Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Arte e catarse para Vigotski em Psicologia da Arte, Exercícios de Psicologia

Este artigo, de cunho teórico, pretende refletir sobre a concepção de arte apresentada pelo psicólogo russo Lev Semionovich Vigotski na obra Psicologia da ...

Tipologia: Exercícios

2022

Compartilhado em 07/11/2022

usuário desconhecido
usuário desconhecido 🇧🇷

4.6

(158)

172 documentos

1 / 14

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
ARTIGOS
Arquivos Brasileiros de Psicologia; Rio de Janeiro, 71 (3): 152-165
152
Arte e catarse para Vigotski em Psicologia da Arte
Paula Maria Ferreira de FariaI
Maria Sara de Lima DiasII
Denise de CamargoIII
Arte e catarse para Vigotski em Psicologia da Arte
RESUMO
Este artigo, de cunho teórico, pretende refletir sobre a concepção de arte apresentada
pelo psicólogo russo Lev Semionovich Vigotski na obra Psicologia da Arte. O estudo
destaca a importância da arte como mediação para a expressão e reelaboração emo-
cional humana, por meio da reação estética expressa pela catarse na apreciação
artística. A partir das contribuições de Vigotski, enfatiza-se o potencial criativo e
transformador do homem sobre a obra de arte, propiciando a ressignificação humana
em seu contexto cultural e histórico. Nesse sentido, ressalta-se o papel da arte e
da vivência artística enquanto instrumentos essenciais à sociedade moderna para a
reconexão com os aspectos sensíveis e subjetivos que integram a psique humana.
Palavras-chave: Arte; Catarse; Vigotski.
Art and catharsis for Vigotski in Psychology of Art
ABSTRACT
This theoretical article intends to reflect on the conception of art presented by the
Russian psychologist Lev Semionovich Vigotski in the work Psychology of Art. The
study highlights the importance of art as mediation for human emotional expression
and reprocessing, through the aesthetic reaction expressed by catharsis in artistic
appreciation. From the contributions of Vygotsky, the creative and transformative
potential of man on the work of art is emphasized, favoring human resignification in
its cultural and historical context. In this sense, the role of art and artistic experience
as essential instruments to modern society is emphasized for the reconnection with
the sensitive and subjective aspects that integrate the human psyche.
Keywords: Art; Catharsis; Vygotsky.
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa
pfd
pfe

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Arte e catarse para Vigotski em Psicologia da Arte e outras Exercícios em PDF para Psicologia, somente na Docsity!

ARTIGOS

152 Arquivos Brasileiros de Psicologia; Rio de Janeiro, 71 (3): 152-

Arte e catarse para Vigotski em Psicologia da Arte Paula Maria Ferreira de Faria Maria Sara de Lima Dias Denise de Camargo Arte e catarse para Vigotski em Psicologia da Arte RESUMO Este artigo, de cunho teórico, pretende refletir sobre a concepção de arte apresentada pelo psicólogo russo Lev Semionovich Vigotski na obra Psicologia da Arte. O estudo destaca a importância da arte como mediação para a expressão e reelaboração emo cional humana, por meio da reação estética expressa pela catarse na apreciação artística. A partir das contribuições de Vigotski, enfatiza-se o potencial criativo e transformador do homem sobre a obra de arte, propiciando a ressignificação humana em seu contexto cultural e histórico. Nesse sentido, ressalta-se o papel da arte e da vivência artística enquanto instrumentos essenciais à sociedade moderna para a reconexão com os aspectos sensíveis e subjetivos que integram a psique humana. Palavras-chave: Arte; Catarse; Vigotski. III II I -

Art and catharsis for Vigotski in Psychology of Art ABSTRACT This theoretical article intends to reflect on the conception of art presented by the Russian psychologist Lev Semionovich Vigotski in the work Psychology of Art. The study highlights the importance of art as mediation for human emotional expression and reprocessing, through the aesthetic reaction expressed by catharsis in artistic appreciation. From the contributions of Vygotsky, the creative and transformative potential of man on the work of art is emphasized, favoring human resignification in its cultural and historical context. In this sense, the role of art and artistic experience as essential instruments to modern society is emphasized for the reconnection with the sensitive and subjective aspects that integrate the human psyche. Keywords: Art; Catharsis; Vygotsky.

