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Uma análise da poética do artista petrônio bax, cujas obras são caracterizadas pela presença de imagens submersas em um ambiente marinho. O autor utiliza a classificação de imagens desenvolvida pelo filósofo francês gilbert durand para identificar as estruturas antropológicas presentes na obra de bax. O texto aborda a iniciação científica de carboni, a biografia do artista, os destaques na sua carreira e as obras mais representativas, além de uma análise detalhada das imagens recorrentes na poética baxiana, como o sol, a água, os pássaros e a lua.
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Tipologia: Provas
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Paulo Henrique Carboni 1
Resumo : A poética do artista mineiro Petrônio Bax (1927-2009) chama a atenção pela localização das imagens de seus quadros, que são compostos em um ambiente submerso, dentro do mar. Os peixes, algas marinhas, bar- cos, cidades, figuras humanas e teriomórficas povoam este ambiente baxiano. Seria o caso de uma oposição em relação ao mundo emerso, ou esta topologia pode mostrar-nos uma outra compreensão do universo simbólico do artista? Nosso objetivo foi o de analisar as telas e poemas do artista, à luz da classificação das imagens ela- borada pelo filósofo francês Gilbert Durand. Sob tal perspectiva, junto aos símbolos mais presentes do artista mineiro, identificamos tais imagens nos Regimes da Imagem tal qual posto por Durand, procurando estabelecer uma relação com o pensamento antropológico na identificação topológica da poética baxiana.
Palavras-chave : Petrônio Bax. Imaginário. Simbólico. Leitura de imagens.
Abstract : The poetry of the artist Petrônio Bax (1927-2009), from Minas Gerais, draws attention for the location of the images in his paintings, which are composed in a submerged environment, inside the sea. Fish, seaweed, boats, cities, human and teriomorphic figures populate this Baxian environment. Could it be the case of an opposition to the emerging world, or can this topology show us another understanding of the artist's symbolic universe? Our aim was to analyze the artist's canvases and poems, in the light of the classification of images developed by the French philosopher Gilbert Durand. From this perspective, together with the most present symbols of the artist from Minas Gerais, we identified such images in the Image Regimes as put forward by Durand, seeking to establish a relationship with anthropological thought in the topological identification of Baxian poetics.
Keywords : Petrônio Bax. Imaginary. Symbolic. Reading images.
A poética presente nos trabalhos de Petrônio Bax (1927-2009) sugere-nos uma análise profunda e consistente na constituição de um lugar privilegiado pelo artista para ambientar suas obras. Tal topos^2 , considerando a paisagem submersa retratada por Bax, sugere-nos uma
1 Paulo Henrique Carboni fez a sua iniciação científica entre 2017 e 2018 como bolsista da FAPEMIG, enquanto cursava a Graduação em Filosofia na FAJE, concluída em 2018. Foi orientando do Prof. Dr. Dr. Clovis Salgado Gontijo, e teve seu plano de trabalho vinculado ao projeto de pesquisa de seu orientador, intitulado “Espaços Submersos: um estudo topológico da poética de Bax”. Desde 2019, Paulo cursa o Mestrado em Filosofia Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/RS). E-mail do autor: paulocarboni@outlook.com. 2 A compreensão sobre topologia extraímos do vocabulário psicológico, que por sua vez tem referência à teoria física dos campos e à matemática. Aqui, tomamos topos e topologia por espaço e região [psicológica]. Cf. Vocabulário de Psicologia Topológica e Vetorial (2018).
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identificação com o profundo, o mistério e o silêncio. As paisagens e representações religiosas e naturais feitas por Bax suscitam àquele que se coloca diante de seus quadros uma reflexão movida não só pelos símbolos presentes nas obras e pelos temas religiosos que Bax nos apre- senta, mas, sobretudo, pelo lugar submerso em que tudo isto acontece.
