
























Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
Apontamentos sobre o Dadaísmo. Em que se apresenta aspectos ligados ao movimento dadaísta: origem, desenvolvimento e alguns de seus artistas mais ...
Tipologia: Slides
1 / 32
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
Apontamentos sobre o Dadaísmo Em que se apresenta aspectos ligados ao movimento dadaísta: origem, desenvolvimento e alguns de seus artistas mais significativos.
XII. 1. – Quem foi o pai do beDabêDá? “Todo fruto do asco capaz de converter-se em negação da família é dadá. Protesta a socos com todo ser em sua ação destrutiva: Dadá... Dadá, abolição da lógica... abolição do futuro”. Tristan TZARA. Manifesto do dadaísmo. “Tínhamos perdido a esperança de condição de vida mais justa para a arte em nossa sociedade. Aqueles dentre nós que tinham consciência do problema sentiam o peso de uma enorme responsabilidade. Estávamos indignados com os sofrimentos e o aviltamento do homem”. Marcel JANCO. Declaração. “Sokobauno sokobauno sokobauno Schikaneder Schikaneder Schikaneder As lixeiras estão engordando sokobauno sokobauno Os mortos saem pelas coroas de tochas ao redor da cabeça (...) Vejam a osteomalacia sokobauno sokobauno Vejam a placenta gritando nas redes de borboletas dos colegiais Sokobauno sokobauno O padre fecha a bra-aguilha rataplan rataplan a Bra-aguilha e os pêlos lhe saem pe-pelas orelhas Do céu ca-ai a catapulta a catapulta e A avó levanta o seio Sopramos a farinha da língua e gritamos e sai caminhando Uma cabeça na cumeeira Dratcabeçagamemorto ibn ben zakalupp wauwoi zakalupp Cóccix estalinhos (...) Cerveja bar obibor Baumabor botschon ortischell seviglia o ca sa ca sa ca Ca sa ca ca sa ca ca sa ca ca Cicuta em pele purpurina intumesce em minhoquinhas e o macaco (...) Mpala tano mpala tano mpala tano mpala tano ojoho Mpala tano mpala tano ja tano ja tano ja tano o a bra-aguilha Mpala zufanga mfischa daboscha karamba juboscha daba eloe”. Richard HUELSENBECK. Canto-poema (ou Oração Fantástica). Inúmeras são as especulações acerca do nome Dadá adotado pelos artistas: rumenos, alemães, franceses, suíços... que pertenceram ao movimento ‘antiartístico’, originado pelas datas e marcos oficiais em Zurique, na Suíça, na primeira década do século XX.^1 Assim, muitas ‘explicações’ têm sido apresentadas, buscando, a partir desse
(^1) Em determinados materiais bibliográficos, há especulações segundo as quais o Dadaísmo teria surgido em diversas cidades, quase que ao mesmo tempo: Zurique, Berlim, Colônia, Mônaco, Nova Iorque, Paris, Barcelona e Moscou; entretanto, nesses mesmos materiais, Zurique aparece como o ‘epicentro’ do movimento. De outro modo, como afirmam tantos outros: ‘epicentro desse terremoto cultural’ ou, ainda: ‘terrorismo cultural’. De qualquer forma, depois de o movimento instalar-se em Munique e em Paris: onde Breton, Soupault e Aragon fundaram a revista Littérature , em 1918, os dois maiores centros dadaístas foram Berlim, com a participação
nome inusitado, cercar o movimento e seus artistas mais significativos. Hugo Ball, ‘líder’ do movimento em seu primeiro momento, afirmou que ao chegar a Zurique, em 1916, o nome já existia e que ninguém se preocupava com sua ‘paternidade’ e nem mesmo de onde ele teria se originado. Em alguns livros de história da arte aparece uma hipótese segundo a qual os líderes do movimento teriam aberto a esmo um dicionário de francês (para outros de francês alemão) e, na página aberta, ter ‘aparecido’ (em sua dupla acepção) a palavra dadá: que em francês significaria cavalo de pau. Uma outra aproximação possível prender-se-ia ao fato de os romenos Tzara e Janco, então exilados em Zurique, utilizarem frequentemente, em sua conversação cotidiana, a expressão ‘ da, da ’, que corresponderia a uma espécie de jargão eslavo de assentimento. Desse modo, e tendo em vista a ‘polêmica’, no primeiro Manifesto dadaísta, o mesmo Tzara teria afirmado com relação à palavra que designou/nomeou o movimento: “criar uma palavra expressiva que, mediante sua magia, fechasse todas as portas à compreensão e não fosse um ismo a mais”. Em outras fontes, encontra-se, ainda, uma outra hipótese dando conta que, em alemão, a palavra significa uma espécie de alegria pueril e ingênua suscitada por uma espécie de carro de criança. Hans Arp (alsaciano), em um de seus muitos relatos, afirma que a palavra teria sido criada espontaneamente por ele em fevereiro de 1916, sendo que tal ‘paternidade’ teria sido contestada pelo alemão Huelsenbeck, que, em chave de gozação, afirmava que a palavra-nome-conceito teria sido criado por ele e Ball para batizar com ‘um nome diferente’ madame LeRoy, cantora do Cabaré Voltaire. Outras ‘origens’ dão conta que para os negros Krou, dadá significaria o rabo de uma espécie de vaca santa; na Itália, a expressão designaria tanto o cubo quanto a mãe... ufa! Para quem se dizia ‘anti’ e insistia na profusão de significados não tendo preocupações de nenhuma natureza, tenderia (será?) a uma pretensão no mínimo internacionalista, não é mesmo? À luz, portanto, da ‘pseudo desimportância’ (uma vez que até um nome inusitado foi criado pelo qual eles passariam a ser reconhecidos) representada pelo nomear para os ‘mais variados pais’ do movimento, é recomendável parar com tais especulações de origem, buscando, isso sim, adotar (do mesmo modo como fizeram os artistas do movimento) um determinado pseudo descaso, tanto em relação ao nome pelo qual produção e artistas passaram a ser [re]conhecidos como, e fundamentalmente, no concernente àquilo contra o qual eles se reuniram: isto é, oposição aos padrões e rigores, tanto comportamentais como aos artísticos e hegemônicos (e mesmo os de vanguarda),
de Huelsenbeck, Hausmann e Franz Jung e Nova Iorque, fundamentalmente, com Picabia, Marcel Duchamp e Man Ray.
