrast, restricting worship to one god when others are acknowledged to exist is difficult to uphold. In fact, ignoring powers that one knew to be potent could be dangerous, and relatively few Israelites in the early first millennium BCE took the risk.”
138 A consciência do perigo do abandono a uma determinada divindade pode ser uma chave de compreensão para a grande diversidade da prática cúltica,^6 posto que a autoctonia no Levante não garantia o isolamento naquela região de intenso trânsito migratório. No documento que traduzimos é possível notar o encadeamento discursivo e a evocação simbólica para a ideologia do leitor,^7 construindo o processo enunciativo da recepção cultural; este obedece a um princípio de pertinência previamente dado pela existência da razão política do acontecimento. A alusão às práticas de cultos sacrificais não constitui uma interpretação, daí não haver incoerência na razão enunciada. A evocação textual compósita recebe moldura retroprojetada para o século 9º A.E.C., em busca de autoridade ancestral para o monoteísmo emergente, e revela a intransigência religiosa do sacerdotado do Segundo Templo do período Persa Aquemênida. A intransigência alcançou a violência; abstraído, isso tem fornecido subsídio inclusive acadêmico para paráfrases bíblicas, principalmente porque ainda não se estabeleceu uma significância ou um conceito de “violência” com validade metodológica (CARDOSO, 2009; BAUMANN, 2011). Há a “violência estrutural” (indireta) e a “violência individual” (direta); pode-se apresentar ainda os sentidos. No entanto, “falar da ‘violência’ de Deus e designar ações violentas concretas torna-se problemático, pois a ‘violência’ de Deus é geralmente compreendida apenas como poder e, portanto, de modo neutro e positivo” (BAUMANN, 2011, p. 33). Gerlinde Baumann tem a intenção de encontrar o cogito inicial em procedimentos sob a perspectiva da ética, tentativa que Ciro Flamarion Cardoso (2009) não postula. Com relação à periodização arqueológica na qual situamos o acontecimento, século 9º A.E.C., Cardoso (2009, p. 12-13), após mencionar o contraste quanto ao acesso a documentação textual sobre sociedades mais antigas (Egito faraônico) e sociedades mais recentes (Roma republicana), cita um caso de violência estatal no qual quem preside a execução de dois policiais núbios é um sumo sacerdote (Piankhi), na presença de um escriba; também a “lesa-majestade”, nessa época, conta-se como crime religioso. De certa forma, o que fora mencionado apenas se aproxima da nossa perspectiva, do horizonte argumentativo, mas serve à informação pela temporalidade da violência na história do político e na religião. Em adição, a textualização do etnocídio do profeta ’Ēliyyāhû aduz a conflitos de poder regional, onde a coerção – por parte (^6) Recentemente publicamos uma pesquisa com abundância de fontes arqueológicas e documentos literários na qual apresentamos evidências das trocas materiais e interações culturais, principalmente no campo religioso, em Yiśrā’ēl no período monárquico (SANTOS, 2016). (^7) A base para a nossa apreensão linguística do documento está em importante estudo de Tzvetan Todorov (2014; cf. particularmente p. 33 e 93-95), sobre o qual ainda citaremos.