O espaço em que a poética baxiana se nos apresenta seria, portanto, simplesmente inte- rior e imerso? Ou, de outro lado, o topos representado é o “verso de um outro lado”? Oposto à nossa realidade? Nossa análise dispõe, então, da classificação dos símbolos recorrentes da obra baxiana. Para tanto, a obra de Gilbert Durand (2001), As estruturas antropológicas do imaginário, servirá de apoio na elaboração de um estudo capaz de aceder a este lugar no qual o artista sintetiza sua poética, numa perspectiva estética, reconhecendo os símbolos recorren- tes na poética baxiana, associando-os às classificações estruturais e isotópicas das imagens tal qual apresentado por Durand. O imaginário concebido por Bax pode, então, encontrar res- sonância nas estruturas antropológicas pelas quais o pensamento do homo sapiens se realiza.
Petrônio Bax nasceu em Carmópolis de Minas, em Minas Gerais, em 11 de maio de
Lembro-me de meu pai falar da Holanda e mencionar suas terras abaixo do nível do mar. Me lembro também de gente que desconhe- cia a Holanda e se espantava. Mas a Holanda fica abaixo do nível do mar? E eu imaginando cidades submersas... (BAX, 2008, p. 85).
Em 1943 muda-se para a capital do estado, Belo Horizonte. Por ocasião da fundação da Escola de Belas Artes, por Juscelino Kubitschek, no ano de 1944, Bax foi aluno de Alberto da Veiga Guignard (1896-1962) junto a outros artistas como Yara Tupinambá (1932), Mário Silésio (1913-1990) e Sara Ávila (1932-2013). Bax pertence, pois, a uma geração marcada pela moderna Belo Horizonte, cujas transformações culturais e arquitetônicas configuraram um novo cenário para a cidade.
No ano de 1949, Bax realiza a sua primeira exposição individual, num dos lugares tra- dicionais para as artes naquela época: o saguão do Grande Hotel de Belo Horizonte. Antes, porém, já havia exposto algumas de suas criações em exposições dos alunos da Escola de Belas Artes junto ao mestre Guignard.
A partir de 1951 Bax deixa Belo Horizonte e volta a Divinópolis, cidade onde viveu a sua infância. É neste ano que Petrônio Bax se casa com Leda Lopes de Carvalho, e deste ca- samento nasceram seus dois filhos: José Eduardo e Simone. Em Divinópolis, a arte baxiana exige dos espectadores locais a constante interpretação da dialética entre tradição e moder- nidade. Bax, inteiramente submerso nas atividades modernistas da capital, realiza inúmeros
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horizonte humano da compreensão antropológica sobre si mesmo. As respostas dos “proble- mas relativos à significação, portanto ao símbolo e ao Imaginário, não podem ser tratados – sem falsificação – por apenas uma das ciências humanas” (DURAND, 2001, p. 18).
Em seu livro, Estruturas Antropológicas do Imaginário (2001), o filósofo francês preten- deu compreender, longe de ser reducionista ou até estruturalista, o museu imagético humano. Assim, apoiando-se em estudos sociológicos, psicanalíticos, antropológicos e filosóficos, o autor estabeleceu a sistematização do imaginário humano.
Parece que para estudar in concreto o simbolismo imaginário será preciso enveredar resolutamente pela via da antropologia, dando a esta palavra o seu sentido pleno atual – ou seja: conjunto das ciências que estudam a espécie homo sapiens – sem se pôr limitações a priori e sem optar por uma ontologia psicológica que não passa de espiri- tualismo camuflado, ou uma ontologia culturalista que, geralmente, não é mais que uma máscara da atitude sociologista, uma e outra destas atitudes resolvendo-se em última análise num intelectualismo semiológico. (DURAND, 2001, p. 40).
Gilbert Durand reconhece duas estruturas fundamentais às quais a imaginação simbó- lica está sujeita: O Regime Diurno e o Regime Noturno. São estruturas paralelas em que se concentram os símbolos utilizados pelo homo sapiens em sua construção imaginária. Longe de reduzir a rica compreensão simbólica, e tão diversa, ao longo dos tempos, Durand explica a necessidade de se
definir uma estrutura como uma forma transformável, desempe- nhando o papel de protocolo motivador para todo um agrupamen- to de imagens e suscetível ela própria de se agrupar numa estrutura mais geral a que chamaremos Regime. (DURAND, 2001, p. 64).