que chegamos à experiência central, propriamente dita, de Dadá. (...) o acaso, como um novo elemento estimulador da criação artística. Esta experiência revelou-se tão perturbadora, que é perfeitamente lícito considerá-la a experiência central, propriamente dita, de Dadá, que distinguiu Dadá de todos os movimentos artísticos anteriores”. 5 Sem mais delongas, que se parta, pois, ao movimento que também foi considerado como um não movimento por dois de seus artistas, sendo o primeiro Hugo Ball e o segundo Hans Arp. Assim, e à guisa de ilustração dentre outras observações, pode-se encontrar: “O que chamamos de Dadá é uma doidice nascida do nada, na qual estão envolvidas todas as questões transcendentais, um gesto de gladiador; um jogo com os restos míseros... uma execução de falsa moralidade”.^6 “Dadá visou destruir as razoáveis ilusões do homem e recuperar a ordem natural e absurda. Dadá quis substituir o contra-senso lógico dos homens de hoje pelo ilogicamente desprovido de sentido. É por isso que golpeamos com toda a força no grande tambor de Dadá e proclamamos as virtudes da não-razão. Dadá deu a Vênus de Milo um enema e permitiu a Laocoonte e seus filhos que se libertassem, após milhares de anos de luta com a boa salsicha Python. As filosofias têm menos valor para Dadá do que uma velha escova de dentes abandonada, e Dadá abandona-as aos grandes líderes mundiais. Dadá denunciou os ardis infernais do vocabulário oficial da sabedoria. Dadá é a favor do não-sentido, o que não significa contra-senso. Dadá é desprovido de sentido como a natureza. Dadá é pela natureza e contra a arte. Dadá é direto como a natureza. Dadá é pelo sentido infinito e pelos meios definidos”.^7 Desse modo, pode-se afirmar que o Dadaísmo foi um movimento despreocupado e ‘despregado’, pelo menos em seu início, em Zurique, de toda e qualquer preocupação social (como se isso fosse possível!). Manifestação, por excelência, da chamada produção artística experimental, as pseudo posturas de contestação dos dadaístas, abrigadas e amparadas (longe da guerra) pela neutralidade de Zurique, ‘enfrentaram’ apenas e tão somente os comportamentos burgueses, sem entretanto proceder da mesma forma com relação às mentalidades (ou ideologia, propriamente dita). Longe e abrigados pela ‘isolada-ilha Zurique’, na Suíça, os artistas do movimento parecem ter considerado a vida como uma pueril, alegre e rica experiência, alheios àquilo que acontecia a poucos quilômetros dali (e basicamente em todo território europeu). Segundo algumas das fontes consultadas, o movimento dadaísta experimentará uma politização quando alguns dos artistas ligados às práticas características dos ‘antiarte’, deixando a tranquilidade de Zurique, partem para Berlim que, como se sabe, foi um dos epicentros da guerra. Com relação à tranquilidade reinante em Zurique, teria afirma Tzara, Apud Gilberto Mendonça TELES. Op.cit., p.124:
(^5) Hans RICHTER. Dadá: arte e antiarte. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p.62. (^6) Apud, idem, ibidem, p.36. (^7) Hans ARP. Apud Dawn ADES. Op.cit., p.84.
“No Cabaret Voltaire , em Zurique, pontificava Tristan Tzara, boêmio trilingüe e de cultura francesa, liam-se poemas de Apollinaire, Max Jacob, Salmon e Jarry; Huelsenbeck recitava os expressionistas alemães; e todos eles discutiam as ideias futuristas de Marinetti e se declaravam discípulos de Rimbaud. Combinavam assim o pessimismo irônico de Voltaire com a ingenuidade infantil de Rimbaud, cuja obra representava o modelo de ruptura mais radical na história da poesia. Vem daí a definição de Hugo Ball num verbete proposto a um dicionário alemão: ‘DADAÍSTA – Homem infantil, quixotesco, ocupado com os jogos de palavras e com as figuras gramaticais’.” Fazendo uma paráfrase ao poema Tabacaria : ‘esses terríveis meninos teriam formado uma espécie de matilha tolerada pela gerência por ser – na condição de grupo – inofensivo’. Talvez dada (será que eu não teria querido dizer dadá) a essa inofensividade, combinada com uma certeira (mas escamoteada) profissão de fé em tantas abstrações generalizantes, os ‘produtos’ dadaístas foram oferecidos e consumidos rigorosa e exclusivamente pelos estratos médios da sociedade local. Talvez, ainda, com excesso de riso – ou a forma e a importância pela qual o riso era considerado – possa-se compreender de modo mais explícito o desserviço dele (riso e movimento?): e que, em épocas anteriores e posteriores, foi considerado como índice de alienação e de nervosismo fugidio. O riso que, como se sabe, pode castigar costumes e intentar a inteligência era concebido pelos dadaístas do seguinte modo: “Os leigos e especialistas em arte nos reconheciam muito mais pela gargalhada que dávamos do que pelo que efetivamente realizávamos. Encontrando-nos acima do mundo fariseu através da dupla força da visão exterior e interior... ríamos a bandeiras despregadas. Assim destruíamos, chocávamos, zombávamos – e ríamos de tudo. Ríamos de nós mesmos, tanto quanto do Imperador, do rei ou da pátria, da barriga de cerveja e da chupeta. Levávamos o riso a sério; somente o riso garantia a seriedade com que desenvolvíamos a nossa antiarte, a caminho da descoberta de nós mesmos. (...) Pelo preço de nos expormos diariamente, e com prazer, ao ridículo, tínhamos, sem dúvida, o direito de chamarmos o filisteu de saco empanturrado, e de dizer que o público era um curral cheio de bois. (...) Afinal: desejávamos promover uma nova espécie de ser humano com a qual fosse desejável viver, livre da ditadura da razão, da banalidade, dos generais, das nações, dos negociantes de objetos de arte, dos micróbios, do passado e dos diversos vistos de permanência”.^8 Dessa forma, o riso e o deboche (hedonistas?...) dos dadaístas pareciam seguramente confortáveis e sempre consentidos, os artistas do antimovimento (como insistiam em chamar aquilo – a confraria-gueto – que os abrigava) guardam, de certa forma, uma analogia aos inventores de piadas da atualidade: que tanto gosto fazem em pensar em situações em que as minorias possam ser sempre lembradas em chave de risada: normalmente alimentando inúmeros dos preconceitos presentes na vida social... Assim, e ainda que de modo redundante, tais ‘criadores’, abrigados em ‘ilhas flutuantes’:
(^8) Hans RICHTER. Op.cit., pp.83-4.
