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Este documento analisa o processo de fusão de duas línguas diferentes na obra 'iracema' de josé de alencar. O autor examina como alencar manipula a lingua indígena e a portuguesa em sua estrutura literária, oferecendo novas perspectivas sobre a literatura romântica brasileira. O texto também discute as ideias de tradução e criatividade em alencar e as implicações simbólicas de sua escrita.
O que você vai aprender
Tipologia: Esquemas
1 / 14
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Não perca as partes importantes!
I. Do Romantismo ao Indianismo
Na America Latina,
ao
op6sto
da
Europa,
onde foi um movimento de
abertura de fronteiras,
o Romantismo se
apresenta
como um encasula-
mento. A abertura dos
portos
e a
independencia ja
o
prognosticavam
no Brasil. Encasulamento
politico
e
literArio,
mesmo se nas
apar6ncias
e na realidade nao o tenha
sido,
mas o foi na consciencia dos
que
o faziam.
pr6prio
tema do
exilio, jA
notAvel em Claudio Manoel da
Costa,
ainda
sob a forma de
conflite,
nada mais 6
do
que
um
ref6r9o (ref6r9o por
oposigao)
do instinto
patrio,
do encurralamento. Tanto em
Gongalves
Dias,
na sua famosa
"Cangao
do Exilio,"
com a discordAncia entre o
que
acontece "1i"e "ca,"
tao bem estudada
por
Aurelio
Buarque
de
Hollanda,l
quanto
em
Gongalves
de
Magalhaes, que
se inicia h moda de Chateau-
briand,
fazendo
profissao
de fe de
"peregrino,"
mas termina a sua carreira
com o seu mais
do
que
interessante
Confederafdo
dos Tamoios.
Em ClAudio, conflito;
em
Dias, choque
e escolha dentro do
poema,
e
em
Magalhaes, choque
e escolha dentro da obra.
Nao se
admira, pois, que
a literatura
passe
a
ser,
mais do
que
antes,
forma e
expressao
do nacionalismo nascente,
e
que
dois dos
principais
Para reduzir o numero de notas,
deixamos de enviar o leitor a fonte t6das as v8zes
que julgamos
desnecessario
por
ser 6bvio (ex.: "Cangaodo Exilio," Montaigne
em "Des
Cannibales,"etc.).
A edigco
de Iracema usada foi a 12a. edicao,
revista
por
Mario
Serrano,Rio, Briguiet,
portugues
nas citag6es.
1
Territ6rioLirico (Rio, O Cruzeiro,1958).
2Cf. "Sao
poesias
de um
peregrino.",
"Lede," preficio
a
Suspiros
Porticos e
Saudades,
"Nossos ClAssicos"
(Rio, Agir,
1961), p.
temas do Romantismo
europeu aqui aportem
e recebam as c6res verde-
amarela: a descrigao
da natureza e o indianismo. Basicamente,
estes
temas se desenvolvem na
Europa
e no Brasil de maneira semelhante,
inclusive se
originam
das mesmas
fontes;
nos fins e
que
se distanciam.
Usamos de
prop6sito
o termo "descrigao
da
natureza,"
reduzindo a
complexidade
a um dos seus
aspectos.
Para n6s,
a descrigao
da natureza
era
parte
de todo um
processo
de
(re)
conhecimento em
que
o artista
procurava
tornar-se consciente dos limites
patrios,
do
que
o rodeava
mais de
perto,
da
paisagem tropical
enfim.
E o
que
e forma de devaneio
para
o
europeu, possibilidade
de evasao
(pense
agora
nos "cocotiers
absents de la
superbe Afrique,"
de
Baudelaire,
em
oposi9ao
as
palmeiras
e carnaubas de
Alencar),
e
para
n6s uma
aproxima9ao
maior do
solo,
um
desejo
de
enxergar objetivamente
o
que
nos cerca.
Corn a
objetividade
acumularam-se os nomes,
avivaram-se as cores
ja
vivas e
exagerou-se
o
pitoresco.
A descricao foi
infelizmente,
muitas vezes,
puro
exercicio esti-
listico,
extravasando-se dos
quadros
e da
fun9ao
a
que
se
propunha.