De maneira a reunir estas estruturas simbólicas, sem que se excluam mutuamente, os regimes “não são agrupamentos rígidos de formas imutáveis” (DURAND, 2001, p. 64).
O Regime Diurno é tido, principalmente, como o regime da antítese, com estruturas opositoras, da verticalidade e da ascenção. Tal regime ainda carrega elementos como o he- roico, a iluminação, a paternidade, a masculinidade. Também a objetividade, a clareza e a ra- zão configuram arquétipos da estrutura diurna da imagem. Amparado na antítese luz-trevas, Durand propõe uma subdivisão no imaginário diurno: na primeira parte, As faces do tempo, os símbolos teriomórficos, nictomórficos e catamórficos conduzem a uma análise das trevas e suas diferentes representações de morte, monstros, ausência de luz, etc. Na segunda parte, O cetro e o gládio, o filósofo conduz-nos à análise dos símbolos ascensionais, espetaculares e
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diairéticos, ou seja, especificamente opositores. Marcados, sobretudo, pelas imagens heroicas, fálicas e masculinizadas. Tal Regime,
caracterizado por constelações simbólicas, todas polarizadas em tor- no dos dois grandes esquemas, diairético e ascensional, e do arqué- tipo da luz. É com efeito o gesto diarético que parece subentender todo esse regime de representação [...] O Regime diurno é, portanto, essencialmente polêmico. (DURAND, 2001, p. 179).
De outro lado, “O Regime Noturno da imagem estará constantemente sob o signo da conversão e do eufemismo” (DURAND, 2001, p. 197). Na estrutura imagética noturna, sem excluir as imagens do Regime Diurno, por vezes inclusive, usando a mesma linguagem, Durand identifica que há uma inversão no sentido da compreensão dos símbolos. Aqui já não é o esquema da antítese que se sobrepõe, mas o sentido de harmonia e união. A fecundação, o feminino, a intimidade são fortes traços que representam o Regime Noturno.
Num e noutro grupo há valorização do Regime Noturno das imagens, mas num dos casos a valorização é fundamental e inverte o conteúdo afetivo das imagens: é então que, no seio da própria noite, o espírito procura a luz e a queda se eufemiza em descida e o abismo minimi- za-se em taça, enquanto, no outro caso [No Regime Diurno], a noite não passa de propedêutica necessária do dia, promessa indubitável da aurora. (DURAND, 2001, p. 198).
A primeira parte, A descida e a taça, expõe os símbolos da inversão e da intimidade, apresentando ainda as estruturas místicas do imaginário. Estes estudos dos elementos de des- cida e intimidade configuram-se às estruturas cíclicas e de retorno encontrados em Do dená- rio ao pau, a segunda parte do Regime Noturno. Os símbolos cíclicos, rítmicos e progressivos, assim como a sintaxe dos mitos, compõem o estudo de Durand nesta parte do livro.
Passamos agora à configuração das imagens baxianas na esquemática geral dos regimes imagéticos de Durand. Acreditamos que esta classificação nos permite inserir a poética de Bax num entendimento filosófico no qual o símbolos são descritos.
A identificação dos símbolos participantes do regime arquetípico diurno inclui, sobre- tudo, a questão opositora em que se encontram tais símbolos. Ou seja, o Regime Diurno é marcado, em si mesmo, por um contraste em que os símbolos se nos apesentam. O claro e o
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Figura 3: Anunciação
Fonte: Coleção Simone Bax
O Sol está presente em muitas obras de Bax. Há casos ainda em que a presença de mais de um astro acontece, como em Jesus Ichthys (Figura 1). A posição que o Sol ocupa nos quadros é sempre no ponto mais alto da tela, por vezes aparecendo apenas a sua metade in- ferior, mas sempre presente. Os raios luminosos expandem-se pela tela, ora em movimentos concêntricos, como em O velho pescador (Figura 2), ou em linhas retas, como em Anunciação (Figura 3) onde os raios parecem fertilizar a cena. De qualquer maneira, enquanto “símbolo espetacular” (DURAND, 2001, p. 146), o Sol representa uma luz suprema, novidade do dia, como que nos fisgando a uma elevação espiritual. “Na tradição medieval, Cristo é constan- temente comparado ao Sol, é chamado sol salutis, sol invictus” (DURAND, 2001, p. 149). A condição ascendente e soberana do astro é que o caracteriza positivamente. Nos quadros com a temática religiosa explícita, como Batismo de Cristo (Figura 4), Estigmas de São Francisco (Figura 5) e São Francisco (Figura 6), há a figura da auréola, representada no próprio Cristo ou em São Francisco. Durand aponta a relação entre a coroa (auréola) e o Sol, onde
na origem, a coroa, como a auréola cristã ou budista, parece de fato ser solar. [...] Bachelard desvela bem o verdadeiro sentido dinâmi- co da auréola, que não passa da “conquista do espírito que pouco a pouco toma consciência da sua claridade... a auréola realiza uma das formas do sucesso contra a resistência à subida. (DURAND, 2001, p. 151).
