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Terras do sem fim, publicado em 1943, é um romance distinto na carreira de jorge amado. O documento analisa como o romance é um produto de um momento equilibrado do autor, com menos questões políticas e uma temática mais centrada na liberdade. O texto também discute a importância de compreender o contexto histórico em que o romance está inserido.
Tipologia: Esquemas
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Gabriela Mattos Cardoso Mestranda em Literatura Brasileira – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Resumo: Terras do sem fim (1943) marca uma circunstância distinta na obra de Jorge Amado, já que aparece como produto do momento mais equilibrado do autor. As personagens são menos esquemáticas, não são totalmente boas ou totalmente más, como nas obras anteriores. Assim, este artigo parte das singularidades do romance e analisa as relações entre as variedades discursivas: o discurso épico, o lírico e o autobiográfico. Após, estudamos o episódio de “descoberta” da personagem Damião e seus diferentes significados.
Palavras-chave: Narrativa brasileira – Jorge Amado. Jorge Amado – Terras do sem fim. Terras do sem fim – Crítica literária.
Abstract: Observing the Jorge Amado’s trajectory, Terras do sem fim (1943) is a distinguished romance, because it is a result of a more balanced moment of the author. The characters are not completely good or completely bad, as in the preview romances. These singularities are the starting point of this article, which analyzes the relationship between the discursive varieties: the epic, the lyric and the self-biographical speech. Following, it studies the “discovery” episode of Damião character and it is different meanings.
Keywords: Brazilian Narrative – Jorge Amado. Jorge Amado – Terras do sem fim. Terras do sem fim – Literary Criticism.
Sua profissão: matar. Agora Damião se dá perfeita conta disso. Sempre lhe parecera que ele era um trabalhador da fazenda dos Badarós. Agora é que via que era apenas um “jagunço”. Que sua profissão era matar, que, quando não havia homens que derrubar na estrada, ele não tinha nada que fazer. Acompanhava Sinhô mas era para guardar a vida dele, era para baixar algum que quisesse balear o coronel. Era um assassino... Jorge Amado
O esquecimento de Jorge Amado
O extenso número de romances de Jorge Amado conta com mais de trinta títulos. Mesmo com uma obra tão vasta, poucos são os textos críticos e análises interpretativas
atuais sobre sua obra. Esse fato intriga, visto que Jorge Amado figura entre os escritores mais prestigiados da Literatura Brasileira e possui romances que marcaram nossa história, retratados em novelas e minisséries. Ou seja: se de um lado há o sucesso na televisão, de outro se encontra a pouca atenção dada pelos estudos universitários.
Entre as justificativas para tal esquecimento está a falta de regularidade dos textos. A crítica que se faz a seus primeiros romances, quando o texto estava mais claramente engajado politicamente, está relacionada ao modo como as singularidades são tratadas: submetidas à perspectiva socialista, onde os dramas pessoais são “menores frente às diferenças sociais geradas pelo fator econômico” (DUARTE, 1997, p. 93). Segundo Duarte, essa é uma visão simplista que vê somente no proletariado as marcas de opressão, sem mostrar as diferenças aparentes de sexo e de cor, por exemplo. Esse ponto só se altera com Gabriela, cravo e canela , em 1958, quando os textos começam a focar a questão racial, as diferenças culturais, o sincretismo religioso e os dramas inter- raciais.
Outro ponto recorrente nas obras da década de 60 é a inspiração erótica – por vezes vulgar – que se distancia muito da escrita do começo da carreira de Jorge Amado. Segundo Lucas, é a partir de Gabriela que a temática deixa de ser a “justiça social para se concentrar na aspiração da liberdade” (LUCAS, 1997, p. 110-111), principalmente no que se refere à liberdade feminina. Como contraponto a essa ideia generalizada da crítica, do valor menor de Gabriela, cravo e canela e dos demais romances que o seguem, Duarte aponta uma nova leitura. Primeiro, baseando-se no fato de a obra amadiana ser “fundadora”:
A produção amadiana é fundadora, no sentido que vem contribuindo para nada menos que a constituição da literatura brasileira – entendida como conjunto orgânico de relações entre autor, obra e público, tal como preconizado por Antonio Candido (DUARTE, 1997, p. 89).
