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as cantigas d'escárnio e maldizer, Notas de aula de Poesia

AS CANTIGAS D'ESCÁRNIO E MALDIZER. Affatto Robl *. Afigura-se, è primeira vista, paradoxal o ethos da poesia trova- doresca.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Lula_85 🇧🇷

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AS CANTIGAS D'ESCÁRNIO E MALDIZER
Affatto Robl *
Afigura-se, è primeira vista, paradoxal o ethos da poesia trova-
doresca. Como é que um trovador do estofo lírico de um João Gar-
cia de Guilhade o poeta irremediavelmente ensandecido pelos olhos
verdes da amada (CA 229) 1 - pôde descer às chocarriceso fesce-
ninas endereçadas às soldadeiras Elvira Lopes e dona Ouroarta (LAPA)
205, 206 e 213)? 2
Diz Segismundo Spina:
Para uma análise serena da poesia trovadoresca euro-
péia, precisamos, antes de tudo, despojar-nos de certos
preconceitos da vida moderna, que perturbam o nosso
espírito crítico na compreensão da realidade ética dessa
poesia. As formas de vida, sobretudo, a intensidade dra-
mática com que a sociedade medieval dessa época vivra,
diferem visceralmente do nosso modus vivendi, cujas di-
mensões e profundidade estão muito longe daquele pa-
thos da vida medieval de que fala Huizinga. 3
Importao perder de vista o caráter dualistico que empresta
uma aparente contradição ao trovadorismo medieval. De um lado,
a homenagem tributada a senhoras de alta linhagem, a mesura, a
idéia de que beleza da amada é graça divina, o amor considerado
essencialmente como um serviço, o lirismo escolástico, o servus em
êxtase amoroso perante a domina, que lançam suas raízes no idea-
lismo platônico e cristão, e no maniqueísmo càtaro: a sublímação
da. mulher. Do outro lado, a inebrisção dos sentidos, o desejo arden-
te da posse, o amor sensual que persegue implacavelmente o ¡arer
('at. ¡acere) e o jauzir (lat. gaudere), lirismo ancorado na erótica
naturalista de Ovidio. O termo mesura (lat. mensura) denota "mo-
deração", "equilíbrio das atitudes e paixões", 'domínio de si": "La
mesura les fará que obren de Ias cosas como deven, e non passen
1 As indicações CA no texto referem-se à obra de VASCONCELOS. C. M. Cancioneiro
dn Ajuda. Ed. crítica c comentada. Huile, M. Niemeyer, 1904.
2 A abreviatura LAPA refcrc-se no livro de LAPA, M. R. Cantila« d'eseamlo « de
mal dizer doa cancioneiros Kalcpo-portnKUcscs. 2 cd. Vigo, Ed. Falaxia, 1970.
S SPINA, SeKismuntío. O "fazer bem" dos cantares trovadorescos. KevUta Brasileira
d« Filologia, Rio de Janeiro, 2:185-6, dez. 1956.
5 LETRAS (29) 1980
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AS CANTIGAS D'ESCÁRNIO E MALDIZER

Affatto Robl *

Afigura-se, è primeira vista, paradoxal o ethos da poesia trova- doresca. Como é que um trovador do estofo lírico de um João Gar- cia de Guilhade — o poeta irremediavelmente ensandecido pelos olhos verdes da amada (CA 229) 1 - pôde descer às chocarrices tão fesce- ninas endereçadas às soldadeiras Elvira Lopes e dona Ouroarta (LAPA) 205, 206 e 213)? 2