Arquivos Brasileiros de Psicologia; Rio de Janeiro, 71 (3): 152-165 153

Faria P. M. F., Dias M. S. L. e Camargo D. Arte y catarsis para Vigotski en Psicología del Arte RESUMEN Este artículo, de cuño teórico, pretende reflexionar sobre la concepción de arte pre sentada por el psicólogo ruso Lev Semionovich Vigotski en la obra Psicología del Arte. El estudio destaca la importancia del arte como mediación para la expresión y reelaboración emocional humana, por medio de la reacción estética expresada por la catarsis en la apreciación artística. A partir de las contribuciones de Vigotski, se enfatiza el potencial creativo y transformador del hombre sobre la obra de arte, pro piciando la resignificación humana en su contexto cultural e histórico. En ese sentido, se resalta el papel del arte y de la vivencia artística como instrumentos esenciales a la sociedad moderna para la reconexión con los aspectos sensibles y subjetivos que integran la psique humana. Palabras clave: Introdução A contribuição do psicólogo russo Lev Semionovich Vigotski (1896-1934) ao campo Arte; Catarsis; Vygotsky. --

da Psicologia é inestimável. Fundador da Psicologia Histórico-Cultural, muitos concei tos desenvolvidos por ele são considerados diretrizes para a compreensão do homem enquanto ser de relações, que modifica e também é transformado pelo ambiente com o qual se relaciona. Vigotski dedicou-se a diversos objetos de estudo, muitos dos quais não foram profundamente delineados devido à sua morte precoce, den tre os quais pode-se citar a definição da psicologia enquanto ciência, a consciência, o pensamento e a linguagem, o processo educativo e a educação de pessoas com deficiência. Cabe destacar, contudo, as contribuições do autor ao contexto da arte – desde o início de sua carreira e ao longo de toda a sua vida, Vigotski sempre nutriu grande interesse pelas questões artísticas, razão pela qual inicialmente aproximou-se da Psicologia. Lev Semionovitch Vigotski nasceu em 5 de novembro de 1896, na cidade de Orsha, mas sua família se mudou para Gomel durante seu primeiro ano de vida. Segundo entre oito filhos de uma família judia, Vigotski cresceu em um contexto cultural mente privilegiado e sua família era considerada uma das mais instruídas da cidade (Vygodskaya, 1995). Embora preferisse literatura e filosofia, essas áreas lhe permitiriam somente exercer o cargo público de professor – o que era proibido para judeus, na Rússia czarista (Prestes, 2010a; Vygodskaya, 1995). Dessa forma, considerando essas restrições e atendendo ao pedido de seus pais, Vigotski começou a cursar Medicina em Mos cou, transferindo-se logo depois para o curso de Direito. Paralelamente, iniciou os estudos de História e Filosofia na Universidade de Shanavsky, instituição não oficial prestigiada por acolher a diversidade política e religiosa. Foi nesse período que seu interesse pela área da Psicologia foi despertado – desde então, Vigotski nunca inter rompeu os estudos nessa área (Vygodskaya, 1995). A gama de interesses de Vigotski era ampla: “poesia, teatro, língua e problemas dos signos e da significação, teorias da literatura, cinema, problemas de história e de-----

Arquivos Brasileiros de Psicologia; Rio de Janeiro, 71 (3): 152-165 155

Faria P. M. F., Dias M. S. L. e Camargo D. (González Rey, 2018; Van Der Veer & Valsiner, 2014). Em ski (1965/1999b) empreende um diálogo crítico com a obra de Freud (1911/2010), buscando pontos de convergência às suas próprias ideias – e, frequentemente, apon tando também suas inconsistências (como costumeiramente se pode observar nas obras do psicólogo russo, nas quais analisa e se posiciona frente a outros grandes pesquisadores de sua época). Destacam-se, em Freud (1911/2010), momentos em que o entendimento da obra de arte se dá, por um lado, através de acontecimentos da vida do artista, isto é, com preendendo a obra pelo autor e, por outro, inferindo o que se passa no psiquismo do autor pelo que comparece em sua criação (Autuori & Rinaldi, 2014). Esse posi cionamento opõe-se à visão de Vigotski (1965/1999b), que destaca a influência da cultura na mediação da obra de arte; o autor pontua que a Psicanálise tende a apli car seus métodos de interpretação para a arte considerando o conflito pessoal entre as manifestações do consciente e subconsciente. Sob o ponto de vista de Vigotski (1965/1999b), no entanto, não existe nenhuma diferença fundamental entre os pro cessos de criatividade popular e individual – desde o princípio, a psicologia individual é ao mesmo tempo uma psicologia social. O interesse de Vigotski (1965/1999b) pela obra de Freud (1911/2010) revela sua curiosidade pela vida interior emocional e seu caráter inconsciente, evidenciando que sua orientação, em do lado afetivo do ser humano” (González Rey, 2018, p. 341). Cabe ressaltar, con tudo, que Vigotski (1924/2004) rejeitava a apreciação exagerada da sexualidade, uma vez que para ele o seu significado é limitado e frequentemente convencional – o autor enfatizava a diferença essencial que a cultura introduz no comportamento. Psicologia da Arte , estava “claramente direcionada ao estudo Psicologia da Arte , Vigot-------

