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Hilda Hilst: Sagrado e Profano na Literatura Erótica, Esquemas de Literatura

Uma análise detalhada da obra de hilda hilst, uma escritora brasileira conhecida por sua literatura erótica. O texto aborda as obras tu não te moves de ti e matamoros, examinando as experiências religiosas citadas na obra e as perspectivas de eliade e otto sobre o sagrado e o profano. Além disso, o documento discute a importância da literatura erótica na sociedade e a distinção entre textos eróticos e pornográficos.

O que você vai aprender

  • Como Hilda Hilst aborda o tema do sagrado e do profano na sua literatura?
  • Quais são as perspectivas de Eliade e Otto sobre o sagrado e o profano?
  • Como a literatura erótica é influenciada e modificada pela sociedade?
  • Qual é a importância da literatura erótica na sociedade?
  • Quais são as obras de Hilda Hilst discutidas no documento?

Tipologia: Esquemas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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usuário desconhecido 🇧🇷

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As profanações de Hilda Hilst: uma análise de Tu não te moves de ti
Blenda Ramos Vieira
Universidade Federal de Uberlândia
Orientadora: Profa. Dra. Enivalda Nunes Freitas e Sousa
Resumo: Estudaremos os termos sagrado e profano dentro da obra Tu não te moves de ti de
Hilda Hilst. Autores apontam fatores relevantes para o estudo destes termos, como Émile
Durkhein que em um de seus estudos sobre religião afirma que o fenômeno religioso divide-
se em duas partes: o sagrado e o profano, prevalecendo uma visão dualista, sendo a concepção
do sagrado se manifesta sempre como uma realidade diferente das naturais. Quando o
processo é tratado como um fato natural, biológico, normal, estamos no campo do sagrado. O
corpo como pecador é proposto pela Igreja Católica, e estas transformações do corpo
aparecem na obra de Hilst, visando sempre o jogo que a autora faz entre o sagrado e o
profano. O corpus escolhido é composto por três novelas que desempenha uma função
reveladora de falhas, maravilhas e obscuridades do homem.
Palavras-chave: Sagrado. Profano. Hilda Hilst.
Abstract: This article are going to study the terms sacred and profane and how this terms can
be used to discuss about Tu não te moves de ti, a Hilda Hilst book. Authors point to relevant
factors to study these terms, as Emile Durkhein that in one of his religion’s studies says that
the religious phenomenon is divided into two parts: the sacred and the profane, a dualistic
view, and the sacred’s conception manifests itself always as a different reality of nature.
When the process is treated as a natural, biological, normal, are in the sacred’s field. The body
is proposed as sinful by the Catholic Church, and these changes appear in Hilst’s work,
having always the game that the author makes between the sacred and the profane. The corpus
chosen is composed of three novels that performs a function which reveals flaws, obscurities
and man’s wonders.
Keywords: Sacred. Profane. Hilda Hilst.
O sagrado e o profano
As obras de Hilda surgem a partir da segunda metade do século XX, momento em que
o processo de liberdade sexual avança de forma vertiginosa com as luta pelas minorias como
a mulher, o negro, os homossexuais. A sua literatura representa esse momento de
transformação e transgressão às regras sociais, estéticas e artísticas.
Tu não te moves de ti é composta por três novelas que, no princípio parecem que não
se conectam, mas que com o decorrer da leitura se entrelaçam totalmente. As três novelas são
nomeadas com três substantivos diferentes. “Da razão” dá nome a primeira novela, que conta
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Baixe Hilda Hilst: Sagrado e Profano na Literatura Erótica e outras Esquemas em PDF para Literatura, somente na Docsity!

As profanações de Hilda Hilst: uma análise de Tu não te moves de ti

Blenda Ramos Vieira Universidade Federal de Uberlândia Orientadora: Profa. Dra. Enivalda Nunes Freitas e Sousa

Resumo : Estudaremos os termos sagrado e profano dentro da obra Tu não te moves de ti de Hilda Hilst. Autores apontam fatores relevantes para o estudo destes termos, como Émile Durkhein que em um de seus estudos sobre religião afirma que o fenômeno religioso divide- se em duas partes: o sagrado e o profano, prevalecendo uma visão dualista, sendo a concepção do sagrado se manifesta sempre como uma realidade diferente das naturais. Quando o processo é tratado como um fato natural, biológico, normal, estamos no campo do sagrado. O corpo como pecador é proposto pela Igreja Católica, e estas transformações do corpo aparecem na obra de Hilst, visando sempre o jogo que a autora faz entre o sagrado e o profano. O corpus escolhido é composto por três novelas que desempenha uma função reveladora de falhas, maravilhas e obscuridades do homem.