Diz Segismundo Spina: Para uma análise serena da poesia trovadoresca euro- péia, precisamos, antes de tudo, despojar-nos de certos preconceitos da vida moderna, que perturbam o nosso espírito crítico na compreensão da realidade ética dessa poesia. As formas de vida, sobretudo, a intensidade dra- mática com que a sociedade medieval dessa época vivra, diferem visceralmente do nosso modus vivendi, cujas di- mensões e profundidade estão muito longe daquele pa- thos da vida medieval de que fala Huizinga. 3 Importa não perder de vista o caráter dualistico que empresta uma aparente contradição ao trovadorismo medieval. De um lado, a homenagem tributada a senhoras de alta linhagem, a mesura, a idéia de que beleza da amada é graça divina, o amor considerado essencialmente como um serviço, o lirismo escolástico, o servus em êxtase amoroso perante a domina, que lançam suas raízes no idea- lismo platônico e cristão, e no maniqueísmo càtaro: a sublímação da. mulher. Do outro lado, a inebrisção dos sentidos, o desejo arden- te da posse, o amor sensual que persegue implacavelmente o ¡arer ('at. ¡acere) e o jauzir (lat. gaudere), lirismo ancorado na erótica naturalista de Ovidio. O termo mesura (lat. mensura) denota "mo- deração", "equilíbrio das atitudes e paixões", 'domínio de si": "La mesura les fará que obren de Ias cosas como deven, e non passen

1 As indicações CA no texto referem-se à o b r a de V A S C O N C E L O S. C. M. C a n c i o n e i r o dn Ajuda. Ed. c r í t i c a c comentada. Huile, M. Niemeyer, 1904. 2 A abreviatura L A P A refcrc-se no livro de L A P A , M. R. C a n t i l a « d'eseamlo « de mal dizer doa cancioneiros Kalcpo-portnKUcscs. 2 cd. Vigo, Ed. F a l a x i a , 1970. S S P I N A , SeKismuntío. O " f a z e r b e m " dos cantares trovadorescos. KevUta B r a s i l e i r a d« Filologia, Rio de J a n e i r o , 2 : 1 8 5 - 6 , dez. 1956.

a mas." 4 Implica também na "cortesia", "discrição", "bondade". Me- dievalização da sophosyne platônica e da mesotes aristotélica (e r>ão da ascese cristã), mesura é conceito trovadoresco moral e esté- tico, ao mesmo tempo; sem virtude não existe a.utêntica cortesia, mas esta deverá inspirar-se na alegria (¡oi) causada pelo êxtase con- templativo da beleza e do honra (prez) da dama — personificação da virtude. No entanto, mostra-se extremamente fugidio o sentido da |oi trovadoresca: oscila entre a "alegria", a "euforia espiritual" e a "idéia" ou até o "fato da fruição amorosa", mas que não pretende permanecer apenas no terreno s u b j e t i v o... Consiste, pois, o amor cortês, que não deve ser confundido com o amor arturiano e cavalheiresco, na delicadeza, no refinamento da arte de amar, numa terna e respeitosa emoção provocada tão so- mente pelo pensamento da mulher amada, promovida moral e poe- ticamente à categoria da dona; consiste na idéia de que o amor é, em si mesmo, fonte de valor, se não de virtude. É preciso, contu- oo, frisar bem que esse amor dos trovadores é concomitantemente etéreo e terreno, platônico e sensual. O amor arturiano designa, por sua vez, a fusão do amor e da. magia, a exploração do sobre-huma- no (realiza-se num mundo maravilhoso), o estado de encantamen- to amoroso. Reserva-se a expressão amor cavalheiresco è galante- ria heróica, generosa, extravagante por vezes, que os cavaleiros an- dantes prestavam às demoiselles e às damas.s Para Frappier, no fine amor, que é a nuança mais refinada do amor cortês, não há oposição fundamental entre a, paixão e o amor, entre a carne e o espírito. Há, sim, presença simultânea, coexistên- cia, consubstanciação do desejo carnal e da sublrmação. É o fine amor um composto indisolúvel, um todo global, em que se fun- dem carne, coração e espírito, e donde se irradia um encantamento produzido pelo pensamento constante da dama, pela obsessão de sua imagem: fonte de alegria no próprio seio da tristeza; e a "sacra- lízação" (união do desejo erótico com uma espécre de fervor reli- gioso) de um amor em princípio adúltero, subjetiva ou até objeti- vamente. Ressalte-se, todavia, que o fine amor idea,lizava-se, espiri- tualizava-se cada vez mais, devrdo a contingências históricas (por exemplo, a cruzada contra os albigenses) e, sobretudo, à religião cristã e feudal (v.g , o culto à Virgem Maria). "

