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uma sociedade secular, livre e igualitária. Para isso, discuto certas configura- ções desse dilema presentes no pensamento antropológico clássico, no pen-.
Tipologia: Notas de estudo
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GARCIA, Sylvia Gemignani. Antropologia, modernidade, identidade: notas sobre a tensão entre o geral e o particular. Tempo Social ; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5 (1-2): 123-143, 1993 (editado em nov. 1994).
RESUMO: Neste artigo exploro alguns sentidos políticos do dilema entre o uni- versal e o particular, concebido como traço distintivo do projeto moderno de uma sociedade secular, livre e igualitária. Para isso, discuto certas configura- ções desse dilema presentes no pensamento antropológico clássico, no pen- samento político do século XIX e no debate político-cultural contemporâneo sobre o multiculturalismo e o direito às diferenças.
“O surgimento do saber antropológico confunde-se com os dilemas da constituição da própria modernidade” 1. Tal colocação abre espaço para uma leitura positiva do evolucionismo social ou cultural, que seja comple- mentar a um enfoque estritamente crítico, orientado para a exposição das in- consistências da teoria analisada que revelam, por contraste, a consistência de uma outra perspectiva teórica. O evolucionismo presta-se bastante bem a tal tipo de leitura, seja por seu idealismo, por seu materialismo, seu etnocentrismo ou sua naturalização da cultura. Não faltam equívocos evolucionistas para serem desmistificados pelo pensamento crítico. No limite, o evolucionismo social ou cultural fica fora das fronteiras das ciências sociais, “maquilagem falsamente científica de um velho problema filosófico” (Lévi-Strauss, 1980, p. 56). É claro que inserir a antropologia evolucionista em um contexto mais amplo, trabalhando suas ligações com a época moderna, não visa defen- der suas concepções, reconhecendo-a como teoria da cultura. Tal perspectiva favorece, antes, uma abordagem do pensamento evolucionista enquanto fe- nômeno cultural. Através da sua inserção no quadro do imaginário da modernidade torna-se possível, inclusive, entender porque concepções tão “obsoletas”, do ponto de vista da disciplina antropológica, continuam com
UNITERMOS: modernidade, identidade, democra- cia, igualdade, liberdade, evolucio- nismo, relativismo, multiculturalismo, política, antropologia.
(^1) Ao iniciar o curso de Teorias Antropológi- cas Clássicas com essa afirmação, Maria Lu- cia Montes, alinhada à tradição do curso de ciências sociais da USP, convida à con- tínua reflexão sobre o pensamento clássico, concebido como ins- trumento para pensar as questões e os dile- mas da modernidade contemporânea. Este texto insere-se nessa perspectiva, buscando explorar uma das vári- as possibilidades que ela sugere.
Professora do Depar- tamento de Sociolo- gia da FFLCH-USP
SYLVIA GEMIGNANI GARCIA
Tempo Social ; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5 (1-2): 123-143, 1993 A R T I G O (editado em nov. 1994).
Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5 (1-2): 123-143, 1993 (editado em nov. 1994).
um lugar tão bem estabelecido no horizonte cultural da sociedade ocidental contemporânea. De acordo com a abordagem de Foucault (1981), para entender a possibilidade epistemológica do surgimento da antropologia é preciso partir da invenção do homem como objeto de conhecimento positivo e da ênfase na idéia de processo que, articuladas, delineiam a episteme moderna. Os dois elementos estão nítida e significativamente presentes na obra de Lewis Morgan. Em A sociedade primitiva , o autor institui a possibilidade de uma ciência do homem com base na concepção da historicidade de seu objeto, historicidade concebida enquanto processo temporal de desenvolvimento das culturas hu- manas rumo à civilização. Na medida em que a possibilidade de uma ciência do homem pressupõe a idéia de uma identidade humana universal, essa dis- cussão alcança a problemática relativa a uma tensão analítica fundamental do saber antropológico; tensão que envolve, em um pólo, a idéia da unidade do gênero humano e, em outro, a concepção da multiplicidade das culturas. No entanto, seguindo a sugestão inscrita na colocação inicial deste texto, o pro- pósito aqui não é explorar essa tensão no interior do saber antropológico, mas alcançá-la enquanto tensão própria à ordem social instaurada na época mo- derna. Ao situar todas as comunidades humanas em uma mesma linha de tempo, Morgan certamente reduz a diferença espacial em uma “unidade de tempo postulada” (DaMatta, 1987, p. 98); mas ao fazê-lo afirma a identidade do gênero humano. “A história da humanidade é uma só quanto a sua origem, uma só quanto a sua experiência e uma só quanto ao seu progresso” (Morgan, 1973, p. 8). O que também quer dizer, inversamente: a humanidade o é so- mente na medida em que partilha uma mesma história, isto é, um mesmo modo de desenvolvimento a partir de um ponto de partida único. Essa idéia da “família humana”, desenvolvendo-se “geração” após “geração” ao longo do tempo, é fundamental para retirar a unidade humana do registro filosófico, lógico ou religioso, nos quais a “humanidade” é um universal abstrato. Através dela, Morgan afirma a possibilidade de pensar uma universalidade humana empírica, observável na concretude das existências dos homens. A marcha inexorável do progresso da história, ganhando com- plexidade conforme desenvolve o controle sobre a natureza, não é inexorável apenas em relação ao fim, na medida em que dispõe as sociedades humanas em uma linha de tempo de direção única, mas também em termos de totalização: inexorável no sentido em que abarca todos os homens que viveram, vivem e viverão sobre a Terra. Ou seja, uma universalidade humana concreta, que en- globa a existência de todos os indivíduos e se dá ao conhecimento positivo. Assim, o evolucionismo resgata o “selvagem” da natureza - o outro da civili- zação, fora da história, não-humano - e insere-o como “primitivo” na cultura
Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5 (1-2): 123-143, 1993 (editado em nov. 1994).