Palavras-chave : Sagrado. Profano. Hilda Hilst.

Abstract: This article are going to study the terms sacred and profane and how this terms can be used to discuss about Tu não te moves de ti , a Hilda Hilst book. Authors point to relevant factors to study these terms, as Emile Durkhein that in one of his religion’s studies says that the religious phenomenon is divided into two parts: the sacred and the profane, a dualistic view, and the sacred’s conception manifests itself always as a different reality of nature. When the process is treated as a natural, biological, normal, are in the sacred’s field. The body is proposed as sinful by the Catholic Church, and these changes appear in Hilst’s work, having always the game that the author makes between the sacred and the profane. The corpus chosen is composed of three novels that performs a function which reveals flaws, obscurities and man’s wonders.

Keywords: Sacred. Profane. Hilda Hilst.

O sagrado e o profano

As obras de Hilda surgem a partir da segunda metade do século XX, momento em que o processo de liberdade sexual avança de forma vertiginosa com as luta pelas minorias como a mulher, o negro, os homossexuais. A sua literatura representa esse momento de transformação e transgressão às regras sociais, estéticas e artísticas. Tu não te moves de ti é composta por três novelas que, no princípio parecem que não se conectam, mas que com o decorrer da leitura se entrelaçam totalmente. As três novelas são nomeadas com três substantivos diferentes. “Da razão” dá nome a primeira novela, que conta

a história de Tadeu, um homem de meia idade, casado com Rute, que está passando por um momento de crise, uma fase de transição questionando sua própria existência e sua convivência por aparência com Rute. O segundo conto recebe o nome da jovem citada acima “Matamoros (da fantasia)” e narra a história de Maria, uma criança que sempre esteve habituada ao contato com homens. Para ela, brincadeiras sexuais sempre estiveram associadas com a curiosidade, pois o importante era conhecer tudo tocando. Esta segunda novela é a que mais se destacará, afinal ela retrata bem o que propõe nossa teoria, trabalha com sexualidade, pois Maria é uma criança habituada com sexo, e também com religiosidade, pela escrita constituída, e também pelo envolvimento de figuras de religiosidade, como o padre que aparece na trama para exorcizar a criança e acaba se envolvendo com ela. Maria não era uma criança qualquer. Sempre foi pecadora aos olhos da mãe, sempre gostou de tocar e ser tocada, sempre lutou a favor do desejo carnal, o que para a mãe era motivo de desespero, afinal, não poderia ter uma filha que conduzisse assim sua vida, pensando somente em sexo. O terceiro e último conto é a história do sobrinho de Haiagá, que é mãe de Matamoros. A narrativa de Axelrod fala mais uma vez sobre tempo e finitude, e esfacela a visão que tínhamos até então dos dois primeiros contos. Axelrod era professor de história política e ortodoxo, e sua história é muito significativa, principalmente no que diz respeito ao nome da obra. Em uma viagem a casa de seus pais, Axel repensa em sua vida e em suas dimensões e descobre que é realmente difícil se mover de si. A luta para a compreensão da história de Axelrod envolve o porquê o jovem vai se esfacelando ao logo da viagem, fazendo com que até seu nome se esfacele. É possível perceber então que apesar de Tu não te moves de ti ter sido lançada em 1979, a autora já possuía traços marcantes do que ela considera mais tarde como literatura obscena, e é muito criticada por isso. Tu não te moves de ti não está entre os livros considerados eróticos da autora, mas nem por isso não faz referências eróticas. Tu não te moves de ti desempenha uma função reveladora de falhas, maravilhas e obscuridades do homem. Este trabalho pretende desenvolver um estudo sobre a constituição da obra Tu não te moves de ti de Hilda, como ela constrói sua escrita, e como podemos estudá-la em relação ao sagrado e profano, na visão de autores como Émile Durkhein, Mircea Eliade e Rudolf Otto, que até faz a utilização de outros termos para designar o que é sagrado do que é profano como; transgressão - respeito, reverência; puro - impuro; fascinante,

