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Antropologia do ciborgue, Notas de estudo de Antropologia

Este ensaio1 é um esforço para construir um mito políti- co, pleno de ironia, que seja fiel ao feminismo, ao socialismo.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Manifesto ciborgue
Ciência, tecnologia e
feminismo-socialista
no final do século XX
Donna J. Haraway
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Manifesto ciborgue

Ciência, tecnologia e

feminismo-socialista

no final do século XX

Donna J. Haraway



Um ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção. Realidade social significa relações sociais vividas, significa nossa construção política mais importante, significa uma ficção capaz de mudar o mundo. Os movimentos internacionais de mulheres têm construído aquilo que se pode chamar de “experiência das mulheres”. Essa experiência é tanto uma ficção quanto um fato do tipo mais crucial, mais político. A libertação depende da construção da consciência da opressão, depende de sua imaginativa apreensão e, portanto, da consciência e da apreensão da possibilidade. O ciborgue é uma matéria de ficção e também de experiência vivida – uma experiência que muda aquilo que conta como experiência feminina no final do século XX. Trata-se de uma luta de vida e morte, mas a fronteira entre a ficção científica e a realidade social é uma ilusão ótica.

A ficção científica contemporânea está cheia de ciborgues – criaturas que são simultaneamente animal e máquina, que habi- tam mundos que são, de forma ambígua, tanto naturais quanto fabricados. A medicina moderna também está cheia de ciborgues, de junções entre organismo e máquina, cada qual concebido como um dispositivo codificado, em uma intimidade e com um poder que nunca, antes, existiu na história da sexualidade. O sexo-ciborgue restabelece, em alguma medida, a admirável complexidade replicativa das samambaias e dos invertebrados – esses magníficos seres orgânicos que podem ser vistos como uma profilaxia contra o heterossexismo. O processo de replicação dos ciborgues está desvinculado do processo de reprodução orgâ- nica. A produção moderna parece um sonho de colonização ciborguiana, um sonho que faz com que, comparativamente,



o pesadelo do taylorismo pareça idílico. Além disso, a guerra moderna é uma orgia ciborguiana, codificada por meio da sigla C 3 I (comando-controle-comunicação-inteligência) – um item de 84 bilhões de dólares no orçamento militar. Estou argu- mentando em favor do ciborgue como uma ficção que mapeia nossa realidade social e corporal e também como um recurso imaginativo que pode sugerir alguns frutíferos acoplamentos. O conceito de biopolítica de Michel Foucault não passa de uma débil premonição da política-ciborgue – uma política que nos permite vislumbrar um campo muito mais aberto.

No final do século XX, neste nosso tempo, um tempo mítico, somos todos quimeras, híbridos – teóricos e fabrica- dos – de máquina e organismo; somos, em suma, ciborgues. O ciborgue é nossa ontologia; ele determina nossa política. O ciborgue é uma imagem condensada tanto da imaginação quanto da realidade material: esses dois centros, conjugados, estruturam qualquer possibilidade de transformação histórica. Nas tradições da ciência e da política ocidentais (a tradição do capitalismo racista, dominado pelos homens; a tradição do progresso; a tra- dição da apropriação da natureza como matéria para a produção da cultura; a tradição da reprodução do eu a partir dos reflexos do outro), a relação entre organismo e máquina tem sido uma guerra de fronteiras. As coisas que estão em jogo nessa guerra de fronteiras são os territórios da produção, da reprodução e da imaginação. Este ensaio é um argumento em favor do prazer da confusão de fronteiras, bem como em favor da responsabilidade em sua construção. É também um esforço de contribuição para a teoria e para a cultura socialista-feminista, de uma forma pós- modernista, não naturalista, na tradição utópica de se imaginar



ao desenvolvimento individual e à história, esses gêmeos e po- tentes mitos tão fortemente inscritos, para nós, na psicanálise e no marxismo. Hilary Klein argumenta que tanto o marxismo quanto a psicanálise, por meio dos conceitos de trabalho, in- dividuação e formação de gênero, dependem da narrativa da unidade original, a partir da qual a diferença deve ser produzida e arregimentada, num drama de dominação crescente da mu- lher/natureza. O ciborgue pula o estágio da unidade original, da identificação com a natureza, no sentido ocidental. Essa é sua promessa ilegítima, aquela que pode levar à subversão da teleologia que o concebe como guerra nas estrelas.