Machado de
Assis, sempre
atento,
comentava
alguns
anos
depois
da
publica9ao
de Iracema,
num
artigo publicado
em
Nova
Iorque:
"Um
poema
nao e nacional s
porque
insere nos seus versos muitos nomes
de
flores ou aves do
pais,
o
que pode
dar uma nacionalidade de
vocabuldrio
e nada mais.
Aprecia-se
a cor
local,
mas e
preciso que
a
imaginagao
lhe
de os seus
toques,
a
que
estes
sejam
naturals,
nao de acarreto."
Em Alencar,
no entanto,
interessante
processo
se desenvolve, apontado
ja
breve e casualmente
por
Gilberto
Freyre.
Fala-nos
ele dos "indios
quase
vegetais
na sua natureza."5 Continuando a sua deixa,
diriamos
que
nao e
o homem
que empresta qualidades
humanas a natureza,
mas a natureza
que
serve
para pintar
o homem. Lembrando-nos
por
certo o inusitado
retrato
que
Cesario Verde
pinta
com
vegetais
em
"Num Bairro
Moderno."
Quando Jose
de Alencar
deseja
tragar
o
perfil
de Iracema,
no
capitulo
recorre a 5
comparagoes
sucessivas:
2: "[ ... ] tinha
os cabelos mais
negros que
a asa da
grauna
e mais
longos
que
o seu talhe de
palmeira."
4: "0 favo da
jati
nao era doce como o seu sorriso;
nem a baunilha rescen-
dia no
bosque
como seu halito
perfumado."
5: "Mais
rapida
era
que
a ema
selvagem
Les Fleursdu
Mal
(Paris, Jose
Corti,1950), p.
CrlticaLiterdria (Rio, Jackson,
p.
149 (o
grifo
e nosso).
Reinterpretando
Jose
de Alencar
(Rio,
Ministerioda Educagaoe Cultura,1955),
p.
6
"Jupira,"
Historia e Tradicoes da Provincia de Minas Gerais (Rio, Garnier, s/d),
p.
10
Formafao
da Literatura Brasileira,
2 vol. (Sao
Paulo, Martins, 1959), I, p.
1 "Alencar e a
lingua
brasileira,"
Obras
Completas
de Jos
de Alencar (Rio, Jose
Olympio,
1951),
vol. X, pp.
11-88.
t
de termos
indigenas
acumulados uns s6bre os outros,"
e cor isso
quebra-
12
Pourun nouveauroman (Paris,Gallimard,1963), p.
"IntrodugaoGeral,"
Obra
Completa
de Jose
de Alencar (Rio, Aguilar,
vol. I, pp.
Silviano Santiago
quando
se
juntam
na
forma9ao
das
palavras,
ao
passo que
na
portuguesa,
flexiva,
sao meros condutores de "conceitos." Do
tupi-guarani
ao
portu-
gues,
entao, passamos
do vocabulo
a
perifrase.
Dos
poucos
criticos a abordar e chamar atencao
para
este
problema
e
processo
em Alencar e o sr. Cavalcanti
Proenga que, apoiando-se
em
opini6es
de
Cardim,
nao vai muito alem do
mero constatar,
chegando
a
conclusao bastante
geral, para logo depois
abandonar o assunto.
que importa
estudar sao os efeitos
que
Alencar retira do seu conheci-
mento da
lingua indigena
e ainda os derivados da sua consciencia-este-
tica do
processo.
Inicialmente,
se
desejarmos
retragar
a genese deste entroncamento
em
Alencar,
teriamos de falar do seu ideal
(e
como todo ideal
inatingivel)
de "traduzir em sua
lingua
as ideias,
embora rudes e
grosseiras,
dos in-
dios,"
e na tradugao necessario e
que
"a
lingua
civilizada
se molde
quanto
possa
a
singeleza primitiva
da
lingua
barbara."
(p.
