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ANÁLISE SOCIOLÓGICA DE O CORTIÇO, DE ALUÍZIO ..., Notas de estudo de Literatura

representação do pobre por meio do romance O Cortiço, de Aluísio Azevedo. ... de Aluísio Azevedo: o naturalismo, assim como seu o campo de estudos.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Aldair85
Aldair85 🇧🇷

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BALEIA NA REDE - Estudos em arte e sociedade
ISSN 1808 -8473 - Vol. 9, n. 1, 2012
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QUANDO A POBREZA TOMA CORPO:
ANÁLISE SOCIOLÓGICA DE O CORTIÇO, DE ALUÍZIO
AZEVEDO
Ryanne F. Monteiro BAHIA
1
Resumo: O objetivo geral desse trabalho é produzir uma leitura possível sobre a
representação do pobre por meio do romance O Cortiço, de Aluísio Azevedo.
Questiona-se: De que forma o pobre surge sob a perspectiva Aluisiana? Que construtos
simbólicos ela define e fortalece? Apresentamos de forma sucinta a filiação intelectual
de Aluísio Azevedo: o naturalismo, assim como seu o campo de estudos. Traçamos um
paralelo entre ficção e realidade, através da análise de O cortiço, e a comparação com o
contexto histórico ao qual a obra se refere. Como pontos de sustentação teórica e
material para a análise comparativa entre o discurso elaborado pela literatura e discurso
produzido pela abordagem historiográfica, utilizamos a leitura de Marx sobre a inserção
compulsória do pobre no sistema capitalista por meio da disciplina, e a abordagem de
Nicolau Sevcenko e Sidney Chalhoub sobre a vivência da população pobre e o
processo de favelização iniciado com a eclosão dos cortiços cariocas.
Palavras-chave: Pobreza. O Cortiço. Disciplina.
Introdução
A presença do outro, a convivência entre dominantes e dominados é presença
constante em qualquer relação social. No caso da pobreza, essas relações de força,
amiúde concorrem para a constituição de um quadro de segregação. Esse estudo tem
como objetivo geral estudar as sociabilidades dos pobres no contexto da explosão
demográfica, do processo de favelização, no caso do Rio de Janeiro, e a adaptação dos
pobres a esse fenômeno. Em um primeiro momento, pensamos o pobre como sujeito a
ser disciplinado para os intentos capitalistas. Na primeira parte, utilizamos Karl Marx
como aporte teórico e na segunda parte dialogamos com Nicolau Sevcenko, buscando
uma comparação entre a representação literária e o discurso historiográfico.
Considerações sobre o pobre na sociologia e na literatura
O pobre como transtorno social é algo documentado nos escritos dos cronistas
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Doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Ceará. É
mestre em Sociologia pela mesma instituição, onde trabalhou com a representação do pobre na literatura
brasileira.
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QUANDO A POBREZA TOMA CORPO:

ANÁLISE SOCIOLÓGICA DE O CORTIÇO , DE ALUÍZIO

AZEVEDO

Ryanne F. Monteiro BAHIA 1 Resumo: O objetivo geral desse trabalho é produzir uma leitura possível sobre a representação do pobre por meio do romance O Cortiço, de Aluísio Azevedo. Questiona-se: De que forma o pobre surge sob a perspectiva Aluisiana? Que construtos simbólicos ela define e fortalece? Apresentamos de forma sucinta a filiação intelectual de Aluísio Azevedo: o naturalismo, assim como seu o campo de estudos. Traçamos um paralelo entre ficção e realidade, através da análise de O cortiço , e a comparação com o contexto histórico ao qual a obra se refere. Como pontos de sustentação teórica e material para a análise comparativa entre o discurso elaborado pela literatura e discurso produzido pela abordagem historiográfica, utilizamos a leitura de Marx sobre a inserção compulsória do pobre no sistema capitalista por meio da disciplina, e a abordagem de Nicolau Sevcenko e Sidney Chalhoub sobre a vivência da população pobre e o processo de favelização iniciado com a eclosão dos cortiços cariocas. Palavras-chave: Pobreza. O Cortiço. Disciplina. Introdução A presença do outro, a convivência entre dominantes e dominados é presença constante em qualquer relação social. No caso da pobreza, essas relações de força, amiúde concorrem para a constituição de um quadro de segregação. Esse estudo tem como objetivo geral estudar as sociabilidades dos pobres no contexto da explosão demográfica, do processo de favelização, no caso do Rio de Janeiro, e a adaptação dos pobres a esse fenômeno. Em um primeiro momento, pensamos o pobre como sujeito a ser disciplinado para os intentos capitalistas. Na primeira parte, utilizamos Karl Marx como aporte teórico e na segunda parte dialogamos com Nicolau Sevcenko, buscando uma comparação entre a representação literária e o discurso historiográfico. Considerações sobre o pobre na sociologia e na literatura O pobre como transtorno social é algo documentado nos escritos dos cronistas (^1) Doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Ceará. É mestre em Sociologia pela mesma instituição, onde trabalhou com a representação do pobre na literatura brasileira.

