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Este texto discute a demonização das religiões afro-brasileiras pela igreja universal do reino de deus (iurd) e a fraca reação dessas religiões. O autor explora a história da demonização, as agressões verbais e físicas, e os códigos necessários para os pastores da iurd dominarem as religiões afro-brasileiras. O texto também aborda a estrutura descentralizada das religiões afro-brasileiras e sua importância na reprodução dessas religiões, apesar dos ataques. O autor conclui que a estrutura descentralizada dificulta os ataques da iurd, que é levada a realizar ataques genéricos contra as religiões, mas não contra indivíduos.
Tipologia: Exercícios
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Ari Pedro Oro*
Entre as várias modificações ocorridas nos últimos anos no campo religioso brasileiro figura uma demonstração explícita de intolerância religiosa que alguns autores chamam de "conflito religioso" (M. C. Soares, 1990), "guerra religiosa" (L. E. Soares, 1993) ou "guerra espiritual" (Corten, 1996), deflagrada pelas igrejas "neopentecostais"^1 contra as religiões afro-brasileiras^2. A Igreja Universal do Reino de
Deus (IURD)^3 , como veremos, esta à frente deste processo^4 pois "fez do combate à possessão (de entidades afro-brasileiras) o centro de sua atividade ritual e o instrumento maior de conquista de novos adeptos" (Birman, 1986: 93)^5.
Pretendo, neste texto, apresentar brevemente três perspectivas analíticas formuladas por cientistas sociais sobre os sentidos embutidos nos ataques neopentecostais contra as religiões afro-brasileiras e, especialmente, pretendo compreender como a acusação é percebida pelos membros destas últimas. Ou seja, de um lado, discorro sobre o significado da demonização das religiões afro-brasileiras por parte do neopentecostalismo, sobretudo da IURD, e, de outro lado, procuro compreender a fraca reação por parte das religiões vítimas das
não-cristas, entre as quais as afro-brasileiras. 3 Fundada em 1977 pelo funcionário público Edir Macedo, então com 33 anos de idade, a Igreja Universal se tornou a mais internacional das igrejas brasileiras e é detentora de urn patrimônio avaliado em 400 milhões de dólares. De fato, segundo dados de 1995, a Universal estava presente em 32 países, sendo 7 na América Latina, 6 na América Central, 2 na América do Norte, 5 na Europa, 11 na África e 1 na Ásia. No Brasil possuía 2 mil templos, cerca de 3 milhões de fiéis e 7.000 pastores comandados por 37 bispos. A grande maioria dos pastores espalhados pelo mundo são brasileiros (Revista Veja, 19/04/1995). A Igreja Universal é proprietária de uma rede de Televisão, a TV Record, de São Paulo, de várias emissoras de rádio, além de gráficas, estúdios de gravação, jornal, revista, uma construtora, uma fábrica de móveis, urn banco e uma holding que administra todos os negócios da Igreja. Segundo Paul Freston, "na amplitude de suas atividades, a IURD começa a parecer com a Igreja Cató1ica ou com uma igreja protestante nacional na Europa" (Freston, 1994). 4 Segundo R. Mariano, outras igrejas evangélicas implicadas nessa "guerra" são: Igreja Internacional da Graça de Deus, Igreja do Espírito Santo (dissidência da lURD no Nordeste), Cristo Vive, Comunidade Evangélica, Casa da Benção e Igreja Deus é Amor (Mariano, 1995: 103-104). 5 As religiões afro-brasileiras são as principais, mas não as únicas, a serem acusadas de demoníacas pelos neopentecostais. A Igreja Universal do Reino de Deus refere, explicitamente, o espiritismo, os grupos do tipo Nova Era, o catolicismo, "as religiões orientais e as ocidentais ligadas ao ocultismo" (Macedo, 1995). Porém, deve-se assinalar que, por sua vez, os grupos neopentecostais são também vítimas de intolerância religiosa, de outro tipo de "guerra santa", deflagrada sobretudo pela mídia e pelas ciências sociais, com repercussões na sociedade em geral, que mantêm uma atitude negativa e preconceituosa contra eles, resultante da "valorização negativa do emocionalismo, o desprezo pelas experiências não racionalmente explicáveis, o rechaço de gastos no sobrenatural..." (Mariz, 1995: 23).