Embora incialmente tenha demonstrado interesse pela Psicanálise, vida, Vigotski (1965/1999b) estabeleceu seu próprio posicionamento frente às ques tões defendidas por essa abordagem, discordando de diversos de seus pressupos tos – opondo-se, entre outros aspectos, “ao caráter universal e a-histórico dado por Freud ao inconsciente” (González Rey, 2018, p. 349). É preciso frisar, no entanto, que “embora tenha ficado cada vez mais crítico quanto a muitos dos conceitos de Freud, Vygotsky ainda valorizava profundamente seu trabalho” (Van Der Veer & Valsiner, 2014, p. 117). Vigotski (1965/1999b) critica a concepção psicanalítica da consciência como um processo passivo em relação ao inconsciente ao alertar que esta abordagem aca bava “reduzindo o papel da consciência a zero e reconhecendo para ela apenas a capacidade de servir de instrumento cego nas mãos do inconsciente” (Vigotski, 1965/1999b, p. 93). Aponta também a importância excessiva atribuída aos eventos relacionados à sexualidade e à infância, afirmando que a psicanálise busca “redu zir a qualquer custo todas as manifestações do psiquismo humano à mera atração sexual” (Vigotski, 1965/1999b, p. 92). Em relação aos aspectos de forma e conte údo da arte, Vigotski (1965/1999b) denuncia a ênfase da Psicanálise sobre o conte údo, sendo incapaz de explicar a questão da forma. Segundo o autor, a Psicanálise restringe a criação artística à esfera individual e é incapaz de explicar a evolução histórica e social das artes, “porque desse ponto de vista a arte sempre foi, dos primórdios aos nossos dias, uma expressão permanente dos instintos mais antigos e conservadores” (Vigotski, 1965/1999b, p. 92). A arte, segundo o autor, nunca reflete a realidade toda em sua plenitude e verdade real; é um produto sumamente complexo de elementos da realidade, resultado da incorporação à realidade de ele mentos inteiramente estranhos a ela. Vigotski (1965/1999b) elenca três elementos constituintes da obra de arte: forma externa (material de base), forma interna (a forma definida pelo artista) e conteúdo (o que a obra representa); para o autor, a arte consiste no amálgama desses três ele ao longo de sua - -------

Arte e catarse para Vigotski em Psicologia da Arte mentos. Por isso, não se pode dizer que a emoção evocada pela arte é gerada somente por seu produto final, visto que todos os elementos se reúnem produzindo um todo coeso e indivisível. Assim como a arte parte da forma, também “a emoção da forma é o momento inicial, o ponto de partida sem o qual não ocorre nenhuma interpreta ção da arte” (Vigotski, 1965/1999b, p. 43). Dessa maneira, Vigotski (1965/1999b) opõe-se à fragmentação entre forma e conteúdo proposta pelos teóricos da arte de sua época, considerando que ambos os elementos possuem uma relação íntima e indissociável (Ramos, 2015; Schühli, 2011; Zanatta & Silva, 2017). A forma, por tanto, deve ser compreendida não somente como o invólucro da obra, mas como elemento fundamental da criação artística. A arte é, simultaneamente, forma e con teúdo; é expressão e intenção, é razão e emoção. O objeto de estudo da Psicologia da Arte, portanto, para Vigotski (1965/1999b), ultrapassa a posição individualista de quem cria ou usufrui da obra de arte; trata-se da análise da estrutura psicológica da obra, voltando-se à compreensão da experiência estética e à noção da arte enquanto sistema de estímulos que aproxima e restitui a relação do sujeito sensível com o real (Guimarães, 2000). Para o autor, existiam em sua época dois tipos de psicólogos: os que eram propensos a negar quase todo sentido educativo às vivências estéticas e aqueles que exageravam na ênfase às emoções estéticas e tendiam a ver nelas todo o sentido para resolver os problemas complexos da educação. O equívoco cometido pela educação e pela Psicologia tradicional, para Vigotski (1965/1999b), era reduzir toda a estética ao sentimento agradável suscitado pelo prazer da fruição obra de arte, reduzindo todo o sentido das emoções ao sentimento imediato de prazer ou desprazer suscitado em um observador passivo da realidade. De acordo com Vigotski (1965/1999b), constantemente o ser humano recebe estí mulos que, na maioria das vezes, permanecem inconscientes e são vivenciados como angústia, demandando uma solução que pode ser realizada por meio da arte.----