dos últimos séculos. Nos processos-crimes, ou nas críticas ferozes das revistas que ditavam as normas de conduta “civilizadas” e de etiqueta, o que temos são relatos sobre a pobreza pelo viés dos atores sociais que se sentiam incomodados por ela. Contudo, é importante questionarmos: onde está a representação do pobre enquanto protagonista? Quem teria buscado mostrar o que é ser pobre, sentir-se pobre? Joel Rufino dos Santos (2004) nos dirá que a história tradicional, como instrumento que registra o passado, falhou na consecução deste desiderato. Isto porque os escritos concernentes à população carente se referiam ao pobre frequentemente como “o outro” indesejado. Rufino dos Santos (2000) alerta para o fato de a literatura ter sido um dos veículos mais eficientes na representação social do pobre, por “revelar” seu modo de vida, seus costumes, e dar “importância aos seus dilemas. Com efeito, observa-se em escritores como Aluísio Azevedo, que realizavam pesquisas inclusive “de campo” 2 para “dar mais vida aos seus personagens, sinais desta vertente. Por isso, utilizamos como recurso metodológico, o que Robert Darnton (2006) nos propõe de o recurso da leitura: “Se pode ler um ritual ou uma cidade, da mesma maneira como se pode ler um conto popular ou um texto filosófico. O método de exegese pode variar, mas, em cada caso a leitura é feita em busca do significado.” (DARNTON, 2006, p. XVI) Nossa proposta é fazer uma leitura da obra O Cortiço, ambientado nas últimas décadas do século XIX em busca do significado da pobreza, bem como questionar o seu significado e observar como os pobres foram representados. Naturalismo: o homem em sua naturalidade Antes de adentramos na análise do romance, apresentaremos outro aspecto interessante da relação literatura e sociedade: a relação entre a escola naturalista. Conforme a abordagem naturalista, o homem é visto dentro de sua animalidade, sendo um produto do meio social no qual está inserido. No caso do cortiço, as personagens expostas a um ambiente hostil desenvolvem comportamento violento, bem como expõem sua sexualidade de forma aberta. O homem é dominado por seus instintos como bem revela o excerto a seguir: “Sentia-se naquela fermentação sanguínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da (^2) Pesquisa de campo aqui não expressa um conjunto de orientações antropológicas, estruturadas com rigor acadêmico, mas, passeios, conversas com os moradores, leitura de jornais etc.