Seguindo
o seu
proprio
conselho,
foi ate a
lingua
barbara,
e de la trouxe uma nova
visao,
um n6vo
"approach" para
o
problema
lingiilstico
no romance in-
dianista. "Os assuntos
pouco
interessavam a sua musa fertil;
a
linguagem
era
tudo."21-adianta-nos Araripe
Junior.
Criaria
palavras, expressoes,
perifrases,
em
portugues, segundo
os moldes do
tupi-guarani.
Em outros
termos, aplicaria
o metodo da
criagao
de
palavras
duma
lingua agluti-
nante numa
lingua
flexiva.
Isso estA bastante claro,
bem
exemplificado
e
explicado, longamente,
na "Carta ao Dr.
Jaguaribe":
"Ocorre-meum
exemplo
tirado deste livro.
Guia,
chamavam os
indigenas,
senhor do caminho,
pyguara.
A beleza da
expressaoselvagem
em sua
tradugao
literal e
etimologica,
me
parece
bem saliente. Nao dizem sabedor,
embora
tivessem termo
pr6prio,
coaub, porque
essa frase nao
exprimiria
a
energia
de
seu
pensamento.
caminho no estado
selvagem
nao existe;
nao e coisa de
saber;
faz-se na ocasiao da marchaatraves da florestaou do
campo,
e em certa
direcao; aquele que
o tem e 6 da,
6 realmente senhor do caminho."
(p.
Assim,
no
capitulo
o
guerreiro Cauby
e
apresentado
como "senhor
do caminho,"
e nao como
"guia."
Reside
ai,
no
entanto, apenas
uma das
faces do
problema,
a mais 6bvia e discutida
(cujo
exagero
nos condu-
ziria a falsidade da "fala de
Tarza"), problema
bastante mais
complexo
e interessante no reverso da moeda.
Gostaria de referir-me em
especial
aos momentos em
que
Alencar nao
traduziu o vocabulo
indigena,
e o usou
tranqiiilamente
em
portugues,
acrescentando-lhe,
no seu
aspecto
exterior,
audivel,
um valor
encantat6rio,
de
magia,
de
evocacao,
e
oferecendo,
no seu
aspecto significativo,
mul-
20
Op.
cit., pp.
56-57.
21
op. cit., p.
Silviano
Santiago
tiplas
ressonancias
que
deveriam
ser adivinhadas
pelo
leitor. Cor isso,
engrandeceu
a sua obra e mostrou
pleno
o esf6rgo
do criador. Pelo
menos sob
quatro aspectos.
Enriqueceu
a
lingua portuguesa
de novos
vocabulos, alguns que
seriam
aceitos,
e outros
repudiados.
Como coloca bem Gilberto
Freyre:
"Em
Alencar,
a
lingua portuguesa,
sem se
ter tornado a
lingua
de um
grande
escritor,
como
que adquiriu
o
que
os
biologos
chamam de valor
hibrido: conservando-se
portuguesa,
abrasileirou-se,
ora arredondando-se
em
palavras
mais do
que
latinamente
doces,
ora
parecendo lingua
menos
latina
que
barbara com
zz, yy
e
ww,
vindos
do
grego,
do
tupi,
do
nag
e ate do
ingles."
problemas graves que
assaltam
a
qualquer
romancista: dar nomes aos seres e
lugares.
Em muito Alencar
pode
ter
pecado,
e
pecou,
mas nisso
sempre
acertou,
dando aos seus
per-
sonagens
nao s6 a
"particularisation
of
character,"
de
que
fala Ian
Watt,
mas tambem
carregando-os
propositadamente
de valor simb6lico,
como
veremos.
Conseguiu,
ainda,
criar t6da uma
alegoria
ao usar conscientemente
alguns
desses vocabulos,
sem
que
ficasse ofensiva ao
bom-g6sto, pois,
mesmo
para
um leitor brasileiro
cultivado,
os simbolos nao estao evidentes
demais,
antes
requerem que sejam
decifrados
(para
usar um vocibulo
caro a
Mallarme).
lingua portuguesa,
criou estas ilhas condensadas e cheias
de
significado, que
lembram as
experiencias
mais ousadas de autores
anglo-saxoes,
ou mesmo de um Guimaraes Rosa entre n6s. Criando e
usando
palavras
como
"Moacyr,"
em
lugar
da
perifrase
"filho do sofri-
mento,"
dando-nos a chave nas suas "Notas"
(Joyce
escreveu num
tempo
em
que
se confiava mais na
argucia
e
paciencia
do
critico),
vemos
que
Alencar nao esta
longe
da
palavra-mala,
ou mesmo,
num certo sentido,
do
ideograma poundiano,
visto
que para
este a literatura e "dichten: con-
densare."