no demônio^8. Especialmente a Igreja Universal do Reino de Deus – esta igreja que há alguns anos constitui a face mais visível (e mais polêmica) dos evangélicos – sustenta dois princípios fundamentais: o primeiro (compartilhado com maior ou menor ênfase por outras igrejas pentecostais): os demônios são os causadores dos males e problemas de toda ordem que afetam as pessoas, os elementos perturbadores da "ordem natural" das coisas ("natural" no sentido daquilo que está conforme a vontade divina), cujo objetivo é "distrair Deus" (Gomes, 1994: 233-234). Ouçamos as palavras do seu fundador, retiradas do seu livro " Orixás, Caboclos e Guias: deuses ou demônios "^9 : "Tudo o que existe de ruim neste mundo têm sua origem em satanás e seus 8 De fato, para o neopentecostalismo, "tanto é o diabo que causa as doenças, conflitos, desempregos, alcoolismo, leva ao roubo ou a qualquer crime, como é Jesus e o Espírito Santo que cura, acalma, dá saúde, dá prosperidade material e liberta do vício e do pecado. Nesta visão se nega assim por um lado a ação de outros seres espirituais como se nega a responsabilidade humana e conseqüentemente as origens históricas do mal e do bem" (Mariz, 1997: 231). Ainda, segundo Mariz, o pentecostalismo, fiel aos preceitos protestantes de não atribuir poder algum aos santos e a Virgem Maria, também não vai citar os anjos (Mariz, 1997). E. D. B. de Menezes faz uma análise da "quotidianidade do demônio na cultura popular", especialmente em nossa literatura de cordel (onde) o Diabo, implícita ou declaradamente, constitui um dos personagens centrais da maioria de suas histórias e, quase que invariavelmente, é o móvel fundamental na explicação dos eventos, das situações e dos comportamentos" (Menezes, 1981: 4). 9 Trata-se de um livro escrito em 1987, dedicado "a todos os pais-de-santo e mães-de- santo de nossa pátria" e que já vendeu mais de dois milhões de exemplares. O pai-de- santo e Presidente da Federação AFROBRAS, do Rio Grande do Sul, Jorge (Xangô) Verardi, aprecia favoravelmente esse livro. Diz ele: "É um livro fantástico. Eu tenho que tirar o chapéu. Eu sempre digo: se eu der aquele livro para um filho-de-santo meu, um guri, um menino que esteja com quinze, dezesseis anos, que esteja iniciando na religião, olha, se eu der para dez, te garanto que oito desistem da religião, porque é fantástica a forma de como ele coloca. Ele coloca tão bem as coisas e tem fotografias e tudo, que quase que convence. Se a pessoa não tiver uma convicção de verdade ela balança". Edir Macedo, escreveu em 1995 mais um livro sobre o tema dos demônios: "O diabo e seus anjos". Nele sustenta a mesma acusação demoníaca em relação ao panteão religioso afro-brasileiro. Embora eu cite neste texto somente os livros referidos de E. Macedo friso que os vilipêndios contra os afro-brasileiros aparecem em várias outras publicações da Igreja. Assim, como refere Machado de Almeida, "A primeira publicação da Igreja Universal foi a revista Plenitude, criada pouco tempo depois da sua fundação e, desde o seu primeiro número, o ataque à Umbanda e ao Candomblé imperaram como matérias principais. A Folha Universal, que substituiu posteriormente a revista, traz todas as semanas diversas reportagens a respeito dos males causados por estas religiões" (Machado de Almeida, 1996: 55).
demônios. São eles os causadores de todos os infortúnios que atingem o homem direta ou indiretamente" (Macedo, 1987: 103). Em outro livro ele se questiona, e responde: "Qual a origem de todos os males que afligem a humanidade? Doenças, misérias, desastres e todos os problemas que tem afligido o homem desde que este iniciou sua vida na terra, tem uma origem: o diabo" (Macedo, 1995: 43)^10. Portanto, para a Universal, "O diabo não é somente a antítese (o arquinimigo) de Deus. Ele é a encarnação do Mal; uma presença constante (e ameaçadora) na vida e no cotidiano das pessoas" (Barros, 1995: 146). E prossegue, com razão, a autora, afirmando que as representações sobre o diabo "constituem o eixo a partir do qual o universo simbólico