A inserção do pobre: da associação entre a pobreza e a marginalidade na obra O Cortiço Sidney Chalhoub (1996), em sua obra mais clássica Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial , trata sobre os cortiços cariocas, desde sua gênese até seu declínio; nela, há um tópico que se dedica ao estigma atribuído às classes de baixo poder aquisitivo, denominadas pelo poder público como “classes perigosas”. O termo classes perigosas teria sido cunhado por Mary Carpenter, escritora inglesa de 1840, que o teria usado para designar os meninos de rua ou “infância culpada”, para ser fiel às palavras da autora. Em nosso país, o termo foi flexionado de forma bastante diferenciada do sentido original. Conforme Chalhoub (1996), a expressão foi encontrada em um importante debate da Câmara dos Deputados do Império após a abolição da escravatura, isso porque havia uma preocupação sobre o que fazer com a então mão-de-obra, não mais escrava. O que faria agora essa população até pouco tempo cativa? Como convencê-los ao trabalho? M. A. Frégier escreve um livro influente no período de 1840, quando foi publicado, o qual se denominava As classes perigosas da população nas grandes cidades. Frégier tratou, na supracitada obra, sobre ladrões, pequenos golpistas e prostitutas que habitavam a antiga Paris. Para Chalhoub (1996), Frégier não soube separar a população meliante da população pobre. Por pensar de forma semelhante, nossos deputados daquela época fizeram da associação entre pobreza e marginalidade sua principal ferramenta “na guerra santa contra os vadios” (CHALHOUB, 1996, p.21). O discurso político bradava que “a principal virtude do bom cidadão é o gosto pelo trabalho, e este leva necessariamente ao hábito da poupança, que, por sua vez, se reverte no conforto para o cidadão” (CHALHOUB, 1996, p.21). Deste ponto de vista, o pobre não poderia ser um bom cidadão, posto que, se vive em dificuldades e não tem conforto é por que não teria trabalhado ou poupado suficiente para isso. De acordo com Chalhoub (1996), não se denotaria no discurso vigente das elites cariocas, diferenciação entre pobreza e marginalidade. O autor destaca que essa representação estigmatizada do pobre teria ocasionado erros históricos irreparáveis. “Assim é que a noção de que a pobreza do indivíduo era fato suficiente para torná-lo um malfeitor em potencial teve enormes consequências para a história desse país.” (CHALHOUB, 1996, p.23). Uma dessas consequências consistiria no tratamento

truculento que a ação policial teria reservado às comunidades carentes. Outra seria a potencialização do racismo, haja vista que a população até recentemente escrava, adensaria a população pobre e desocupada. Da disciplina para o trabalho ao vagabundo como bandido em potencial “Das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos” (AZEVEDO, 1995, p. 37). Azevedo descreve o despertar dos moradores, que apesar do sono devem acordar cedo para cumprir suas obrigações. Estas são divididas por gênero: as mulheres trabalham lavando roupas “para fora” e os homens trabalham em sua maioria na pedreira mais próxima. Os trabalhadores pobres são incumbidos de incorporarem a disciplina, e devem por isso acordar cedo, orquestrar seus movimentos para espantar os fantasmas da preguiça e da vagabundagem, tão nocivos à lógica do capital. Temos como exemplo da disciplina incorporada a mulher que vivia “maritalmente” com João Romão, Bertoleza, escrava supostamente alforriada 3 ; que trabalhava de sol a sol, economizava em tudo que podia, era, em suma, um corpo que fora adestrado (desde os tempos de escravidão) ao trabalho duro, ao ritmo intenso de produção. Bertoleza é um exemplo claro de um corpo dócil na perspectiva foucaultiana. 4 Outro personagem que no início da trama representava um exemplo categórico de um corpo disciplinado era o imigrante português Jerônimo. Não faltava ao trabalho, acordava cedo, coordenava os trabalhos dos companheiros e exercia sobre os mesmos intensa vigilância, como se expõe no trecho abaixo: Comigo é que eles não faziam cera. Isso juro eu! Entendo que o empregado deve ser bem pago, ter sua comida à farta, o seu gole de vinho, mas que deve fazer serviço que se veja, ou então, rua! Rua, que não falta por aí quem queira ganhar dinheiro! Autorize-me a olhar por eles e verá! (AZEVEDO, 1995, p. 53) O exame, como técnica de distinção entre os hábeis e os inaptos, foi habilmente (^3) Bertoleza acreditou até as vésperas de sua morte que fora alforriada por seu amante, João Romão, quando, na realidade continuava a ser escrava. (^4) É importante ressaltar que a disciplina, deve ser entendida como um padrão que se desejava impor, de adestramento do corpo ao trabalho continuado mesmo fora de instituições fechadas. Faz parte do contexto maior do desenvolvimento capitalista, da “educação para o trabalho”, que aliás encontra suas particularidades com o “jeitinho brasileiro”.

Tal como informa Chalhoub (1999) não havia um diferenciação entre o pobre, o vagabundo e o delinquente e por isso o pobre era sempre suspeito, alguém a ser vigiado. Fica evidente um controle, muitas vezes seguido de coação. Em O cortiço, o dono da estalagem João Romão procurava não proibir os festejos de seus condôminos. Contudo, havia uma vigilância para que as folias e desavenças dos moradores não ultrapassassem os limites de uma sociabilidade relativamente amistosa para um cortiço. Miranda, o vizinho do cortiço São Romão, ficava por vezes observando o que se passava no cortiço, uma vez que a forma como fora projetada a arquitetura do local permitia uma observação do que lá ocorria. Quando os hábitos dos moradores pobres do São Romão o incomodavam para além dos limites do aceitável, não hesitava em intervir: “O Miranda apareceu furioso à janela [...]