Depois, questionando a visão crítica sobre as personagens femininas. Segundo ele, apenas em Gabriela Jorge Amado coloca a mulher como centro da história, mas não se pode ignorar que a figura feminina aparece em outros romances com muita força (como é o caso da passagem extremamente poética das três Marias, as irmãs prostitutas de
uma produção com características mais realistas no romance (CANDIDO, 1965; LAFETÁ, 1974). Acreditando na literatura com uma função, os escritores, de uma forma geral, apresentaram uma produção que refletia determinada consciência da nação e colocava em confronto questões sociais e ideológicas. Além dessa característica do período, Dacanal (1986) aponta para importantes propriedades do conceito geração de
Não importa que o conceito de romance de 30 tenha sido e continue sendo usado de forma pouco rigorosa, que não se saiba exatamente seus limites ou, até, que não possa ser claramente delimitado. O importante é que ele identifica um fato claramente constatável na evolução da ficção brasileira: nunca antes em um período de tempo tão curto tantos autores haviam escrito tantas obras tão próximas entre si. A partir dessa evidência e tomando por base a década em que começaram a surgir tais autores e obras é que nasceu o conceito (DACANAL, 1986, p. 10).
Essa proximidade entre as obras aconteceria devido a uma série de fatores, como por exemplo, a atenção à verossimilhança que as obras de 30 conservam: “As forças que vigem no mundo narrado são as do mundo real. Não há quebra de leis físicas e biológicas, não há intervenção de forças divinas ou diabólicas” (DACANAL, 1986, p. 13). Além disso, o crítico mostra a linearidade do romance de 30: mesmo sem uma rigidez absoluta, é possível identificar, na maioria dos casos, histórias com início, meio e fim. Outro ponto é o fato de ser escrito numa linguagem culta urbana, o que também caracterizaria as obras. Aqui, o caso de Jorge Amado chama a atenção, porque apesar de não ceder completamente ao código culto, o escritor artificializa o texto ao colocar a linguagem não culta somente na voz das personagens secundárias e analfabetas, deixando ao narrador o código “certo”, culto. Dacanal afirma, também, que o romance de 30 coloca os elementos econômicos e sociais como uma realidade histórica que
integra de forma imediata o enredo. Ou seja, as estruturas são perfeitamente identificáveis: as personagens podem lutar contra a realidade social, aceitá-la ou sofrer suas consequências. Essa “luta social” se dará no campo do agrário: ou as personagens vivem no interior ou migram para o centro urbano (com exceção de Os ratos ), não conseguindo deixar de lado os aspectos interioranos intrínsecos. Isso faz com que apareçam os conflitos entre o Brasil rural e o urbano bem como a relação com o indivíduo de mentalidade patriarcal-latifundiária do período.
Esses traços definidos pelo autor para a geração de 30 aparecem de forma diferente em Terras do sem fim. Mesmo se mostrando flexível quanto ao conceito, paradoxalmente, o trabalho de Dacanal apresenta uma visão bem restrita das características do romance de
É importante ressaltar que a opção de Bueno por descrever os romances da década de 30 difere do caminho tomado neste artigo. Estamos tratando Terras do sem fim como pertencente à geração de 30, mesmo que tenha sido escrito em 1943. Tomamos como geração de 30 um período mais abrangente (e mais canônico), que vai até meados de 45 e analisamos as características apontadas por Dacanal por estarem mais próximas da crítica literária corrente. Explicadas as diferenças básicas entre os dois críticos e analisando detidamente os pontos levantados por Dacanal, verificamos que Terras do sem fim apresenta nuances que o diferenciam do padrão definido em O romance de 30. Logo, este artigo parte do que diz Dacanal para ancorar-se na perspectiva de Bueno.
O vento soprou mais forte e trouxe para a noite da Bahia fragmentos das conversas de bordo, palavras que foram pronunciadas em tom mais forte: terras, dinheiro, cacau e morte (AMADO, 1976, p. 20-21).
Já no segundo trecho selecionado, constante na parte III do romance, intitulada “Gestação das cidades”, conseguimos identificar processos diferentes de composição. Em primeiro lugar, temos uma pequena narrativa poética em terceira pessoa sobre a trajetória de vida de três irmãs: Maria, Lúcia e Violeta. Há imagens importantes para a constituição da linguagem poética, como o anúncio, desde o início, de que elas estão unidas pelo mesmo destino (o que se confirma no final). Isso contribui para a continuidade harmônica do trecho, ao lado de outra sequência rítmica, marcada por uma espécie de refrão: “era uma vez três irmãs”. Além disso, há a descrição da transformação das meninas em mulheres através da descrição do formato de seus seios e de seus futuros casamentos/maridos através do tipo de cama e de enxoval. A seguir essa poetização se desfaz, com o retorno da ação interrompida.