O ciborgue está determinadamente comprometido com a parcialidade, a ironia e a perversidade. Ele é oposicionista, utópico e nada inocente. Não mais estruturado pela polaridade do público e do privado, o ciborgue define uma pólis tecnoló- gica baseada, em parte, numa revolução das relações sociais do oikos – a unidade doméstica. Com o ciborgue, a natureza e a cultura são reestruturadas: uma não pode mais ser o objeto de apropriação ou de incorporação pela outra. Em um mundo de ciborgues, as relações para se construir totalidades a partir das respectivas partes, incluindo as da polaridade e da dominação hierárquica, são questionadas. Diferentemente das esperanças do monstro de Frankenstein, o ciborgue não espera que seu pai vá salvá-lo por meio da restauração do Paraíso, isto é, por meio da fabricação de um parceiro heterossexual, por meio de sua complementação em um todo, uma cidade e um cosmo acabados. O ciborgue não sonha com uma comunidade baseada no modelo da família orgânica mesmo que, desta vez, sem o projeto edípico. O ciborgue não reconheceria o Jardim do Éden; ele não é feito



de barro e não pode sonhar em retornar ao pó. É talvez por isso que quero ver se os ciborgues podem subverter o apocalipse do retorno ao pó nuclear que caracteriza a compulsão maníaca para encontrar um Inimigo. Os ciborgues não são reverentes; eles não conservam qualquer memória do cosmo: por isso, não pensam em recompô-lo. Eles desconfiam de qualquer holismo, mas anseiam por conexão – eles parecem ter uma inclinação natural por uma política de frente unida, mas sem o partido de vanguarda. O principal problema com os ciborgues é, obviamen- te, que eles são filhos ilegítimos do militarismo e do capitalismo patriarcal, isso para não mencionar o socialismo de estado. Mas os filhos ilegítimos são, com frequência, extremamente infiéis às suas origens. Seus pais são, afinal, dispensáveis.

Retornarei, no final deste ensaio, à ficção científica dos ciborgues, mas quero assinalar, agora, três quebras de fronteira cruciais, as quais tornam possível a análise político-ficcional (po- lítico-científica) que se segue. Na cultura científica estadunidense do final do século XX, a fronteira entre o humano e o animal está completamente rompida. Caíram as últimas fortalezas da defesa do privilégio da singularidade [humana] – a linguagem, o uso de instrumentos, o comportamento social, os eventos mentais; nada disso estabelece, realmente, de forma convincente, a separação entre o humano e o animal. Muitas pessoas nem sequer sentem mais a necessidade dessa separação; muitas correntes da cultura feminista afirmam o prazer da conexão entre o humano e outras criaturas vivas. Os movimentos em favor dos direitos dos animais não constituem negações irracionais da singularidade humana: eles são um lúcido reconhecimento das conexões que contri- buem para diminuir a distância entre a natureza e a cultura.



só podiam arremedá-lo. Elas não eram o homem, um autor para si próprio, mas apenas uma caricatura daquele sonho reprodutivo masculinista. Pensar que elas podiam ser outra coisa era uma paranoia. Agora já não estamos assim tão seguros. As máquinas do final do século XX tornaram completamente ambígua a diferença entre o natural e o artificial, entre a mente e o corpo, entre aquilo que se autocria e aquilo que é externamente cria- do, podendo-se dizer o mesmo de muitas outras distinções que se costumavam aplicar aos organismos e às máquinas. Nossas máquinas são perturbadoramente vivas e nós mesmos assusta- doramente inertes.