desta igreja é construído ... " (Id. Idib.: 1). Em segundo lugar (e neste ponto distinguindo-se das demais igrejas pentecostais), sustenta a Universal que "a Umbanda, Quimbanda, Candomblé e o espiritismo de urn modo geral, são os principais canais de atuação dos demônios, principalmente em nossa pátria" (Macedo, 1987: 113). Por isso mesmo, desde a sua fundação, em 1977, essa Igreja conduz um ataque sem trégua, contumaz, radical, contra àquelas religiões, a tal ponto que esse combate "tornou-se um de seus principais pilares doutrinários" (Mariano, 1995: 103). As agressões são primeiramente verbais, ou seja, ocorrem mediante urn reiterado discurso acusatório - como esse, escrito pelo seu fundador: "Essa religião (afro- brasileira) que está tão popular no Brasil é uma fábrica de loucos e uma agência onde se tira o passaporte para a morte e uma viagem para o inferno" (Macedo, 1987: 86). Além disso, seus centros seriam "morada de demônios"; seus deuses "espíritos malignos", seus cultos "rituais do demônio"; seus líderes religiosos "serviçais do diabo"; seus fiéis e clientes "pessoas ignorantes que caíram na armadilha de satanás". Em
10 Por isso mesmo é recorrente nos templos universais afirmações como estas por parte dos pastores: "tu demônio que amarrou os negócios; demônio que atua no trabalho dele; demônio que amarrou a empresa; demônio da dívida; demônio da falência; demônio da doença; demônio que vêm atuando sobre esta pessoa causando toda espécie de problema; demônio que está destruindo a saúde, a finança, a família; e o demônio que está alojado nesta pessoa; nenhum médico resolve o problema dele, só a libertação em nome do Senhor Jesus". Relativamente as doenças, Macedo apresenta a seguinte ressalva: "Embora a doença seja demoníaca, nem todo o doente é endemoninhado. Há uma grande diferença entre estar com urn espírito de enfermidade e estar possesso (...). Nem todo doente está endemoninhado, entretanto, todo endemoninhado tern doenças" (Macedo, 1987: 106-107).
tempo os rituais, as crenças, os deuses e guias dos cultos afro-brasileiros e espíritas são percebidos e classificados como demoníacos pelos evangélicos e até por alguns expoentes da Igreja Católica". Mesmo hoje em dia, prossegue Mariano (1995: 99-100), "outras igrejas, de forma mais branda, estão engajadas na guerra espiritual". H. Wynarczyk, por sua vez, esclarece que a demonização neopentecostal atual se insere dentro da chamada "Teologia da guerra espiritual", surgida na década de 80 no meio evangélico norte-americano, que procedeu a demonização sobretudo das religiões não-cristãs (Wynarczyk, 1995). Muito antes disso, porém, nas Idades Média e Moderna cristã européia, bem como na Judéia vetero-testamental, já ocorria a identificação dos deuses dos pagãos com os demônios. Como entender a demonização das religiões afro-brasileiras por parte do neopentecostalismo, sobretudo, da Universal? Quais são os significados vinculados à este procedimento?
2 – Concorrência religiosa entre iguais
Seguindo uma perspectiva apontada por M. Weber (1991), vários autores percebem a demonização afro-brasileira por parte do neopentecostalismo como urn recurso sirnbólico posto em prática por religiões que competem entre si para arregimentar fiéis e para se impor legitimamente. Assim, para C. Mariz, a satanização conduzida pelo neopentecostalismo visa manter a ortodoxia de urna fé ameaçada por religiões rivais, especialmente afro-brasileiras e Nova Era, e resulta, de urn lado, do fato dessas expressões religiosas também oferecerem experiência emocional e mágica e, de outro lado, de serem grupos abertos a mistura religiosa e ao sincretismo. Desta forma, "O demônio seria para os pentecostais uma arma potente tanto contra a prática simultânea de religiões distintas quanto a adoção de valores e práticas de outros grupos religiosos. Neste caso os pentecostais não demonizam apenas o oprimido socialmente (como seria o caso das religiões afros), mas também o socialmente mais bem sucedido (como o caso dos adeptos da Nova Era)" (Mariz, 1997: 237).