vivia neste momento e, principalmente, a angústia do ser, que vive esse processo de intensa transformação. O adeus à literatura chocou muitos amigos, e isso também acontece devido ao momento histórico. Hilda migra para uma literatura um pouco mais liberal, até mais grotesca, escandalosa. O choque vem também pelo fato de que a autora já tinha 60 anos quando decidiu então escrever literatura erótica, ou “obscena” como Hilst considerava seus livros. A mudança de Hilda provocou em seus leitores uma necessidade de entender aquilo que estava acontecendo, agora não escrevia poemas românticos, textos puros. Sua literatura era obscena, impura, por isso era preciso pensar em Hilda sagrada e Hilda profana, apesar de termos certeza de que ela nunca conseguiu ser, puramente, somente uma dessas coisas. Muitos autores apontam fatores relevantes para o estudo dos termos sagrado e profano, que fazem parte das religiões desde o século XIX. Mircea Eliade (1989) em sua obra O sagrado e o profano – A Essência das Religiões apresenta a definição dos termos dentro da religião, explica a importância deles e discorre também sobre a “ciência da religião”, termo usado pela primeira vez por Max Müller também no século XIX. Eliade tem um ponto de partida fixo para seu texto, afinal Rudolf Otto lançou em 1917 uma obra que mexe com os interesses de muitos que participavam da instituição Igreja Católica. A obra O sagrado - um estudo do elemento não-racional na ideia do divino e sua relação com o racional, originalmente Das Heilige, de Otto, traduzida do alemão para o português em 1941, discorre sobre as experiências religiosas ao invés de estudar as ideias de Deus e da religião. Otto era dotado de grande finura psicológica, além de ser teólogo e historiador, por isso conseguiu esclarecer o conteúdo e os caracteres específicos dessas experiências religiosas que cita em sua obra, levando em conta que o caráter racional da religião é deixado de lado, ou seja, o discurso montado, algumas vezes até especulativo, foi ignorado e foi procurada uma parte irracional desses discursos religiosos. Por sua vez, Mircea Eliade necessita inicialmente explicar a diferença dos termos sagrado e profano, por isso logo no inicio de sua obra o autor afirma que “o sagrado se manifesta sempre como uma realidade de ordem inteiramente diferente da das realidades ‘naturais’” (1989, p. 24). O termo naturais aparece entre aspas e o autor justifica que é impossível definir o que realmente é tratado ou visto como natural, já que são termos de difíceis delimitações, dependendo muito da subjetividade de quem o trata. O que Eliade afirma como essencial para as primeiras perspectivas e estudos sobre o tema é que o sagrado

se opõe ao profano (p. 25) e que seu objetivo na obra se opõe ao de Otto, apesar de ser seu autor de inspiração, afinal ele não quer se preocupar com discursos racionais ou irracionais das experiências religiosas, e sim pretende apresentar o termo sagrado em toda a sua complexidade e chegar ao ponto de dizer que tudo que foi dito que é sagrado é sagrado e que tudo contrário a isso é profano. Émile Durkhein em um de seus estudos sobre religião afirma também que o fenômeno religioso divide-se em duas partes: o sagrado e o profano, prevalecendo, sem dúvida, uma visão dualista, na qual um se opõe ao outro, e observa ainda que “o sagrado e o profano foram pensados pelo espírito humano como gêneros distintos, como dois mundos que não têm nada em comum” (1996, p. 51) e conclui: “se existe religião tão logo o sagrado se distingue do profano” (1996, p. 150). Sobre a visão de Durkhein então é possível afirmar que nesse sentido considera-se sagrado tudo aquilo que está ligado à religião, magia, mitos, crenças. Em algumas religiões, a concepção do sagrado se manifesta sempre contra uma realidade diferente das “naturais”, remetendo ao extraordinário, ao anormal, ao transcendental, ao metafísico, levando a crer que o sagrado é sempre um processo tratado como um fato natural, biológico, normal. Otto vai além dessas definições e afirma que o sagrado está ligado não só ao natural, mas sim ao ético, a moral e a bondade, resumindo assim que tudo que não faz parte da bondade proposta por Deus não é sagrado. Gilberto de Mello Kujawski, filósofo e advogado formado em PUC, lançou em 1994 O sagrado existe , obra que não intenciona, em nenhum momento, tratar de misticismo e nem sequer de receber “inspiração divina” ou iluminação privilegiada para sua importância. Afirmando que não quer enriquecer o mercado de superstições, Gilberto diz que quer apenas fazer uma reflexão livre sobre a questão do sagrado, que poderia ou não se aproximar dos estudos de alguns teólogos, mas que não era seu objetivo, era apenas coincidência do que ele chama de luz da razão já que todos eles seguiam uma mesma linha de pensamento. O autor afirma então que o sagrado existe, frase que dá nome a sua obra, mas que ele existe sem qualquer pretensão de recorrer a fé ou se associar a ela, mas que o conceito sagrado é amplo e integral sem a fé, e dentro da realidade o sagrado não é algo incompleto, mutilado, afinal o próprio autor afirma que acredita na existência do sagrado e sequer é religioso. Ainda na visão de Kujawski o sagrado é um nome mais amplo que Deus ou divino, afinal é um conceito existente antes mesmo de saber-se sobre Deus ou divindade, concordando também com pensamentos e estudos de Eliade e Otto, que não relacionam o sagrado somente com Deus.