(e cujo fragmento de um de seus pensamentos ou manifestos é bastante exemplar): “Cada página deve explodir, seja pela seriedade, profunda e pesada, seja pela rebelião, seja pela náusea, a novidade, o eterno, seja pelo absurdo destrutivo, seja pelo entusiasmo dos princípios ou pelo modo como foi impressa. A arte deve tornar-se o ponto culminante da inestética, inútil e injustificável”. Terry Eagleton, comentando o desenvolvimento e as implicações ‘desregradas’ do pós-moderno (consequência, em certa medida de muitos dos movimentos de vanguarda)
(^10) Terry EAGLETON. As ilusões do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. (^11) Alain VIRMAUX. Artaud e o teatro. Op.cit., p.137.
XII. 2. – Origens e desenvolvimento do Dadaísmo “Não esqueci as máscaras que você costumava fazer para as nossas demonstrações Dadá. Eram aterrorizantes, a maioria delas besuntadas com vermelho sanguíneo. Com cartão, papel, crina, arame e pano, você fez seus fetos langorosos, suas sardinhas lésbicas, seus camundongos extáticos”. Hans ARP. Minha vida. “O poème simultan trata do valor da voz. O aparelho fonador substitui e representa a alma, a individualidade na sua odisseia em meio a acompanhantes demoníacos. Os ruídos constituem o pano de fundo; são o elemento articulado, fatal, determinante. O poema pretende demonstrar o entrelaçamento do ser humano num processo de mecanização. Com brevidade típica mostra o antagonismo entre a voz humana e um mundo que a ameaça, enreda e destrói, cujo compasso e cuja sequência de ruídos são inelutáveis”. Hugo BALL. Anotação em diário. “Ordem = desordem; eu = não-eu; afirmação = negação: máxima irradiação da arte absoluta, absoluta em pureza, caos ordenado
(^12) Segundo Dawn ADES, In: Conceitos de arte moderna. Op.cit., p.81, o Cabaré Voltaire, que durou seis meses, “era um misto de night club e de sociedade artística, projetado como ‘centro para entretenimento artístico’ onde artistas e jovens eram convidados a trazer suas ideias e colaborações, declamar seus poemas, pendurar seus quadros, cantar, dançar e fazer música”. 13 Hans RICHTER – Op.cit., p.9. – refere-se à chegada de Ball da seguinte forma: “No início da Primeira Guerra Mundial, em 1915, veio para a Suíça um escritor e diretor de teatro bastante esfomeado, ligeiramente bexigoso, alto e muito magro. (...) com sua amiga Emmy Hennings, habilidosa em cantar canções e recitar poesias. Ele fazia parte do povo de filósofos e poetas, que na época se via ocupado com assuntos completamente diferentes. Ball, entretanto, seguia sendo ambas as coisas: era filósofo, romancista, cabaretista, poeta, jornalista e místico”. A respeito da fundação do Cabaré, RICHTER, assim comenta, In: Op. cit, p.12: “Notícia de jornal de 2 de fevereiro de 1916: ‘Cabaré Voltaire. Sob este nome estabeleceu-se um grupo de jovens artistas e literatos cujo objetivo consiste em criar um centro para o divertimento artístico. De acordo com o princípio estabelecido pelo cabaré, nas reuniões diárias deverão realizar-se apresentações musicais e recitais dos artistas convidados. O cabaré exorta todos os jovens artistas de Zurique para que compareçam com sugestões e contribuições, sem se preocupar com esta ou aquela orientação artística’.” “No dia 5 de fevereiro de 1916, Ball relata: ‘O recinto estava superlotado; muitos não encontravam mais lugar. Por volta das seis horas da tarde, quando o pessoal ainda se encontrava martelando com afinco e afixando cartazes futuristas, apareceu uma delegação de quatro homenzinhos, de aspecto oriental, com pastas e quadros debaixo do braço, fazendo várias mesuras discretas. Apresentaram-se: Marcel Janco, o pintor, Tristan Tzara, Georges Janco e um quarto senhor, cujo nome me escapou. Por acaso, Arp também estava lá, e todos se entenderam com poucas palavras’.”