Para o evolucionismo social ou cultural, a unidade do gênero hu- mano confunde-se com o processo de desenvolvimento da civilização; a iden- tidade humana revela-se ao conhecimento que, comparando instituições e sociedades entre si, ordena-as sobre uma linha de evolução do homem no tempo. Através da comparação e da classificação, Morgan busca estabelecer as leis gerais de desenvolvimento de uma humanidade totalizada. Constrói, assim, o campo para uma ciência do homem, ciência analítica e explicativa, fundada na ênfase nas semelhanças, ou melhor, nas relações de continuidade entre as sociedades humanas. Ora, na perspectiva de um grande sistema de acordo com o qual a humanidade desenvolve-se em todo lugar, as variações tornam-se pequenos detalhes em uma evolução uniforme (cf. Boas, 1949, p. 275). No contexto da tensão discutida aqui, Boas representa a ênfase na diferença contra a ênfase na semelhança - e portanto na totalização analítica - da teoria de Morgan. A crítica boasiana ao modelo evolucionista baseia-se na contestação das rela- ções postuladas de determinação de causa e efeito através das quais Morgan aborda o problema das origens dos fenômenos culturais. Isto é, da idéia de que “os mesmos fenômenos etnológicos sempre resultam das mesmas cau- sas”, que seu desenvolvimento “tem sido o mesmo em todo lugar”, provando assim “que a mente humana segue, em todo lugar, as mesmas leis”. Ora, a idéia é insustentável se considerarmos que “diferentes desenvolvimentos his- tóricos podem levar aos mesmos resultados”, o que se revela em qualquer observação, ainda que bastante superficial. Trata-se, então, de explicar “como é que os desenvolvimentos da cultura tão freqüentemente levam aos mesmos resultados”. Para superar a incomparabilidade de costumes desenvolvidos de maneiras diversas, Boas propõe a investigação dos “processos através dos quais certos estágios da cultura desenvolveram-se”, isto é, da “história de seu desenvolvimento”. Para isso, o método adequado é o estudo detalhado dos “costumes em sua relação com a cultura total da tribo que os adota em cone- xão com uma investigação de sua distribuição geográfica entre as tribos da vizinhança”. Trata-se de determinar assim “as causas históricas que conduzi- ram à formação dos costumes em questão e aos processos psicológicos em funcionamento quando desse desenvolvimento” (Boas, 1949, p. 276). Boas combina, assim, o método histórico ao método comparativo. Trata-se de investigar empiricamente a história de uma cultura total enquanto um “arranjo específico” com desenvolvimento histórico próprio. Boas adota um método diacrônico cujo resultado é a configuração sincrônica de uma cultura total. A antropologia de inspiração boasiana revela as possibilidades da disciplina enquanto ciência ideográfica, descritiva e voltada para a com- preensão da particularidade de cada cultura total. Embora não negue a exis- tência de leis de crescimento da cultura humana, ela sugere que tais leis não serão encontradas na história empírica, lugar das especificidades. E, graças à importância conferida pelo culturalismo ao elemento simbólico, o método tende a localizar no indivíduo a sede dos fenômenos que quer investigar. As
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potencialidades do culturalismo de inspiração boasiana desenvolveram-se, assim, na direção oposta ao estabelecimento de leis gerais de desenvolvimen- to das culturas humanas. Enfatizando a diferença na própria história contra a idéia das mes- mas causas para fenômenos semelhantes, o culturalismo afasta-se da possibi- lidade de generalização. O tempo-horizontal da história da humanidade (Morgan) torna-se temporalidade vertical, identidade particular que se realiza no indivíduo. Nesse sentido, Morgan e Boas desempenham, na tradição an- tropológica, os papéis de representantes exemplares da tensão entre identida- de e diversidade humanas. Em uma perspectiva mais geral, entre universali- dade e particularidade, tensão distintiva de dilemas da modernidade cujas expressões na política e na cultura reencontramos ao longo dos últimos sécu- los e que, atualmente, estão no centro do debate político-cultural sobre os multiculturalismos, suas diversas versões e as várias faces de sua crítica. Como se viu, o evolucionismo cultural identifica a unidade do gê- nero humano em um processo temporal de desenvolvimento da civilização. Conforme a análise de Elias (1990), civilização é um valor forjado na e atra- vés da experiência social dos países centrais da Europa Ocidental (isto é, de Inglaterra e França). A concepção expressa a auto-consciência do Ocidente, referida ao orgulho nacional pela contribuição para o progresso da humanida- de. O conceito tem caráter processual, está em movimento constante e, minimizando as diferenças nacionais, enfatiza o que deve ser partilhado por toda a humanidade. Ou seja, o conceito forma-se articulando processo em desenvolvimento no tempo e perspectiva universalizante do homem. Para Elias, esse significado de civilização é posterior à homogenei- zação interna de costumes que marca a história social francesa no século XVIII. Graças à infiltração entre aristocracia e burguesia, constrói-se uma identidade nacional, fruto da generalização do modo-de-ser da sociedade cortesã. Por isso, civilização expressa a auto-confiança de povos de fronteiras nacionais bem definidas, isto é, de países que conseguiram uma unidade política e cul- tural em torno de um projeto nacional, capaz de incorporar