A determinação tecnológica não é o único espaço ideo- lógico aberto pelas reconceptualizações que veem a máquina e o organismo como textos codificados, textos por meio dos quais nos engajamos no jogo de escrever e ler o mundo. 4 A “textualização” de tudo, na teoria pós-estruturalista e na teoria pós-modernista, tem sido condenada pelos marxistas e pelas feministas socialistas, que desconfiam do desprezo utópico que essas teorias devotam às relações de dominação vividas, desprezo que está na base do “jogo” da leitura arbitrária por elas postula- da.^5 É certamente verdadeiro que as estratégias pós-modernistas, tal como o meu mito do ciborgue, subvertem uma quantidade imensa de totalidades orgânicas (por exemplo, o poema, a cultura primitiva, o organismo biológico). Em suma, a certeza daquilo que conta como natureza – uma fonte de insight e uma promessa de inocência – é abalada, provavelmente de forma fatal. Perde-se a autoria/autoridade transcendente da interpre- tação e com ela a ontologia que fundamentava a epistemologia “ocidental”. Mas a alternativa não é o cinismo ou a falta de fé,



isto é, alguma versão de uma existência abstrata, como as teorias do determinismo tecnológico, que substituem o “homem” pela “máquina” ou a “ação política significativa” pelo “texto”. Saber o que os ciborgues serão é uma questão radical; respondê-la é uma questão de sobrevivência. Tanto os chimpanzés quanto os artefatos têm uma política. Por que não a teríamos nós? (DE W AAL, 1982; WINNER, 1980)

A terceira distinção é um subconjunto da segunda: a fron- teira entre o físico e o não físico é muito imprecisa para nós. Os livros populares de Física que se centralizam nas consequências da teoria quântica e no princípio da indeterminação são uma espécie de equivalente científico popular da literatura cor-de- rosa dos romances baratos, servindo como marcadores de uma mudança radical na heterossexualidade branca americana: eles erram na interpretação, mas acertam no problema. Os disposi- tivos microeletrônicos são, tipicamente, as máquinas modernas: eles estão em toda parte e são invisíveis. A maquinaria moderna é um deus irreverente e ascendente, arremedando a ubiquidade e a espiritualidade do Pai. O chip de silício é uma superfície de escrita; ele está esculpido em escalas moleculares, sendo per- turbado apenas pelo ruído atômico – a interferência suprema nas partituras nucleares. A escrita, o poder e a tecnologia são velhos parceiros nas narrativas de origem da civilização, típicas do Ocidente, mas a miniaturização mudou nossa percepção sobre a tecnologia. A miniaturização acaba significando poder; o pequeno não é belo: tal como ocorre com os mísseis ele é, sobretudo, perigoso. Contrastem os aparelhos de TV dos anos 50 ou as câmeras dos anos 70 com as TVs de pulso ou com as câmeras de vídeo que cabem na palma da mão. Nossas melhores



casas de bonecas; a atenção – imposta – das mulheres para com a miniatura – tudo isso adquire novas dimensões nesse mundo. Talvez exista uma Alice-ciborgue tomando nota dessas novas dimensões. Ironicamente, talvez sejam as unidades políticas construídas pelas mulheres-ciborgue, não naturais, que estão fabricando chips na Ásia e dançando em espiral 9 na prisão de Santa Rita, que poderão servir de orientação para eficazes estratégias oposicionistas.

Assim, meu mito do ciborgue significa fronteiras trans- gredidas, potentes fusões e perigosas possibilidades – elemen- tos que as pessoas progressistas podem explorar como um dos componentes de um necessário trabalho político. Uma de minhas premissas afirma que as socialistas e as feministas estadunidenses, em sua maioria, veem profundos dualismos entre mente e corpo, entre animal e máquina, entre idealismo e materialismo nas práticas sociais, nas formações simbólicas e nos artefatos físicos associados com a “alta tecnologia” e com a cultura científica. Do livro One-dimensional man (M ARCUSE,

  1. ao livro The Death of Nature (M ERCHANT, 1980), os recursos analíticos desenvolvidos pelas pessoas progressistas insistem no argumento de que a técnica envolve, necessaria- mente, dominação; como resposta, elas apelam em favor de um imaginário corpo orgânico que possa organizar nossa re- sistência. Outra das minhas premissas afirma que a necessidade de uma unidade entre as pessoas que estão tentando resistir à intensificação mundial da dominação nunca foi tão urgente. Mas uma mudança ligeiramente perversa de perspectiva pode nos capacitar, de uma forma melhor, para a luta por outros significados, bem como para outras formas de poder e prazer em sociedades tecnologicamente mediadas.