É pertinente esclarecer que no quadro São Francisco (Figura 6) aparecem ainda dois pássaros, o que faz com que haja uma relação com os símbolos ascensionistas, no sentido de que “O Sol ascendente é, de resto, muitas vezes comparado a um pássaro” (DURAND, 2001, p. 149). Aqui, Bax conseguiu retratar duas grandes representações: a que atualiza a elevação
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espiritual nas imagens do Sol e dos pássaros, junto àquela em que, na tradição católica, S. Francisco de Assis é imaginado em proximidade aos animais, em especial aos pássaros, como um amigo da criação divina.
Figura 5: Estigmas de S. Francisco Figura 4: Batismo de Cristo
Fonte: Coleção Simone Bax Fonte: Coleção Simone Bax
Figura 6: São Francisco Figura 7: Jesus Crucificado
Fonte: Coleção Simone Bax Fonte: Coleção Simone Bax
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Há ainda um escrito de Bax, Luar da Última Jornada, em que duas estrofes do poema conseguem condensar esta vivência em busca de um outro mundo possível, ou ainda, de um outro modo possível de estar presente no mundo.
[...]Hoje esta luz da fé e da esperança É o tesouro que recebi de herança Ficou o belo Sol da minha infância Um dia acharei o portal dos círios Entrarei no interior do templo Para enfeitar o altar com brancos lírios E ter a senha para ir tranquilo Iluminando o chão da minha estrada Suave e belo como um Sol nascente O lume interior é só da gente Nosso amigo fiel nessa jornada[...]. (BAX, 2002, p. 89).
Este escrito parece conter uma síntese do que tratamos por Regime Diurno da Imagem. O caráter ascensional conduz o poeta a não só olhar para a infância, ilustrada como Sol, mas o impulsiona para um outro lugar, um templo, uma jornada. Bax não aponta simplesmente para um outro lugar possível da existência, seja ele mais espiritual ou místico. Nestas linhas, sob a ótica diurna, podemos considerar que há uma assimilação da condição existente como quem assume sua condição de vida (ou jornada) no mundo de um outro modo possível.
Não poderíamos deixar de referenciar, primeiramente, a construção poética submersa de Bax. E esta imersão em águas tão profundas é o ambiente por excelência eleito pelo pintor. Título também de um de seus livros, Das águas ao espírito (2004), o elemento da água per- passa os quadros e a letras de Bax. É, nas palavras do próprio artista, a “substância maternal” (BAX, 2018, 10min42s).
De um lado, a água pode ser referida àquilo que deve ser purificado e, por conseguinte, estar relacionada às estruturas opositoras como o puro versus impuro, o claro versus escuro, tomando a água (e o mar, em questão) como um elemento da ordem daquilo que é obscuro, incerto, irreversível, uma vez que
a primeira qualidade da água sombria é o seu caráter heraclitiano. A água escura é “devir hídrico”. A água que escorre é amargo convite à viagem sem retorno: nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio e os cursos da água não voltam à nascente. (DURAND, 2001, p.96).