  • “Vão gritar para o inferno, com um milhão de raios” berrou ele, ameaçando para baixo.
  • Isso já é demais! “Se não se calam, vou daqui direto chamar a polícia”. Súcia de brutos!”(AZEVEDO, 1995 p. 70) Resistência do vagabundo Na sociedade moderna, percebemos a coexistência entre o sujeito altamente disciplinado, sempre pronto para render mais em suas funções sociais e o seu antípoda: o vadio. O vadio é compreendido como aquele sujeito que não exerce um oficio ou função constante. Em O Cortiço , temos uma personagem central no que chamaríamos de rotas alternativas, ou de fuga contra a disciplina imposta: Rita Baiana. Esta foi descrita por suas companheiras de moradia e de ofício, da seguinte forma: “Aquela não endireita mais!...Cada vez fica mais assanhada!... Parece que tem fogo no rabo! Pode haver o serviço que houver, aparecendo pagode, vai tudo pro lado!”( AZEVEDO, 1995 p. 44) Rita não se caracteriza em uma das mais célebres construções da pobreza, a do pobre laborioso, aquele que deseja trabalhar, mas não consegue emprego. Ainda assim não é má criatura... Tirante o defeito da vadiagem...
  • Bom coração tem ela até demais, que não guarda um vintém pro dia de amanhã. Parece que o dinheiro lhe faz comichão no

corpo!

  • Depois é que são elas” ... O João Romão já não lhe fia! Pois olhe que a Rita lhe tem enchido bem as mãos; quando ela tem dinheiro é porque gasta mesmo! (AZEVEDO, 1995 p. 45.) Rita Baiana, nunca introjetara o “espírito do capitalismo”, por assim dizer, jamais deixava de divertir-se ao invés de trabalhar. E sempre que recebia algum dinheiro, seja de algum amante, seja de algum serviço informal como a lavagem de roupas, gastava-lhe logo. A personagem só trabalhava quando estava sem condições materiais de sobrevivência. Por isso, o uso de suas forças seguiam um ritmo não orquestrado pela lógica produtivista da disciplina, mas pela vadiagem convicta. No trecho abaixo, temos uma amostra da percepção que os moradores do cortiço tinham a respeito de Rita Baiana: “- A Rita Baiana? Sei lá! Faz amanhã oito dias que ela arribou! A Leocádia explicou logo que a mulata estava com certeza de pândega com o Firmo. “(AZEVEDO, 1995, p. 44). Entre as práticas que modificam os códigos e normas da classe dominante, produzindo outro modo de fazer, de falar, consumir etc, constituindo o que Certeau (2011) denominou de resistência moral, há uma economia do “dom”, onde a generosidade faz um contraponto à lógica acumulativa, produtivista e individualista. Do mesmo modo, a perda que era voluntária em uma economia do dom se transforma em transgressão na economia do lucro: aparece aí como excesso (desperdício), contestação (a rejeição do lucro) ou delito (atentado contra propriedade). (CERTEAU, 2011, p. 84). Diferentemente do pobre, que para Rufino dos Santos (2000) “se vira” através de empregos informais, ou atividades esporádicas quando não possui emprego fixo, o miserável é conceituado como o indivíduo que não é capaz de suprir suas necessidades por meio de seu trabalho, vivendo assim da caridade alheia ou do auxílio governamental. Dada a ausência de um Estado que investisse em assistência, o socorro possível vinha da sociedade civil. Em O Cortiço observamos o exemplo de Libório: “Um tipão, o velho Libório! Ocupava o pior canto do cortiço e andava sempre a fariscar os sobejos alheios, filando aqui, filando ali, pedindo a um e outro, como um mendigo, chorando misérias eternamente [...]” (AZEVEDO, 1995, p. 71).