De uma certa perspectiva, um mundo de ciborgues signi- fica a imposição final de uma grade de controle sobre o planeta; significa a abstração final corporificada no apocalipse da Guerra nas Estrelas – uma guerra travada em nome da defesa; significa a apropriação final dos corpos das mulheres numa orgia guer- reira masculinista (S OFIA, 1984). De uma outra perspectiva, um mundo de ciborgues pode significar realidades sociais e corporais vividas, nas quais as pessoas não temam sua estreita afinidade com animais e máquinas, que não temam identidades perma- nentemente parciais e posições contraditórias. A luta política consiste em ver a partir de ambas as perspectivas ao mesmo tempo, porque cada uma delas revela tanto dominações quanto possibilidades que seriam inimagináveis a partir do outro ponto de vista. Uma visão única produz ilusões piores do que uma visão dupla ou do que a visão de um monstro de múltiplas cabeças. As unidades ciborguianas são monstruosas e ilegítimas: em nossas presentes circunstâncias políticas, dificilmente podemos esperar ter mitos mais potentes de resistência e reacoplamento. Gosto de imaginar o LAG, o Grupo de Ação de Livermore, como uma espécie de sociedade ciborguiana, dedicada a transformar, de forma realista, os laboratórios que mais ferozmente corporificam e espalham os instrumentos do apocalipse tecnológico – uma sociedade comprometida com a construção de uma formação política que realmente consiga juntar – o tempo suficiente para desarmar o estado – bruxas, engenheiros, anciões, pervertidos, cristãos, mães e leninistas. Fissão Impossível é o nome do grupo de afinidade política em minha cidade. (Afinidade: aparentado não por sangue mas por escolha; a substituição de um grupo nuclear químico por outro: avidez por afinidade).^10



são incontáveis. A história recente de grande parte da esquerda e do feminismo estadunidense tem sido construída a partir das respostas a esse tipo de crise – respostas que são dadas por meio de infindáveis cisões e de buscas por uma nova unidade essencial. Mas existe também um reconhecimento crescente de uma outra resposta: aquela que se dá por meio da coalizão – a afinidade em vez da identidade.^11

Chela Sandoval (s.d., 1984) discute, a partir da história da formação da nova voz política representada pelas mulheres de cor, 12 um novo modelo de identidade política que ela chama de “consciência de oposição”. Esse modelo baseia-se naquela capacidade de analisar as redes de poder que já foi demonstrada por aquelas pessoas às quais foi negada a participação nas catego- rias sociais da raça, do sexo ou da classe. A identidade “mulheres de cor” – um nome contestado em suas origens por aquelas pessoas que ele deveria incorporar – produz não apenas uma consciência histórica que assinala o colapso sistemático de todos os signos de Homem nas tradições “ocidentais”, mas também, a partir da outridade, da diferença e da especificidade, uma espécie de identidade pós-modernista. Independentemente do que possa ser dito sobre outros possíveis pós-modernismos, essa identidade pós-modernista é plenamente política. A “consciência de oposição” de Sandoval tem a ver com locali- zações contraditórias e calendários heterocrônicos e não com relativismos e pluralismos.

Sandoval enfatiza que não existe nenhum critério essen- cialista que permita identificar quem é uma mulher de cor. Ela observa que a definição desse grupo tem sido feita por meio de uma consciente apropriação da negação. Por exemplo,



uma chicana ou uma mulher estadunidense negra não pode falar como uma mulher (em geral) ou como uma pessoa negra ou como um chicano. Assim, ela está no degrau mais baixo de uma hierarquia de identidades negativas, excluída até mesmo daquelas categorias oprimidas privilegiadas constituídas por “mulheres e negros”, categorias que reivindicam o feito de terem realizado importantes revoluções. A categoria “mulher” nega todas as mulheres não brancas; a categoria “negro” nega todas as pessoas não negras, bem como todas as mulheres ne- gras. Mas tampouco existe qualquer coisa que se possa chamar de “ela”, tampouco existe qualquer singularidade; o que existe é um mar de diferenças entre os diversos grupos de mulheres estadunidenses que têm afirmado sua identidade histórica como mulheres estadunidenses de cor. Essa identidade assinala um espaço construído de forma autoconsciente. Sua capacidade de ação não pode ter como base qualquer identificação suposta- mente natural: sua base é a coalizão consciente, a afinidade, o parentesco político. 13 Diferentemente da identidade “mulher” de algumas correntes do movimento das mulheres brancas estadunidenses, não existe, aqui, qualquer naturalização de uma suposta matriz identitária: essa identidade é o produto do poder da consciência de oposição.