Por sua vez, C. R. Brandão (1988) percebe uma crescente 1ógica mercadológica no campo religioso brasileiro, sendo o ataque pentecostal as religiões afro-brasileiras urna expressão de concorrência religiosa existente no mercado de bens e serviços simbólicos. Igualmente, R. Mariano entende que os ataques dos crentes contra os afro-brasileiros e espíritas ocorrem por serem eles "os maiores concorrentes no mercado de soluções simbólicas e prestação de serviços religiosos para os problemas materiais e espirituais dos estratos pobres da população" (Mariano, 1995: 108-109). No dizer de L. E. Soares, a concorrência pentecostal contra os afro-brasileiros revela a instalação, no interior da religiosidade popular, de um igualitarismo por baixo (sem individualismos porém), de uma paradoxal aliança por hostilidade das classes subalternas, de um horizontalismo nas relações entre modalidades religiosas não hegemônicas. Ou seja, o embate estaria ocorrendo simetricamente entre iguais e não mais assimetricamente como na relação com o catolicismo dominante (Soares, 1993). Também V. Boyer sublinha a situação de concorrência entre cultos de possessão e igrejas pentecostais para o recrutamento, majoritariamente feminino, num mesmo meio social (Boyer, 1995). Sugiro, neste ponto, três observações: em primeiro lugar, como explico mais à frente, estamos diante de expressões religiosas que disputam fiéis que compartilham além do mesmo nível social, dos mesmos códigos simbólicos e cognitivos. Em conseqüência temos, de urn lado, a conversão de umbandistas, até mesmo de pais e mães-de- santo e, de outro lado, pastores da Universal que precisam dominar, conhecer, os códigos das religiões afro-brasileiras para acederem aquele cargo. Em segundo lugar, verificamos a ocorrência de uma disputa por iguais que se encontram no meio urbano. De fato, como mostraram Pierucci e Prandi (1996), 42,2% dos pentecostais, 70,6% dos freqüentadores das religiões afro-brasileiras e 52,6% dos kardecistas, estão implantados nas capitais e regiões metropolitanas do país. Enfim, e não menos importante, a concorrência religiosa movida pelo neopentecostalismo não significa nem a negação do afro-brasileiro – terreiro, rituais, poder das entidades – nem, como sublinha Birman, urna simples "diminuição da importância deste, mas sobretudo e de forma significativa, de uma alteração do sentido imbuído a sua prática religiosa pelos atuais adeptos pentecostais e antigos frequentadores do seu terreiro" (Birman, 1996: 1 07; grifo nosso).
alcançarem os milagres. A proposição de Corten encontra guarida nas afirmações de Macedo. Escreve ele: "nossa igreja foi levantada para urn trabalho especial (...) a libertação de pessoas endemoninhadas" (Id. Ibid. p. 16). E completa: "Lidamos com esse tipo de coisa há alguns anos e três ou quatro vezes por dia, de segunda a segunda, estamos preocupados em libertar as pessoas de toda a obra do diabo" (Id. Ibid., p. 46).
4 – A busca de diferenciação e rejeição do passado
Outro sentido embutido no processo de demonização afro- brasileira por parte dos neopentecostais aponta para o fato de que se trata de um mecanismo posto em prática por estes últimos, sobretudo pela IURD, para demarcar e acentuar sua diferença, singularidade, no campo evangélico (Soares, 1990; Birman, 1996; Jungblut, 1992)^12 , e isto em dois níveis. Em primeiro lugar, a nível institucional, ao enfatizar um novo modo de ser pentecostal, dando-se uma especifidade, uma nova missão. Leiamos este trecho escrito pelo fundador da Igreja Universal: "temos de sair por ai dizendo que Jesus Cristo salva, batiza com o Espírito Santo, mas também, e antes de tudo, que liberta as pessoas que estão oprimidas pelo diabo e seus anjos " (Macedo, 1987: 131; grifo nosso). Relembro também outro trecho, acima referido, retirado das primeiras páginas de "Orixás, Caboclos e Guias": "nossa igreja foi levantada para um trabalho especial, que se salienta em todas as nossas reuniões – a libertação de pessoas endemoninhadas" (Macedo, 1987: 16). Em outro momento escreve: "Somente Jesus Cristo pode libertar completamente uma pessoa das garras dos demônios. E isso, caro leitor, que fazemos em nossas igrejas" (Id. Ibid., p. 58). Portanto, a ênfase no exorcismo dos demônios – identificados com o panteão religioso afro-brasileiro – que perturbam as pessoas causando-lhes os males, constitui urn importante código de diferenciação, um sinal diacrítico da identidade neopentecostal, especialmente da IURD. Para esta, o afro-brasileiro representa a alteridade radical, que contribui, por contraste, para a construção da sua própria identidade religiosa. Na prática, porém, como veremos, as
12 Como veremos mais à frente, vários elementos contribuem para a construção da identidade neopentecostal, sobretudo da IURD, e não somente a demonização das religiões afro-brasileiras.
fronteiras entre essas expressões religiosas são, em certos aspectos, fluídas e porosas. Seja como for, e se retomarmos a dimensão concorrencial acima referida, percebemos aqui a importância do sentido político da identidade^13 , embora, como sabemos, este seja urn entre outros significados presentes na construção desta e das identidades em geral. Em segundo lugar, a ênfase na demonização afro-brasileira cumpre também urn sentido a nível individual. Ou seja, posto que um born número dos freqüentadores do neopentecostalismo provêm ou mantinham, direta ou indiretamente, contato com o mundo religioso afro-brasileiro, a dramatização ritualística da demonização traduz, até certo ponto, a rejeição do neo-converso do seu modo de vida pregresso e a expressão de sua mobilidade religiosa (e quiça também social); necessidade de sublinhar o novo em relação ao velho, o abençoado e liberto em relação ao pecaminoso e mundano. Nesta 1ógica, o passado não é esquecido, desmemorializado. Ele é constantemente atualizado para ser diariamente exorcizado, sempre renovado e representado no ritual do exorcismo/libertação. Dessa forma, o sentido da demonização dos espíritos reside na necessária recordação diária aos novos crentes de que os males são causados pelos demônios (subentende-se as entidades afro-brasileiras), os mesmos que cultuavam e seguiam mas que agora devem rejeitar e abominar (sem negá-Ios porém), porque se encontram sob um poder maior, do Espírito Santo^14.