nações nagoa e guaiamu. (DIAS, 2001, p. 19) Observemos a homologia entre a ficção e a realidade no texto literário abaixo: No melhor da luta, ouviu-se na rua um coro de vozes que se aproximava das bandas do Cabeça de Gato. Era o canto de guerra dos capoeiras do outro cortiço, que vinham dar batalha aos Carapicus, para vingar com sangue a morte de Firmo, seu chefe malta. (AZEVEDO, 1995. p. 178) Em O Cortiço, está exposta situação semelhante retratada por Dias (2001). Uma vez que a população pobre convivia em um espaço comum no qual habitavam imigrantes portugueses, nordestinos e negros livres, era comum que ocorresse em alguma circunstância, conflitos por questões culturais ou desavenças corriqueiras que emergiam independentemente da etnia de cada grupo, como, por exemplo, as rugas por disputa pelo parceiro amoroso. Fora esse o caso das personagens Firmo, mulato praticante da capoeira e Jerônimo, imigrante português, que disputavam a navalhadas, o amor de Rita Baiana. Em O cortiço, a palavra capoeira tornou-se adjetivo. Era usada para classificar o sujeito que não apenas praticava capoeira, mas que impunha temor aos demais, cuja intrepidez estava sempre acompanhada de uma navalha no bolso e da disposição para usá-la. Em O Cortiço, há episódios que alicerçam a visão destemida do capoeira, tal como a luta entre Jerônimo e Firmo, na qual, ao final, surge a arma branca. “E então o mulato, com o rosto banhado se sangue, refilando as presas e espumando de cólera, erguera o braço direito onde se viu cintilar a lâmina de uma navalha”. (AZEVEDO,

  1. p. 121) Essa imagem que se popularizou, “do capoeira”, durante o final dos oitocentos, que aparece na obra de Azevedo, traz correspondência histórica verificada em autores como: Caio Prado Jr (1957), Luiz Sergio Dias ( 2001) e CHALHOUB(1996). É o que vemos no discurso proferido na Câmara dos Deputados, em setembro de 1887: (...) Não há hoje desordeiro, faquista, perverso, criminoso por ferimentos ou assassino, que não seja um capoeira ; é um modo de dizer, é uma locução que se tomou vulgar e que está na linguagem do povo, direi mesmo da polícia. Do mesmo

modo se diz que ele deu uma navalhada ou estava com uma navalha; embora se trate de um estoque, de um canivete de mola, de um punhal, de uma faca, ou de outro instrumento cortante (ANAIS, sessão e 5 set. 1887, p. 20). É possível observar na ilustração do jornal, A Lamparina , a forma como os setores letrados enxergavam a figura do capoeira. Homens que executavam com destreza movimentos rápidos, e bem coordenados, (a capoeira enquanto dança), mas voltados para a defesa e o ataque, este último incrementado com a arma branca. A preocupação das autoridades com a potencial desordem dos “capoeiras” ficou registrada por meio do Código Penal de 1890 que criminalizou a prática da capoeira. Para Dias (2001), esse processo de criminalização pode ser compreendido à luz da ideologia que caracterizava os praticantes da referida atividade como vagabundos e subversivos. Esse tipo de generalização era disseminada até mesmo nos ciclos intelectuais, tal é o exemplo de Caio Prado Jr: Nas cidades, os vadios são mais perigosos e nocivos, pois não encontram, como no campo, a larga hospitalidade que lá se pratica, nem chefes sertanejos prontos a empregarem sua belicosidade. No Rio de Janeiro era perigoso transitar só e desarmado em lugares ermos, até em pleno dia. O primeiro intendente de polícia da cidade, nomeado quando a Corte se transferiu para ela, Paulo Fernandes, tomara enérgicas medidas contra tais elementos. Mas o mal se perpetuará, e só na República, ninguém o ignora, serão os famosos “capoeiras”, sucessores dos vadios da colônia, eliminados da capital. (PRADO JR, 1957, p. 282, grifo nosso.) No texto de Caio Prado, notamos que a concepção que se tinha dos capoeiras imbricava os construtos: perigosos e nocivos, os quais seriam, em realidade, o vadio da colônia com outra roupagem. Denota-se nas entrelinhas a associação entre classes pobres e classes perigosas. Classes estas que deveriam ser afastadas do convívio da elite. A marginalização do capoeira configurou-se como uma das estratégias de criminalização da pobreza. No item seguinte, abordaremos a ideologia de culpabilização da vítima imersa no contexto das campanhas a favor do expurgo dos cortiços no Rio de Janeiro. Cortiço: a morada do pobre