Literatura (1985) propõem-se a entender em suas respectivas obras. Partindo do ponto de vista desses dois autores é possível afirmar que a ligação da literatura erótica com a sociedade existe, e observar como essa literatura foi e é influenciada e modificada pela sociedade. Em contrapartida, sabemos que a literatura também influencia e modifica a sociedade; afinal, a literatura é uma arte feita por pessoas de uma determinada sociedade, assim como todas as outras artes e, enquanto atividade humana, o erotismo é uma de suas manifestações sociais e culturais. Para Durigan (1985, p. 7), “por ser um fato cultural, o texto erótico se apresenta como uma representação que depende da época, dos valores e dos grupos sociais, das particularidades do escritor, das características da cultura em que foi elaborada”. Essa afirmação de Durigan (1985) se aplica completamente a mudança que viveu Hilst, já que ela sofreu as mudanças da sociedade e modificou também sua obra. Cada cultura vê as manifestações sexuais e eróticas de maneira diferente e, com a autora não foi diferente. Essa visão do erotismo inserido em determinada época e em determinada cultura, de que fala Durigan (1985), se manifesta na literatura de Hilst. A década de 70 é o momento em que as transformações na vida sexual no Brasil e no mundo estão acontecendo de forma bastante expressiva devido ao movimento feminista que, além de lutar pelos interesses da mulher e por uma posição mais atuante na sociedade, reivindicava uma nova postura em relação à sexualidade feminina. Sem dúvida, o contexto histórico e político do mundo e do Brasil, na época, influenciaram a nossa arte e a literatura. As transformações que ocorreram na sociedade e que Hilst sofreu as consequências em 1990 começaram no século XVII. Era possível perceber uma mudança radical no tratamento da sexualidade e, consequentemente, da literatura erótica, que antes era tratada com normalidade e muitos risos. A condenação ao falar de sexo surgiu com o patriarcado, há 5000 anos e as questões sexuais passaram a fazer parte do profano. O sexo tornou-se pecaminoso e a sociedade só abria uma concessão aos homens. A eles era dado o direito ao prazer, negado às mulheres. As mulheres não podiam sentir prazer, mas teriam que garantir a paternidade ao homem. O Cristianismo generalizou essa repressão e o padrão moral, pelo menos em tese, começou a atingir homens e mulheres. Toda essa censura colocou as pessoas “em guerra” contra o prazer e o próprio corpo. Passado um tempo, mesmo para os homens, o sexo foi relegado ao submundo, apartado da sociedade, ligado ao pecado da luxúria, ao profano. Alexandrian (1994), ao relatar como começou a literatura erótica, conta como os autores faziam para escrever e conquistar o leitor com textos tão “diferentes”. O autor deixa

bem claro que seu livro História da Literatura Erótica baseia-se na literatura européia, porque foi na Europa que o erotismo se tornou um gênero literário determinado. Ele afirma ainda que as obras orientais, na sua origem, tinham um sentindo religioso, sagrado, como o Kama sutra , porém, essa obra, nos países europeus, adquiriu um sentindo profano. Sob a influência do Cristianismo, a partir do século XVII, o sexo passou a ser visto como “pecado”, profano, diferente de como era visto nos séculos anteriores. As questões sexuais passaram, então, a fazer parte do proibido, designado como submundo, e as próprias pessoas começaram a desejar punições para aqueles que quebrassem as leis da moral e dos bons princípios, e daquilo que o Cristianismo chamava de sagrado. Sem dúvidas, o Cristianismo contribuiu ativamente para que a sexualidade fosse banida, o prazer carnal renegado e o sexo tornado algo impuro (profano) quando exercido sem a função de procriação, criado por Deus apenas para que uma família pudesse ser constituída. Carlos Ceia (1991) cita uma passagem bíblica de Isaías para explicar detalhadamente o fato de que, desde os primórdios, a literatura erótica poderia ser reconhecida nestes trechos sagrados:

Naquele dia Tiro será posta em esquecimento por setenta anos, conforme os dias dum rei; mas depois de findos os setenta anos, sucederá a Tiro como se diz na canção da prostituta. 16- Toma a harpa, rodeia a cidade, ó prostituta, entregue ao esquecimento; toca bem, canta muitos cânticos, para que haja memória de ti. 17- No fim de setenta anos o Senhor visitará a Tiro, e ela tornará à sua ganância de prostituta, e fornicará com todos os reinos que há sobre a face da terra. 18- E será consagrado ao Senhor o seu comércio e a sua ganância de prostituta;” (Isaías, 23: 15-18). Aqui, mais do que em qualquer outro código de ética, fica já implícito que o amor sensual implica a uma certa compostura (“Igualmente quanto à mulher com quem o homem se deitar com sêmem ambos se banharão em água, e serão imundos até a tarde.”, Levítico, 16: 18), cuja infração pode ser severamente punida, o que é particularmente grave na “descoberta da nudez”, pecado maior que deve ser punido exemplarmente (“Pois qualquer que cometer alguma dessas abominações, sim, aqueles que as cometerem serão extirpados do seu povo.”, Levítico, 18: 29). (CEIA, 1991).

Neste trecho Ceia não cita apenas Isaías. Ele faz referências também a Levítico, que fala sobre a punição do maior dos pecados, a descoberta da nudez. Esse trecho deixa-nos claro que essa descoberta da nudez seria o pontapé inicial para a realização de qualquer pecado ou profanação sexual. Quando se descobre a nudez, reconhece-se o corpo do outro, os então conhecidos como pecados carnais são realizados pelas pessoas. O domínio dos desejos da carne purifica a alma e faz do cristão um temente a Deus. Para Alexandrian (1994) outro ponto de discussão pode ser colocado dentro destes textos citados, pois a literatura erótica deve distinguir textos que tem passagens eróticas dos que são totalmente eróticos:

adequavam as imposições da religião tinham lugares específicos para se expressarem sobre a sexualidade: os rendez-vouz que passaram a serem considerados os lugares de tolerância. Fora desses lugares, o puritanismo prevaleceria. Nessa mesma perspectiva, a literatura erótica passou a ser desacreditada e desmerecida, encarada como uma subliteratura. Os que dela viviam passaram a ser discriminados e renegados por um público repressor. Segundo Alexandrian (1994, p. 8), “os excessos cometidos em nome do erotismo nas letras e nas artes nestes últimos anos correm o risco de tornar questionáveis liberdades penosamente adquiridas”, pois, alguns sonham com a volta ao puritanismo e à proibição, porém, outros defendem a tolerância incondicional do erotismo na sociedade. No século XIX o corpo ainda era visto como pecador, o sexo por prazer era reprimido. A sexualidade nunca fora dominada com tanto rigor como na época da “hipócrita burguesia negocista e contabilizadora”. Já no século XX, principalmente na sua segunda metade, o corpo envergonhado e profano, no ocidente cristão, ganha uma dimensão erótica em que o sexo e prazer começam a caminhar juntos outra vez. Não na mesma rapidez em que a sexualidade se ocultou, ela ressurgiu, mas com persistência. Sobre esse período de repressão Carlos Ceia (1991) escreve:

Se atendermos ao fato de que até ao final do século XIX, por força da moral estabelecida canonicamente, toda a literatura que ofendesse os bons costumes, excitasse claramente o apetite sexual ou cuja linguagem incluísse termos licenciosos ou obscenos era considerada “erótica”, com uma forte carga pejorativa, então não devemos ser nunca capazes de estabelecer um critério rigoroso para distinguir o que é erotismo do que é pornografia. Por exemplo, uma busca na Internet sobre literatura erótica levar-nos-á hoje a toda a espécie de sítios de pornografia comercial, o que pode ajudar a compreender como é fácil confundir erotismo com pornografia. Por outro lado, a literatura erótica remete para as descrições estéticas do amor sensual, rejeitando a exclusividade da procura do prazer explícito que resulta da exibição pública ou privada desse amor. (CEIA, 1991).

Ceia retoma então um ponto já citado por nós, mas agora incluindo algo novo, moderno. Não será necessário, aqui, discorrer sobre o que é modernidade, pois trabalharemos dentro do que foi dito por Carlos Ceia, e é preciso apenas entender e apresentar fatos como o mundo da Internet. Com o domínio público, a Internet muitas vezes nos apresenta diversas formas de representação sexual e, mais uma vez, a distinção entre o que é erótico e o que é pornográfico se torna nebuloso. Essa distinção entre erotismo e pornografia não é inteiramente aplicada quando se trata de Internet. Não podemos descartar atos que acontecem com frequência atualmente, que é o uso de sites de relacionamentos para fins eróticos e/ou pornográficos.

