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Este texto analisa a obra de mia couto, autor moçambicano, e sua capacidade de transformar cenários locais em problemáticas humanas de grande escala. O autor discute a universalidade humana na literatura e como autores como graciliano ramos e guimarães rosa, e mia couto mesmo, elevam o cenário local a dimensões inusitadas. O texto foca no romance 'antes de nascer o mundo' e como o autor mantém uma produção constante e fiel ao seu tom, elevando a consciência da autoreferencialidade da linguagem.
Tipologia: Provas
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verA MAquêA Unemat/Fapemat/Capes omo em toda grande literatura é a universalidade do humano que conta mais, não a estreita demanda da paisagem por mais que ela seja importante na configuração da história. A saber o que fizeram Graciliano Ramos e Gui- marães Rosa com a ideia de sertão do Brasil, assistimos na prosa encharcada de poesia do moçambicano Mia Couto processo semelhante de elevação do cenário local a dimensões inusitadas de problemáticas plenas de humanidade, encantamento e conflito. É assim que em Antes de nascer o mundo ,^1 um lugar chamado Jesusalém pa- rece ser hostil até mesmo ao mais sobre-humano dos homens que, expulso para outras paragens, poderia ter extraviado de vez a fé nos homens. Mas, se o deslocamento da terra sagrada para o homem sagrado é mais proposital do que poderíamos prever é justamente pelo desejo de recuperar a confiança nos homens, já que o universo deste novo livro não deixa de dialogar com aquele terreno do primeiro romance de Mia Couto, Terra Sonâmbula (1992), habitado pelo menino Muidinga e pelo velho Tuhair, onde a guerra tende a esterilizar qualquer possibilidade de sonhar e, no entanto, naquele como neste romance a poesia e a escrita aparecem como restauradoras da humanidade do mundo. O espaço de Terra sonâmbula , que atravessa uma galeria de metáforas to- pográficas na obra de Mia Couto, passa por ‘Vila Longe’ e ‘Antigamente’ de O outro pé da sereia (2006) e se nos apresenta revisitado neste Antes de nascer o mundo , quase trinta anos depois, como um mote de irresoluções: lugar discre- tamente habitado, distância da civilidade, busca de definições, de formas e de identidades. Esse lugar original, sem os contornos de um mundo previsível, de 1 COUTO, Mia. Antes de nascer o mundo. São Paulo: Companhia das letras, 2009.
2 8 8 VIA ATLÂNTICA Nº 16 DEZ/ certa maneira torna mais coerente o título da edição brasileira Antes de nascer o mundo , em vista da edição portuguesa Jesusalém , pelo investimento no poder divino da palavra poética de criar mundos e preenchê-los com algum sentido. O enredo, de uma simplicidade estupefaciente, é a história de um velho homem, Silvestre Vitalício, que leva os filhos da cidade para um lugar remoto a que dá o nome de Jesusalém, inventando para os meninos que o mundo acabou e que não há mais ninguém além deles na terra. Ali, a interdição de rezar, lembrar ou chorar é uma lei para que a “terceira margem” seja possível. Com o tempo, no entanto, Silvestre Vitalício terminará por descobrir que não é possível fugir, apagar ou esquecer o passado porque os homens são consti- tuídos de passado e então seu projeto de Funes invertido é frustrado. Seduzido pelas possibilidades sempre inacabadas das palavras, do jogo de se- mantemas e morfemas, da incompletude de combinações dos sistemas linguís- ticos que articula, o autor moçambicano tem mantido uma produção constante e fiel ao seu tom, ou seja, uma elevada consciência da autoreferencialidade da linguagem que, sendo intensa, às vezes tende a sobrepor-se ao gesto narrativo: Escutei o farfalhar do peito dele. Parecia que o velho ia desaguar num pranto. De súbito, o sucedido se deflagrou em espanto: meu pai trauteava uma melo- dia: escutei meu velho cantar! Pela primeira vez, nos meus onze anos, escutei meu velho cantar: Era um trecho triste e a voz dele era como um riachinho feito só de cacimbas. (ANM, p. 181) Semelhante a ele mesmo, Mia Couto confirma sua dicção literária e desen- volve o trabalho com a linguagem tateando identidades, encostando realida- des e buscando um reconhecimento de seu país sem submeter sua literatura àquilo que não seja do interesse da arte. À exceção de O outro pé da sereia, em que o flerte com a história se sobrepõe à fabulação poética da linguagem, criando em seus leitores a expectativa de uma mudança de direção na sua produção dali para diante, o autor moçambicano tem apostado em processos de composição em que o português se criouliza cada vez mais. A obsessão pela construção da linguagem e a alta consciência das dimen- sões de sua materialidade poderiam inferir à obra de Mia Couto uma incon- testável atitude formalista no melhor dos sentidos, chegando ao limite de produzir um efeito derivante: narrar o inenarrável, chegando à antinarrativa.