também, como única ‘realidade palpável’, para o ato criador. Dentre outras ideias mais características defendidas por Janco (e por vários de seus [anti]companheiros, a esse respeito: “Era uma aventura encontrar uma pedra, descobrir um mecanismo de relógio, encontrar um pequeno bilhete de bonde, uma bela perna, um inseto, vivenciar o canto do próprio quarto, tudo isso podia viabilizar sentimentos puros e imediatos. Na medida em que adaptamos a arte à vida cotidiana e às experiências especiais, a própria arte se submete aos mesmos riscos das mesmas leis do inesperado, assim como aos acasos e ao jogo das forças vivas. A arte não é mais o sentimento ‘sério e importante’, nem uma tragédia sentimental, mas apenas o fruto da experiência de vida e da alegria de viver. Dadá não foi uma escola, e sim um sinal de alarme do espírito contra o barateamento, a rotina e a especulação, um grito de alarme a favor de todas as manifestações das artes que buscavam criar uma base criadora, uma consciência nova e universal da arte – partindo das artes plásticas e da poesia, Dadá transferiu as suas experiências para o terreno do teatro, do cinema, para a arquitetura, a música, a tipografia, os objetos”.^17 Agregado a tantas pretensões e apologias ao ‘anti’ (nada anti) em suas várias e inúmeras possibilidades de realização, ainda, os dadaístas acreditavam e defendiam a ideia que qualquer pessoa poderia manifestar-se artisticamente, ou mais precisamente expressar-se/exprimir-se, sendo que, ao assim proceder, sua manifestação tenderia a ser superior a muitos daqueles que se autodenominavam artistas. Desse modo, como contraposição às diferenças existentes entre os ‘fazedores de arte’, fossem profissionais ou não profissionais, afirma ADES: “Em Jesus-Christ Rastaquouère , Picabia escreveu. ‘Vocês estão sempre em busca de uma emoção que já foi sentida antes, assim como gostam de receber de volta da tinturaria um velho par de calças, que parecem novas desde que não sejam olhadas de muito perto. Os artistas são como tintureiros, não se deixam ludibriar por eles. As verdadeiras obras de arte modernas não são feitas por artistas, mas, muito simplesmente, por homens’ (...) Ligado a isso estava todo um complexo de ideias, interpretadas de diferentes maneiras por um ou outro dadaísta. Poesia e pintura podem ser produzidas por qualquer um; deixou de ser requerido um determinado surto de EMOÇÃO para produzir qualquer coisa; rompeu-se o cordão umbilical entre o objeto e o seu criador; não existe diferença fundamental entre o objeto feito pelo homem e o objeto feito pela máquina, e a única intervenção PESSOAL possível numa obra é a ESCOLHA”.^18 Mais que isso, a partir do trabalho de pesquisa e de leitura, alguns dos dadaístas (que quem diria: estudavam!) descobriram o livro de Paul Kammerer, As leis do acaso, publicado em 1919 e que ‘caia como uma luva’ aos propósitos e interesses com os quais os integrantes do grupo já vinham trabalhando, desde início do movimento em 1916.
(^17) Hans RICHTER. Op.cit., p.61. Ainda a esse propósito, Tristan TZARA. Dadá não significa nada. Op.cit., afirma: “O pintor novo criou um mundo, cujos elementos são também os meios, uma obra sóbria e definida, sem argumento. O artista novo protesta: ele não pinta mais (reprodução simbólica e ilusionista), mas cria diretamente na pedra, na madeira, no ferro, no estanho, nas rochas, os organismos locomotivos que podem ser movimentados de todos os lados pelo vento límpido da sensação momentânea. (...) Toda obra de pintura ou plástica é inútil; que ela seja um monstro que faça medo aos espíritos servis, e não adocicada para ornar os animais de roupas humanas, ilustrações desta triste fábula da humanidade”. 18 Dawn ADES. Op.cit., p.87.
Dessa forma: “O acaso afigurava-se como um processo mágico, através do qual podíamos transpor a barreira da casualidade, da manifestação consciente da vontade, através do qual o ouvido e os olhos interiores se aguçavam, até o aparecimento de novas seqüências de pensamentos e experiências. Para nós, o acaso era aquele instante ‘inconsciente’ que Freud descobrira em 1900. Esta evasão consciente da racionalidade possivelmente também explique o súbito aparecimento da multiplicidade de formas artísticas e de materiais usados no Dadá. Graças à ausência de preconceitos em relação a todos e quaisquer processos ou técnicas, nos anos seguintes freqüentemente fomos muito além dos limites das diversas artes: da pintura para a escultura, da imagem para a tipografia, a colagem, a fotografia e a montagem fotográfica, da forma abstrata para a imagem simbólica, da imagem simbólica para o filme, o relevo, o objet trouvé , o ready-made ”. (...) Comparado com todos os ismos anteriores, Dadá necessariamente se apresentava como uma anarquia insolúvel”.^19 Nessa perspectiva, a aludida síntese buscada, procurada, almejada pelos dadaístas dessa fase inicial ou de inauguração do movimento ou, como chamava o próprio Tzara (muito curiosamente de): o ‘não-me-importismo’, pode ser apresentada da seguinte forma: “Tínhamos adotado o acaso, a voz do inconsciente, a alma, se assim se preferir, como sinal de protesto contra a univocidade racional do pensamento, e estávamos dispostos a abraçar amorosamente o inconsciente, ou a sermos por ele abraçados. Tudo isso erigiu-se a partir de uma verdadeira comunidade de pessoas ligadas a Dadá, nasceu das premências da época e de experimentos profissionais. Seu acréscimo deve ser entendido como um complemento necessário para a parte visível e conhecida de nosso ser e de nosso agir consciente, que visava a uma nova unidade, baseada na tensão entre os opostos”.^20 Com relação aos novos objetos artísticos feitos (e/ou reaproveitados) com a utilização de peças de máquinas, ou num geral de objetos industrializados ganhando uma nova condição ou função – e que Marcel Duchamp chamará de ready-made – a escolha deles nunca se pautou (ao que parece) por critérios ou conceitos estéticos, mas em uma relação de indiferença visual (ou, ainda, em acasos), objetivando contrapor-se ao anestesiamento do consagrado e convencionado bom gosto burguês (e bastante determinado pelo valor de mercado atribuído a cada obra). Desse modo, sobretudo no universo das artes visuais, essas ‘disfuncionalidades’ dos novos objetos: elevados à categoria de estéticos, além (‘naturalmente’) de provocação, tinham por objetivo a total desorientação do espectador/receptor, buscando evitar as interferências cristalizadas por inúmeros fatores alheios à própria obra, chancelada pelos conceitos de consagrado, paradigmático etc.^21
(^19) Hans RICHTER. Op.cit., pp.69-71. (^20) Hans RICHTER. Op.cit., p.72. (^21) O primeiro, de uma série de’ ready-made de Marcel Duchamp, apresentado em 1914, foi um porta-garrafas.