diferentes grupos sociais. A partir dessa unidade interna, a civilização projeta-se para além das fronteiras nacionais em direção a todos os povos da Terra. A França pós- revolucionária fornece a expressão máxima dessa idéia da missão civilizatória no mundo. Tanto no âmbito de um projeto-para-a-nação como no de um proje- to-para-o-mundo, a idéia de uma igualdade fundamental entre os homens de- sempenha o papel de pressuposto fundamental. De fato, a idéia da igualdade de todos os homens diante da lei é uma idéia-força básica da revolução bur- guesa. Através dela, o projeto burguês enfrenta a organização social própria ao domínio aristocrático, estruturada conforme hierarquias hereditárias. Uma ordem social cuja reprodução tem bases biológicas não experimenta a estratificação como desigualdade, senão como diferença irredutível. De fato, “era parte inseparável da existência dos ricos e dos nobres que existissem
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da Inglaterra, ampliarmos a observação para o problema da incorporação dos trabalhadores na sociedade nacional, na forma como é colocado pelo pensa- mento democrático liberal, parece-me possível ver as contradições inscritas no projeto de sociedade civilizada nitidamente colocadas no interior da soci- edade industrial inglesa quando se trata de pensar sobre a nova classe que ganha a cena social. A imagem da unidade nacional que Elias confere à Fran- ça e à Inglaterra constrói-se em contraste com a divisão característica da Ale- manha, cujos estratos superiores, cindidos, são incapazes de elaborar um pro- jeto nacional que expresse a constituição das classes dominantes em classe dirigente. Mas certamente um tal quadro comparativo não quer dizer que, nas chamadas sociedades nacionais unificadas, o conflito tenha desaparecido. Ao contrário, à medida que elas concretizam o projeto moderno, põem em movi- mento as forças e as tensões próprias à modernidade. De fato, seguindo a sugestão inscrita em uma das leituras de Starobinski (1988) a propósito da Revolução Francesa, é possível considerar que o dilema entre o geral e o particular imprime-se no projeto social moder- no desde seu momento inaugural. Durante a Revolução, a modernidade se afirma no “campo ilimitado do possível”, aberto pelo recuo do mundo antigo destruído, justamente porque consegue resolver o dilema entre particularida- de e universalidade. Segundo Starobinski, o período revolucionário da Revo- lução deve sua eficácia à articulação entre princípios universais e vontade geral, realizada graças aos ensinamentos de Rousseau sobre a “aliança fecun- da entre as potências da reflexão e o ímpeto caloroso da paixão” (p. 45). “No momento em que os deputados mais ousados do Terceiro Estado retomam a linguagem de Rousseau, eles não se apresentam mais como pensadores dese- josos de demonstrar o dogma do pacto da associação, mas, sob a pressão das circunstâncias, e por uma espécie de petição de princípio, atribuirão ao eu comum nacional uma antecedência absoluta, uma preexistência indiscutível; sua presença em Versalhes, suas reivindicações, seus sistemas constitucionais são já a própria expressão e ação da soberania popular. (...) A resposta de Mirabeau (...) ao marquês de Dreux-Brézé ganha aqui toda sua significação: (...) a vontade pessoal de Mirabeau se pretende idêntica à vontade nacional; e o acontecimento memorável surge no ponto em que essa vontade-princípio afronta o mau querer (o querer particular), que pretende resistir-lhe e que, prescrevendo aos Estados deliberar por ordens separadas, desconhece a uni- versalidade da vontade geral” (p. 47). Para o autor, após a morte de Robespierre, “vontade e princípios já não se unem tão estreitamente e chegam a romper sua aliança. (...) Por trás da fachada dos princípios, descobrem-se os apetites e os interesses: o século se faz positivo” (p. 51). “O que se prepara para surgir na Europa do século XIX, conseqüência última e traição definitiva do pensa- mento revolucionário, é a vontade que quer a vontade, a vontade de poder, a vontade sombria que se recusa a conciliar seus interesses com a clareza da razão, considerada, tão superficialmente, como superficial” (p. 52). Os princípios universais transformam-se em interesses particulares:
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nem bem nasceu, a sociedade secular e igualitária é assombrada pelos particularismos, que desafiam a promessa iluminista de emancipação huma- na, fundada sobre a afirmação da universalidade do homem. Tomemos, então, o tema na Inglaterra do século XIX. Analisando a situação dos trabalhadores fabris, diz John Stuart Mill, em 1848: “quanto aos trabalhadores, pelo menos nos países mais avançados da Europa, pode-se con- siderar certo que o sistema patriarcal ou paternal de governo é do tipo a que não se submeterão de novo. Isso ficou claro quando se lhes ensinou a ler e se lhes permitiu acesso aos jornais e assuntos políticos; quando se consentiu a presença entre eles de pregadores dissidentes, e apelo a suas faculdades e sentimentos em oposição aos credos professados e apoiados por seus superi- ores (...). As classes trabalhadoras assumiram seus interesses nas próprias mãos (...). Os pobres escaparam dos cordéis e não mais podem ser governados ou tratados como crianças. (...) Qualquer conselho, exortação ou orientação que sejam apresentados às classes trabalhadoras, deve daqui por diante ser ofere- cido a eles como iguais, e aceito por eles com os olhos