Era uma vez três irmãs: Maria, Lúcia, Violeta, unidas nas correrias, unidas nas gargalhadas. Lúcia, a das negras tranças Violeta, a dos olhos mortos; Maria, a mais moças das três. Era uma vez três irmãs, unidas no seu destino. Cortaram as tranças de Lúcia, cresceram seus seios redondos, suas coxas como colunas, morenas, cor de canela. Veio o patrão e a levou. Leito de cedro e penas, travesseiro, cobertores. Era uma vez três irmãs. Violeta abriu os olhos, seus seios eram pontuados, grandes nádegas em flor, ondas no caminhar. Veio o feitor e a levou. Cama de ferro e de crina, lençois e a Virgem Maria. Era uma vez três irmãs. Maria, a mais moça das três, de seios bem pequeninos, de ventre liso e macio. Veio o patrão, não a quis. Veio o feitor, não a levou. Por último veio Pedro, trabalhador da fazenda. Cama de couro de vaca, sem lençol, sem cobertor, nem de cedro, nem de penas. Maria com seu amor. Era uma vez três irmãs: Maria, Lúcia, Violeta, unidas nas gargalhadas, unidas nas correrias. Lúcia com seu patrão, Violeta com seu feitor e Maria com seu amor. Era uma vez três irmãs, diversas no seu destino. Cresceram as tranças de Lúcia, caíram seus seios redondos, suas coxas como colunas, marcadas de roxas marcas. Num auto pela estrada cadê o patrão que se foi? Levou a cama de cedro, travesseiros, cobertores. Era uma vez três irmãs. Fechou os olhos Violeta com medo de olhar em torno: seus seios bambos de pele, um filho pra amamentar. No seu cavalo alazão, o feitor partiu um dia, nunca mais há-de voltar. Cama de ferro se foi. Era uma vez três irmãs. Maria, a mais moça das três, foi com seu homem pro campo, pras plantações de cacau. Maria voltou do campo, era a mais velha das três. Pedro partiu urn
dia, não era patrão nem feitor, partiu num pobre caixão, deixou a cama de couro e Maria sem seu amor. Era uma vez três irmãs. Cadê as tranças de Lucia, os seios de Violeta, cadê o amor de Maria? Era uma vez três irmãs numa casa de putas pobres. Unidas no sofrimento, unidas no desespero, Maria, Lúcia, Violeta, unidas no seu destino (AMADO, 1976, p. 118-119).
No último trecho, pertencente à parte V, “A luta”, temos a entrada do próprio escritor, sob a forma de um menino que assiste ao julgamento e que depois escreverá sobre ele, o que confere ao romance um aspecto biográfico, apesar do texto se manter em terceira pessoa e da história a ser contada ficar sob a responsabilidade de “um menino”.
Uma multidão invadiu a sala, sobrava gente pelos corredores. Um menino, que anos depois iria escrever as histórias dessa terra, foi chamado por um meirinho para sacar da urna o nome dos cidadãos que iriam constituir o conselho de sentença (AMADO, 1976, p. 257). [...] O menino que tirara os cartões da urna deixou o estrado do juiz e veio se sentar por detrás da tribuna de defesa. E desse lugar assistiu a todo julgamento, escutando de olhos acesos os debates. Meso pela madrugada, quando alguns assistentes cochilavam nos bancos, o menino seguia nervoso o desenrolar do espetáculo (AMADO, 1976, p. 258). [...] O menino que assistia ao júri, saíra pela mão do pai mas já estava na porta da sala quando o meirinho badalou a grande sineta chamando os advogados e os escrivães (AMADO, 1976, p. 259).