140 O resultado é uma espécie de síntese vivencial: entende-se que terra sagrada é terra produtiva, fertilizada por quem fez e por quem faz parte do solo e se alimenta dele, diferente de terra para exploração mercantil (compra, empréstimo, venda, manipulação) que impede grandezas socioétnicas de serem multiculturais e plurirreligiosas, principalmente aquelas fundadas na mobilidade. A religião tende a diminuir o estado de tensão das populações móveis, ou circunstancialmente móveis, distintivamente entre as populações lineares e as grandezas sedentárias baseadas na hierarquia. É possível apreende-rmos, portanto, os indícios de uma divergência entre a religião do Ba‘al e a religião de Yhwh. Para Reinhard Bernbeck (2008, p. 48), o meio ambiente agrário, com suas culturas de mobilidade, está contraposto, em suas distinções culturais, nas fontes escritas pelos sedentários, invariavelmente urbanos. Eis uma chave para compreender as diferenças e os conflitos. A disputa do lugar sagrado (a montanha ), pois a mobilidade de longo termo é sazonal, pode conectar mais de um local nas trocas materiais, dependendo do acesso à fauna e às terras agricultáveis; mas isso não depende necessariamente do sistema agrícola (BERNBECK, 2008, p. 50). A nosso ver, mesmo o lugar de vivências sendo de interações através de encontros sociais e a mobilidade, um jogo de trocas culturais de aproximação e distanciamento, a sacralidade não é redutora nem inibe a posse. Neste caso, a religião de Yhwh ao querer impor- se, por meio do profeta ’Ēliyyāhû (século 9º A.E.C.), torna-se um poder invasor na montanha Figura 2 : Objeto em cerâmica encontrado na base comercial de Kuntillet ‘Ajrud ; na inscrição lê-se “ Yhwh e sua ’Ăšērāh ”. (Fonte: The Israel Museum, Jerusalem/Israel Antiquities Authority)
141 do Karĕmel. Assim, o adorador de Yhwh caracteriza-se como um Outro inimigo, impedindo qualquer vínculo social no quadro da religião,^9 afecção necessária para a crença. Restam ainda os mecanismos dos artefatos e da violência. A pesquisa do etnocídio, este colocado numa moldura religiosa, deve vinculá-lo ao político, à destruição da cultura, dos modos de vida, como abordado por Pierre Clastres (2014a). Clastres (2014a, p. 79) enfatiza que “a negação etnocida do Outro conduz a uma identificação a si”; evidentemente, esse etnólogo jamais se deteve nas inscrições semitas antigas, no entanto a sua brilhante pesquisa sobre a violência é-nos imprescindível. Ao se considerar o herdeiro do javismo e a religião de Yhwh a única expressão válida, o profeta ’Ēliyyāhû violenta a alteridade cultural, a inferioriza em relação ao seu projeto de Estado – que enfim será estabelecido por meio do golpe de Estado perpetrado pelo militar Yēhû’ (8 41 - 814 A.E.C.), por volta do ano 841. Sabemos que “as imagens ‘contêm’ os eventos” (STRATHERN, 2014a, p. 211), e as imagens são visualizadas por meio dos ícones. No caso do Levante, percebe-se a extrema personalização por performances e corpos que assumem formas específicas, refletindo o autoconhecimento das pessoas. No plano de fundo do contexto por nós abordado, talvez os ícones – animais e grãos, lenha, pedras, figuras topográficas, água, teatralidade – sejam mesmo, como alude Marilyn Strathern (2014a, p. 228) a propósito do conceito de artefato, “encenação de eventos, como memoriais e celebrações de contribuições passadas e futuras”. Potencialmente, “os eventos podem ser entendidos como resultados inevitáveis – e, (^9) Eduardo Viveiros de Castro (2015, p. 226) propõe que “o vínculo social pressupõe a autorrelação como origem e modelo”. Figura 3 : Ba‘al de Ugarit, c. século 13º A.E.C. Fonte: Musée du Louvre.
143 Em seus correlatos objetivos, “objetificada” por meio de seus símbolos, a religião representa a gente que dela expressa parte de suas experiências. E não só isso, os contextos de cultura não assimilam a força de tradição nas mutações religiosas; com efeito, nas culturas de mobilidade as tradições são continuamente reinventadas (WAGNER, 2014, p. 138; BASTIDE, 2006, p. 124-125; cf. as figuras 1-4 na perspectiva das mutações e hibridizações religiosas), o que faz com que a religião ritual de Yhwh , neste caso o conflito desafiante no lugar sagrado do Ba‘al , seja necessariamente estranha, pois a interdependência é construída por meio das interações culturais – da mutualidade das convenções – para o caso de plurirreligiosidade regional. Em sociedades tribais e outras, que enfatizam a