abertos. A perspectiva do futuro depende do grau em que eles possam ser transformados em seres racionais” (citado em Macpherson, 1978, p. 50). Mill refere-se aos trabalhadores como poderia referir-se aos “selva- gens”, habitantes de mundos distantes. Representante exemplar do pensamento moderno, ele afirma que o futuro da sociedade moderna depende de sua capa- cidade de fazer com que “outros” conduzam-se conforme os termos dela, re- afirmando, desse modo, os princípios relativos à potencialidade de identifica- ção humana.Depende, portanto, da capacidade de incorporação da sociedade moderna. Contudo, o que está de fato em jogo é a intensidade dessa incorpo- ração, já que o texto de Mill expressa, também, que foi a própria sociedade moderna que criou o dilema com que se defronta, tendo transformado a situ- ação de ignorância, superstição e obediência que sustentava a “boa conduta” dos pobres em relação ao governo e à ordem social. Em relação às exterioridades, a modernidade não discrimina e não pode discriminar pois depende da incorporação que realiza de modo compulsório. E nesse envolvimento obrigatório, deflagra o dilema que a persegue: fornece as insti- tuições - no sentido de modalidades de crença e comportamento - para a con- testação de seus limites e, conseqüentemente, de sua própria identidade. Como se sabe, esses trabalhadores instruídos, conscientes de seus interesses e dis- postos a lutar por eles constituíram-se assim através da apropriação de idéias e práticas criadas pela burguesia no exercício da cidadania na esfera pública. Da constatação de uma situação sócio-política insustentável, Mill desenvolve uma teoria democrática que reformula os pressupostos conceituais da democracia concebida pelos utilitaristas da geração anterior. O ponto prin- cipal da reformulação refere-se à concepção de homem que direciona a teoria política. O que importa especificamente aqui é que, ao reformular concepções básicas do utilitarismo, imprimindo-lhe caráter ético, a obra de Mill confere nitidez à tensão entre os dois pólos da teoria democrático-liberal clássica: de
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Tendo desvelado a desigualdade e o egoísmo como os reais pilares da socie- dade igualitária e libertária, Marx prevê a superação dos limites da democra- cia nas potencialidades criadas pela lógica do capital. A necessária revolução constante dos meios e das relações de produção engendra o fundamento ma- terial e os sujeitos históricos da emancipação humana real. O projeto socialista e sua ênfase na igualdade em detrimento das liberdades individuais, consideradas possíveis de realizarem-se apenas em comunidade, completa o quadro do dilema político moderno que contrapõe a liberdade e a igualdade. A democracia liberal, que prioriza a liberdade indivi- dual, impede a realização da igualdade sócio-econômica. Garantindo formal- mente a todos a liberdade de expressão e reivindicação de direitos, ela com- promete a conquista do bem comum, pois o que se expressa na esfera pública são demandas particulares que entram em conflito entre si num embate onde a desigualdade social favorece continuamente os “mais livres e mais iguais”, detentores do poder econômico e político. Por seu lado, a concepção de cu- nho socialista, priorizando a igualdade social entre os homens, atinge violen- tamente as liberdades individuais, criando com isso as condições para a opres- são, o autoritarismo e o obscurantismo. O dilema distingue o debate político durante o século XIX e grande parte do XX: “Como podemos combinar esse grau de iniciativa individual que é necessário para o progresso com o grau de coesão social necessário para a sobrevivência?” (Bertrand Russel). A igualdade esteve no centro da reivindicação do movimento ope- rário nos séculos XIX e XX, como sustentáculo da utopia da sociedade secu- lar, viável apenas com o socialismo. Mas, ao mesmo tempo, em um círculo social mais amplo, que também reivindica a igualdade social em nome da cidadania. É nesse círculo amplo que a reivindicação da igualdade combina- se com a da diferença, reivindicação da igualdade jurídica para garantia dos direitos individuais contra toda determinação externa que oprime a autono- mia e a liberdade individual do ser humano, soberano sobre seu corpo e sua mente. Novos agentes sociais, mobilizados especialmente em função de uma identidade mais do que em torno de interesses, reivindicam o direito à dife- rença e, portanto, reconhecimento legal e respeito social por modos específi- cos de vida, posicionando-se contra toda discriminação e segregação. Poderia parecer, então, que o dilema entre o geral e o particular iria desaparecer, em uma época cuja própria designação - pós-modernidade - refere-se à desconstrução das concepções totalizantes próprias ao pensamento iluminista, tais como verdade, progresso, razão, liberdade e sujeito, entre outras. Contu- do, a complexidade do quadro político-cultural contemporâneo exige consi- derações mais detalhadas. A partir das teses libertárias que começam a se constituir no período pós-guerra é possível caracterizar esses segmentos do campo contemporâneo dos debates político-culturais. Intimamente ligados às reflexões de críticos como Reich e Marcuse, os movimentos sociais dos anos 60 e 70 denunciam a sociedade ocidental enquanto uma sociedade essencialmente repressora, vio-
