Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Análise Jurídica de Ensaio Sobre a Cegueira de José Saramago, Manuais, Projetos, Pesquisas de Direito

A primeira análise jurídica feita no brasil sobre o livro ensaio sobre a cegueira, de josé saramago. O texto discute a quarentena imposta em uma cidade onde os moradores perdem a visão, analisando suas implicações jurídicas e filosóficas. O autor argumenta que, embora constituições permitem a privação de liberdades em casos de ameaça externa ou grave desordem interna, a quarentena narrada em ensaio sobre a cegueira foi inconstitucional devido à falta de apoio logístico, enfermeirial e médico oferecido aos cegos.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2011

Compartilhado em 25/03/2011

bruno-4
bruno-4 🇧🇷

1 documento

1 / 1

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?tl=1&id=970712&tit=O-
Direito-em-Jose-Saramago-ensaio-sobre-o-Ensaio
O Direito em José Saramago: ensaio sobre o Ensaio...
Publicado em 05/02/2010 | Alexandre Coutinho Pagliarini*
Este estudo é a primeira análise jurídica feita no Brasil sobre o livro Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago. Em setembro de 2009, foi
apresentado, em forma de palestra, em evento organizado pela Universidade Federal da Grande Dourados e pela Universidade Estadual do Mato
Grosso do Sul.
Tudo começa quando um motorista parado no semáforo perde a visão e se percebe acometido pela cegueira branca que, logo após, espalha-se pela
cidade. Os cegos são colocados em quarentena num local inapropriado e insalubre, por um governo improvidente cujos membros, pouco mais tarde,
tornam-se também cegos.
Acerca da quarentena acima narrada, juridicamente falando, Constituições até permitem que, em casos extremos de iminente ameaça externa (Estado
de Defesa) e em casos de grave desordem interna provocada – por exemplo – por uma guerrilha (Estado de Sítio), pessoas possam ser privadas de
algumas liberdades. Entretanto, na hipótese narrada por Saramago, houve, por parte do governo, o abuso de uma quarentena imposta sem a
contraprestação (a oferta) do apoio logístico, enfermeirial e médico que se impunham, fator este que tornou o confinamento inconstitucional.
Em análise filosófica do Direito, na quarentena – e na situação de perda de visão por si só –, os cegos são reduzidos à essência humana, trazendo à
tona as máximas de Thomas Hobbes segundo as quais “O homem é o lobo do homem” e “Os homens vivem numa guerra de todos contra todos”.
Saramago nos lembra da “Responsabilidade de ter olhos enquanto os outros os perderam”. Nesse sentido, existe a figura da Mulher do Médico, a
única pessoa capaz de enxergar, cujo papel na busca da dignidade de si própria e de todos os demais cegos confinados é fundamental. Daí a razão de
se ter olhos enquanto os outros os perderam – “(...) em terra de cegos, quem tem olho é rei”. No caos da cegueira, o “obscurecimento branco” dos
valores é inversamente proporcional à iluminação virtuosa advinda das qualidades de alguns poucos, caso da Mulher do Médico, única luze no
insuperável fim de túnel da cegueira da indignidade.
Algo a ser elucidado em Ensaio Sobre a Cegueira: qual é a diferença entre a cegueira comum – a preta, aquela que deixa a visão do cego normal
obscurecida em negritude visual – e a treva branca (leitosa) de Saramago? A resposta é: a cegueira negra (comum) é só física. Já a treva branca é
muito pior e corresponde à inversão dos conceitos (constitucionais) de dignidade, liberdade, igualdade, fraternidade e solidariedade; trata-se o caos
da treva branca da perda do respeito às minorias e às maiorias historicamente desfavorecidas. Em suma, a cegueira branca de José Saramago é o
caos do menosprezo aos Direitos Humanos Fundamentais.
Ícones da cultura ocidental se tornam inúteis – e, portanto, são violados – no mundo dos cegos brancos. Alguns deles são: i) identidade (nomes) – no
livro, os personagens não têm nome e são tratados como a Mulher do Médico, a Rapariga de Óculos Escuros, o Velho de Venda Preta nos Olhos, o
Primeiro Cego, a Mulher do Primeiro Cego, o Ladrão (o interessante é que isso corresponde ao que tem ocorrido no mundo sem alma,
contemporâneo e pós-moderno, em que pessoas humanas são chamadas de “Elementos” pela polícia, ou idealizam vidas paralelas e criam
personagens de si próprias em sites de relacionamentos, deixando de lado suas personalidades); ii) perda da noção de propriedade privada – de quê
importa ter relógios ou carros se não podemos deles nos utilizar entre cegos perdidos?; iii) incolumidade física, vida e liberdade – no livro, nenhum
desses três direitos fundamentais é preservado em confinamento improvidente; iv) perda da noção de tempo e vilipêndio ao protestantismo de Max
Weber – que nos ensinou o valor do trabalho, e do tempo no trabalho; v) incentivo à vingança – à medida que a Mulher do Médico, em nome dos
cegos oprimidos da Ala 1, vinga-se, matando com uma tesourada o líder do motim da Ala vizinha.
Contudo, a maior denúncia de Saramago nesta obra é a perda da esperança e da fé. Para isso, ele se utiliza da mitologia católica quando a Mulher do
Médico entra numa igreja e se depara com a figura de Jesus Cristo com uma venda tapando-lhe os olhos. Em termos religiosos, a denúncia de
Saramago é clara. Porém, ela pode ser trazida ao mundo de um Direito em que, por exemplo, os advogados constitucionalistas de ontem – que
deveriam abraçar verdadeiramente a estruturação de um Estado justo e as causas sociais – recusam-se a sair de seus gabinetes, e em que os
representantes dos três poderes rejeitam o povo e as responsabilidades para as quais foram designados. Como escreve Saramago: “Se podes olhar, vê.
Se podes ver, repara”.
* * * * *
*Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa.
**A palestra pode ser assistida pela internet, no site YouTube (www.youtube.com), buscando-se o tema “A cegueira em Saramago e o Direito”.