No primeiro volume da História da Sexualidade I: a vontade de saber , Michel Foucault (1985) conclui que na história do sentimento ocidental existem dois procedimentos fundamentais para a realização da verdade do sexo: por um lado, as numerosas sociedades (Roma, China, Índia, Japão, e sociedades arábico-muçulmanas) que desenvolveram uma ars erotica , que extraiu a verdade do prazer em si mesmo, se compreendido como uma prática, acumulável como experiência, não existindo lugar para as proibições e prazer medido na sua intensidade pelos reflexos que produz no corpo e no espírito. Pelo contrário, a civilização ocidental não possui qualquer ars erotica. É a única civilização a praticar uma scientia sexualis , isto é, a única civilização a desenvolver durante séculos as regras de procedimento que nos hão de garantir a verdade do sexo. Para isso, desenvolve-se o primado da confissão, em estreito contraste com a arte da iniciação e do segredo esotérico. Foucault (1985) acaba por declarar que o homem ocidental se tornou um animal confessor. A sexualidade é o resultado da prática discursiva dessa atividade confessional e constitui-se em scientia sexualis , que o Cristianismo ocidental instituiu para produzir a verdade sobre o sexo. Vemos na fala de Foucault (1985) que a explicação dada por Gilberto de Mello Kujawski sobre os vários nomes que se dá para este sagrado se aplicam em aspectos da literatura erótica, como por exemplo, a scientia sexualis (ciência sexual) que foi utilizada pelos cristãos para que as pessoas não consumassem algo profano como a relação sexual por prazer, e sim que essa ciência pretendia algo sagrado como procriação. No século XX, principalmente na sua segunda metade, a temática do erotismo foi retomada, quebrando as barreiras do preconceito e da religiosidade, encarando o prazer sexual como uma atividade normal do homem e da mulher e não um “pecado”, como afirma os dogmas das religiões cristãs. Alexadrian (1994, p. 7), no prefácio de seu livro, inclui a literatura dentro da temática do erotismo e afirma que “uma literatura cujo objetivo é afirmar os direitos da carne é perfeitamente legítima”. Essa afirmação só vale para a contemporaneidade, pois dos séculos XVII ao início do XX, a literatura erótica era relegada a um segundo plano, considerada perniciosa e depreciada em seu valor literário.

Tu não te moves de ti

A primeira novela do livro Tu não te moves de ti de Hilda Hilst conta a história de Tadeu, moço de meia-idade que vive uma crise e deseja transformar tudo que já viveu: não quer ter o

esposa se falseava a ajudar, mas era uma ajuda distante, sem dar muita atenção ao marido Tadeu. A narrativa não segue uma ordem cronologia, e por isso, os fatos da vida de Tadeu são descobertos ao longo do texto, aos poucos. É possível perceber que Rute trazia Tadeu para a realidade, e provavelmente uma realidade que ele não gostava de viver, por isso via a desvinculação da esposa como a libertação para uma vida melhor. Essa realidade que criara com a esposa não era mais a que gostaria de viver. Tadeu começa visitar uma casa de velhos, que inicialmente parecia algo que acontecia no presente, mas ao longo de sua narrativa percebemos que ele faz uma visita ao passado, contando a história de Maria Matamoros, uma criança que desde sempre soube lidar com a vida sexual. Tadeu narra um amor que sentia por Maria, de como queria que ela ainda estivesse viva, de como gostaria que ela pudesse satisfazê-lo e o tirasse daquela crise de meia- idade. Na primeira novela nos deparamos com a narração da morte da personagem da segunda novela, uma morte que tentava resgatar o sagrado na vida da jovem que sempre foi marcada pelas profanações. A água esteve presente na cena, Maria tentava uma purificação por não ter conseguido viver com Tadeu, por Tadeu tê-la deixado, nunca ter sido um homem fiel a ela. A punhalada com o facão foi no meio das pernas, Maria queria acabar com aquilo que, para ela, havia acabado com sua vida, com sua felicidade e com seu amado. Jorrando sangue, Matamoros morreu na Casa dos Velhos. A segunda e mais longa novela da obra Tu não te moves de ti é nomeada de Matamoros. Assim como nas três novelas da obra, a autora designa um substantivo para o título, como se fossem homônimos dos personagens. Para Matamoros não é diferente, a novela que conta a história de uma menina acostumada desde muito cedo com o contato com homens, o substantivo, da fantasia , é incompreendido no começo da leitura, mas à medida que se entende a história de Maria Matamoros, entende-se também o substantivo designado a história dela.