precariedade das habitações populares, estas se tornaram pauta fixa nas questões de planejamento publico. Barata Ribeiro, então prefeito da capital federal, quando da defesa de sua tese de doutorado, cujo título era: Quais as medidas sanitárias que devem ser aconselhadas para impedir o desenvolvimento e propagação da febre amarela na cidade do Rio de Janeiro?, defendeu o extermínio dos cortiços cariocas. Alimenta-os a lubricidade do vício, que se ostenta impudonorosa (sic), ferindo os olhos e os ouvidos da sociedade séria que deles se aproxima, e a miséria andrajosa e repugnante, que faz da ociosidade um trono, e por um contraste filhos das circunstâncias peculiares à vida das grandes cidades, ao lado [...] do vício e do lodaçal impuro do aviltamento moral, está também o leito do trabalhador honesto, que respira à noite a atmosfera deletéria deste esterquilínio de fezes! (BARATA RIBEIRO apud CHALHOUB, 1996, p. 51) Mais adiante, disserta acerca dos moradores dos cortiços: No cortiço acha-se de tudo: o mendigo que atravessa as ruas como um monturo ambulante; a meretriz impudica, que se compraz em degradar a alma, os tipos de todos os vícios e até [...] o representante do trabalho [...] Compreende-se desde logo o papel que representam na insalubridade da cidade estas habitações, quando nos lembramos que além de todas as funções orgânicas do seres que povoam, no cortiço lava-se, engoma-se, cozinha-se criam-se aves , etc. (BARATA RIBEIRO apud CHALHOUB, 1996, p. 51) A ojeriza de Barata Ribeiro, formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, condizia com o coro entoado pela imprensa e por seus colegas da área da saúde. Essa atmosfera foi captada por Aluízio Azevedo. Na trama que envolve as personagens das classes populares e da elite econômica e intelectual, fica patente a tensão entre os extremos, onde os dominantes decidem não mais tolerar os dominados. Em O cortiço, o personagem João Romão que passara grande parte da sua existência vivendo em condições precárias e parecia estar adaptado às mesmas, percebe-se enojado com o cenário que sempre lhe fora habitual. A aversão surgiu quando Romão passou a barganhar uma ascensão social e a aceitação da burguesia. Compor a nova classe significava comungar de seus valores e ideologias. No trecho abaixo, flagramos a

“epifania” de João Romão: À noite, quando se esticou na cama, ao lado de Bertoleza, para dormir, não pôde conciliar o sono. Por toda a miséria daquele quarto sórdido; pelas paredes imundas, pelo chão enlameado de poeira e sebo, nos tetos funebrimente velados pelas teias de aranha, estrelavam pontos luminosos em grã-cruzes, em hábitos e veneras de toda a ordem e espécie. E em volta de seu espírito, pela primeira vez alucinado, um turbilhão de grandezas, que ele mal conhecia e mal podia imaginar[...] ondas de seda, veludo e pérolas[...] ( AZEVEDO, 1995. p. 111) O texto acima revela a dialética entre estigma social e distinção. Estando o personagem diante do estigma da pobreza, por um lado, e do desejo de “tornar-se alguém” na “boa sociedade”, por outro, vamos ao encontro da teoria de Goffman, segundo a qual: “A sociedade está organizada tendo por base o princípio de que qualquer indivíduo que possua certas características sociais tem o direito moral de esperar que os outros o valorizem e o tratem de maneira adequada.” (GOFFMAN, 1959, p. 21) Goffman (1959) discorre a respeito de uma exigência moral que o ator social reivindica a partir do momento que sustenta pertencer a um determinado papel social, um lugar social. Outra necessidade de simulação que perpassa o cotidiano do pobre é a necessidade de transmitir uma imagem socialmente desejável. Em O Cortiço, João Romão deseja converter o capital econômico em capital simbólico. Tendo obtido uma considerável quantia em dinheiro, percebe que poderá comprar uma posição de prestígio entre os burgueses, diferenciando-se assim dos pobres que habitavam o cortiço. Os pobres, moradores dos cortiços, eram estigmatizados, responsabilizados pelas doenças que aplacavam a cidade do Rio de Janeiro, tal como a febre amarela, como se o pobre escolhesse não ter condições adequadas de higiene. Nesse sentido, é interessante observar a fala de João Vicente Torres Homem 8 ao se referir aos imigrantes portugueses residentes em cortiços: [...] os portugueses da baixa classe, que aqui chegam aos milhares no último grau de miséria, morrem em grande quantidade [...] devido à falta absoluta de cuidados higiênicos. Alguns privam-se destes cuidados por que a isso os força o minguado salário que ganham; outros porém vivem (^8) Homem de grande influência no cenário político, tendo sido agraciado com os títulos de Dignatário da Ordem da Rosa, e de Barão de Torres Homem, este, por carta-de-mercê de 14 de julho de 1887.