o fito de fugir das abstrações e de todo tipo de idealizações, as manifestações dadaístas tornam-se ainda mais notáveis por sua áspera e agressiva insistência com relação à realidade. À guisa de ilustração, podem ser encontradas no primeiro manifesto Dadá alemão, afirmações da seguinte natureza: “A arte suprema será aquela que, em seu conteúdo consciente, apresenta mil vezes mil problemas do dia, a arte que foi visivelmente estraçalhada pelas explosões da semana passada, arte que está incessantemente buscando reunir seus membros esparramados após a colisão de ontem”. Dentre os inúmeros artistas do movimento, Johannes Baader, criador do chamado Oberdada , foi uma das personalidades mais vibrantes do dadaísmo berlinense. Afirma Silvana Garcia: “Considerado insano pela polícia, fundou uma sociedade Anônima do Cristo, acreditando-se filho de Deus revivido, e, nessa condição pautou sua vida por atos blasfemos, como o de interromper um sermão na Catedral de Berlim para, em termos irreverenciosos, proclamar que os ali presentes ridicularizavam Jesus. No plano político suas ações não foram menos polêmicas. Lançou-se candidato à Presidência da nova república que nascia em Weimar, em 1919, criando uma grande confusão, ao invadir a Assembleia para distribuir seu panfleto O cadáver verde sobre o cavalo branco dadá , no qual se submetia ao plebiscito popular e prometia ‘ordem, liberdade e a distribuição de pão’.”^23 Em 1920 foi apresentada uma exposição dadaísta em Berlim, sendo que um dos líderes do movimento e também idealizador da exposição, Kurt Schwitters, apresentou um manifesto em forma de peça, cujo fragmento apresentado abaixo é bastante revelador de algumas da características do ‘dadaísmo alemão’ (ou,‘dadaísmo berlinense’, como talvez fosse mais correto, nomear especificamente), que nesse momento histórico – e tendo em vista as características de Berlim: cidade vivendo um processo de pobreza absoluta; super inflação; perseguições políticas, com prisões e mortes e vida noturna intensa, algo não tão paradoxal – mistura uma série de expedientes de outras vanguardas e que, no texto em epígrafe, aproxima-se, fundamentalmente, daquelas do Cubo-Futurismo russo e do Futurismo italiano: “Que efeito psicológico fantástico é alcançado pelo lamento da sirene de um navio! Se fosse recriada a igualdade inicial dos materiais, se fossem pesados fator contra fator, fundindo-os numa nova e insuperável obra de arte... O Público – Ho! Ho! Atue! Crie, artista! Não fale (uma voz de óculos: ) certo! Dê- nos um exemplo! Schwitters – Ok (chamando: ) Luzes! (palco e público escurecem.) O Público (um falsete): Luzes fora! Faca fora! Peguem-no (risos:) Ha! Ha! (Uma voz de óculos: ) Silêncio! (No palco aparece um gigantesco anúncio: ) OS MAIS MODERNOS CHAPÉUS DE HOMENS FEITOS DE CHAPÉUS DE MULHERES O Público (Um prazer instintivo, ingênuo, diante das cores brilhantes do cartaz) – Ah!... Ah! (Risos, risadinhas) Hi! Hi! Hi! O que, o que é isso?! (Uma voz de classe
(^23) Silvana GARCIA. Op.cit., pp.200-1.
alta: ) O verbo nem está completo. (Uma voz excitada: ) Nem mesmo a ortografia está correta. (Uma voz de senhora:) Será que podem realmente fazer modernos chapéus de homens com chapéu de mulheres? (Outra voz de senhora: ) Onde fica esta loja? (Uma voz excitada: ) Idiotice! Pura idiotice! (Um falsete: ) Anna Blum! (a voz de óculos: ) Quietos, senhoras e senhores! Então não vêem que isso é uma metáfora? Formas novas são feitas a partir de antigas ou... Sr. Schwitters! Sr. Schwitters! Que diabos, acenda as luzes, não consigo ver nada! Onde está o senhor? (O cartaz desaparece.) Luz! (Em geral: ) Luz! (Palco e público são iluminados.) (A voz de óculos: ) Finalmente!... Bem, sr. Schwitters, explique-nos (rapidamente) não, não venha nos dizer de novo que a arte não pode ser explicada, apenas nos diga: o que foi isso?^24 Apesar da alienação política que caracterizava muitos dos artistas do movimento, em um contexto cuja situação social era absolutamente aviltante, sendo, desse modo, para outros opostos aos primeiros, necessário mostrar a realidade, tentando denunciar os desmandos, desgovernos e injustiças, no sentido de despertar as consciências, alguns dos artistas alemães do período, sem se conseguir precisar se isso arrefeceria a consciência atormentada, ‘inventaram’ a fotomontagem; criada e desenvolvida a partir da colagem de recortes de jornais e fotografias, que ‘mostravam’ a realidade objetiva da sociedade. Assim, usando material visual do mundo alemão, desde as imagens da guerra às do ambiente familiar, os dadaístas como George Grosz, Hannh Höch, Raoul Hausmann e John Heartfield, passaram a se utilizar das fotomontagens como espécies de armas políticas de denúncia da realidade, contra a qual, pelo menos a partir do estético eles se opunham. Segundo as informações à disposição, a performance Disputa entre uma máquina de costura e uma máquina de escrever^25 , caracterizou-se na expressão ápice do movimento. Assim, em 1919, é fundada em Berlim, sob a direção de Hans Richter, uma associação paralela ao próprio movimento dadaísta chamada de Bund Revolutionaner Kunstler. Dessa forma: “Para assegurar que ninguém poderia ainda confundir o Dadá com uma ‘ideia culturalmente progressista’, Hausmann e Huelsenbeck traçaram um programa de ação, ‘O que é o dadaísmo e o que ele quer na Alemanha?’, que conclamava à ‘união revolucionária internacional de todos os homens e mulheres criativos e intelectuais, com base no comunismo radical’ e ‘a expropriação imediata da propriedade (socialização) e a alimentação de todo o povo...’ Só Heartfield, porém, era filiado ao Partido Comunista, e exigências tais como a ‘introdução do poema simultaneísta como uma oração comunista’ e a ‘regulamentação imediata de todas as relações sexuais de acordo com as ideias do dadaísmo internacional, através do estabelecimento de um centro sexual dadaísta’, em
(^24) Wolf von ECKARDT e Sander L. GILMAN. A Berlim de Bertolt Brecht: um álbum dos anos 20. Op.cit.,p.67. 25 Grosz – Apud Silvana GARCIA. Op.cit., p.56. – afirma acerca da noitada: “nossos modos eram totalmente arrogantes. Costumávamos dizer: ‘Você, seu monte de esterco, aí em baixo, sim, sim, você com o guarda-chuva, seu completo idiota’. Ou, então, ‘Ei, você à direita, não ria, sua vaca’. Se eles nos respondiam, como de fato faziam, nós dizíamos como no Exército: ‘Calem a matraca ou vão levar um chute no traseiro’. (...) Às vezes, as brigas eram no corpo-a-corpo. (...) Mais tarde, a polícia tinha de nos proteger”.
qualquer padrão esteticista consagrado, os jovens dadaístas, fazendo uma paráfrase ao poema de José Régio: acreditavam ter vindo ao mundo, para além do conceito de chocar a burguesia ( épater la bourgeoisie ): desflorar florestas virgens e desenhar seus próprios pés na areia inexplorada; assim, tudo o mais que pudessem/quisessem fazer, parece, pelas suas declarações, reiterar a certeza de não valer nada!^30 Fez, ainda, parte desse enfrentamento à burguesia e à produção artística mais tradicional e hegemônica a utilização de certo discurso escatológico, absolutamente ‘decadente’ (segundo os valores mais caros à classe detentora do poder): e que já havia sido utilizado por Verlaine e Rimbaud. Assim, Picabia,^31 adotando os ensinamentos e procedimentos dos dois mestres, acima citados, e inserido no movimento, em um período posterior, e convencido do estupor Dadá, e acreditando, ainda, na teatralidade intrínseca do movimento, passa a ser um defensor incondicional dele, convertendo-se à ‘confraria’, como falam alguns historiadores até o fim de sua vida. Dentre outras convicções, Picabia teria acrescentado às crenças dadaístas já existentes, o seguinte: “Através de Picabia, portanto, fomos confrontados com uma crença radical na descrença, com um desprezo visceral pela arte, que (pelo menos verbalmente) considerava uma idiotice perfeita toda e qualquer continuidade na dedicação a essa ‘expressão de experiências interiores’. Pareceu-me, assim, que nele se evidenciava não apenas um desejo antiarte – desmedido, para todos os efeitos, pelas suas obras – como, além disso, a decisão de negar o sentido da vida, como tal, e, consequentemente, contestar a arte em sua forma de afirmação da vida. Onde, porventura, o impulso vital (sob forma de arte, por exemplo) ainda se manifestasse, impunha-se despedaçá-lo, confundi-lo e negá-lo. O impulso vital em si era suspeito”.^32 Assim, em 27 de março de 1920, com o objetivo de comemorar o aniversário da montagem precursora e histórica de Ubu rei, de Alfred Jarry, foi apresentado o Manifesto Canibal na Obscuridade de Picabia, apresentado no Théâtre de l’Oeuvre lido por André Breton, com acompanhamento de piano. Nesse manifesto, seguindo a tradição dos manifestos do Dadá, Picabia aposta na negação e na provocação. “Vocês são acusados, levantem-se. O orador somente pode falar com vocês se
(^30) José (Maria dos Reis Pereira) RÉGIO. Cântico negro , poeta e prosador português (1901-69), e cujos versos parodiados são: “Se vim ao mundo foi só para desflorar florestas virgens/ e desenhar meus próprios pés na areia inexplorada/ o mais que faço não vale nada”. 31 Francis Picabia vai para a Suíça em 1917 com o objetivo de fazer um tratamento de saúde e acaba, posteriormente, estabelecendo, com T. Tzara, uma intensa troca de correspondência. Assim, tal expediente acaba favorecendo a produção do terceiro número da revista Dadá : que acabou por adquirir um caráter mais intensamente dadaísta e cuja publicação ocorreu em dezembro de 1918. De outro modo, no sentido de complementar (e também contradizê-la) a informação, afirma Dawn ADES. Op.cit., p.86: “O Manifesto Dadá de 1918 de Tzara, agressivo e niilista, assinala realmente o início de uma nova fase para o Dadá. Foi esse manifesto que seduziu Breton e obteve a adesão do grupo Littérature em Paris, e parece ter sido inspirado pela chegada a Zurique de Francis Picabia, cuja revista itinerante ‘391’, publicada a partir de 1917 em Barcelona, Nova York, Zurique e Paris, continha os mais virulentos ataques contra praticamente tudo. O pessimismo sombrio de Picabia, combinado com sua personalidade enérgica e magnética, dominou o Dadá pelo resto de sua existência”. 32 Hans RICHTER. Op.cit., 92.