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Análise Jurídica de Ensaio Sobre a Cegueira de José Saramago e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Direito, somente na Docsity!

http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?tl=1&id=970712&tit=O-

Direito-em-Jose-Saramago-ensaio-sobre-o-Ensaio

O Direito em José Saramago: ensaio sobre o Ensaio...

Publicado em 05/02/2010 | Alexandre Coutinho Pagliarini*

Este estudo é a primeira análise jurídica feita no Brasil sobre o livro Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago. Em setembro de 2009, foi apresentado, em forma de palestra, em evento organizado pela Universidade Federal da Grande Dourados e pela Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul.

Tudo começa quando um motorista parado no semáforo perde a visão e se percebe acometido pela cegueira branca que, logo após, espalha-se pela cidade. Os cegos são colocados em quarentena num local inapropriado e insalubre, por um governo improvidente cujos membros, pouco mais tarde, tornam-se também cegos.

Acerca da quarentena acima narrada, juridicamente falando, Constituições até permitem que, em casos extremos de iminente ameaça externa (Estado de Defesa) e em casos de grave desordem interna provocada – por exemplo – por uma guerrilha (Estado de Sítio), pessoas possam ser privadas de algumas liberdades. Entretanto, na hipótese narrada por Saramago, houve, por parte do governo, o abuso de uma quarentena imposta sem a contraprestação (a oferta) do apoio logístico, enfermeirial e médico que se impunham, fator este que tornou o confinamento inconstitucional.

Em análise filosófica do Direito, na quarentena – e na situação de perda de visão por si só –, os cegos são reduzidos à essência humana, trazendo à tona as máximas de Thomas Hobbes segundo as quais “O homem é o lobo do homem” e “Os homens vivem numa guerra de todos contra todos”.

Saramago nos lembra da “Responsabilidade de ter olhos enquanto os outros os perderam”. Nesse sentido, existe a figura da Mulher do Médico, a única pessoa capaz de enxergar, cujo papel na busca da dignidade de si própria e de todos os demais cegos confinados é fundamental. Daí a razão de se ter olhos enquanto os outros os perderam – “(...) em terra de cegos, quem tem olho é rei”. No caos da cegueira, o “obscurecimento branco” dos valores é inversamente proporcional à iluminação virtuosa advinda das qualidades de alguns poucos, caso da Mulher do Médico, única luze no insuperável fim de túnel da cegueira da indignidade.

Algo a ser elucidado em Ensaio Sobre a Cegueira: qual é a diferença entre a cegueira comum – a preta, aquela que deixa a visão do cego normal obscurecida em negritude visual – e a treva branca (leitosa) de Saramago? A resposta é: a cegueira negra (comum) é só física. Já a treva branca é muito pior e corresponde à inversão dos conceitos (constitucionais) de dignidade, liberdade, igualdade, fraternidade e solidariedade; trata-se o caos da treva branca da perda do respeito às minorias e às maiorias historicamente desfavorecidas. Em suma, a cegueira branca de José Saramago é o caos do menosprezo aos Direitos Humanos Fundamentais.

Ícones da cultura ocidental se tornam inúteis – e, portanto, são violados – no mundo dos cegos brancos. Alguns deles são: i) identidade (nomes) – no livro, os personagens não têm nome e são tratados como a Mulher do Médico, a Rapariga de Óculos Escuros, o Velho de Venda Preta nos Olhos, o Primeiro Cego, a Mulher do Primeiro Cego, o Ladrão (o interessante é que isso corresponde ao que tem ocorrido no mundo sem alma, contemporâneo e pós-moderno, em que pessoas humanas são chamadas de “Elementos” pela polícia, ou idealizam vidas paralelas e criam personagens de si próprias em sites de relacionamentos, deixando de lado suas personalidades); ii) perda da noção de propriedade privada – de quê importa ter relógios ou carros se não podemos deles nos utilizar entre cegos perdidos?; iii) incolumidade física, vida e liberdade – no livro, nenhum desses três direitos fundamentais é preservado em confinamento improvidente; iv) perda da noção de tempo e vilipêndio ao protestantismo de Max Weber – que nos ensinou o valor do trabalho, e do tempo no trabalho; v) incentivo à vingança – à medida que a Mulher do Médico, em nome dos cegos oprimidos da Ala 1, vinga-se, matando com uma tesourada o líder do motim da Ala vizinha.

Contudo, a maior denúncia de Saramago nesta obra é a perda da esperança e da fé. Para isso, ele se utiliza da mitologia católica quando a Mulher do Médico entra numa igreja e se depara com a figura de Jesus Cristo com uma venda tapando-lhe os olhos. Em termos religiosos, a denúncia de Saramago é clara. Porém, ela pode ser trazida ao mundo de um Direito em que, por exemplo, os advogados constitucionalistas de ontem – que deveriam abraçar verdadeiramente a estruturação de um Estado justo e as causas sociais – recusam-se a sair de seus gabinetes, e em que os representantes dos três poderes rejeitam o povo e as responsabilidades para as quais foram designados. Como escreve Saramago: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.


*Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa.

**A palestra pode ser assistida pela internet, no site YouTube (www.youtube.com), buscando-se o tema “A cegueira em Saramago e o Direito”.