Amei de maneira escura porque pertenço à Terra, Matamoros me sei desde menina, nome de luta que com prazer carrego e cuja origem longínqua desconheço, Matamoros talvez porque mato-me desde de pequenina, não sei, toquei os meninos da aldeia, me tocavam, deitava-me nos ramos e era afagada por meninos tantos, o suor que era o deles se entranhava no meu, acariciávamo-nos em suor e leite e quando a mãe chamava o prazer se fazia violento e isso me encantava, desde sempre tudo toquei, só assim é que conheço o que vejo, tocava os morangos antes do vermelho, tocava-os depois gordo-escorridos, tocava-os com a língua também, mexia tudo muito, tanto, que a mãe chamou um homem para que fizesse rezas sobre mim [...] (HH, 2004, p.61).

Assim começa a narrativa de Maria Matamoros que conta sua própria história e tenta desvendar tudo que sempre foi e sempre sentiu. Sem espaço e tempo definidos, a narradora vai e volta na estória sem muita explicação. O que se percebe no começo é o ambiente campestre em que vive mãe e filha. A mãe já entendia que algo acontecia Maria Matamoros tinha, alguma coisa nela era diferente. O homem citado no trecho acima é um religioso que tenta exorcizar a pequena Maria, mas que acaba não resistindo aos encantos e toca-a prazerosamente. A pequena narra sem pudor e com detalhes como era tocada por todos os homens desde criança, conta do prazer que sentia, da felicidade por ser tocada e de como deixava os homens felizes com a realização dos seus desejos. Na narrativa que envolve o sacerdote que foi exorciza-la é explicada, com clareza, a cena. Ele a amarra para realizar o exorcismo, solicita à mãe que o deixe sozinho com a menina, mas não resiste ao que Matamoros tinha a lhe oferecer. O sacerdote toca Maria, mas não perde a figura de religioso. Dentre as ações sexuais destacam-se as passagens religiosas, “o perfume espalhado da batina ” (p. 62, grifo nosso) é percebido pela jovenzinha que informa todas as posições em que foi posta pelo religioso, e de como ele a tocava. Os gritos, de prazer, da menina é ouvido pela mãe, que não se importa achando que são os “demônios azuis” (p. 62) saindo do corpo de sua filha. Logo após o ato sexual ele desamarra as mãozinhas de Maria para que ela possa concluir o ato, “me fazendo sugar o sumo santo ” (p. 62, grifo nosso) conta Maria. Oito anos já tinha Matamoros neste dia, e se encantou com o chupar dos dedos que aquele homem fez com ela, e afirma que ele “chupava em gozo como se chupa o carnudo das uvas” (p. 62). A mãe achou que tinha solucionado o problema da filha que por três dias nada tocou, mas era engano, afinal, a satisfação que o religioso provocara na menina a deixou assim, três dias sem querer nada. No quarto dia isso mudou, Maria estava de volta para desespero da mãe que a questionava porque tocar em tudo como se fosse dissecar uma fundura, sempre ficando sem respostas. Narrada a parte da infância Maria começa contar sobre sua paixão que se deu já na adolescência, por um homem que além de lhe dar a vida, lhe deu “sangue e ensanguentou Haiága” (p. 65). A partir deste momento a vida das duas, mãe e filha, mudou. Matamoros narra o começo de seu amor, em uma tarde especial, estava passeando, sua saia estava molhada e ela mesma admirava o desenho que suas coxas formavam, quando sentiu algo lhe tocando a nuca, movimentando seus cabelos, e quando olhou para trás, uns vinte passos de onde estava ela descreveu o homem que mudou a sua vida e de sua mãe.