13 Por isso mesmo tem razão C. R. Brandão (1988: 58) em definir identidade como "estratégias simbó1icas de lidar com o poder através da diferença...", ou S. Novaes (1990: 8-12) em afirmar que a identidade constitui a estratégia de uma "mesmice", uma tematização sobre o mesmo "que ocorre sempre que um grupo reivindica para si o espaço da diferença". 14 Quanto à isso, como lembrou Mônica do Nascimento Barros, seria interessante saber se, de fato, entre os crentes "originários dos cultos afro, e do catolicismo popular, o Diabo é visto como uma entidade eminentemente maligna ou, se nestes casos haveria uma "relativização" de seu conteúdo maligno" (Barros, 1995: 195). Uma pista nesta direção nos é oferecida por P. Birman (1996: 99). Em suas análises de relatos de conversão esta autora observou que as pessoas efetuam uma reconstrução de suas histórias de vida que inclui a releitura "de seus vínculos religiosos anteriormente estabelecidos".
ataques desfechados atingem plenamente o centro mesmo das religiões afro-brasileiras, ou seja, suas entidades espirituais que, tal como nos terreiros, e com semelhante performance, baixam nos templos para ali serem humilhadas e expulsas. Dessa forma, como observou M. C. Soares (1990:88), "Essas igrejas se utilizam de um simbolismo muito semelhante ao encontrado nas religiões afro-brasileiras (...); apenas os valores (positivo e negativo) se apresentam invertidos, sendo os elementos em jogo os mesmos". Este fato até certo ponto perturba os membros das religiões afro-brasileiras prejudicando o estabelecimento de reação religiosa. Em outras palavras, dificulta o encaminhamento de ações e campanhas no âmbito religioso, mesmo porque, por sua vez, os membros das religiões afro-brasileiras aceitam e reconhecem o caráter divino do Espírito Santo e da Santíssima Trindade. Assim, não podem lutar contra os neopentecostais usando as suas próprias armas. Diante disso, ou adotam a estratégia do silêncio – se calam, desconsideram os ataques, vêem-nos sem importância^16 - ou, sentindo-se impotentes no âmbito religioso, acionam a esfera jurídica, embora sem qualquer eficácia, no dizer do Presidente da AFROBRAS do RGS, posto que, nesta esfera, há uma enorme dificuldade a ser superada^17. Em terceiro lugar, como sabemos as religiões afro-brasileiras possuem urn passado feito de estigmatizações, preconceitos, e até mesmo de repressões, religiosas e policiais. Ora, este passado não foi apagado da memória coletiva dos adeptos destas religiões; até certo ponto ele se mantêm até hoje e, por certo, contribuiu para a formação do atual ethos dos seus membros^18. É reveladora neste sentido a afirmação do pai-de-santo Pedro da Oxurn: "A nossa religião não é muito de gritar;
16 A. P. Nogueira, presidente do CEUCAB, afirma que aconselha os seus filiados a ignorar os ataques dos evangélicos: "se dermos atenção à esses ataques estaremos colaborando para que esses ataques surtam os efeitos que eles querem; se nós formos nos defender, vamos nos defender de quê? De que sou feiticeiro, de que eu faço isso, de que eu faço aquilo? Se eu fizer isso, estarei dando mídia à esse pastor". 17 Jorge Verardi se refere aqui ao fato de que estão juridicamente impedidos de entrar com uma representação contra uma instituição religiosa mas somente contra a pessoa física dos pastores. E como são milhares demandaria muitas ações "o que acarretaria um ônus violento, que nós não possuímos; conseqüentemente, nós nos sentimos impotentes no momento". 18 É possível mesmo que o estigma da perseguição seja um sinal diacrítico da identidade das religiões afro-brasileiras. Durante muito tempo tiveram a igreja católica como opositora declarada; agora são as igrejas neopentecostais, com a IURD à frente.