A vivência artística permite a significação dos conteúdos inconscientes que são trazi dos à consciência e transformados, criando algo novo e solucionando o conflito (San tos & Leão, 2014). Nesse aspecto reside uma crítica do autor em relação ao uso da arte no contexto educacional, quanto às possíveis conclusões morais em que sempre se procurou enquadrar qualquer vivência estética na escola – ignorando inteiramente o fator psicológico das possíveis e diversas interpretações da arte. A análise da estrutura dos estímulos da arte, ou seja, os mecanismos que com põem a obra artística, evidencia os sentidos e permite a recriação da estrutura das respostas pelo indivíduo através de mecanismos psicológicos. Dessa forma, para Vigotski (1965/1999b), a análise da resposta estética envolve a contradição dialética entre forma e conteúdo, criando uma dinâmica qualitativamente diferente sobre a qual se fundamentam os processos psicológicos determinantes da psicologia da arte (Namura, 2007). Vigotski (1965/1999b) rejeita uma compreensão intelectualizada do fenômeno artístico, ou seja, a ideia de que a arte é compreendida apenas pelo pensamento; mais do que isso, a arte permite ultrapassar o pensamento, gerando emoções que o próprio espectador não é capaz de definir ou explicar. As emoções suscita das pela arte não podem ser explicadas por seus elementos isoladamente, mas somente pelo produto que o conjunto da obra produz – pois, além do pensamento, a arte envolve diretamente o sentimento. Desse modo, o autor aponta que a ideia de que a vivência artística é absolutamente passiva, comum no contexto da edu cação estética de sua época, é errônea. Tão logo o fruidor entre no papel ativo de participante da obra de arte por ele percebida, o campo da estética é abandonado e a percepção da arte passa a envolver uma postura ativa do sujeito – assim, ela chega por meio dos órgãos dos sentidos, mas também é percebida através de uma atividade interior sumamente complexa, na qual ouvir ou ver são somente os impulsos básicos iniciais. Envolve, para além da percepção, também a emoção de cada pessoa. Dessa maneira, as múltiplas interpretações que se atribui às obras - ---- de arte não são apenas juízos cognitivos, senão atos emocionais do pensamento:

Arte e catarse para Vigotski em Psicologia da Arte O autor defende que é a ação transformadora que permite ao homem compreender e desfrutar da arte. A natureza da arte implica em transformação dos sentimentos; ela representa elementos extraídos das vivências humanas que, ao serem utilizados, são transformados em um elemento novo e diferente, permitindo afirmar que “a arte está para a vida como o vinho para a uva” (Vigotski, 1965/1999b, p. 307). Dessa forma, Vigotski (1965/1999b) enfatiza a natureza transformadora da arte e seu potencial criativo a partir da imaginação humana: livre da obrigatoriedade de ser uma repro dutora fiel da realidade, a arte pode fruir livremente, constituindo-se enquanto ação criativa do homem. Ao afirmar que “a arte recolhe da vida seu material mas produz acima des (Vigotski, 1965/1999b, p. 308), o autor revela que a obra artística permite a expres são criadora, capaz de trazer à concretude objetiva elementos da subjetividade e constituir novas formas de relação (Barroco & Superti, 2014; Japiassu, 1999; Reis & Zanella, 2014). Para Vigotski (1965/1999b, p. 308), “o sentimento é inicialmente individual e através da obra de arte torna-se social ou generaliza-se”. O processo de socialização da arte cria uma relação indissociável entre individual e social; o social, no entanto, não se refere simplesmente ao grupamento de pessoas, mas sim à produção que é histórica e culturalmente construída e da qual o sujeito passa a fazer parte desde o momento de seu nascimento. Por isso, dialeticamente, também a obra de arte não se trata de uma criação puramente individual, já que reflete todas as características do contexto que permeiam o artista, que nunca é um ser isolado, mas está em constante relação com os outros e com o meio. Vigotski (1965/1999b) define esse processo complexo intersubjetivo, afirmando que “seria mais correto dizer que o sentimento não se torna social mas, ao contrário, torna-se pessoal, quando cada um de nós vivencia uma obra de arte, converte-se em pessoal sem com isto deixar de continuar social”se material algo que ainda não está nas propriedades desse material”--