Sobre isso, Raillard (1990) pergunta ao escritor se Terras do sem fim faz parte da realidade que ele conheceu. Jorge Amado confirma que muito do que está descrito no livro faz parte das primeiras lembranças de sua vida, de primos jagunços, de um padrinho que matou um homem na sua frente: “toda a minha infância foi marcada por essa violência que nada conseguia brecar; as brigas, a morte fácil, e eu brincando na praça de Ilhéus” (RAILLARD, 1990, p. 183). Há no texto outras personagens da realidade, como um tio chamado Manuel Inácio, que entrou no romance com o nome de Teodoro das Baraúnas. Segundo o autor, pessoa e personagem se confundem fortemente, pois o tio era um homem intratável, que foi jurado de morte e teve que fugir para o Espírito Santo, enquanto a personagem correspondente a ele queima o cartório do tabelião para ajudar os Badarós e amedronta os moradores no dia da Festa da Árvore ao “regar” a planta símbolo do progresso do cacau, o que aconteceu no meio da Praça em
emboscada fracassada: “Sabia que os homens iam penetrar, iam derrubar a floresta, matar os animais, plantar cacau na terra onde havia sido a mata do Sequeiro Grande” (AMADO, 1976, p. 116). As palavras de Jeremias, depois da visão, não eram de conselhos para Damião, mas aos deuses, para que punissem e “desencadeassem a sua cólera” (p. 117) sobre os invasores. Seu “desabafo” funciona também como uma profecia do que iria acontecer^3 :
O olho da piedade secou e eles tá olhando pra mata com o olho da ruindade. Agora eles vai entrar na mata mas antes vai morrer homem e mulher, os menino e até os bicho de pena. Vai morrer até não ter mais buraco onde enterrar, até os urubu não dar mais abasto de tanta carniça, até a terra tá vermelha de sangue que vire rio nas estrada e nele se afogue os parente, os vizinho e as amizade deles, sem faltar nenhum. Vão entrar na mata mas é pisando carne de gente, pisando defunto. Cada pé de pau que eles derrube vai ser um homem derrubado, e os urubu vai ser tanto que vai esconder o sol. Carne vai ser estrume de pé de cacau, cada muda vai ser regada com sangue deles, deles tudo, tudo, sem faltar nenhum (AMADO, 1976, p. 117).
Não há nos coronéis e nos aventureiros uma demonstração nítida de que sejam maus: “Sinhô Badaró gostava da terra. Gostava de criar animais, os grandes bois mansos, os nervosos cavalos, as ovelhas de terno balar. Mas lhe repugnava ter de ordenar a morte de homens” (AMADO, 1976, p. 63). Poderíamos dizer que eles até conseguem uma dimensão heroica, pois pertencem à complexidade do meio ambiente: das fazendas, das matas, dos assassinos de aluguel, da chegada da modernidade.
A descoberta de Damião
Pensando nessa dimensão heroica, há uma personagem de riqueza singular, ponto de chegada deste artigo: Damião. Tudo começa quando ele escuta a conversa entre os dois patrões Badaró, Sinhô e Juca. Sinhô deve decidir se mata o vizinho Firmo, que não quer vender sua roça (ponto essencial de entrada para a mata do Sequeiro Grande) para ele. Juca mostra não ter dúvidas de que essa é a única e melhor saída para o impasse, enquanto Sinhô apresenta sinais de consciência do que está fazendo: ele olha um quadro bucólico de campos europeus, com ovelhas, pastores, flautas e um baile e compara com a violência com que agem nas terras do cacau. Os trechos de dúvida de Sinhô são extremamente interessantes, pois exemplificam a filosofia de vida do coronel.
Tenho mandado liquidar gente, mas Deus é testemunha que só faço quando não tem jeito. [...] Olhou o quadro, tão tranquilo na sua paz azul. Se aquela terra retratada na oleogravura fosse boa para o cultivo do cacau ele, Sinhô Badaró, teria que mandar jagunços pra detrás de uma árvore, para a “tocaia”, jagunços que liquidassem os pastores que tocavam gaita, a moça rosada que dançava tão alegre... (AMADO, 1976, p. 65).
Ao ouvir a pergunta de Sinhô para Juca “Tu acha bom matar gente? Tu não sente nada? Nada por dentro? Aqui?” (AMADO, 1976, p. 64), Damião passa a questionar e a entender o que até então era uma questão de coragem para ele, não de jagunçagem ou de assassinato. Antes desse momento, Damião nunca havia entendido que era “terrível esperar homens na ‘tocaia’ para matá-los” (p. 68). Ele se dá conta que a sua profissão era matar e que nem sabe quantos já matou, pois só consegue contar até cinco. Percebe que finalmente entende o que é remorso, palavra que um caixeiro-viajante usou para questioná-lo certa vez: é o que ele sente pela primeira vez ao pensar em todos que já matou, “as palavras do coronel estão sobre seu peito como um peso impossível de arrancar” (p. 69).