sofremos muito, parece que ainda somos escravos". E, como historicamente sobreviveram a todas as perseguições e ações de intolerância – no aspecto religioso recorrendo, como se sabe, a estratégia simbólica do sincretismo – seus membros apostam que o mesmo vai ocorrer agora. Assim, o Pai-de-santo Aristides Mascarenhas, diretor da Federação Bahiana de Cultos Afro-Brasileiros, afirmou que "essas agressões entram por um ouvido e saem por outro". E arremata: "Nós já resistimos a coisa muito pior e estamos aqui até hoje. Deixem eles falarem. No final, a gente verá quem têm razão" (Folha de São Paulo, 22/10/1995). Em quarto lugar, a fraca reação deve-se ainda ao secundário poder político que as religiões afro-brasileiras ocupam na sociedade brasileira. Paradoxalmente, trata-se de religiões procuradas e freqüentadas em todo o país, por indivíduos de todas as camadas sociais, inclusive por políticos, mas que não desfrutam de uma força política capaz de mobilizar a sociedade, a mídia, os intelectuais, etc, contra as reiteradas e diuturnas acusações de que sao vítimas. Bem diferente é o poder político do catolicismo em nosso país. Prova disso foi a quase "comoção nacional" provocada pelo "chute" desferido pelo pastor da Igreja Universal Sergio Von Helder contra a imagem de Nossa Senhora Aparecida, em 12 de outubro de 1995^19. Embora se trate de uma agressão carregada de grande densidade simbólica não é menos emblemática a agressão realizada todos os dias pela mesma Igreja Universal contra as divindades afro-brasileiras. "Eles queimam todos os dias centenas de guias e roupas de religião, imagens católicas e do sincretismo afro-católico. Eles quebram e chutam essas imagens, ofendem nossos orixás", desabafa Jorge Verardi. Mas, neste último caso,
19 F. Pierucci assinala que não é todo o conflito religioso que provoca uma controvérsia pública e envolve uma grande diversidade de atores sociais como o chamado "chute na santa". Nele envolveram-se "além de jornais e jornalistas, outros intelectuais da informação, escritores, produtores e divulgadores culturais, apresentadores de programas de rádio e televisão, músicos, bandas de pop music, rock, rap e carnaval, novos play leaders, humoristas, atores e outros profissionais das artes e espetáculos, juristas, juízes, corregedores, representantes do Ministério Público, sociólogos, antropólogos, comentaristas políticos, assistentes sociais, psicanalistas, médicos, terapeutas, líderes sindicais etc. A lista é pos- moderna" (Pierucci, 1996: 281). Corten também apresenta um inventário das matérias publicadas na imprensa brasileira sobre a atuação da Igreja Universal e especialmente sobre o episódio "chute na santa" (ver A. Corten, 1996: 217).
autonornia provoca a concorrência e desfavorece a união. "Cada um procura sua própria autoprornoção", reconhece o presidente da Federação AFROBRAS, Jorge Verardi. "Nossa religião não têm estrutura política interna; esse é urn grande problema nosso, da religião afro no Brasil. Cada casa é uma nação. Não existe todas as casas unidas", afirma o pai-de-santo Pedro da Oxum, de Porto Alegre. Nem mesmo a possibilidade de eleger um inimigo comum, como o neopentecostalismo, os une. Nem mesmo as várias federações, organizadas a nível local, regional, estadual e mesmo nacional, conseguem aglutinar e agregar um número significativo de líderes de terreiros visando alguma reação contra as igrejas neopentecostais^22. Neste sentido, até parece que, por um lado, a IURD se dá conta de que em religiões que se caracterizam mais como "modelo cultural" e menos como "sistema institucional", segundo a proposição de P. Beyer (1997)^23 , como as espíritas e as afro-brasileiras, pode bater, agredir, sem sofrer represálias, diferentemente da igreja católica, o caso conhecido como "chute na santa" sendo – como vimos – revelador neste sentido. Mas, por outro lado, é possível que a estrutura não centralizadora das religiões afro-brasileiras, associada ao uso constante por parte dos seus membros de um discurso caracterizado pela ambiguidade e maleabilidade (Segato, 1994), tenham sido historicamente importantes para a reprodução das mesmas religiões, malgrado os ataques e perseguições de que foram alvo, e dificulta hoje os ataques da Universal que, como vimos, é levada a efetuar ataques genéricos, embora eficazes, contra a religião mas não contra indivíduos.