(p. 315). O social desvela-se na intencionalidade conscientemente determinada pelo artista em sua criação, organizada justamente com o intuito de provocar uma deter minada reação estética no público. Dessa forma, individual e social relacionam-se em um indivisível e contínuo processo dialético (Barroco & Superti, 2014; Japiassu, 1999). A arte, compreendida sob este ponto de vista, não é produto individual, mas incorpora-se à história da humanidade, possibilitando a vivência por meio indireto das emoções e das relações que se estabelecem socialmente (Barroco & Superti, 2014; Guimarães, 2000). Assim, a arte constitui um meio psicológico para criar equi líbrio sobre o comportamento; aparece, dessa forma, como um complemento da vida, a expandir as suas possibilidades. A criação artística, para Vigotski (1965/1999b), não visa transmitir os sentimentos particulares do autor para o fruidor; vai além das emoções individuais, generalizan do-as em um plano social no qual são reelaboradas e transformadas, revelando algo inteiramente novo que não pode ser encontrado diretamente na obra, mas só pode ser objetivado concretamente nas relações humanas com a mediação da arte (Magio lino, 2014; Schühli, 2011; Zanatta & Silva, 2017). Essa mediação, segundo Vigotski (1965/1999b), ocorre por meio da catarse. Reflexões sobre a catarse Na obra reflexões sobre o termo em outros autores e apresentando sua própria formulação do conceito. Vigotski (1965/1999b) inicia revisando a definição de Aristóteles (335a.C.?/2008), segundo a qual a catarse é o efeito emocional da tragédia sobre o espectador que, identificando-se com as personagens, sentiria piedade e terror (Barros et al, 2011; Psicologia da Arte , Vigotski (1965/1999b) discorre sobre a catarse, tecendo----

Arquivos Brasileiros de Psicologia; Rio de Janeiro, 71 (3): 152-165 159

Faria P. M. F., Dias M. S. L. e Camargo D. Leite, 2015; Wedekin, 2015). De acordo com o filósofo grego, as ações do herói trágico têm função de limpeza e purificação das emoções suscitadas pela tragédia; a relação entre herói e espectador, portanto, não envolve uma postura estética ativa e criadora, mas sim uma relação ética predominantemente passiva, de com paixão do espectador pela personagem (Leite, 2015). Contraditoriamente, sob a perspectiva de Vigotski (1965/1999b), não existe espectador passivo; no entanto, para o autor, não há na Psicologia outro termo que expresse de forma tão completa o fato central da reação estética segundo o qual os afetos dolorosos e desagradá veis se descarregam e se transformam em seu oposto – por essa razão, apesar de discordar da posição defendida por Aristóteles (335a.C./2008), mantém o uso do termo Vigotski (1965/1999b) também faz referências às definições de catarse como efeito moral da tragédia (Lessing, 1877/2019), passagem do desprazer ao prazer (Müller -Freienfels, 1912), purificação e cura no sentido médico (Bernays, 1857) e tranqui lização da emoção (Zeller, 1839), enfatizando o caráter incompleto de todas essas explicações. O autor também rejeita a definição psicanalítica de Freud (1895/2016), que parte do entendimento aristotélico e compreende a catarse como uma descarga de energia emocional. Para Vigotski (1965/1999b) o entendimento deve ser mais amplo, pois a catarse não somente descarrega os sentimentos, mas permite sua completa transformação qualitativa. Declarando não haver encontrado outro termo capaz de abranger a profundidade do conceito, Vigotski (1965/1999b) concebe a catarse como a característica principal da reação estética. Toda obra de arte se estrutura através de processos nos quais emo ções angustiantes são opostamente transformadas e destruídas, descartadas; essa transformação complexa dos sentimentos é a catarse, que gera a reação estética. catarse. -----