A semelhança entre ambos se encontra principalmente por meio da inclusão perversa de seus moradores no chamado submundo: prostituição, violência e subempregos, bem como na ausência de uma estrutura urbana adequada, entre outros aspectos. Além dos problemas citados, sofrem com o preconceito dos que enxergam no pobre um marginal, e esse estigma se torna manifesto nas práticas policiais em relação aos moradores. Não se entra legalmente em um cortiço, se invade; sendo os maus tratos para com a população periférica recorrentes. Em O Cortiço, Aluísio descreve uma cena na qual ocorre um conflito entre moradores. O dono, João Romão, manda chamar a polícia, cuja presença causava pavor aos residentes dos cortiços. Não entra a polícia! Não deixa entrar! Agüenta! Agüenta!

  • Não entra! Não entra! Repetiu a multidão em coro. E todo o cortiço ferveu que nem panela ao fogo. [...] Não entra! Não entra! E berros atroadores respondiam às pranchadas, que lá fora se repetiam ferozes. A polícia era o grande terror daquela gente, por que, sempre que penetrava em qualquer estalagem, havia grande estrupício: à capa de evitar e punir o jogo e a bebedeira, os urbanos invadiam os quartos, quebravam o que lá estava, punham tudo em polvorosa. Era uma questão de ódio velho. (AZEVEDO,
  1. p. 122-123). O receio que os moradores tinham das autoridades policiais era justificado pela experiência sempre traumática em sua relação com os profissionais da área de segurança, uma vez que não havia respeito entre as partes. A polícia não adentrava nesses territórios para proteger a população pobre, mas para puni-la, mantendo-a sob constante suspeita. Trata-se de um exemplo clássico de criminalização da pobreza. O pobre aparece não como aquele que deve ser protegido, mas como aquele de quem se deve ser protegido. Uma vez que a ação da polícia era percebida pelos moradores não como medidas de proteção, mas como punição e perseguição, perguntamos: como era feita a justiça entre os moradores? Através da justiça popular, que não ocorre por meio de dispositivos legais, mas de táticas que a subvertem em busca do atendimento imediato das necessidades dos populares. Como tática, adotamos o conceito de Michel de Certeau, o qual a define como “um cálculo que não pode contar com um próprio, nem, portanto, com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática só tem por

lugar o outro.” (CERTEAU, 2011, p. 45). A tática só encontra sua “materialidade” na presença do outro, com quem se deseja produzir uma ação baseada geralmente no improviso para subverter engenhosamente uma situação. Um dos momentos em que isso ocorreu em O Cortiço foi quando da gravidez de Florinda, filha de Marciana. Esta engravidou de um funcionário da venda de João Romão, conhecido como Domingos, o qual não desejava assumir matrimônio com Florinda. Revoltada com o ocorrido, Marciana, amparada de outras mulheres do cortiço, foram cobrar a “reparação” do capital simbólico da honra de sua filha. [...] Marciana sem largar a filha, invadira a casa de João Romão e perseguia Domingos que preparava já sua trouxa.

  • Então? Perguntou- lhe. Que tenciona fazer? Ele não deu resposta.
  • Vamos, vamos, fale! Desembuche!
  • Ora lixe-se! Resmungou o caixeiro; agora muito vermelho de cólera.
  • Lixe-se, não!... Mais devagar com o andor! Você há de casar: ela é menor! Domingos soltou uma palavrada, que enfureceu a velha.
  • Ah, sim? Bradou esta. Pois veremos! (AZEVEDO, 1995, p.

A negativa do pai da criança de Florinda em relação ao casamento acirrou os ânimos já inflamados pelo simples fato do defloramento da adolescente; o pouco caso proveniente de Domingos feriu os brios das mulheres que se identificaram com a figura materna de Marciana. Castigar o deflorador configurava-se no ato dar o exemplo, passar a mensagem de que sua honra seria defendida por bem ou por mal.