articulação deliberada de contextos não convencionalizados, os controles diferenciantes são recriados por atos de coletivização , por convencionalização deliberada. Neste último caso, a necessidade de novidade é suprida de tempos em tempos pela reformulação dos contextos convencionais por parte de profetas, líderes de cultos ou “fazedores de leis”, ou pela importação de cultos exóticos, que desempenha um papel tão evidente na vida dos povos tribais (WAGNER, 2014, p. 154-155). De fato, não havendo interação, e sim invasão do sagrado por representante humano de outra divindade, inexiste espaçotemporalidade de experiência objetiva e realidade vivida – afecção – para a necessária estrutura materializante, distinção apriorística para grandezas socioétnicas baseadas em parentesco, nas quais a atividade religiosa é atividade produtiva, nunca meramente ritualística. Por outros termos, para uma religião icônica – não apenas para o xamanismo – “os sujeitos, tanto quanto os objetos, são vistos como resultantes de processos de objetivação: o sujeito se constitui ou reconhece a si mesmo nos objetos que produz, e se conhece objetivamente quando consegue se ver ‘de fora’, como um ‘isso’”, assim “a forma do Outro é a pessoa” (VIVEIROS DE CASTRO, 2013b, p. 358). Nesse sentido, os ícones mantêm a intencionalidade primeva da divindade, igualmente como Sujeito e cultura, ou seja, uma intencionalidade não meramente material, conquanto nem o corpo é “uma substância material mas afecção ativa” (VIVEIROS DE CASTRO, 2013b, p. 382). Esta é uma característica relacional, afinal “a cultura reside na repetição ou na replicação de ideias, e o que faz com que uma cultura seja intrinsecamente rica são as diferentes conjunturas em que valores específicos são repetidos e, portanto, reconhecidos ou encontrados a toda hora” (STRATHERN, 2014b, p. 447), tornando-se memórias, antes, por vezes, sistemas autorreferenciais. Mas há a questão antropológica da visão local: muda o mundo visto, ainda que a cultura material seja assemelhada com a de outrem; ainda que a divindade seja comum,
144 são outros os objetos para a expressão de espiritualidade, geradora da redefinição das afetividades em novas formas de corporeidades. Embora na cultura inventada nos lugares de cerimônia cúltica a iconicidade da linguagem possa ser transmitida por audições, estes estímulos não sobrepõem aos visuais na paisagem sagrada. Consideremos a questão da guerra no lugar sagrado do Karĕmel , onde o fator econômico não constitui claramente a infraestrutura, apesar de possivelmente estar imbricado na tentativa de apropriação regional por parte de um grupo representado pelo profeta ’Ēliyyāhû. Tal atividade guerreira demonstra que a economia das grandezas não totalmente urbanizadas é uma economia da abundância e não da escassez (CLASTRES, 2014b, p. 229); além disso, possibilita reconstruir a religião como núcleo estrutural da sociedade no contexto das trocas materiais e das interações culturais do Levante. Por significância conceptual da aporia enunciada, ao acontecimento falta a semiofagia guerreira na montanha. Inexiste sequer acento do que Eduardo Viveiros de Castro (2015, p. 161) denomina de “economia da alteridade predatória”, apesar da presença nomeada de recursos simbólicos. A sociabilidade da religião do Ba‘al demonstra prescindir de algum ciclo no qual o humano é oferecido em holocausto. A plurirreligiosidade descrita – profetas do Ba‘al e profetas da ’Ăšērāh – evidencia a independência política local, não obstante a narrativa historiográfica ter a intenção de fazê-la oficial quando menciona o rei ’Aḥ’āb (874-853 A.E.C.) como um adorador do Ba‘al. Como parte da resistência cultural popular consta a incorporação da divindade ’Ăšērāh , atestada em objetos reais acadianos desde o século 15º A.E.C., como consorte de Yhwh , outra divindade semita, enfim adotada pela aristocracia templar do antigo Yiśrā’ēl , num panteão onde já Figura 4 : ’Ēl , deus criador de Kěna‘an (bab.: Kinaḫnu ), c. 1400- 1200 a.C. (bronze com ouro) (The Oriental Institute Museum- University of Chicago - Reg. DSC07734)