2 9 0 VIA ATLÂNTICA Nº 16 DEZ/ Tendo ainda em conta a relação entre o espaço e as personagens deste ro- mance encontramos um discreto paralelismo com a melhor literatura brasilei- ra da década de 30, curiosamente anterior ao formalismo de Clarice Lispector e Guimarães Rosa: impossível, lendo Antes de nascer o mundo , não se lembrar de Vidas secas (1938) de Graciliano Ramos. A similitude não termina no nú- mero que constitui a população básica do romance. Lá, temos o Fabiano e a sinhá Vitória, o menino mais velho e o menino mais novo, e a mais humana cachorra ironicamente Baleia. Se os retirantes do nordeste brasileiro, fugin- do da seca, pudessem caminhar para fora de suas páginas ou de seu mundo, poderiam viver junto com as personagens que habitam Jesusalém: o lugar é igualmente árido e rude; Silvestre tem dois filhos, vive com eles e com Zacaria Kalash, o militar e a jumenta Jezibela. O tio Aproximado, paradoxalmente, vive longe. Como em Vidas secas , as cinco personagens se debatem pela so- brevivência num lugar que não vai além do alcance de seus olhos, que os mantém a deriva, constantemente, sem ter no horizonte grande possibilidade de repouso. À imensa desumanização da vida, assoma-se a humanização da jumenta Jezibela como ocorre à cachorra Baleia. Em Antes de nascer o mundo o arranjo familiar será perturbado pela chegada da portuguesa Marta, deslocada à procura de um amante perdido em terras de África. Se Jesusalém é uma inversão da terra sagrada de Jerusalém, lugar “onde Jesus haveria de se descrucificar”, não deixa de ser também a repetição de viagens invertidas, das quais Marta é apenas uma personagem modelar. A mudança de nome – não mudança de qualidade –, faz com que as per- sonagens abdiquem de serem adjetivadas para serem renomeadas: o narrador Mwanito é o Afinador de silêncios; seu irmão, Ntunzi Sombre, é na realida- de Olindo Ventura. Incorporações irônicas que não param nesse universo atingem Zacaria Kalash, ex-soldado, agora serviçal de Silvestre Vitalício, no diminutivo o militar é ainda sobrenomeado Sobra, resto de alguma coisa. O pai dos meninos, Silvestre Vitalício é Mateus Ventura, e Orlando Macara, o tio Aproximado. Nem a jumenta escapa de uma nomeação que busca fundir significado e significante: Jezibela é o traço feminino do lugar. Seduzido pela forma, Mia Couto vem seduzindo também os seus leitores com a procura da poesia. O ritmo do texto marcado pelos versos fixos do so- neto é subvertido tanto nos títulos dos capítulos que compõem cada um dos três “livros” que constituem o romance quanto no conteúdo e na linguagem,
ANTES DE NASCER O MUNDO, DE MIA COUTO: UM SONETO DESDOBRADO 2 9 1 o que ecoa na escolha de vozes femininas anunciada pela poesia. A subversão está em toda parte, desde a hibridização da forma do romance como herdeiro da épica ocidental até a imersão em um mundo ordenado pelo rigor formal, o soneto clássico. Assim, a citação completa de sonetos libertos – como o equilibrado em três tercetos de Hilda Hilst (p. 99) e o cuidadosamente desarranjado de So- phia Andresen (p. 227) –, apontam para o controle do autor sobre a forma do romance: a fundação de um lugar ermo, o passado que insiste apesar de todo esforço de esquecimento e a loucura como lugar de reencontro com o mundo abandonado de propósito, como a dizer que só pela loucura é possível habitar a terceira margem. A cidade cresce e a cada dia é mais difícil conceber um lugar como Jesu- salém. A cidade lança suas luzes sobre as sombras, as veredas e as savanas e convida os homens às ilusões da modernidade, ilusões a que todos estamos enlaçados. Este romance de Mia Couto é uma palavra sobre a maior de todas as ilusões: a de esquecer tudo e começar de novo. Silvestre Vitalício, no afã de criar sua Pasárgada, no delírio pleno de sua loucura e cegueira, não consegue sustentar para os filhos que o mundo aca- bou. Ouvimos as palavras finais do narrador Mwanito, o afinador de silên- cios, a confessar que tem a mesma doença do pai, a cegueira e a loucura. No entanto, pelo amor de uma mulher ele compreende que o mundo ainda nem começou: “A ternura daquela mulher me confirmava que meu pai estava er- rado: o mundo não morreu. Afinal, o mundo nem chegou a nascer” (p. 277). E como tudo em Mia Couto se converte em escrita, fiquemos com o livro, na sua concretude transcendente de papel impresso e de letras, para não per- mitir que o mundo acabe e que cada leitor possa compreender nestas páginas a inauguração ininterrupta de mundos onde a poesia pede para a vida conti- nuar: desdobrando sonetos e afinando silêncios.