Tudo isso nao
parecera
estranho a
quem
leu cuidadosamente a bio-
grafia que Araripe Junior
tra9ou do autor
de Iracema.
Ali,
lembra-se o
critico: "Recordo-me de ter ouvido um dia
Jose
de
Alencar
que
estreava
no mundo literaria. gsto
pela
charo
lo
go, pela
divisao
artificial
da
palavra portuguesa
em semantemas
que exprimem
signifi-
cado,
o
acompanhava
desde
crianca.
Na feitura de Iracema,
transferiu-o
para
outra
lingua
onde a charada nao e artificio. A charada foi-lhe reve-
22
Op. Cit.,p.
23
The rise
of
the novel
(Berkeley, University
of California Press,
1962), p.
24
ABC
of Reading
(New York,
New Directions, 1960), p.
25
Op. cit., p.
62 Luso-Brazilian Review
dos amantes
que,
durante as mares vivas,
"vivem nas ansias
sucessivas;"
nas mares mortas,
o mar "menos a conhece," e
portanto
"mare de sau-
dades lhe
parece."
Nao e o mar
que
"senhoreia" a
jovem
Iracema
(de
ira-mel e tembe-
labios),
mas
Martim,
trazido
pelo
mar,
e e curioso como Alencar foi
pre-
cavido na escolha do seu
nome,
e como nos da a chave exata nas suas
"Notas." Ali se
pode
ler: "Da
origem
latina de
seu
nome, procedente
de
Marte,
deduz o
estrangeiro
a
significagao que
Ihe da."
(p.
163), pois
havia
dito a Araken
que
o seu nome na
lingua
dele
significava
"filho de
guer-
reiro"
(cap. III).
Simbolismo
que ja aparece
nos Lusiadas
(possivel
fonte
para Alencar), quando
Tetis discorrendo sobre os
governadores
e
os her6is da India,
ao referir-se a Martim Afonso de Souza, cujo passado
nas costas do Brasil
ninguem ignora, engenhosamente
sai-se com estes
versos:
"Este sera Martinho, que
de Marte
nome tern co'as obras derivado;
Tanto em armasilustre em Toda
parte,
Quanto
em conselho sabio e bem cuidado."
Martim, Marte, representa
em Iracema o
povo portugues,
"a
que
Marte
tanto
ajuda,"
e
que
vai
conquistando
os mares,
as
terras,
os
povos.
Licito, pois,
era
esperar que
Camoes,
no "Concilio dos Deuses,"
fizesse
com
que
Marte fosse o
protetor
da
gente
lusa,
ajuda que
sera
amplificada
com a
participagao
de
Venus,
deusa do amor.35 Marte e Venus,
a favor,
combatem Baco, protetor
dos
gentios,
nesta verdadeira
guerra
entre os
colonizadores e os
barbaros. Marte e Venus,
valentia e amor,
a alma
por-
tuguesa.
E nao sao tambem essas
qualidades
as de Martim? se nao,
31
Ibid.,
estrofe III.
32
1ste
cuidado,
e mais a
preocupagao
simbolica, ja transpareciam
em
O
Guarani
(Sao Paulo,Melhoramentos,s/d,
onde Peri alterao nome de Cecilia
paraCecy (pp.
pois
este ultimo,
informa-nos Alencar,
"e um verboda
lingua guaranique
significamagoar,
doer."
(p.
Eis um trechodo
dialogo:
"-Mas, entao,
disse a meninacor
alguma
curiosidade,
se tu sabes o meu nome,
porque
naoo dizes
sempre?