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lenta e intolerante diante da diferença, baseada em uma racionalidade instru- mental que seqüestra as forças potentes da vida e da liberdade para produzir as condutas dóceis necessárias à reprodução do modo de produção capitalista. É preciso notar que essas teses, embora abandonem perspectivas fundamen- tais ao marxismo, pretendem, como ele, destruir a sociedade existente e fun- dar uma nova ordem social, realmente libertária. Embora a capacidade de generalização do movimento de liberação seja um ponto em si mesmo proble- mático, é nesse sentido que se fala em revolução sexual, estando implícita a idéia da instauração de um novo fundamento do social. Nessa medida, a pers- pectiva totalizante permanece resguardada, apesar das expressivas diferenças quanto a outros aspectos do modo de conceber a transformação social. Entre elas, destaco o deslocamento da ação potencialmente revolucionária da esfera da política e suas instituições clássicas para o âmbito da vida particular dos indivíduos em seu cotidiano. Como se sabe, trata-se de uma passagem impor- tante para a constituição do campo político contemporâneo, que transborda da esfera da política institucional e, posteriormente, amplia seu foco para além das relações de produção. Por certo os discursos contemporâneos sobre o direito à diferença guardam pouca semelhança com as teses libertárias dos anos 70. O fato do homossexualismo ser visto por Reich como fruto da libido frustrada, que deve desaparecer com a liberação da sexualidade, e por Marcuse como uma crítica comportamental, que expressa resistência à “tirania genital” própria à ordem social moderna, é um exemplo das mudanças por que o pensamento passou nos últimos 20 anos. Contudo, parece-me possível estabelecer vínculos entre esse pensamento libertário e os discursos contemporâneos sobre os direitos civis em função da importância da idéia de alteridade, nuclear para a discus- são atual. Idéia que está presente, desde logo, na mudança na identificação dos sujeitos da transformação revolucionária levada a cabo pelos críticos dos anos 70: de sujeitos situados no centro da organização sócio-econômica - o proletariado - a sujeitos sociologicamente localizados nas fronteiras do siste- ma. Mas há um outro sentido, ainda mais importante para esta discussão, que justifica o estabelecimento de um tal vínculo. Trata-se da citada manutenção de uma perspectiva universal alternativa à da modernidade, que se apresenta como capaz de realizar o que a sociedade moderna prometeu mas é incapaz de cumprir. Antes de abordar essa questão, porém, é preciso apontar o envolvimento da antropologia na construção do pensamento crítico contem- porâneo. Apropriada pelos sujeitos sociais, a idéia do relativismo antropoló- gico forneceu argumentos para a crítica da perspectiva universalizante e para a afirmação das diferenças. É em função de suas ligações com a discussão política que o debate sobre o relativismo ganha aqueles contornos imprecisos de que fala Geertz, discutindo a questão do ponto de vista da pesquisa antropológica. É na perspectiva política que faz sentido uma discussão que “é muito mais um intercâmbio de advertências do que um debate analítico”
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bem o relativismo no sentido descrito por Spiro. A questão é que o relativismo (como também a alteridade) está presente no debate contemporâneo como um termo radicalmente ambíguo, utilizado, simultaneamente, por discursos dife- rentes e, inclusive, antagônicos. Portanto, é impossível pretender que ele te- nha um único significado e qualquer discussão sobre o tema que o aborde dessa maneira é insuficiente para dar conta dos sentidos de sua utilização no atual debate político-cultural. Estas últimas idéias já incorporam contribuições que vêm da antro- pologia para as reflexões políticas contemporâneas, relativas ao modo de pensar a constituição das identidades. Através das teorias acerca da representação simbólica, a antropologia concebe a relação entre o símbolo e o que ele sim- boliza como uma relação aberta e contingente que confere pluralidade e inde- terminação à função significante. Uma tal concepção fornece um modo de pensar a identidade diferente daquele que a representa como uma entidade dada, fixa e fechada, resultante de uma relação de determinação com certa instância que assim a funda, definindo-lhe uma forma necessária. Tratam-se de concepções centrais da crítica contemporânea da modernidade. Focalizan- do a lógica que orienta as formas de pensar a identidade - e não os seus con- teúdos - o pensamento pós-moderno busca desconstruir as categorias centrais da modernidade enquanto categorias que fundam sentidos determinados. As concepções da racionalidade da história - seja em Morgan ou em Marx - exer- cem esse papel, funcionando como metanarrativas que, seguindo a lógica das fundações, concebem um projeto global de emancipação através da “desco- berta” de essências que transcendem as experiências concretas que, por sua vez, são apreciadas a partir dessa identidade anteriormente definida. O pensa- mento crítico revela, portanto, essa lógica e o modo como dela resulta a dissociação entre a experiência concreta e particular e o sentido universal. Com isto em mente, abordo, a partir de agora, o debate político- cultural contemporâneo, especificamente, as formas como a tensão moderna entre o universal e o particular reaparece nele. Em primeiro lugar, quero tratar da manutenção, em certas tendências presentes na discussão atual, de uma perspectiva totalizante que se apresenta como