  • Mas onde está esse ordinário?
  • Saia o canalha!
  • Não deixa sair! [...] Pois então o homem que case! Responderam.
  • Ou nos dê cá o patife! Fugir é que não! Não foge! Não deixa fugir!
  • Ninguém se arrede! (AZEVEDO, 1995, p. 100) A ameaça era de linchamento, mas apenas não foi levada a cabo porque o patrão de Domingos, João Romão, comprometeu-se a pagar o sustento da criança. Promessa nunca comprida, o que conduziu a jovem Florinda à prostituição e a uma miséria mais cruel do que a pobreza em que outrora vivera, pois não havia mais o amparo da família,

Marciana, que, uns negros por compaixão haviam arrastado para dentro da venda e disparatou: __ Ora bolas! Para que diabos me metem em casa este estupor?! Gosto de ver tais caridades com o que é dos outros! Isto aqui não é coito de vagabundos! (AZEVEDO, 1995, p.

 Em relação a Libório, velho e pedinte: Sai tu do caminho, fona de uma figa! Não sei que diabo fica fazendo cá no mundo um caco velho como este, que já não presta para nada! (AZEVEDO, 1995, p. 115) Em O Cortiço, a população pobre é sempre alvo de vigilâncias e coerções permanentes, sendo, ao mesmo tempo, disciplinada, impelida a incorporar um ethos do trabalho. Personagens como Rita Baiana e, posteriormente, seu amante Jerônimo, tentam subverter essa lógica não se submetendo ao trabalho contínuo e à disciplina. Sevcenko (1999) expõe também as tentativas de enquadrar a pobreza ao projeto de modernização, revelando que sua tarefa foi produzir o progresso sem dele usufruir plenamente. Considerações finais O Cortiço foi o primeiro romance brasileiro a dar protagonismo a tantos personagens marginalizados pela sociedade brasileira: mendigos, trabalhadores informais, “capoeiras”^9 , prostitutas, imigrantes etc. A referida obra é um convite a atmosfera fervilhante de 1890. Quando nos deparamos com fontes produzidas oficialmente no período, os pobres surgem retratados pelas autoridades públicas tão- somente como um problema, que não possuem nome, sentimentos trajetórias que lhe relegaram a vida que possuem. É essa lacuna que a obra de Aluísio preenche. Durante o artigo, o leitor deve ter observado que comparações entre “cenas” do livro e acontecimentos históricos “reais” foram feitos à larga. Contudo, a ficção de Azevedo humaniza a pobreza. Conduz-nos ao lugar social do pobre, suas desventuras e batalhas cotidianas as quais compõem essas artes de fazer que se definem nas práticas em que não se vive como se deve, mas como se pode. (^9) Aqui a palavra surge com a dupla conotação, a de jogador de capoeira e a de marginal.

Abstract: The overall goal of this work is to produce a possible reading on the representation of the poor through the novel O Cortiço of Aluisio Azevedo. Wonders: How the poor arises from the perspective Aluisiana? Symbolic constructs that it defines and strengthens? The first chapter briefly presents the membership intellectual Aluisio Azevedo: naturalism, as well as describes the field studies. We draw a parallel between fiction and reality, through the analysis of the tenement, and compared to the historical context in which the work refers. As points of theoretical and material support for the comparative analysis of the speech prepared by the literature and discourse produced by historiographical approach, we use the reading of Marx on the compulsory inclusion of the poor in the capitalist system through discipline, and the approach of Nicholas Sevcenko on living of the poor and slum process started with the outbreak of slums in Rio. Keywords: Poverty; O Cortiço; Discipline REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARNONI, Antônio Prado. Lima Barreto : Literatura Comentada. Rio de Janeiro: Ed. Nova Cultural, 1988 AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. 36. ed. São Paulo: Ática, 1995. CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade : estudos de teoria e história literária. 2ed. São Paulo: Companhia Nacional, 1967. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 17 ed. Petrópolis: vozes, 2011. CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. 5.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006. DIAS, Luiz Sergio. Quem tem medo da capoeira ?( 1890-1904) Rio de Janeiro: Arquivo geral da cidade do Rio de Janeiro, 2001. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 17. ed. Petrópolis: Vozes,

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