-Porque Cecy
e o nome
que
Peritemdentroda alma.
-Ah! e umnomede tua
lingua?
-Sim.
que quer
dizer?
que
Peri sente."
33
Os Lusiadas, X, 63-67,
em
especial
34
Ibid., I,
35
Ibid.,I,
64 Luso-Brazilian Review
vejamos
como o romancista o introduz: " moro
guerreiro aprendeu
na
religiao
de sua mae,
onde a mulher 6 simbolo de terura e amor."
(cap.
Assim nos 6
apresentado
o mo,o:
guerreiro por
um lado,
terno e
amoroso
por
outro,
ainda
que
isto tenha sido
p6sto
h
prova
um minuto
antes,
cor a flechada de Iracema. Ferido,
nao
revida; desconsiderado,
perdoa
e
ama;
amor
a primeira
vista, "coup
de
foudre," romAntico,
fulmi-
nante e etero.
0 recurso ao "licor" (atras
o
mencionAvamos),
tAo
repetido
e tdo a
g6sto
dos
romrnticos, adquire aqui
nova
latitude,
abandonando
por
in-
stante o
apenas lugar-comum,
o abre-te s6samos dos
imbr6glios. Expli-
quemo-nos.
Dentro
da visao
"lusotropicalista" (Gilberto Freyre)
da
civilizagao brasileira,
seria
impr6prio
fazer cor
que
Martim se
apresen-
tasse como
profanador
da
religiao indigena,
ou mesmo da mulher. Ira-
cema, comega
a ficar claro desde o
capitulo
"guarda
o
segredo
da
jurema,"
e como tal deve
quedar-se virgem. Qualquer
ato de viol6ncia
contra o seu
corpo,
redunda numa ofensa contra os
tabajaras,
e
por oposi-
9ao desprestigio
de Martim, "o homem cordial" de
S6rgio
Buarque
de
Holanda,
"avant la lettre." "lle nao deixarAo rasto de
desgraca
na cabana
hospedeira." (cap.
XV)-decide-se acordado,
na noite da sua
partida.
Para ser
pecador
e se conservar ao mesmo
tempo
inocente,
era
portanto
necess6rio
que
a sua lucidez f6sse
ofuscada, que
o caminho a
seguir,
a
partir
de entao,
Ihe f6sse ditado nao
pelo
livre-arbitrio, pela
razao,
mas
pelos inexplicAveis
meandros do sono/sonho. E 61e
quem pede
a Iracema
"o vinho de
Tupa"
(ela
lhe oferecera
antes, cap.
Sob o efeito da
droga, pode expandir-se,
dar vasao aos seus
desejos;
e
aparecem
duas
conclus6es reveladoras na
b6ca do romancista, uma
logo
em
seguida
da
outra,
partes que
sao da mesma frase: "o
g6zo
era vida," "o mal era
sonho
e ilusao."
(cap.
XV)-o julgamento
e o
perdao.
Na manha
seguinte,
as
dguas
banham o
"corpo
casto da recente
esp6sa." (cap.
viol6n-
cia nao f6ra cometida,
pelo
menos
licidamente,
mas a uniao se realizou.
Mistura de
ragas,
ausencia de
preconceito.
portugu6s,
ao contrArio
do
anglo-saxao,
nao havia trazido a
esp6sa para
o N6vo Mundo.
partir
de entao
hA no livro um
significativo
intercAmbio
de
valores,
valores de civilizagao.
E Martim
que,
"tendo adotado a
pAtria
da
esp6sa
e do
amigo," (cap.
passa pela
cerim6nia da
pintura guerreira,
e
recebe mesmo um nome de batismo, Coatyabo (cap.
o
que
sofreu
a
a9io
da
pintura,
16-se nas "Notas." Se brasileiriza,
se
tropicaliza.