146 Tradução de Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2011. BERNBECK, Reinhard. An Archaeology of Multisited Communities. In: BARNARD, Hans; WENDRICH, Willeke Z. (Ed.). The Archaeology of Mobility: Old World and New World Nomadism. Cotsen Advanced Seminars 4. Los Angeles: Cotsen Institute of Archaeology Press at University of California, 2008, p. 43-77. BRIQUEL-CHATONNET, Françoise; LION, Brigitte. La littérature narrative. In: BORDREUIL, Pierre; BRIQUEL-CHATONNET, Françoise; MICHEL, Cécile (Dir.). Les débuts de l’Histoire: civilisations et cultures du Proche-Orient ancien. Nouvelle édition revue et augmentée. Paris: Éditions Khéops, 2014, p. 366-372. CARDOSO, Ciro Flamarion. Violência e política no Egito antigo. In: BUSTAMANTE, Regina Maria da Cunha; MOURA, José Francisco de (Org.). Violência na história. Rio de Janeiro: Mauad X; FAPERJ, 2009, p. 9-20. CLASTRES, Pierre. Do etnocídio. In: Arqueologia da violência: pesquisas de antropologia política. 3. ed. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2014a, p. 77-87. CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência: a guerra nas sociedades primitivas. In: Arqueologia da violência: pesquisas de antropologia política. 3. ed. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2014b, p. 215-253. ELLIGER, K.; RUDOLPH, W. (Hrsg.). Biblia Hebraica Stuttgartensia. 5. aufl. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1997. FINKELSTEIN, Israel. O reino esquecido: arqueologia e história de Israel Norte. Tradução de Silas Klein Cardoso e Élcio Valmiro Sales de Mendonça. São Paulo: Paulus, 2015. GERSTENBERGER, Erhard S. Israel no tempo dos persas: séculos V e IV antes de Cristo. Tradução de Cesar Ribas Cezar. São Paulo: Loyola, 2014. KUHRT, Amélie. El Oriente Próximo en la Antigüedad: c. 3000-330 a.C. Vol. 2: La transformación política y los grandes imperios (c. 1200-330). Traducción de Teófilo de Lozoya. Barcelona: Editorial Crítica, 2014. LION, Brigitte; MICHEL, Cécile (Org.). Escritas cuneiformes: história, usos e deciframento. Tradução de Marcelo Rede. São Paulo: Targumim, 2011. MIEROOP, Marc van de. Beyond babylonian literature. In: ARUZ, Joan; GRAFF, Sarah B.; RAKIC, Yelena (Ed.). Cultures in contact: from Mesopotamia to the Mediterranean in the second millennium B.C. New York; New Haven: The Metropolitan Museum of Art; Yale University Press, 2013, p. 276-283. SANTOS, João Batista Ribeiro. As fontes epigráficas e as antigas narrações judaicas da origem mediterrânea do antigo Israel. NEARCO – Revista Eletrônica de Antiguidade, Rio de Janeiro, n. II, Ano V, p. 64-71, 2012. SANTOS, João Batista Ribeiro. Pertinências entre os anais egípcios e a biografia antiga: ensaio
147 historiográfico sobre escrita e ideologia nas inscrições cuneiformes e hieroglíficas de eventos oficiais e memoriais do Egito antigo. Em Tempo de Histórias, Brasília, v. 23, p. 7-21, ago.-dez.,
SANTOS, João Batista Ribeiro. Interações no campo religioso no reino norte de Yiśrā’ēl no século IXº a.C.: a cultura como problema político na Bíblia hebraica (2Reis 9–10). Revista de Estudos da Religião, São Paulo, vol. 16, n. 3, p. 197-219, sep.-dez., 2016. SETERS, John van. Em busca da história: historiografia no mundo antigo e as origens da história bíblica. Tradução de Simone Maria de Lopes Mello. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. SPERLING, S. David. Monotheism and ancient israelite religion. In: SNELL, Daniel C. (Ed.). A companion to the ancient Near East. Malden, MA: Blackwell Publishing, 2007, p. 430-442. STRATHERN, Marilyn. Artefatos da história: os eventos e a interpretação das imagens. In: O efeito etnográfico. Tradução de Iracema Dulley, Jamille Pinheiro e Luísa Valentini. São Paulo: Cosac Naify, 2015a, p. 211-229. STRATHERN, Marilyn. Ambientes internos: um comentário etnográfico sobre a questão da escala. In: O efeito etnográfico. Tradução de Iracema Dulley, Jamille Pinheiro e Luísa Valentini. São Paulo: Cosac Naify, 2015b, p. 439-466. TODOROV, Tzvetan. Simbolismo e interpretação. Tradução de Nícia Adan Bonatti. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 2014. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O conceito de sociedade em antropologia. In: A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. 5. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2013a, p. 295- 31 6. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In: A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. 5. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2013b, p. 345-399. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify; N-1 Edições, 2015. WAGNER, Roy. A invenção da cultura. Tradução de Marcela Coelho de Souza e Alexandre Morales. São Paulo: Cosac Naify, 2014. ARTIGO ENVIADO EM: 14 / 04 / 2016 ARTIGO ACEITO PARA PUBLICAÇÃO EM: 12 / 02 / 2017