estiverem de pé. (...) Que fazem aí agarrados uns nos outros como ostras sérias? Porque vocês são sérios, não é mesmo? Sérios, sérios, sérios até a morte. A morte é uma coisa séria, não é mesmo? Cada qual morre como um herói ou como um idiota, o que vem a ser o mesmo. A única palavra que não é efêmera é a palavra morte. Vocês apreciam a morte para os outros. Matem-nos, matem-nos, matem-nos (...) A honra se compra e se vende como o cu. O cu, o cu representa a vida, representa a vida como as batatas fritas e todos vocês que são sérios fedem pior que a merda de vaca (...) Vaiem, vaiem, arrebentem-me a cara (...) Dentro de três meses, meus amigos e eu lhes venderei nossos quadros por um punhado de francos”.^33 Outro festival foi apresentado posteriormente e ‘batizado’ de Festival da Sala Gaveau ou Festival Manifesto Presbista, apresentando a encenação de um outro manifesto de Picabia, a cargo de Breton e Henry Houry. Nesse manifesto, de estrutura dialógica, um apresentador ou orador conversa com um espectador hipócrita. Assim, lembrando o manifesto anterior, afirma o orador: “Orador – Disse-lhes em meu último manifesto canibal que o cu representa a vida como as batatas fritas e se vende como a honra? Pois bem, esta noite é um prato cheio; vejam como está repleta a sala. Espectador – Já começamos de novo com as baixarias e as obscenidades? Não é capaz de se expressar em francês? (...) (o Espectador lança mão da frase feita ‘A vida é o belo’, como tentativa de impor os termos da conversa, mas o orador desvenda por detrás dessa afirmação aquilo que de fato é ‘belo’ para o burguês: ‘um belo casamento ou um belo dote, que é o mesmo, ou uma bela vitória que se consegue à força de carne podre’. À tentativa de o espectador retirar-se do debate, o Orador desfecha seu golpe mais baixo: o espectador usa saias, seu sexo é falso como os cabelos e os dentes, e tem um olho de vidro, ‘o único que me encara francamente...’ (...) Espectador – Cavalheiro, vou embora, e, além do mais, não uso saia, sou homem! Orador – Oh! Calças ou saia, dá no mesmo; o único que muda é o sexo, mas o teu e o de teus iguais não pode mudar já que é falso. Espectador – Mas nada é falso, pelo menos segundo uma das teorias que inventaram vocês. Orador – Tem razão, nada é falso... Espectador – A imitação creio eu... Orador – A imitação é autêntica, um jardim de celulóide é verdadeiro, um papagaio de cristal de rocha é verdadeiro, um carneiro de níquel é verdadeiro. Espectador – Não vai me dizer que DADÁ é verdadeiro? Orador – DADÁ está falando com você, é tudo, abarca tudo, pertence a todas as religiões, não pode ser vitória nem derrota, vive no espaço e não no tempo”.^34 Em janeiro de 192135 , Picabia, cada vez mais animado com o movimento (fundamentalmente pelas suas teses estarem surtindo efeito e ecoando junto aos dadaístas históricos), participa em Paris da primeira matinée ou soirée dadaísta , sendo um de seus pontos máximos.
(^33) Apud Silvana GARCIA. Op.cit, p.207. (^34) Idem, ibidem, p.207. (^35) Nessa ocasião, Tzara já se encontrava em Paris (atendendo a convite do próprio Picabia), depois de um processo de isolamento em que se encontrava em Zurique, desde 1920.
madeira, o ferro. A sua locomotiva expressa do organismo é capaz de partir para todas as direções, movida pelo suave vento de sensações momentâneas”. Dessa forma, para além de outras características estéticas e políticas (ou, mais corretamente, segundo a ótica por eles protagonizada, anti-estética e apolítica) pode-se dizer que o aspecto diferenciador mais específico de oposição aos futuristas foi o fato de os dadaístas serem antibelicistas por excelência; e, com relação aos expressionistas, teria sido o caráter de descrença ao conceito de utopia (que nos ‘dois expressionismos’ correspondiam à necessidade da redenção do homem, através da persecução de uma esperança... ) e que era rebatido pelos dadaístas a partir de uma crença niilista^39 e de apatia com relação à função social (aliás, para eles a quase totalidade deles, uma ideia fora de questão) que a arte pudesse possuir, postular, reivindicar... A idiossincrasia, portanto, aos dois movimentos citados aparece no manifesto de 1918 de Tzara, para quem: “Todo fruto do asco capaz de converter-se em negação da família é dada. Protesta a socos com todo ser em ação destrutiva: Dadá... Dadá, abolição da lógica, abolição do futuro (...) Escrevo um manifesto e não quero nada, digo, no entanto, certas coisas e sou por princípio contra os manifestos, como também sou contra os princípios (...) Sou contra a ação; a favor da contínua contradição, e também da afirmação, não sou nem a favor nem contra e não o explico porque odeio o sentido comum”. Continuando nesse tipo de discurso assemelhado ao “não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe”: que para os não tão inocentes já compreende uma postura política claramente explicitada, o autor afirma, ainda, que dois e dois não são quatro e que os ‘postulados’ dos dadaístas eram antiartísticos ou, mais precisamente, a-artísticos. Formulado desta maneira, tal proposição – acreditavam os jovens dadaístas – que o ‘seu a que viemos’ contrariaria, tanto as pretensões artísticas dos futuristas e dos cubo- futuristas quanto a dos expressionistas, principalmente porque os dadaístas, em oposição aos seus ‘opositores’, não possuírem nenhum programa e/ou qualquer pretensão.^40 Assim, fechando seu corolário, Tzara, ainda no mesmo manifesto, afirma: “Destruo as gavetas do cérebro e as de toda organização social: desmoralizar por todas as partes e lançar a mão do céu no inferno, os olhos do inferno no céu, restabelecer a roda fecunda de um circo universal nas potências reais e na
(^39) Vale dizer que o niilismo dadaísta assume-se como experiência de ruptura absoluta, portanto, abstrata. Tal princípio, dentre outras fontes pode ser expresso pelas ideias contidas e apresentadas no Manifesto Dadaísta, de Tristan Tzara, segundo o qual: “Dadá duvida de tudo (...) Tudo é Dadá. Desconfiem de Dadá (...) os verdadeiros dadás estão contra Dadá”. Ainda segundo o mesmo artista, dadá era o primeiro balbucio infantil que, assim como o próprio movimento, “não significava nada”, emendando que a arte não era coisa séria. Dessa forma, buscando ‘justificar’ tais afirmações, no Manifesto do Amor Débil e o Amor Amargo, de 1919, ainda o mesmo autor, dizendo-se contrário às palavras e aos manifestos, Tzara afirma que “o pensamento nasce da boca”. 40 Dadá tinha por programa não ter programa nenhum. Assim, não atrelados a objetivos anteriores e/ou apriorísticos, os dadaístas podiam, como o fizeram expandir-se para todos os lados sem compromissos programáticos. Tal proposição: reivindicação de liberdade absoluta e ausência (como se isso fosse possível) de quaisquer pressupostos constituía-se, até então, em novidade na história das artes.