Em
86
Processo de abrasileiramentotamb6m existe no romance de Aluizio de Azevedo,
Corti/o
(Rio, Briguet,
nao
pela religiao
cat6lica,
mas influenciado
pelos
habitos,
costumese sensualismodo mulato. Nao maiscontato
entre
portugues
e indio,
masentre
portugu8s
e
negro
(ou mulato).O personagem-chave
Jer8nimo,que logo
no
capitulo
enfeitigado pela
mdsicae dancabrasileirasda mulataRita. E acom-
Silviano Santiago
filho;
do
desencontro,
o sofrimento. Ou como o
quer
AfrAnio
Peixoto,
mais
patriota:
"Simbolo
desses
primeiros
brasileiros,
os mamelucos,
mAr-
tires da civilizagao,
que
atraigoaram
a
raga
aut6ctona,
da
qual jA
nao
eram,
para
serem maltratados
pela
raga
invasora,
a
qual
ainda nao
per-
tenciam."
V. Dura lex
Iracema e,
pois,
como
qualquer
obra
aleg6rica,
um livro
que
oferece
ao leitor dois niveis de leitura.
Suporta
uma
primeira
leitura, corrida,
da
casca
para
fora,
onde s6 se
apreende
o
extero,
a
imagem simples
e
inge-
nua,
o amor
de um
portugues por
uma india,
nos
primordios
do
Brasil,
leitura feita
magnificamente por
Machado de Assis. Tambem,
caso
queira
o leitor
aprofundar-se,
ai encontrara diferente material: a
alegoria
do nascimento do
Brasil,
da civilizagao brasileira,
dos contatos entre
portugueses
e
indios, arquitetada
cuidadosamente e carinhosamente
pelo
autor,
atraves de todo um trabalho na
linguagem.
Disso
talvez, por
ricochete,
advenha o defeito maior do livro,
e a critica
maior
que
Ihe fazemos. Por
querer
sustentar estes dois niveis de leitura
durante todo o
tempo,
Iracema
passa pela superficialidade
no tratamento
psicol6gico
dos
personagens. Ja
Lucia
Miguel-Pereira,
aguda
leitora,
havia assinalado
que
"o carater simbl6ico
emprestado
aos her6is-aos dos
livros indianistas,
os mais
importantes-como que
os desumanizam."41 E
mesmo Lins do
Rego,
com
intui9ao
de criador,
num
rapido panorama
advertia
que
"Alencar nos dera uma
alegoria
imensa,
e n6s
precisavamos
de
pesquisadores
de alma humana."42 Os
personagens
de Iracema sao
apresentados pelo
exterior,
e o autor nunca
quis
se intrometer corn o
intimo de Iracema ou de Martim.
(Gongalves
Dias,
no
poema "I-Juca
Pirama," alcanga
mais nuances de sentimentos do
que
Alencar no seu
s
Op.
cit., p.
9
Op. cit., pp.
74-86.
40
Nao se trata de
julgar
se falsa ou verdadeira tal tese. Problema bastante com-
plexo que
levou os nossos literatos aos mais desencontrados julgamentos.
Machado
de Assis: "A certo
que
a civilizagao
brasileira nao esta
ligada
ao elemento indiano,
nem dele recebeu influxo
algum;
e isso basta
para
nao
ir buscar entre as tribus ven-
cidas os titulos da nossa
personalidade
literaria." (Ibid., p.
136).
Na
decada
1920-30,
encontramos duas atitudes
opostas:
a de Oswald,
Mario e outros,
defendendo o
passado
fndio da civilizacao brasileira,
e a de Graca Aranha, machadiana,
em decla-
rac6es
como esta:
" nosso
privilegio
de nao termos o
passado
de civilizag6es
abo-
rigenas
facilitarAa liberdade criadora. [... ] O
Brasil nao recebeu nenhuma heranga
estetica dos seus primitivos habitantes,
miseros
selvagens
rudimentares."
(Espirito
Moderno [Sao Paulo, Monteiro Lobato, 1925], p.
36).
41
Prosa de
ficcao (Rio, Jose Olympio,
1950), p.
42
Confergncias
no Prata (Rio, CEB, 1946), pp.
34-35.
Sildiano
Santiago
hist6rias
que
se contam "a calada da
noite, quando
a lua
[
(cap.
tanos teriam
sido. ..,
pois o indianismo
para
eles era sobretudo uma
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