O argumento de Sandoval advém de um feminismo que incorpora o discurso anticolonialista, isto é, um discurso que dissolve o “Ocidente” e seu produto supremo – o Homem, ou seja, aquele ser que não é animal, bárbaro ou mulher, aquele ser que é o autor de um cosmo chamado história. À medida que o orientalismo é política e semioticamente desconstruído, as identidades do Ocidente – incluindo as das feministas – são desestabilizadas.^14 Sandoval argumenta que as “mulheres de cor”



estreitamente interligadas. Aprender como forjar uma unidade poético-política que não reproduza uma lógica da apropriação, da incorporação e da identificação taxonômica – esta é a con- tribuição de King e de Sandoval.

A luta teórica e prática contra a unidade-por-meio-da-domi- nação ou contra a unidade-por-meio-da-incorporação implode, ironicamente, não apenas as justificações para o patriarcado, o colonialismo, o humanismo, o positivismo, o essencialismo, o cientificismo e outros “ismos”, mas também todos os apelos em favor de um estado orgânico ou natural. Penso que os feminismos radicais e socialistas-marxistas têm implodido também suas/nossas próprias estratégias epistemológicas e que isso constitui um passo valioso para se imaginar possíveis unidades políticas. Resta saber se existe alguma “epistemologia”, no sentido ocidental, que possa nos ajudar na tarefa de construir afinidades eficazes.

É importante observar que no esforço para se construir po- sições revolucionárias, as epistemologias – enquanto conquistas das pessoas comprometidas com a mudança do mundo – têm feito parte do processo de demonstração dos limites da cons- trução de identidade. As corrosivas ferramentas da teoria pós- modernista e as construtivas ferramentas do discurso ontológico sobre sujeitos revolucionários parecem constituir aliados irônicos na dissolução dos eus ocidentais, uma dissolução que se dá no interesse da sobrevivência. Estamos dolorosamente conscientes do que significa ter um corpo historicamente constituído. Mas com a perda da inocência sobre nossa origem, tampouco existe qualquer expulsão do Jardim do Éden. Nossa política perde o consolo da culpa juntamente com a naiveté da inocência. Mas, sob que outra forma se apresentaria um mito político para o



feminismo socialista? Que tipo de política poderia adotar cons- truções parciais, contraditórias, permanentemente abertas, dos eus pessoais e coletivos e, ainda assim, ser fiel, eficaz e, ironi- camente, feminista-socialista?

Não conheço nenhuma outra época na história na qual tenha havido uma maior necessidade de unidade política, a fim de enfrentar, de forma eficaz, as dominações de “raça”, de “gênero”, de “sexualidade” e de “classe”. Tampouco conheço qualquer outra época na qual o tipo de unidade que nós pode- mos ajudar a construir tenha sido possível. Nenhuma de “nós” tem mais a capacidade material para ditar a “elas”, a quaisquer delas, a forma que a realidade deve ter. Ou, no mínimo, “nós” não podemos alegar inocência na prática dessas dominações. As mulheres brancas, incluindo as feministas socialistas, desco- briram a não inocência da categoria “mulher” (isto é, foram forçadas, aos pontapés e aos gritos, a se darem conta disso). Essa consciência muda a geografia de todas as categorias anteriores; ela as desnatura, da mesma forma que o calor desnatura uma proteína frágil. As feministas-ciborgue têm que argumentar que “nós” não queremos mais nenhuma matriz identitária natural e que nenhuma construção é uma totalidade. A inocência, bem como a consequente insistência na condição de vítima como a única base para a compreensão e a análise, já causou suficientes estragos. Mas o sujeito revolucionário construído deve dar às pessoas do século XX também algum descanso. Na refrega das identidades e nas estratégias reflexivas para construí-las, abre-se a possibilidade de se tecer algo mais do que a mortalha para o dia após o apocalipse, que tão profeticamente conclui a história da salvação.