fantasia [imaginação] de cada indivíduo”. Assim, foi na noite do dia oito de fevereiro que um dos líderes do movimento ou, por assim dizer, o primeiro deles Hugo Ball teria ‘inventado’ e apresentado “Gadji beri bimba”: espécie de poema constituído por versos sem palavras ou poema sonoro ou poema fonético abstrato que, posteriormente, teria dado origem aos chamados poemas simultâneos (ou simultaneístas^41 ) com Richard Huelsenbeck e os dos rumenos Marcel Janco e Tristan Tzara.^42 Desse modo, ainda, o Dadá teria desenvolvido e/ou dado início a uma atividade poética de natureza totalmente teatral, ‘descobrindo’ um certo modo espetacular que combatia a velha antinomia poesia-teatro. Segundo a documentação historiográfica, nessa noite, Hugo Ball estaria vestido com botas de cartolina azul brilhante que iam até os quadris, colarinho de cartolina: dourada no exterior e vermelha no interior e uma cartola listrada de azul e branco.^43 De modo mais esquemático, as pretensões dos dadaístas apresentadas nesta noite e que se caracterizariam numa constante e tônica de todo o movimento vislumbravam o desenvolvimento de uma produção artística que “atingisse e demolisse mortalmente a linguagem”, através da “erupção anárquica de palavras e imagens” em “liberdade caótica” e “arbitrariamente encadeadas”, “num ritmo dissonante e atonal” ou, como queriam eles: “destruição de todos os meios tradicionais de expressão”.^44 A esse propósito teria afirmado Ball:
(^41) O nome de ‘poema automático’ (ou poème simultan ) foi dado pelos artistas ligados ao movimento Surrealista à produção de poemas que saiam, segundo estes, diretamente das entranhas do poeta e sem nenhum crivo crítico e/ou elaboração intelectual. De modo mais esquemático, trata-se de um recitativo baseado no contraponto, em que várias vozes falavam, cantavam, assobiavam, faziam ruídos e sons inusitados, deixavam cair coisas ao mesmo tempo, buscando, através desse encontro, pelo menos no início do movimento Dadaísta, a constituir o que eles chamavam de uma certa essência elegíaca, bizarra e alegre através da qual se buscava a criação de uma energia ensurdecedora que pudesse sugerir novas formas de recepção das obras artísticas. Historicamente, o primeiro poema simultâneo foi escrito por Huelsenbeck, Janco e Tzara, escrito em francês, alemão, inglês e língua inventada, chamado “O almirante procura uma casa para alugar”, acompanhado pelos ‘declamantes’ vestindo máscaras criadas por Janco. O paroxismo desse tipo de produção espontaneista foi desenvolvido por Tzara que, em determinado momento, recortou palavras de jornal, juntou-as em um saco e jogou-as no chão. Juntando as palavras que caíram ao acaso, Tzara compôs uma obra ou antiobra a partir do resultado obtido (justaposição casual). 42 Segundo Hugo BALL, o propósito fundamental na leitura/criação do poema “Gadji beri bimba” fora: “fazer raciocinar o público, induzi-lo a manifestar-se, e assim, à força de fala iconoclasta, ruídos, insultos, gritos, sons e gestos desprovidos de significado, idiotizá-lo, cretinizá-lo completamente, fazê-lo perder toda noção de Belo e de Bom. Dadá trabalha com todas as suas forças para instauração do idiota em sua totalidade. Mas conscientemente”. Ainda nessa perspectiva, o espectador do evento: “Terá de concordar ou protestar, intervir, se for preciso, mas nunca poderá considerar-se alheio ao espetáculo que se desenvolve em sua presença, porque se trata da vida, de sua vida”. Cf. Henry BEHAR. Sobre el teatro dada y surrealista. 43 Barcelona: Barral Editores, 1970, pp.11-2. Tal caracterização bizarra e, de certa forma atípica – (lembrando que os cubo-futuristas vestiam- se de forma semelhante), fundamentalmente pelo uso da cartolina – marcará a estética do grupo como um todo, no concernente ao figurino. 44 Lembra-nos Anatol ROSENFELD. Texto/contexto. Op.cit., p.67: em um outro contexto, mas cuja analogia parece ser pertinente que tal comportamento de explosão do sentido das palavras, não era novo (como queriam fazer acreditar os dadaístas, e nem mesmo inventado por eles); nesse sentido, lembra o autor o estudo Linguistics and Literary History , de Leo Spitzer que afirma que Rabelais já havia criado “famílias vocabulares grotescas (ou famílias de demônios verbais)... empilhando impetuosamente adjetivo