4 A L F O N S O X. el Sábio. Las siete p a r t i d a s : cotejadas con varios códeces antisruos por la Real Academia de la Historia. Madrid. Impr. R e a l. 1807. pt. 2, t. 21, lei V. 6 Cf.. F R A P P I E R , J e a n. Sur un procès f a i t à l'amour courteois. R o m a n i a , Paria 9 3 ( 2 ) : 1 9 0 , 1973. 6 Cf. F R A P P I E R , p. 166 e 192.

nas obras de Horácio, Marcial, Juvenal e Pérsio, a ponto de Quirv liilano afirmar, com evidente exagero: "Salira quidem tota nostra est". Herdeiros da graça céltica e latina, tornaram-se os galego-por- tugueses exímios mestres na chaiaça. Num de seus descordo,* tes- temunhou Martim Moxa, trovador aragonés, a proclividade escarni- nha do povo luso-gaíaico: "Vej' achegados, loados, de muitos amados os de maldizer" (LAPA 280). Essa atitude procaz dos nossos avoengos vem corroborada è saciedade pelas diversas palavras ou expressões designativas do conceito "falar mal de alguém", correntes no séc. XIII: apoer, chu- far, desdizer, escarnecer, escarnir, posfaçar ou profaçar, travar, fa- zer jogo, dizer coblas ou cobras... (Esta última expressão signi- fica propriamente "satirizar em versos"; cobras foi tomado, mais tarde, na acepção de "serpentes", uma vez que a, sátira não está longe da língua viperina). As cantigas d'escárnio e maldizer constituem considerável par te dos nossos cancioneros medievais. Das 431 cantigas do terceiro gênero trovadoresco publicadas por Rodrigues Lapa na monumen- tal obra Cantigas d'escamho e de mal dizer dos cancioneiros me- dievais galego-portugueses, 288 constam igualmente no Cancioneiro da Biblioteca Nacional e no Cancioneiro da Vaticana, 92 encontram- se somente no CBN, 50 fazem parte do CV e uma (misto de cantar d'amigo e de maldizer) foi extraída do Cancioneiro da Ajuda. Essas composições escarninhas teriam formado, na opinião de Carolina Michaelis de Vasconcelos, o prístino Cancioneiro de burlas, no qual os originais viriam acompanhados de notação musical. 8 Destacam-se vários planos em nossos versos de chufa medie- vais. Nos seis capítulos que restaram da sua terceira parte, a Arte de trovar, apensa ao CBN, teoriza esmiuçadamente sobre as moda- lidades do gênero satírico. As cantigas 'd'escárnio eram veladas, indi- retas, impessoais: "Son aquelas que os trabadores fazen querendo dizer mal d'algué(n) en elas, e dizen-lho per palavras cuber- tas, que hajan duos entendimentos pera lhe lo non en- tenderer» /... / ligeiramente,- e estas palavras chamam

8 Cf. CA v. 2. p. 4 e 286.

os clérigos hequivocatio (por aequivocatio). E estas can- tigas se poden fazer outrossi de maestria ou d« refrán" (cap. V). Nas cantigas de maldizer (espécie à que pertence a maioria das nossas poesias satíricas) atacava-se a descoberto, diretamente; nelas, diria eu vulgarmente, dava-se o nome aos bois, isto é, cha- mavam-se as pessoas e as coisas pelo seu nome-,