22 No V Congresso Afro-Brasileiro, realizado em Salvador, Bahia, entre os dias 17 e 20 de agosto de 1997, por ocasião do Fórum que reuniu o "Povo de Santo", renomados babalorixás e ialorixás da capital bahiana reconheceram, de público, perante uma concorrida assembléia formada por professores/pesquisadores, militantes do movimento negro e membros das religiões afro-brasileiras, que eles têm alguma parcela de culpa na insistência dos ataques da Igreja Universal. Frases como estas foram pronunciadas na ocasiao por líderes afro-brasileiros: "nossa falta de união é nosso calcanhar de Aquiles"; "Devemos enfrentar esta besta-fera (referido-se a Universal)"; Saíamos de nossos casulos e vamos nos organizar"; "Se não nos unirmos, vamos perder". 23 Para P. Beyer, religião como "sistema institucional" é um fenômeno recente, uma criação do moderno processo de globalização. Neste sentido, o cristianismo foi a primeira religião a deixar de ser religiosidade, comportamento religioso, ou seja, práticas religiosas relacionadas à um "modelo cultural", para se tornar o modelo de uma religião (Beyer, 1997).
Em sexto lugar, a quase inércia afro-brasileira esta relacionada à mecanismos de apropriação e reelaboração neopentecostal de crenças e códigos simbólicos presentes no universo de representação dos novos crentes.
6 – Apropriação e reelaboração de marcos interpretativos da realidade
O neopentecostalismo apresenta um discurso cognitivamente significativo para parcela expressiva de neo-conversos socializados na cultura católica e/ou afro-brasileira, estas últimas via de regra comunicando-se entre si^24 ; ou seja, ele efetua urn alinhamento de marcos interpretativos (" frame alignment ") da realidade, segundo a expressão de D. Snow et alii (1986)^25 , constantes no universo de representação simbólica dos seus fiéis. Mais especificamente, põe em prática dois tipos de frame alignment : o '' frame amplification " – na medida em que se apropria ampliando e reforçando alguns aspectos do marco interpretativo da realidade dos seus fiéis – e o " frame transformation ", posto que ao mesmo tempo procede à uma
24 Recordemos essa afirmação de R. C. Fernandes (1981: 125): as religioes afro- brasileiras seriam, "... o lado inverso do catolicismo neste país". Segundo Prandi, "as afro-brasileiras são a segunda fonte importante de conversos para as denominações pentecostais, com a taxa de 6%, que é dez vezes menor que a contribuição de ex-catóIicos" (Prandi, 1996: 263). 25 O conceito frame alignment é utilizado por Snow para explicar o recrutamento de indivíduos em movimentos sociais ou a conversão à novos movimentos religiosos. Para ele, frame alignment consiste em "estabelecer uma conexão entre as orientações interpretativas dos indivíduos e a dos grupos que pretendem recrutá-Ios, de tal forma que algum tipo de interesse, valores e crenças dos indivíduos vejam-se como congruentes e complementários com as atividades, objetivos e ideologia do grupo" (Snow et al. 1986: 464; Tradução de de A. Frigerio). Este autor argentino usou aquela expressão do soció1ogo norte-americano para explicar a receptividade das religiões afro-brasileiras e das igrejas neopentecostais brasileiras na Argentina (Frigerio, 1997).
freqüentam" (Birman, 1997: 51). Além disso, percebe-se o aparecimento de evangélicos "nominais", ou seja, que se declaram como tais, sem freqüentar os templos, como ocorre no catolicismo; nota-se uma grande ênfase na possessão e no exorcismo – presentes no quotidiano religioso afro-brasileiro e na tradição católica - cujos rituais se tornam o "centro simbólico" da Universal. Observamos o frame transformation por parte do neopentecostalismo (IURD) quando, por exemplo, transforma as entidades espirituais das religiões afro-brasileiras em demônios; os rituais praticados nos terreiros em "feitiçaria"; os babalorixás e as ialorixás em "serviçais dos espíritos do mal"; a possessão, não mais como característica de uma pessoa que realiza a mediação entre as entidades e o grupo, como nas religiões afro-brasileiras, mas como expressão de seres malignos que dado seu poder de circulação podem atingir qualquer pessoa, mesmo os membros mais devotos da Igreja (Birman, 1997); O exorcismo, não mais como expulsão de uma entidade maligna do corpo de uma pessoa, como na concepção católica, mas como um "mecanismo para bloquear a circulação do Mal." (ld. Ibid., p. 55); ou, ainda, o "exorcismo" ("subir", "ir embora") não mais como ponto culminante de extrema sacralização do ritual, como no Candomblé, mas como "pólo negativo extremo de manifestação do sagrado por tratar-se da irrupção do mal" (Machado de Almeida, 1996: 76-77)^30. Conseqüentemente, o médium possuído, de respeitado e agente (nos terreiros) torna-se um desafiado e uma marionete nas mãos dos pastores (nos templos) (Boyer, 1996)^31. Isto significa, como afirmou R. Segato, que o cenário do culto afro-brasileiro é trazido para dentro do culto pentecostal (leia-se IURD) para então ser expurgado, mas sempre de forma provisória (Segato, 1997). Portanto, por urn lado, o neopentecostalismo se articula com a religiosidade afro-brasileira, se amolda a uma matriz cultural familiar aos fiéis, "reencontra linhas do universo simbólico brasileiro tradicional..." (Sanchis, 1994: 53), se apropria de um modelo já existente de relação com o sobrenatural (M. C. Soares, 1990) ( Frame amplification ), tudo isto, como já observou R. Mariano (1995: 127),
30 Por isso mesmo diz, acertadamente, esse autor que "o culto de libertação pode ser lido como uma inversão simbó1ica dos rituais encontrados nos terreiros" (ld. Ibid., p. 77). 31 Esta autora efetua uma boa análise dos elementos que aproximam entre si os dois sistemas religiosos, neopentecostais e cultos de possessão (Boyer, 1996).