substituta (verdadeira) da (fal- sa) universalidade moderna. Determinadas vertentes do pensamento feminis- ta fornecem um exemplo contundente dessa orientação. A partir de pesquisas e reflexões - históricas, lingüísticas, psicológicas - sobre as relações sociais de gênero, identificam-se causas fundamentais para a dominação masculina, por exemplo, na organização da produção ou na divisão sexual do trabalho. O exemplo expressa a manutenção da lógica das fundações que caracteriza a modernidade do ponto de vista crítico da pós-modernidade. Concomitan- temente, tende-se a estabelecer disjunções marcantes entre o masculino e o feminino, nas quais o primeiro termo relaciona-se íntima e necessariamente com a razão, o poder, a competição, o individualismo e o corpo, e o segundo com a emoção, a natureza a comunidade e uma certa disposição à negociação e ao consenso. Por um lado, o caráter patriarcal e sexista da sociedade moder-
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na explica toda injustiça e opressão e, por outro, as potencialidades femininas garantem a igualdade e a liberdade em qualquer iniciativa autônoma das mu- lheres. Cria-se, assim, a utopia de uma sociedade pacífica, democrática e libertária, baseada em valores trans-históricos e trans-culturais. Afora a exis- tência de evidências empíricas da ingenuidade de uma tal representação do gênero feminino, o ponto a destacar é a construção de uma nova totalidade, desta vez verdadeiramente libertária, capaz de substituir a falsa totalidade opressora em que vivemos na sociedade moderna que expressaria, de fato, a experiência masculina, ou seja, experiência particular do grupo dominante na ordem social patriarcal e falocrata. Como observa a teórica feminista Jane Flax, fazendo a crítica de uma tal perspectiva, “não podemos simultaneamente afirmar (1) que a mente, o eu e o conhecimento são socialmente constituídos e o que podemos saber depende de nossos contextos e práticas sociais e (2) que a teoria feminista pode revelar a Verdade do todo de uma vez por todas” (1991, p. 234). A busca de uma “verdade absoluta” exigiria, segundo Flax, “um ponto de Arquimedes”, exterior à totalidade e “além de nossa inserção nela, a partir da qual podería- mos ver (e representar) essa totalidade”. Invocando Foucault, a autora adverte que essa busca “pode esconder e obscurecer nossa inserção numa episteme na qual as afirmações da verdade podem tomar somente certas formas e não ou- tras” (p. 235). A diretriz totalizadora não apenas limita-se a reeditar a propos- ta de substituição de uma totalidade falsa por uma verdadeira como reproduz a idéia de que há um conteúdo verdadeiro essencial que funciona como agen- te determinante de identidades fechadas e homogêneas. Conseqüentemente, tal perspectiva é levada a desprezar tudo aquilo que não se encaixa coerente- mente em sua concepção, vale dizer, a manifestação da diferença: “dentro da teoria feminista, uma busca de um tema definidor da totalidade ou do ponto de vista feminista pode exigir a supressão de importantes e inquietantes vozes de pessoas com experiências diferentes das nossas. A supressão de tais vozes parece ser condição necessária para a (aparente) autoridade, coerência e uni- versalidade de nossa própria voz” (Flax, 1991, p. 235). Trata-se de um ponto importante, que se refere às várias formas como as identidades, em constante inter-constituição no debate político-cul- tural, reatualizam os dilemas clássicos. Certo episódio ocorrido nos EUA, envolvendo dois grupos antagônicos quanto à questão do aborto, fornece um exemplo interessante, que revela um outro aspecto do problema. Cito a des- crição do caso feita por Hughes: “Em outubro de 1992, o Village Voice patro- cinou uma noite de debates na Cooper Union , em Nova York, sobre o tema Pode um liberal ser pró-vida? Os principais oradores eram Nat Hentoff e o governador Robert Casey, da Pensilvânia, um democrata que tinha discorda- do da plataforma pró-escolha (das mulheres decidirem se devem ou não fazer um aborto) da Convenção Democrata de Nova York três meses antes. Ora, havia sem dúvida motivos para contestar Casey - como observou Nat Hentoff, há uma gritante incoerência entre sua carinhosa consideração pelos direitos
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em nome da preservação de culturas e modos de vida específicos. Os argu- mentos que se constituíram afirmando alteridades para enfrentar o discurso de base evolucionista, construindo um enfoque cultural para temas então tra- tados como realidades biológicas, são apropriados por grupos sociais para sustentar idéias separatistas. Em nome do direito democrático à diferença re- jeitam-se os intercâmbios entre culturas, especificamente, as migrações, a mestiçagem e os sincretismos, enquanto “misturas” que ameaçam a integrida- de cultural dos povos e das etnias. A possibilidade do discurso sobre a alteridade ser eficientemente utilizado para a defesa de causas discriminatórias, sustentando a rejeição da igualdade universal e secular e a defesa de idéias separatistas, leva certos ob- servadores do cenário político a rejeitarem a concepção, duvidando de seu potencial progressista. Vendo a ambigüidade do termo como uma deficiência inerente à idéia que ele expressa, chega-se a desaconselhar seu uso pela “es- querda” por ser uma “idéia perigosa”, facilmente adaptável ao pensamento de “direita” para legitimar distinções discriminatórias de gênero, de etnia e ou- tros. Ao contrário, a idéia