"Son aquelas — diz o fragmentário tratado métrico — que fazen os trabadores mais descobertamente,- en elas entran palavras que queren dizer mal e non haver < á n > outro entendimento senon aquel que queren chãamen < t e > e outrossi a todos fazen dizer mais" {cap. IV). Portanto, nas cantigas d'escárnio, o ataque, velado sob formas ambíguas, magoava de leve, ao passo que nas de maldizer a ofen- sa direta, sem artifícios, vazada em termos baixos e dfcazes, feria brutalmente. Todavia, nem sempre é fácil fazer tal distinção, devi- do à freqüente concorrência do equívoco e da obscenidade numa mesma composição. Enumeram-se ainda, nesse tratado de poética, outras categorias sarcásticas: os joguetas d'arteiro, as cantigas de seguir, a própria tenção lírica, com ressaibos de chacota e as risadilhas. Joguetes «farteiro eram velhos escarnhos de cunho popular. Constituíam as cantigas <de seguir (não de segrel, como pretendia Teófilo Braga) uma espécie de paródia, ou melhor, um novo tratamento, próprio e pe- culiar, de antigos tópoi, quer da poesia popular e tradicional, quer de poetas individualmente conhecidos. A tenção, debate sobre qual- querj assunto, assumiu entre nós caráter preferencialmente satíri- co. Espécie de desafio, punha à prova a habilidade técnica e a agi- Tdade mental dos contendores. No concernente às tenções, assim reza o tratado poético: "Outras cantigas fazen os trobadores que chaman ten- ções, porque son feitas per maneira de razon que un haja contra outro, en que diga aquelo que por ben tever na prima cebra e o outro responda-!he rra outra dizen- do o contrário. Estas se poden fazer d'amor, d'amigo, ou d'escárnio, ou de maldizer, pero que deven de seer de m e e < e s t r i a > " (cap. XII).

A cantiga de risadilha era assim denominada porque, consoan- te o tratadista anônimo, "rien ende às vezes os homens, mais non son cousas en que sabedoria nen outro ben haja", e que me pare-

Ainda que em nossos cancioneiros se encontrem alguns canta- res escarninhos motivados por acontecimentos históricos ou sociais, os escarnhos galaico-portugueses não atingem, nem de longe, a am- plitude de conteúdo e os acentos graves e proféticos dos sirven- teses morais e políticos da Provenga. Para se ter uma idéia dessa espécie satírica occitanica, basta 1er o sirventês do ¡ogral gascão Marcabru, a propósito da cruzada contra Almeria. 11

Como exemplos de sarcasmos políticos, temos as contundentes canções sobre a traição dos alcaides de Sancho II, que entregaram os castelos ao usurpador, o conde de Bolonha, mais tarde, Afonso III. A felonía e a corrupção de fidalgos e prelados acendem a ira de poetas como Airas Vuitoron (LAPA 73-75 e 78-79), Diogo Pe- zelho (LAPA 98), Afonso Mendes de Besteiros* (LAPA 61), Afonso Lopes da Baião (LAPA 57). Também D. Afonso X, trovador de altos predicados, servindo-se da língua minhoto-duriense para suas obras poéticas, contribuiu para o acervo das cantigas d'escárnio e maldi- zer com 35 composições, alguns de caráter sócio-político. Nestas, o rei de Leão e Castela traz à baila, as profundas dissenções havidas entre ele e seu irmão, o infante D. Henrique (LAPA 34 e 35); pare- ce aludir a suas malogradas pretensões à sucessão do Sacro Impé- rio Germânico (LAPA 33); não poupa remoques irônicos e violentos è deserção e à covardia de muitos ricos homens que se esquiva,- vam, ou pelo menos, faronejavam, "hesitavam", quando se tratou de reprimir a revolta dos mouros andaluzes (LAPA 2, 16, 24 e 26); njma cantiga plena de movimento, moteja de seus coteifes que na refrega de Alcalá estavam "tremendo sen frio ant'os mouros d'Azamor" (LAPA 21).

O mundo às avessas é a temática de um engenhoso escárnio, misto de sirventês político-moral e de sátira pessoal, de João Soa- res Coelho: o imperador se insurge contra Roma, transforma-se em cruzado o mouro e o pagão João Fernandes em peregrinação a Ter- ra Santa vai (LAPA 230). Voltar>do ao velho tema ciceroniano de o tempora, o moras, apresenta-nos o clérigo Martim Moxa uma. vi- são pessimista e anti-crística do mundo: discórdias, ambições, vile- zas,- carência de honra e de autoridade,- venalidade dos áulicos e onipotência da lisonja; pobreza generalizada; desaparecimento do ambiente culto, cortês e alegre — a crereria; o triunfo do mal:

"Já de verdade

11 Cf. P I M P A O , r. 1, p. 114-5.

nen de lealdade non ouço falar, ca falsidade, mentira e maldade non Ihis dá lugar" (LAPA 280). E Pero Gomes Barroso, fidalgo português residente em Cas- tela, não se conformando com o modus viven'di da época, extra- vasa o seu desencanto pela vida e pelos homens:

"Ca vej'agora o que r.unca vi e ouço cousas que nunca oí" (LAPA, 388). Airas Nunes legou-nos belo exemplar de sirventês moral, que tem por assunto a ausência da verdade: o poeta não mais a encon- tra (pro dolor!) nem nos moesleiros dos frades regrados, nem em Cistel e nem em Santiago (LAPA 69). E Gil Peres Conde retrata-nos em tonalidade escura a falta de amor fraterno onde justamente mais deverá existir: na corte, nas pousadas dos privados, nas ten- aas dos infanções e, sobretudo, nas casas dos prelados e dos freire» tempeiros e espitaleiros (LAPA 161). Aliás, causa-nos espanto a, ati- tude anti-clerical, o espírito erasmiano (avant Ia làttre), o deboche às coisas sacras, a heterodoxia, em suma, que pervadem uma qua- rentena de nossas cantigas de escárnio. Chasqueia-se sem piedada dos membros do clero e das ordens religiosas; uma crítica mor- daz e crua atinge a todos, do simples clérigo ao papa, do frade ao prior, da freira à abadessa. Numa' ironia contundente, ataca o jogral Diogo Pezelho as excomunhões que arcebispos e bispos, tan- gidos pela ambição do mando, fulminavam contra alcaides de D. Sancho II que teimassem em não entregar os castelos ao usurpador Afonso IV (LAPA 98). Misturava-se, com extrema desenvoltura, o sagrado e o fescenino; a esse respeito, leia-se a atrevida composição de Afonso Eanes do Coton (LAPA 37). Também não faltam pilhérias sobre a penitência ou confissão: João Baveca diz-nos, galhofeira- mnte, que a soldadeira Maior Garcia sempre vivia assistida, nas suas andanças, por três clérigos pois não queria morrer sem con- fissão (LAPA 190) e João Vasques apresenta-nos Maria Leve ajoelha- da aos pés do confessor para contar-lhe, numa atitude bem femi- nina, que não eram tantos os pecados que a atormentavam, mas sim a velihce que chegara implacavelmente:

"Sempr' eu pequei i, des que fui foduda; pero direi-vos per que son perduda: Sõo ve Ih', ai, capelan!" (LAPA 247).

atitude humorística, bem atestam o grau de liberdade a que então se chegou em matéria religiosa:

"Mais, en quant'éu ¡á vivo for ,poren non creerei que o Judas vendeu nen que por nós na cruz morte prendeu nen que filh' este de Santa Maria.

E se el aqui houvessss'a, viver e Ih'eu poren podesse mal fazer, per bòa fé, de grado lho farial" (LAPA 388).

Desde o século XVIII vai-se processando em Portugal uma grande transformação social: depauperada pelas guerras e pelo luxo, a nobreza entra em franca decadência; enquanto a burgue- sia, espaldada em suas melhores condições econômico-financeiras, torna-se cada vez mais poderosa e influente.

"O burguês, que é sobretudo o grande mercador, procura libertar-se da categoria de vilão em que se encontra, ascender à cavalaria, ou, pelo menos, assumir lugar pró- prio e à parte". 12

"Ao abrigo dos seus forais, que lhes garantiam as liber- dades, protegidos pelos reis, que buscavam abater a no- breza de sangue, os centros de vida burguesa prospera- vam, enquanto as classes privilegiadas, os infanções e até ricos-homens, vegetavam, necessitando de acostar-se à munificiência règia e até mesmo à generosidade dos municípios".

Daí se compreende facilmente que quase uma centena de escarnhos tenha por tema o empobrecimento dos ricos-homens, a penúria dos infanções e a fome dos cavaleiros de linhagem. Pena é, porém, que ainda não se tenha estudado convenientemente, além, das fundamentais Notas marginais de Michaelis , 4^ , tão precioso do- cumentário sobre a decadências da nobreza lusitana nos séculos XIII e XIV. Pero da Ponte, o notável segrel das cortes de Fernando 11 1 e Afonso X, é que excele nos sarcasmos contra os ricome» e os infanções: leia-se, por exemplo, o saboroso escárnio (LAPA 353).