sendo intencional e estudado na IURD. Mas, por outro lado, opõe-se as mesmas religiões de referência e realiza uma ressemantização^32 de certas crenças presentes no imaginario popular ( Frame transformation ). E, justamente, a eficácia do discurso acusatório neopentecostal deriva dessa sua capacidade ao mesmo tempo de tocar, atingir, dialogar, lidar, com espaços de "passagem" entre cultos (Birman, 1996)^33 , e de ressignificar, magistralmente, alguns elementos e crenças presentes no universo simbólico de referência de parcelas significativas da população que dominam ou conhecem os códigos e as crenças afro-brasileiras e católicas tradicionais. Não é por acaso que o neopentecosta1ismo conhece um grande sucesso e promove conversões em regiões onde as religiões afro-brasileiras estão implantadas (Corten, 1997)^34 , mesmo no exterior, ao menos nos países do Conesul. De fato, no Uruguai e na Argentina a instalação da IURD sucedeu a implantação das religiões afro-brasileiras, o que significa que, neste caso, a IURD se expandiu no rastro daquelas religiões porque, até certo ponto, necessita das mesmas, isto é, do conhecimento da sua cosmovisão, crenças e ritos, por parte dos seus interlocutores, para se instalar e obter sucesso^35.
32 Resemantização ocorre quando conteúdos das religiões de origem, vindas de fora, são alterados por conteúdos das loca1idades e dos grupos que os adota; ressimbolização ocorre quando conteúdos tradicionais de um grupo adquirem nova expressão através de formas simbó1icas importadas, vindas de fora (Segato, 1997). 33 Ao ana1isar as formas de contato cultivadas entre o pentecostalismo e os cultos de possessão, P. Birman enfatiza a idéia de passagens entre cultos religiosos, que inclui um espaço de interlocução constante, necessariamente fluído e sincrético, espaço também de redefinição de fronteiras, de inovações e invenções, de trocas simbó1icas (Birman, 1996). 34 Neste caso a conversão implica numa redefinição do poder do demônio e a descoberta de sua presença e atuação em locais antes insuspeitos pelos novos crentes como os terreiros, bem como numa redução do universo de seres sobrenaturais – pois, "de agora em diante conhecerão apenas Deus e os diabos (...) Dessa forma a libertação têm um papel relativamente 'desencantador' combatendo à magias plurais e não ética" (Mariz, 1997: 240). 35 Resta saber qual é o discurso da IURD e que rituais põe em prática em países sem tradição religiosa afro-brasileira. R. Mariano sugere que efetuam a demonização de espíritos territoriais, regionais, geográficos (Mariano, 1995). É isso que provavelmente ocorre posto que o próprio E. Macedo, num dos seus livros, após efetuar uma análise dos demônios no Antigo e no Novo Testamentos, e na igreja primitiva, afirma: "É possível que nos mais diversos lugares onde a Igreja atuava, os demônios fossem identificados com a cultura local" (Macedo, 1995: 20; grifo nosso ). Assim procedendo, estará a Igreja Universal adaptando a sua máquina discursiva as culturas locais. Está é, aliás, uma das características da máquina narrativa, segundo Corten (1996), ela é flexivel e incorpora elementos locais. Ademais, a julgar pelas imagens e relatos de pastores brasileiros da Universal em atuação no exterior, e veiculadas pela TV Record, um importante mecanismo posto em prática pela Universal para atrair as pessoas, obter êxito e desfrutar de aceitação local consiste na prestação de ações de assistência social em relação aos mais necessitados.