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As águas que Bax nos apresenta revelam a profundidade e um espaço não de oposição, mas unificado e envolto pelas águas tal qual o útero materno. Assim, como garante Durand ao explicitar o Regime Noturno, há o “abandono do regime da antítese” (DURAND, 2001, p. 199). Mas isto não nos ilude no sentido de que a linguagem utilizada pelos regimes opositores seja renovada por um
contexto imaginário completamente diferente. Por exemplo, o tempo “puro” ligava-se, para a imaginação metafísica da transcendência, aos símbolos da ruptura, da separação. Pelo contrário, a imaginação on- tológica da imanência lerá, por detrás deste atributo, os substantivos simbólicos da ingenuidade, da imemorialidade, da imediatez origi- nária. (DURAND, 2001, p.199).
As águas baxianas são, pois, profundas e, como tais, enquadram-se na classificação no- turna das imagens. Ainda assim, cabe-nos explicitar a questão de uma relação entre o pro- fundo e o místico, este último, particularmente, ao conjugar “uma vontade de união e um certo gosto da intimidade secreta” (DURAND, 2001, p.269). Assim acontece na maioria dos quadros, onde céu e água estão como que misturados, ou ainda, onde tudo está imerso em um grande mar de existência. Verificamos, sobretudo, em Anunciação (Figura 3), onde aparecem elementos tipicamente associados ao Regime Noturno, como a lua, o feminino, a manifes- tação do divino (enunciado até pela referência do título da obra^4 ). Ademais, o movimento descendente do quadro é revelado pelo fluxo de pequenos peixes, ou espermatozoides, ema- nados pelo Sol em direção à Maria (aquela que é desprovida do pecado original, imacula- da). Curioso é notar que Maria também é conhecida na tradição católica por Stella Maris, a Estrela do Mar. A descida e a fecundação revelam, per se, a condição mística e noturna da imagem. Também é por esta fecundação presente no quadro que há comunicação entre dois lugares que poderiam ser contrários, mas que aqui se encontram de maneira clara e harmô- nica. Participantes de um mesmo plano, e ao mesmo tempo diferentes entre si, a água é capaz de unificar estes lugares: alto e baixo, cosmo e terra, divino e humano. O mar é o “supremo engolidor” (DURAND, 2001, p. 225). E é este mar o que está presente nos quadros de Bax. A condição abissal das águas marinhas, quietas e silenciosas águas, traduzem o feminino e o materno “que para numerosas culturas é o arquétipo da descida e do retorno às fontes origi- nais da felicidade” (DURAND, 2001, p. 225). É, portanto, a esta descida noturna, materna e tranquila, que Bax nos conduz por meio de seus quadros.
Em alguns escritos de Bax, a água também é bem explicitada. Títulos como Chuva Alegria, Ponte e Água, Nos Mares altos de Minas, Água do Céu, são textos pertencentes ao livro de poesias Som de Caramujo (2002). E ainda o livro Das Águas ao Espírito (2004), que contém o poema de mesmo nome, O peixe deixa as água-de-baixo, Água e Humildade, Chuva Triste, e outros. Contudo, não basta uma análise pelo conteúdo das titulações textuais. Em outros poemas, em sua grande maioria inclusive, há menção à água. Assim acontece em Ichthys: “O
4 A anunciação, para a teologia Cristã, é quando o Anjo Gabriel, enviado por Deus, comunica a Maria que ela gestará Jesus. Cf. Lc 1, 26-38 [Versão: Bíblia de Jerusalém].
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Figura 9: Paisagem Submersa I
Fonte: Coleção Simone Bax
É assim que “o peixe é símbolo do continente redobrado, do continente contido” (DURAND, 2001, p. 214) no esquema do Regime Noturno. Representado em diversos tama- nhos, dos pequenos aos grandes, “o peixe é a confirmação natural do esquema engolidor en- golido [...] e não é ele, igualmente, o engolido primordial pela água que o rodeia”? (DURAND, 2001, P. 215). Assim, há uma ideia de eterno retorno ao conjugarmos o fato de que um peixe se alimenta do outro, o maior engolindo o menor.