12 M A R Q U E S , A. H. O. A aociedade medieval p o r t o m e l a. Lisboa, Sá da Costa. 1964, p. S. ÍS L A P A. L i e f e *.... p. 196-1976. I I V A S C O N C E L O S. C. M. Randglossen « i m allportujtieMiachen Liederbuch I I I. V o m Mittarsbrod hispanischer Könige. Zeitschrift f ü r romanische P h i l o l o i l c , Halle, 2 5 : 1 4 9 -

  1. 1S01.

São escassas, porém as composições que versam assuntos mais gerais. Aliás, cabe ressaltar que a poesia lusa, tacito a lírica como a satírica, presa ao terra-a-terra do individual e circunstancial, sem- pre se dirigiu mais às pessoas que às instituições; apenas abrem exceção alguns poetas com acentuada vocação para o contemplação metafísica e que encarnando, por isso mesmo, a problemática do homem eterno, transcendem tempo e espaço: Camões, Bocage, Ante* ro de Quental, Fernando Pessoa, entre outros. Em compensação, abundam em nossos cancioneiros as sátiras de costumes que, numa linguagem crua, debochada e fulminante, exploram com intenção trocista escândalos, vícios e defeitos de todas as classes e profis- sões. Essa face do gênio poético galaico-português ilustra com tra- ços vigorosos as injustiças e as corrupções da- época. Entretanto, essas chacotas "sociais", às vezes um pouco aveludadas pelo troca- dilho chistoso e pela ambigüidade, possuem na sua maior parte cono- tações pessoais, levam endereço certo e contém referências tão cla- ras e concretas "que se podem logo alcançar con o dedo", na expres- siva fraseologia, da composição documental de Estêvão da Guarda (LAPA 112). E, assim, ante a, nossa mente estupefata perpassa uma infinda procissão grotesca: um papa politiqueiro, prelados simo- níacos e crápulas, clérigos dissolutos e frades mulherengos, abade- sas desregradas e freiras condescendentes, falsos romeiros, reis espoliadores e pusilânimes, alta nobreza corrupta e decadente, ricos- homens avarentos e famélicos infanções, cavaleiros leprosos, judeus usurários, rábuias e juizes peitados, médicos incompetentes, desas- trados astrólogos, velhos metidos a "gostosões", criadas intrigantes; raptadores e raptadas, adúlteras, homens e mulheres portadores de inconfessáveis taras e mazelas sexuais, ladrões de igrejas e conven- tos, cavalos lazarentos... Mas, acima de todo, as cantigas de mal- dizer nos oferecem uma galeria de quadros, ao mesmo tempo ousa- dos e facetos, da vida e boêmia jogralesca. As aventuras mais fras- cárias entre jograis e soldadeiras, as mais escabrosas intimidades de alcova exurgem às escancaras, num léxico obsceno, que hoje nos espanta pela naturalidade e, até, pela atualidade do seu uso. 15

Também põe-se às claras, nestes cantares escarninhos, um pro- blema típico da vida trovadoresca: as querelas entre jograis e tro- vadores, isto é, aqueles, teoricamente meros executores de compo- sições alheias, quando se punham a compor palavras e sons, force- javam por subir de degrau nessa hierarquia do trovadorismo de

13 Cf. S A R A I V A , A. J. & L O P E S. O. História d» literatura portuguesa. 7. ed. Santos, Martins Funtes, 197Î. p. GB.

RÉSUMÉ

L'auteur réfléchit d'abord sur le caractère dualiste et apparem- ment contradictoire de la production des troubadours portugais: les cantigas d'amor et cPamigo à côté des cantigas d'escárnio et de mal- dizer. Ensuite, l'auteur envisage les différentes espèces de la satire luso-galicienne, surtout le sirventês moral et politique, ce qui mène au problème des chansons blasphématoires et hérétiques, et aux escarnhos contre l'appauvrissement des ricos-homens et des infan- ções.

L'article finit par une brève revue des satires "sociales": l'exploi- tation, avec des intentions railleuses, des scandales, des vices et des soillures de toutes les classes sociales de l'époque, notamment des jongleurs et des soldadeiras.