clássica da igualdade universal seria, ainda, a única capaz de fornecer representações sociais e culturais progressistas e libertárias. Desse ponto de vista, o direcionamento do pensamento crítico para o tema da diferença teria sido um movimento basicamente regressivo da perspectiva da emancipação humana. A ambigüidade que caracteriza o contexto discursivo do cenário político contemporâneo favorece a leitura acima exemplificada por Hughes e presente também no último livro de Sérgio Paulo Rouanet, onde uma “co- ruja filosófica” percorre o mundo contemporâneo e tudo o que encontra é a exaltação de particularismos. Nacionalistas, feministas, fundamentalistas, todos são representantes de uma mesma negação da universalidade que vai contra a possibilidade de emancipação da humanidade. Concentran- do-se nos conteúdos das categorias centrais da modernidade, tais como universalidade, racionalidade e individualidade, esse enfoque rejeita toda crítica a tais categorias como uma atuação basicamente conservadora e regressiva em relação aos ideais iluministas. Para Rouanet, toda contesta- ção aos valores que legitimam a sociedade ocidental implica no abandono da perspectiva emancipatória; ou seja, na negação da condição de sujeito autônomo àqueles mesmos em nome dos quais se faz a crítica cujo resul- tado último - único e certo - é condená-los à infantilização. Desse modo, a leitura de Rouanet acaba também condenando em bloco todos os movi- mentos que se constituem em torno da construção de identidades, negan- do qualquer caráter libertário às profundas mudanças culturais dos últi- mos decênios nas relações entre gêneros, entre etnias, entre gerações, etc. (Rouanet, 1993). Tentando, neste ensaio, refletir sobre alguns aspectos do cenário político-cultural contemporâneo, tratei dos modos como a modernidade se constituiu instituindo, desde o início, uma tensão entre o geral e o particular
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de forma que a adoção da perspectiva de um dos termos implica na incapaci- dade de contemplar a situação da perspectiva do outro. Na teoria política, o dilema está presente no pensamento liberal-democrático de Stuart Mill e no pensamento socialista de inspiração marxista, o primeiro reproduzindo-o ao nível substantivo de suas propostas políticas e o segundo concebendo-lhe uma solução a partir de uma filosofia da história que segue a mesma lógica das representações que pretende superar. Nessas e em outras versões, o espectro da particularidade persegue a modernidade desde seus primórdios através de diversas manifestações. Do outro lado do dilema, situa-se a percepção das implicações da universalidade fundada em uma racionalidade própria ao pro- cesso temporal, que transforma o sentido em fim, seqüestrando qualquer sig- nificado próprio aos eventos particulares na medida em que o concreto só faz sentido quando englobado pelo processo, enquanto um momento de sua se- qüência temporal: “Permanecerá sempre pasmoso (...) que as primeiras gera- ções pareçam conduzir seus fatigantes negócios unicamente para o bem das posteriores (...) e que somente as últimas devam ter a boa fortuna de habitar o edifício completo” (Kant, citado em Arendt, 1979, p. 118). A “crise” da raci- onalidade moderna parece, assim, ser tão velha quanto a própria modernidade, embora conste, em muitas descrições atuais, como traço definidor na caracte- rização da crise contemporânea da sociedade e da cultura ocidentais. O caráter crítico inerente à modernidade remete, então, à considera- ção de que, em nenhum momento, a sociedade moderna se instituiu em uma suposta forma “pura” na qual conseguisse legitimar, sem maiores problemas, seu próprio projeto sem instituir, simultaneamente, as concepções capazes de apreender de certo modo seus limites e de refletir sobre eles. Se a identidade moderna nunca foi tão homogênea como às vezes se pensa, a idéia da pós- modernidade como fruto do fracasso do projeto moderno fica enfraquecida, pois o que ressalta da consideração do caráter reflexivo da modernidade é mais a continuidade entre “modernidade” e “pós-modernidade” do que uma ruptura definitiva (isto sem tocar nas dificuldades que acarreta para o pensa- mento pós-moderno o diagnóstico do fim de uma época e, portanto, do surgimento de um “novo tempo”). Do que decorre, ainda, que a definição da pós-modernidade - isto é, da época contemporânea - não pode ser a pura rejei- ção dos valores da modernidade, com o que o pensamento crítico estaria, de certa forma, rejeitando a si próprio. Já foi observado que há um limite para o desconstrutivismo que se fixa em conteúdos e que interpreta dessa perspecti- va a crítica desconstrutivista da lógica das fundações. Ao concluir que a críti- ca da racionalidade conferida à história pela modernidade implica que a his- tória não tem sentido nenhum, o pensamento crítico expressa uma imagina- ção presa das totalizações globais. A história não tem nenhum sentido deter- minado , o que não é igual a dizer que a experiência humana não tem sentido nenhum. O que se revela não é a ausência de sentido, mas um mundo onde os sentidos proliferam. A consideração do dilema moderno entre o geral e o particular su-