Retenhamos apenas a sua extraordinária capacidade de encaixe. Sem esquecer que esse poder de redobramento, pela confusão do sentido passivo e ativo que implica, é, tal como a dupla negação, capacidade de inversão do sentido diurno das imagens. É essa inversão que va- mos ver em funcionamento, metamorfoseando os grandes arquétipos do medo e transformando-os, como que do interior, por integração prudente dos valores benéficos. (DURAND, 2001, p. 217).
Figura 10: Anjos, flores e peixes
Fonte: Coleção Simone Bax
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O símbolo pisciano também é encontrado associado às figuras humanas. É o caso de Anunciação (Figura 3), Anjos, flores e peixes (Figura 10) e outros. A presença de seres huma- nos com caudas iguais a dos peixes insinua a completar o que falta em um com a parte do ou- tro, resgatando o instinto primordial do ser humano, intrauterino, envolto em água. Segundo Durand, “o peixe é quase sempre significativo de uma reabilitação dos instintos primordiais. É essa reabilitação que indica as figuras onde uma metade de peixe vem completar a meta- de de um outro animal ou de um ser humano.” (DURAND, 2001, p. 216), assim, o esquema engolidor engolido, distinto de um morder negativo, traz à tona o caráter de fecundação e de fertilidade. Há, pois, uma aproximação a partir das entranhas: o ventre que digere também é o ventre que gera. “Um hino medieval, lembrando a denominação gnóstica de Cristo Ichtus, diz deste que é ‘o pequeno peixe que a Virgem tomou na fonte’, ligando assim o tema do peixe ao da feminilidade materna” (DURAND, 2001, p.216).
Figura 11: Santa Ceia
Fonte: Coleção Simone Bax
Outro símbolo do Regime Noturno presente nas obras baxianas é a Lua, elemen- to propriamente noturno, compreendido “com efeito, como a primeira medida de tempo” (DURAND, 2001, p.285). De novo nos deparamos com a questão cíclica do eterno retorno. Por um lado, desde a ótica ascendente do Regime Diurno, a Lua pode oferecer-nos uma in- terpretação da decadência e da morte, uma vez que ela só aparece ao findar do dia. Contudo, quando a Lua é compreendida pelo Regime Noturno, tal símbolo é o primeiro morto que volta à vida, revelando o esquema de eterno retorno. Segundo Durand,
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Em Durand, a barca é reorientada ao sentido de continente (DURAND, 2001, p. 249). Lugar onde se pode pisar, assolar os pés, a nau em meio ao grande mar se torna um pedaço de chão pelo qual o pescador, por exemplo, consegue se manter em postura fixa. As barcas em Bax, em geral, aparecem sozinhas, sem timoneiro. Exceto, em nossa seleção, O velho pescador (Figura 2), onde quase que como num autorretrato, está presente um velho homem lançando as redes ladeado de um grande peixe que se confunde ao abissal mar multicolorido. Chamou- nos atenção este quadro, em particular, por oferecer uma coloração rica e pela figura humana assemelhar-se ao pintor. “Se é verdade que o navio se transforma em casa, a barca torna-se, mais humildemente, berço” (DURAND, 2001, p. 251). E, ainda,
poderíamos igualmente mostrar que esta segurança acolhedora da arca participa da fecundidade do Abyssus que a leva: é uma imagem da Natureza Mãe regenerada e que despeja a vaga dos seres vivos so- bre a terra reconduzida à virgindade pelo dilúvio. (DURAND, 2001, p. 251).
Em nossa pesquisa identificamos alguns textos de Bax que insinuam a questão da bar- ca como um lugar de memória, um meio de navegar em águas tão profundas. Em Pescando Sonhos:
Os pescadores Sempre dependem De quem? Dos peixes Os peixes? Das águas Ambos dependem Nas águas Navegam pensamentos Aquáticos Mistérios do sempre navegar Desde as primeiras águas Em barcos de sonho Aonde? Os peixes talvez saibam Voltam sempre Às mesmas águas Para desovar Os homens flutuam Velejando verdes ondas A qualquer vento Sonhando encontrar Um porto seguro Onde atracar Alguns voltam
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Com alguns peixes Dizem que foram Pescar... (BAX, 2004, p. 87).