É a catarse que suscita o prazer na arte. Seguindo o mesmo princípio de transforma ção pelos opostos, a arte sempre destrói o conteúdo por meio da forma, sendo essa a base da reação estética. Vigotski (1965/1999b) utiliza elementos do teatro e da literatura para demonstrar como ocorre a reação estética, esclarecendo que toda obra artística se caracteriza pela são submetidas a certa descarga, à sua destruição e transformação em contrários” (p. 270). Vigotski (1965/1999b) enfatiza que a produção artística busca causar uma reação estética no público, produzida pelo choque entre situações que se opõem em um conflito emocional na obra de arte. A catarse é, portanto, desencadeada por uma contradição emocional presente em todas as formas de arte, e se manifesta em diferentes expressões artísticas. Essa contradição dialética é evidenciada de diferen tes formas. Na poesia, esse processo revela-se tanto na oposição entre o ritmo e as palavras como pela exposição de sentimentos antagônicos no texto. Em gêneros literários como o drama, o romance, a tragédia e a comédia, a contradição emocional é evidenciada na descrição do personagem central (o herói), que ao longo da trama pode revelar posições ambíguas, ou mesmo por meio de um desfecho desconcertante para o leitor. Na pintura, os elementos de contraposição entre formas e valores levam à superação através da catarse. De forma semelhante isso ocorre na arquitetura e na escultura, quando elementos artificiais representam os naturais e estruturas físi cas pesadas remetem a ideias etéreas de leveza. Em todas essas diferentes formas de produção artística sempre se constatará a duplicidade, em uma luta de opostos solucionada pela catarse, que é exatamente o elemento que confere prazer à fruição artística e sem o qual não existe arte. Dessa forma, a partir de uma concepção materialista dialética, Vigotski (1965/1999b) compreende que a obra de arte sempre gera sentimentos contraditórios. Em qual quer expressão artística, a reação estética define-se sempre como o produto da superação da contradição dialética entre conteúdo e forma, entre dois polos anta reação estética gerada quando “as emoções angustiantes e desagradáveis-----

Arquivos Brasileiros de Psicologia; Rio de Janeiro, 71 (3): 152-165 161

Faria P. M. F., Dias M. S. L. e Camargo D. e o conteúdo da obra artística se integram, objetivando e desencadeando emoções contraditórias, cuja superação promove um salto psicológico qualitativo (Barroco & Superti, 2014; Guimarães, 2000). A reação estética permite, por meio da imaginação e fantasia, a solução e reelabo ração de sentimentos, mediando aspectos subjetivos e sua objetivação na realidade concreta através da catarse. O processo de catarse, portanto, promove um redi mensionamento da consciência, que traz à tona sentimentos e emoções elaborados por meio da vivência estética (Guimarães, 2000; Magiolino, 2014; Wedekin, 2015). Vigotski (1965/1999b) defende que processos cognitivos e afetivos são cultural e historicamente determinados e relacionam-se entre si, afirmando que a vivência artística envolve processos humanos indissociáveis como a cognição, a volição e a emoção (Wedekin & Zanella, 2013). Para o autor, “a arte é a mais importante concentração de todos os processos biológicos e sociais do indivíduo na sociedade” (Vygotski, 1965/1999b, p. 329). Dessa forma, demarca um posicionamento contrário às concepções estéticas de sua época, revelando uma concepção histórico-cultural de homem que viria a caracterizar toda sua obra. Considerações finais Na obra xões acerca da relação da arte com o comportamento humano, ou seja, investiga as relações entre a arte e a vida (Zanatta & Silva, 2017). Para o autor, a arte se constitui em um instrumento que permite à sociedade incorporar aspectos pessoais e íntimos; nesse sentido, ao apreciar uma obra de arte, a pessoa individualiza um Psicologia da Arte , Vygotski (1965/1999b) desenvolve estudos e refle---

processo cuja natureza é social. Ao agir sobre sua realidade, o homem modifica a natureza, criando instrumentos simbólicos que o auxiliem em seu processo de domínio e transformação. Constrói, dessa forma, um ambiente que extrapola as determinações naturais, sendo determinado não somente por seus aspectos indi viduais, mas pelas influências culturais e históricas que permeiam sua sociedade (Japiassu, 1999; Santos & Leão, 2014). A arte é compreendida por Vygotski (1965/1999b) enquanto produto e processo do trabalho humano, constituindo-se em uma ação intencional. A objetivação dos sentimentos proporcionada pela ação criadora da obra artística permite a recriação de si mesmo e a transformação da natureza e da realidade, reafirmando o cará ter histórico e social do psiquismo humano (Barroco & Superti, 2014; Guimarães, 2000; Japiassu, 1999). Psicologia da Arte cologia e apresenta importantes contribuições para a compreensão do potencial da arte como instrumento psicológico promotor da catarse. Enquanto produção humana inserida no seio das relações sociais, a arte tem o poder de suscitar vivências mobi lizadoras de emoção que possibilitam a geração de novas formas de sentir e estar no mundo. A fruição da obra de arte sensibiliza o sujeito; a catarse promovida por essa fruição conduz à produção de novos sentidos, que geram a ressignificação de si mesmo e ao outro. A psicologia da arte contemporânea precisa de maiores estudos sobre a percepção, sobre as emoções, sobre a imaginação e a fantasia. A resposta da psicologia da arte começa pela percepção, mas não termina nela; certamente, todos os sistemas psi cológicos se revestem de diferentes combinações para buscar explicar a catarse. A partir dos pressupostos de Vygotski (1965/1999b) abre-se para a atuação do psicó logo um novo campo a partir do qual, por meio da mobilização emocional, é possível construir formas qualitativamente novas de pensar, ser e sentir. Considerando que a marca a aproximação inicial de Vygotski (1965/1999b) da Psi - -----