É importante falar da personalidade dessa personagem para que possamos entendê-la. Há, de um lado, ingenuidade, pois Damião era o grande amigo das crianças, o que servia de cavalo para as brincadeiras, o que buscava banana onde havia cobras, o que levava todos para o rio e os ensinava a nadar. A infantilização também aparece na relação dele com outras personagens do romance, como Don’Ana, que dá a ele um pedaço de “pedra fria”, um gelo, para queimar-lhe a boca e rir de sua reação. Aliada a essa ingenuidade, está a ignorância de Damião, que, em determinado momento, diz que preferia não saber o que fazia de verdade e que gostaria que Sinhô tivesse mandado que ele e o outro jagunço tivessem ficado longe da conversa dos dois: “Mas também, por que Sinhô Badaró, naquela tarde, dera de falar naquelas coisas para o irmão? Por que pelo menos não mandara que ele e Viriato fossem para longe?” (AMADO, 1976, p. 72).
Ao descobrir o tamanho de sua ingenuidade e sua ignorância, Damião passa a sentir culpa (tanto por pensar nas famílias dos que matou como por imaginar que queimará no inferno, uma espécie de culpa cristã fomentada pelo que ele lembra-se de ter ouvido do frade) e, depois, a tentar achar um culpado que não seja si mesmo. Primeiro, ele coloca
O choro de Damião ao descobrir que não há saída que mantenha sua integridade e sanidade é um “símbolo trágico ao mesmo tempo de sua classe e de sua raça” (DACANAL, 2001, p. 138), mas mais do que isso, mostra singularidade em um homem comum daquele tempo e daquela sociedade. Depois da tocaia, Damião torna-se vítima de sua própria consciência, que agora não pode mais manter-se na inocência, na ignorância de seus atos. Essa consciência tem uma feição mágica, pois Damião deposita a culpa na mulher de Firmo, Tereza, que lhe perturbou o entendimento: “Não sei como se deu, pai Jeremias, foi coisa de feitiço...” (AMADO, 1976, p. 116). Segundo o crítico, não havendo possibilidade para Damião, a personagem enlouquece, “uma das ‘opções’ de todo marginalizado que consegue intuir o mundo mas que não alcança organizá-lo racionalmente nem, muito menos, transformá-lo efetivamente” (DACANAL, 2001, p. 138). Sem a chance de confrontar o patrão porque a resistência seria inviável e já não podendo continuar a ser submisso, porque alcançara a consciência, o destino de Damião encara a mesma encruzilhada de Firmo, mas em uma dimensão diferente. No caminho de Firmo há uma estrada e nela um jagunço que erra o tiro. No de Damião, há uma decisão impossível a ser tomada e da qual ele não consegue sair ileso.
Referências:
AMADO, Jorge. Terras do sem fim. Rio de Janeiro: Record, 1976. BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989. BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Edusp, 2006. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade : estudos de teoria e história literária. São Paulo: Nacional, 1965. DACANAL, José Hildebrando. O romance de 30. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986. DACANAL, José Hildebrando. Romances brasileiros II : contexto, enredo e comentário crítico. Porto Alegre: Novo Século, 2001. DUARTE, Eduardo de Assis. Classe, gênero, etnia: povo e público na ficção de Jorge Amado. Cadernos de Literatura Brasileira : Jorge Amado, Rio de Janeiro, n. 3, mar.
LAFETÁ, João Luiz. 1930 : a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades, 1974.
LUCAS, Fábio. A contribuição amadiana ao romance social brasileiro. Cadernos de Literatura Brasileira : Jorge Amado, Rio de Janeiro, n. 3, mar. 1997. PAES, José Paulo. De Cacau a Gabriela: um percurso pastoral_._ Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1991. RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record, 1990.
Recebido em 31/03/ Aprovado em 05/07/
(^1) Essa é uma das muitas diferenças entre o texto de Hildebrando Dacanal e o de Luís Bueno, assunto tratado nos próximos parágrafos do artigo. Em A história do romance de 30 , o autor não só coloca Dyonélio e Cyro entre os principais como também dedica dois dos quatro subcapítulos de “Quatro autores” para os dois. (^2) Uma dúvida cabe aqui, já que, seguindo outra linha interpretativa, poderíamos pensar que nenhum dos coronéis sai ganhando, pois até Horácio perde a mulher de sua vida e a grande amizade do Dr. Virgílio, o advogado. (^3) Vale destacar que, ao final da profecia, Jeremias morre. O mundo místico se desfaz perante a violenta intervenção da ação histórica. Poderíamos comparar com a cena semelhante em Iracema , de José de Alencar, quando o avô de Poti morre ao profetizar o fim das tribos.