O caráter mnemônico e onírico deste poema parece ganhar eco à medida em que a interpretação do símbolo da barca é entendida como topos, continente, lugar; e como berço, infantil, ou seja, de manifestação do cuidado materno, feminino, lugar de repouso, descanso, entrega confiante e ingenuidade.
A nossa pesquisa orientou-se na consideração de uma topologia pela qual pudéssemos estudar a obra de Petrônio Bax. Esta nossa intenção desdobrou-se em analisar os símbolos mais pertinentes e presentes na obra baxiana. É nesta construção simbólica que podemos nos orientar para a análise do lugar predominantemente evocado pelo artista. Tampouco po- deríamos simplesmente analisar tal topologia sem que, para nós, a poética baxiana estivesse inserida numa estrutura teórica e sistematizada. É assim que o trabalho de Gilbert Durand nos serviu de apoio ao desenvolvimento de nossos objetivos.
Petrônio Bax era um artista. E não só pela sua poética. É que ao frequentarmos o seu ateliê, ao debruçarmo-nos sobre os livros de sua coleção particular, ao ouvirmos os relatos de pessoas que participaram de seu convívio, entendemos que a própria vida do artista se confi- gurou em uma estreita relação, inclusive espiritual, na compreensão do mundo e de si mesmo. E isto por si só já se estende para além de uma análise teórica pela qual as artes tendem a ser objetivadas. Nosso intento não foi o de fundamentar o trabalho de Bax. Antes, por deparar- mo-nos com seus escritos e sua arte submersa, é que nos despertou o interesse em tal análise. Assim, a poética baxiana convida, primeiramente, cada espectador a uma apreensão instan- tânea, talvez um mergulho, em suas imagens. Ali, junto a peixes e algas, em meio a barcos e cidades, a pergunta pelo lugar em que o artista pintou é inevitável. Mais ainda, a pergunta sobre o nosso lugar reverbera a partir do encontro com tais águas. Bax afirma:
Minha pintura está intensamente relacionada com tudo o que sou, com tudo o que faço. É tudo muito simbólico. Acho que a coisa mais bonita que Deus nos deu foi a imaginação, porque a gente pode ima- ginar coisas fabulosas (BAX, 2008, p. 118).
E são as próprias águas que nos impelem a nadar, ou melhor, a descobrir o grande sinal de compreensão topológica. Para Tales de Mileto (623 a.C. ou 624 a.C. - 546 a.C. ou 548 a.C.) a água era um elemento primordial, essencial, a arché natural. Na teologia judaico-cristã, a água foi o elemento de renovação deste nosso mundo nas narrativas do dilúvio, denotando toda esta dimensão de renovar a existência até alcançar o sentido do batismo enquanto sacra- mento. Para Bax, que sugere a maternidade da água, as águas marinhas constituem o lugar por excelência da experiência humana. Isto porque estamos como que submersos numa realidade
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______. Das Águas ao Espírito. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2004.
______. Homenagem ao Pintor Petrônio Bax no Programa Em Off. 2018, 27min27s. Disponível em: ht- tps://www.youtube.com/watch?v=cIl6oaPxQTc. Acesso em: 16 fev. de 2018.
BÍBLIA de Jerusalém. Nova ed. rev. e ampl. 2. impr. São Paulo: Paulus, 2003.
DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. Trad. Helder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 2001, 2ª ed.
FONTES FRANCISCANAS. Trad. Celso Márcio Teixeira [et. al.]. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.
NO JARDIM DE BAX. Direção de Ana Romano, prod. Prefeitura de Belo Horizonte, Secretaria Municipal de Educação, Fundação Municipal de Cultura e CRAV – Centro de Referência Audiovisual de Belo Horizonte, 2006, 10min. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0P3R6yTLmno. Acesso em 16 fev. de 2018.
VOCABULÁRIO DE PSICOLOGIA TOPOLÓGICA E VETORIAL. Disponível em: http://www.mari- lia.unesp.br/Home/Instituicao/Docentes/RicardoTassinari/LewinV.htm#conceitosdepsicologiatopol%- C3%B3gica. Acesso em 16 de fev. de 2018.