Arte e catarse para Vigotski em Psicologia da Arte arte permite ao homem equilibrar-se com o mundo nos momentos críticos de tensão, e por isso pode ser considerada “a mais importante concentração de todos os proces sos biológicos e sociais do indivíduo na sociedade” (Vygotski, 1965/1999b, p. 329), a obra artística apresenta à Psicologia sua potencialidade não somente de afetar; mas, para além disso, de promover reais transformações sobre a ação humana, a partir da ressignificação da realidade sob um novo prisma. Nesse sentido, a arte pode ser compreendida como instrumento que medeia o contato do sujeito consigo mesmo e com o mundo, promovendo uma ampliação da autoconsciência que repercute na res significação da realidade e na transformação qualitativa das relações que estabelece com os demais em seu contexto. Partindo do conceito vigotskiano da experiência estética como via de expressão emo cional, compreende-se que as emoções suscitadas pela fruição demandam um pro cesso de catarse capaz de reelaborar e conferir novo sentido às emoções. Mais uma vez, portanto, evidencia-se o potencial da arte enquanto instrumento psicológico que permite a reelaboração e a ressignificação das vivências emocionais, conduzindo à tomada de consciência e à reflexão sobre as relações que estabelece em seu meio, histórica e culturalmente situado. Trata-se, portanto, da possibilidade de desenvolver a autoconsciência a partir da mediação da arte. A catarse produzida na experiência artística promove o desenvolvimento da autoconsciência e gera novas possibilidades de ação, conduzindo a transformações qualitativas das interações sociais e do posi cionamento pessoal frente às demandas concretas da realidade diária. A análise de trumento psicológico por meio do qual o homem não somente é mobilizado afetiva mente, mas pode tornar-se consciente de suas emoções e também ressignificá-las, em um processo dinâmico de transformação qualitativa da própria realidade. Psicologia da Arte revela o potencial da arte como um promissor ins-------

O estudo do conceito de catarse para Vygotski (1965/1999b) revela a importância de que a arte transcenda as emoções da vida cotidiana. A Psicologia, enquanto ciência voltada ao desenvolvimento e às relações humanas, precisa também se apropriar do potencial da arte enquanto promotor do estabelecimento de novas e transformadas relações do sujeito consigo mesmo e com o meio, possibilitando novas formas de interagir, ser e sentir. A catarse promovida pelo encontro com a arte tem justamente esse potencial: estimulando o desenvolvimento de novos sentidos, a ação criadora do homem sobre a obra artística deve proporcionar trans formações qualitativas que levem à ressignificação do indivíduo em seu contexto histórico e cultural. Surpreendentemente, as reflexões realizadas há quase cem 100 anos em logia da Arte na qual se prima pelo consumo instantâneo, pela agilidade das informações e pela defesa de uma aldeia global, a superficialidade das relações denuncia o distancia mento alarmante da subjetividade e o empobrecimento sensível e afetivo da vida moderna. A sociedade atual precisa redescobrir o potencial criador da arte, promotor de desenvolvimento pessoal e social, e criador de novas formas de subjetivação e de compreensão da realidade. A Psicologia pode – e deve – contribuir para esse processo, promovendo o reencontro do homem com as próprias emoções através da catarse gerada nas diversas possi bilidades de fruição artística que a sociedade atual oferece. Se a arte “é um meio de equilibrar o homem com o mundo nos momentos mais críticos e responsáveis da vida” (Vygotski, 1965/1999b, p. 329), urge, nos tempos atuais, realizar uma rea proximação com a arte. É preciso criar e fortalecer espaços para a vivência estética, possibilitando ao indivíduo um reencontro com as próprias emoções, reconectando -se com seus aspectos de sensibilidade e criatividade. permanecem ainda – e cada vez mais – atuais. Em uma sociedade Psico- - ----