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Os problemas políticos contemporâneos são extremamente inquie- tantes e complexos e exigem intensos esforços para sua compreensão. Parece- me que pode haver um caminho promissor na perspectiva que busca problematizar não os valores da modernidade mas a lógica das fundações através da qual esses valores foram apresentados com o caráter de verdade que legitimou projetos de dominação em seu interior. Ao invés de rejeitar a modernidade, esse pensamento crítico investe em seu caráter reflexivo, visan- do ampliar os ideais libertários e emancipatórios do projeto iluminista. Para isso, seria preciso levar a sério os resultados da crítica da lógica transcendental e exercitar a imaginação para pensar o contingente e o indeterminado. Numa tal perspectiva, não faz sentido inquirir sobre o sentido progressista ou con- servador dos movimentos político-culturais contemporâneos pois não há como constituí-los enquanto momentos de um processo com um sentido inerente e definido que se desdobraria realizando uma identidade já inscrita nele. O en- fraquecimento das teorias da história que fundaram a identidade universal da modernidade clássica não anuncia a vitória do particularismo porque não anun- cia nada, apenas estende o campo de possibilidades para pensar o caráter con- tingente e indeterminado da experiência humana. Os acontecimentos do pre- sente e do futuro podem ser libertários ou regressivos e não dispomos de nenhuma instância, abaixo ou acima deles, que nos forneça de antemão o sentido de nossas ações. Muitos pensadores têm diagnosticado o esvaziamen- to da política na época contemporânea. Pode ser que a esfera política institu- cional esteja esvaziada exatamente porque o caráter político das relações so- ciais transbordou de uma esfera especializada e agora manifesta-se em todos os poros do social, revelando a multiplicidade de sentidos da experiência, sentidos não mais garantidos por potencialidades inscritas em estruturas ante- riores às práticas. Desse ponto de vista, o mundo atual estaria realizando, afinal, o ideal secular da modernidade (cf. Laclau, 1991). Se os revolucionários do século XVIII lutaram por um mundo secular, liberto das determinações divi- nas, exteriores aos homens, a história como processo dotado de lógica própria repôs, afinal, uma instância anterior à experiência dos indivíduos singulares a conferir-lhes sentido. A desconstrução da lógica das fundações significa con- ceber efetivamente a história como fruto da ação humana. O mundo é aquilo que os seres humanos fazem e a “História” não tem sentido algum como tal; portanto, pode ter múltiplos sentidos. Onde alguns vêem o niilismo pode-se vislumbrar, ao contrário, um movimento de imensa expansão de significados e ampliação das possibilidades de ação. O dilema entre o geral e o particular reaparece em várias versões ao longo da história do mundo moderno. Talvez não seja possível superá-lo en- quanto perdurar uma organização capaz de, baseada na igualdade formal, ins- tituir poderosas relações de desigualdade na sociedade. Mas a consideração histórica da constituição da modernidade em relação ao Antigo Regime reve- la uma potência emancipatória na idéia moderna da igualdade. Na perspectiva
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do pensamento libertário, parece-me que não se trata de negar, mas de ampli- ar o projeto de uma sociedade livre, secular e igualitária. A crítica das identi- dades homogêneas e definidas por uma transcendência pode ser o caminho para esse alargamento enquanto um projeto indeterminado e, nessa medida, totalmente dependente de nossa capacidade para concebê-lo. O desafio atual talvez seja pensar a igualdade sem que para isso seja necessário fundar a re- presentação igualitária em uma identidade essencial que transcende a experi- ência concreta, esta operação fundamental para a modernidade clássica en- frentar as representações externas a ela. A globalização contemporânea talvez abra o campo para um outro tipo de lógica que altera, também, o modo de pensar nossa inserção nos embates políticos. Pois, se o mundo atual confere uma potencialidade inédita à ação humana - radicalmente criadora - confere simultaneamente a cada um de nós a responsabilidade total de nossas esco- lhas, sem nenhuma garantia. Se o horizonte da modernidade está sendo am- pliado, ele amplia-se para o bem e para o mal.
Recebido para publicação em outubro/
GARCIA, Sylvia Gemignani. Anthropology, modernity, identity: notes on tension between universality and particularity. Tempo Social ; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5 (1-2): 123-143, 1993 (edited in nov. 1994).
ABSTRACT: In this article, I take up some of the political meanings of the dilemma between universality and particularity, conceived as a distinct feature of the modern project of a secular, free and equalitarian society. Thus, I discuss some of the configurations of this dilemma present in classical anthropological thought, in the political thought of the nineteenth century and in the contemporary political- cultural debate about multiculturalism and the right to differences.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARENDT, Hannah. (1979) Entre o passado e o futuro. São Paulo, Perspectiva. B OAS , Franz. (1949) The limitations of the comparative method of anthropology. In: ______. Race, language and culture. New York, The Macmillan Company, p. 270-279. DA M ATTA , Roberto. (1987) Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro, Rocco. E LIAS , Norbert. (1990) O processo civilizador. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
UNITERMS: modernity, identity, democracy, equality, liberty, evolutionism, relativism, multiculturalism, politics, anthropology.