em desfecho, sem conclusão e sem muitas explicações. Apesar de Semiona insistir no fato de que Tadeus não existe e que Maria está tento delírios, ao final da segunda novela é possível perceber que Tadeu está neste delírio, que Matamoros possa apenas ser fruto de seus desejos, que a filha de Haiága nunca, de fato existiu, que Tadeu a criou para que essa crise de meia- idade fosse solucionada. A jovenzinha profana desde criança fazia parte de uma crise de Tadeu. O conto que encerra a obra Tu não te moves de ti conta a história de Axelrod Silva (da proporção), que fala sobre as especulações do professor de História que é sobrinho de Haiága, mãe de Maria Matamoros, personagem da segunda novela. As discussões sobre tempo, finito e infinito dominam a narrativa. No todo, Tu não te moves de ti segue em busca de inquietações mais profundas do homem. Axelrod, personagem central dessa narrativa, é um professor de história que tem certeza de que tinha uma vida organizada, planejada e que não mudaria nada do que tinha conquistado. Da proporção é que subintitula a narrativa e nos é apresentada com indícios da mensagem poética do texto. Axel é visto como uma metáfora do pensamento ocidental. Assim como Tadeu e Maria, Axelrod também passa por uma luta com seu imaginário, neste caso a História que está sempre confrontando o seu eu, como personagem-narrador. Axel narra mostrando que seu imaginário tem vida própria, mecânica, mas algo que ele parecia não controlar. Axel é apenas um professor que está na tentativa de ter uma identidade, diante de um imaginário presente, imponente. O que mais intriga Axelrod é como seu imaginário espera reações e respostas dele, diferenciadas. A viagem que o personagem está fazendo em retorno a sua cidade natal, onde passou a sua infância, é completamente simbólica nesta obra, fazendo com a que a consciência histórica formada de Axel seja posta a prova nesta viagem de trem.

Assim, quanto mais Axelrod se aproxima de sua terra e gente, mais se descola das lições ortodoxas de história política e – entende-se agora o título do livro – menos se move de si mesmo. Do conjunto narrativo, portanto, cujo início trataria aparentemente de resolver os dilemas da esterilidade do capitalismo pelo gozo transcendente da poesia, não se tem ao final senão uma aporia dolorosa. Não há descanso possível na poesia, a não ser como expectativa ingênua de neófitos, nem o trem da história chega a descobrir qualquer fundamento seguro para a esperança e a utopia. Ao fim e ao cabo, predomina a pressão da urina no compartimento estreito, como a da poesia, aguda, dolorosa, no núcleo do desejo agônico e irredutivelmente pessoal. (PÉCORA, 2005, p. 7)

O desfecho das novelas é proposto pelo personagem de Axelrod, que almeja, talvez, achar a proporção entre a razão (Tadeu) e a fantasia (Maria). O sujeito da narrativa experimenta uma espécie de êxtase ao se envolver com a textualidade histórica. Na relação

com seu imaginário Axelrod vai além do que se imagina com tal, ele chega a ter relações sexuais dentro do trem com seu imaginário, Axel sofre com a mistura de sentimentos, está apenas sonhando enquanto seu trem da vida está movimentando, e ele mesmo não consegue se mover. Perde completamente o domínio de tudo que vive, não quer mais aquela realidade, que parece nem saber mais qual é. Conhecimento, prazer, opressão, delírio, o convidam a experimentar seus limites, deixando-o em êxtase físico e intelectual.

O mover-se do professor não é suficiente para transformar o mundo. Assim, a viagem nega a trajetória da personagem, frustra as perspectivas expostas no projeto das utopias revolucionárias, completamente falho na resolução das questões fundamentais do ser humano, reduzidas ao estatuto de questão menor, subordinada ao coletivo no qual o ser se inscreve como anulação e dissipamento. Axerold move-se na tensão entre o dentro e o fora, entre o movimento do trem e a sua inquietação interna. Não mover-se para fora, intensifica a mobilidade interna, a ampliação de todas as inquietudes existenciais e uma equivalência das dimensões temporais em um presente ahistórico, para o qual convergem todas as experiências do protagonista. (CAVALCANTI, 2010, p. 156).

Essa última viagem dá um ritmo mais intenso a narrativa, sendo ela mais fragmentada que as outras duas, e as vozes se misturam várias vezes, sem podermos compreender com quem Axel fala, a quem ele se refere. A parada do trem é o final da viagem e o inicio da instauração do cenário da morte. Axel precisa agora subir a colina, está tão fragmentado que Axelrod Silva foi se dividindo durante a viagem, e as referencias ao personagem no final da viagem são apenas Axel. A subida da colina, um Gólgota faz referência particular ao universo cristão. O fechamento da novela de Axel mostra-nos a complexidade das narrativas anteriores. Os personagens protagonistas das três novelas se movem apenas na linguagem, não conseguindo se moverem na realidade. Os três relatos podem ser lidos autonomamente, e provocará a mobilidade dos personagens diante um dos outros, mas é uma mobilidade ilusória, imaginária, que de fato não acontece. Várias outras menores manifestações profanas e sagradas aparecem nesta obra de Hilda Hilst, que não vão aqui serem citadas.

Referências bibliográficas ALBERONI, Francesco. O erotismo. Tradução de Elia Edel. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. ALEXANDRIAN. História da literatura erótica. Tradução de Ana Maria Scherer e José Laurênio de Mello. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.