Arte e catarse para Vigotski em Psicologia da Arte Magiolino, L. L. S. (2014). A significação das emoções no processo de organização Müller-Freienfels, R. (1912). Namura, M. R. (2007). O aporte da estética na categoria sentido no pensamento de Prestes, Z. R. (2010a). Guita Ivovna Vygodskaia (1925-2010), filha de Vygotski: Prestes, Z. R. (2010b). Ramos, S. D. H. P. (2015). Reis, A. C., & Zanella, A. V. (2014). Arte e vida, vida e (em) arte: Entrelaçamentos dramática do psiquismo e de constituição social do sujeito. 26 (Vol. 1). Leipzig: BG Teubner. Vygotsky. dos sentidos Entrevista. S0100-15742010000300017 Lev Semionovitch Vygotski no Brasil: Repercussões no campo educacional de Doutorado). Faculdade de Educação, Universidade de Brasília, Brasília, DF. psicológica: Um diálogo com a psicologia histórico-cultural de Vygotski de Mestrado). Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES.(n. Spe.2), 48–59. https://doi.org/10.1590/S0102-71822014000600006 Colóquio de Psicologia da Arte: A correspondência da arte e a unidade Cadernos de Pesquisa , São Paulo, SP, Brasil, 2. Quando não é quase a mesma coisa: Análise de traduções de A dimensão formativa do cinema e a catarse como categoria Psychologie der kunst: Eine darstellung der grundzüge , 40 (141), 1025–1033. https://doi.org/10.1590/ Psicologia & Sociedade (Dissertação (Tese,

Santos, L. G., & Leão, I. B. (2014). O inconsciente sócio-histórico: Aproximações Schühli, V. M. (2011). Shakespeare, W. (1997). Van Der Veer, R., & Valsiner, J. (2014). Vygodskaya, G. L. (1995). His Life. Vigotski, L. S. (1999b). Vigotski, L. S. (2004). Wedekin, L. M. (2015). O trágico em Vygotski e Filonov.^ a^ https://doi.org/10.7213/psicol.argum.32.S01.AO09 de org/10.1590/S0102-71822014000600005 individualidade para-si: A catarse como categoria psicológica mediadora segundo Vygotski e Lukács Psicologia, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR. (Original publicado em 1601). Trad.). São Paulo, SP: Loyola. Fontes. (Original publicado em 1965). SP: Martins Fontes. (Original publicado em 1924).^ partirum conceito.^ de^ Vygotsky (^) Psicologia (^) (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-graduação em A dimensão formativa da arte no processo de construção da (^) Psicologia pedagógicaPsicologia da arte Hamlet e^ Bakhtin. & (^) (M. Fernandes, Trad.). Porto Alegre, RS: L&PM. School Psychology InternationalSociedade Vygotsky: Uma síntese^ Psicologia (P. Bezerra, Trad.). São Paulo, SP: Martins ,(2a ed., P. Bezerra, Trad.). São Paulo, 26 (n.^ Argumento Esp. Ouvirouver 2), (7a ed., C. C. Bartalotti, ,38–47.^^32 ,, 1611 (79),(2), 105–116.(1), 238–256. https://doi.^ 97–107.

Arquivos Brasileiros de Psicologia; Rio de Janeiro, 71 (3): 152-165 165

Faria P. M. F., Dias M. S. L. e Camargo D. Wedekin, L. M., & Zanella, A. V. (2013). Arte e vida em Vygotski e o modernismo Zanatta, B. A., & Silva, A. R. (2017). Apontamentos sobre o conceito de catarse em Zeller, E. (1839). Submetido em: 31/07/2018 Revisto em: 19/02/2019 Aceito em: 11/04/2019 Endereços para correspondência: Paula Maria Ferreira de Faria paula.pmff@gmail.com Maria Sara de Lima Dias msaradldias@gmail.com Denise de Camargo denicamargo@gmail.com russo. 73722013000400011 Vygotski para o ensino de arte na escola. Psicologia Em Estudo Platonische studien , 18 (4), 689–699. https://doi.org/10.1590/S1413-. Tübingen: CF Osiander. Educativa , 20 (1), 268–287.

I. Doutoranda. Mestre em Educação. Universidade Federal do Paraná (UFPR). Curitiba. Estado do Paraná. Brasil. II. Docente. Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade/Departamento de Estudos Sociais. Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Curitiba. Estado do Paraná. Brasil. III. Docente. Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal do Paraná (UTP). Curitiba. Estado do Paraná. Brasil. (UFPR). Mestrado em Psicologia Social Comunitária. Universidade Tuiuti