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Guias e Dicas
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Alencar e a Linguagem Indígena: Um Estudo Sobre a Fusão de Línguas em 'Iracema', Esquemas de Literatura

Este documento analisa o processo de fusão de duas línguas diferentes na obra 'iracema' de josé de alencar. O autor examina como alencar manipula a lingua indígena e a portuguesa em sua estrutura literária, oferecendo novas perspectivas sobre a literatura romântica brasileira. O texto também discute as ideias de tradução e criatividade em alencar e as implicações simbólicas de sua escrita.

O que você vai aprender

  • Como Alencar manipula a lingua indígena e a portuguesa em 'Iracema'?
  • Qual é a importância da consciência de Alencar sobre o processo de fusão de línguas em sua obra?
  • Como as palavras e símbolos usados por Alencar em 'Iracema' carregam significado simbólico?
  • Qual é a importância da fusão de línguas em 'Iracema' para a compreensão da literatura romântica brasileira?
  • Quais são as ideias de tradução e criatividade presentes em 'Iracema' de Alencar?

Tipologia: Esquemas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Reginaldo85
Reginaldo85 🇧🇷

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bg1
Alegoria
e
Palavra
em
Iracema
Silviano
Santiago
I. Do Romantismo ao Indianismo
Na America Latina, ao op6sto da Europa, onde foi um movimento de
abertura de fronteiras, o Romantismo se apresenta como um encasula-
mento. A abertura dos portos e a independencia ja o prognosticavam
no Brasil. Encasulamento politico e literArio, mesmo se nas apar6ncias
e na realidade nao o tenha sido, mas o foi na consciencia dos que o faziam.
O pr6prio tema do exilio, jA
notAvel em Claudio Manoel da Costa, ainda
sob a forma de conflite, nada mais 6 do que um ref6r9o (ref6r9o por
oposigao) do instinto patrio, do encurralamento. Tanto em Gongalves
Dias, na sua famosa "Cangao do Exilio," com a discordAncia entre o que
acontece "1i"
e "ca,"
tao bem estudada por Aurelio Buarque de Hollanda,l
quanto em Gongalves de Magalhaes, que se inicia h moda de Chateau-
briand, fazendo profissao de fe de "peregrino,"2
mas termina a sua carreira
com o seu mais do que interessante A Confederafdo dos Tamoios.
Em ClAudio, conflito; em Dias, choque e escolha dentro do poema, e
em Magalhaes, choque e escolha dentro da obra.
Nao se admira, pois, que a literatura passe a ser, mais do que antes,
forma e expressao do nacionalismo nascente, e que dois dos principais
Para reduzir o numero de notas, deixamos de enviar o leitor a fonte t6das as v8zes
que julgamos
desnecessario
por ser 6bvio (ex.: "Cangao
do Exilio,"
Montaigne
em "Des
Cannibales,"
etc.). A edigco de Iracema usada foi a 12a. edicao, revista por Mario
Serrano,
Rio, Briguiet, 1936. Uniformizamos
o portugues nas citag6es.
1 Territ6rio
Lirico (Rio, O Cruzeiro,
1958).
2Cf. "Sao poesias de um peregrino.", "Lede," preficio a Suspiros Porticos e
Saudades, "Nossos ClAssicos"
(Rio, Agir, 1961), p. 88.
55
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Alegoria e

Palavra em

Iracema

Silviano

Santiago

I. Do Romantismo ao Indianismo

Na America Latina,

ao

op6sto

da

Europa,

onde foi um movimento de

abertura de fronteiras,

o Romantismo se

apresenta

como um encasula-

mento. A abertura dos

portos

e a

independencia ja

o

prognosticavam

no Brasil. Encasulamento

politico

e

literArio,

mesmo se nas

apar6ncias

e na realidade nao o tenha

sido,

mas o foi na consciencia dos

que

o faziam.

O

pr6prio

tema do

exilio, jA

notAvel em Claudio Manoel da

Costa,

ainda

sob a forma de

conflite,

nada mais 6

do

que

um

ref6r9o (ref6r9o por

oposigao)

do instinto

patrio,

do encurralamento. Tanto em

Gongalves

Dias,

na sua famosa

"Cangao

do Exilio,"

com a discordAncia entre o

que

acontece "1i"e "ca,"

tao bem estudada

por

Aurelio

Buarque

de

Hollanda,l

quanto

em

Gongalves

de

Magalhaes, que

se inicia h moda de Chateau-

briand,

fazendo

profissao

de fe de

"peregrino,"

mas termina a sua carreira

com o seu mais

do

que

interessante

A

Confederafdo

dos Tamoios.

Em ClAudio, conflito;

em

Dias, choque

e escolha dentro do

poema,

e

em

Magalhaes, choque

e escolha dentro da obra.

Nao se

admira, pois, que

a literatura

passe

a

ser,

mais do

que

antes,

forma e

expressao

do nacionalismo nascente,

e

que

dois dos

principais

Para reduzir o numero de notas,

deixamos de enviar o leitor a fonte t6das as v8zes

que julgamos

desnecessario

por

ser 6bvio (ex.: "Cangaodo Exilio," Montaigne

em "Des

Cannibales,"etc.).

A edigco

de Iracema usada foi a 12a. edicao,

revista

por

Mario

Serrano,Rio, Briguiet,

  1. Uniformizamoso

portugues

nas citag6es.

1

Territ6rioLirico (Rio, O Cruzeiro,1958).

2Cf. "Sao

poesias

de um

peregrino.",

"Lede," preficio

a

Suspiros

Porticos e

Saudades,

"Nossos ClAssicos"

(Rio, Agir,

1961), p.

temas do Romantismo

europeu aqui aportem

e recebam as c6res verde-

amarela: a descrigao

da natureza e o indianismo. Basicamente,

estes

temas se desenvolvem na

Europa

e no Brasil de maneira semelhante,

inclusive se

originam

das mesmas

fontes;

nos fins e

que

se distanciam.

Usamos de

prop6sito

o termo "descrigao

da

natureza,"

reduzindo a

complexidade

a um dos seus

aspectos.

Para n6s,

a descrigao

da natureza

era

parte

de todo um

processo

de

(re)

conhecimento em

que

o artista

procurava

tornar-se consciente dos limites

patrios,

do

que

o rodeava

mais de

perto,

da

paisagem tropical

enfim.

E o

que

e forma de devaneio

para

o

europeu, possibilidade

de evasao

(pense

agora

nos "cocotiers

absents de la

superbe Afrique,"

de

Baudelaire,

em

oposi9ao

as

palmeiras

e carnaubas de

Alencar),

e

para

n6s uma

aproxima9ao

maior do

solo,

um

desejo

de

enxergar objetivamente

o

que

nos cerca.

Corn a

objetividade

acumularam-se os nomes,

avivaram-se as cores

ja

vivas e

exagerou-se

o

pitoresco.

A descricao foi

infelizmente,

muitas vezes,

puro

exercicio esti-

listico,

extravasando-se dos

quadros

e da

fun9ao

a

que

se

propunha.

Machado de

Assis, sempre

atento,

comentava

alguns

anos

depois

da

publica9ao

de Iracema,

num

artigo publicado

em

Nova

Iorque:

"Um

poema

nao e nacional s

porque

insere nos seus versos muitos nomes

de

flores ou aves do

pais,

o

que pode

dar uma nacionalidade de

vocabuldrio

e nada mais.

Aprecia-se

a cor

local,

mas e

preciso que

a

imaginagao

lhe

de os seus

toques,

a

que

estes

sejam

naturals,

nao de acarreto."

Em Alencar,

no entanto,

interessante

processo

se desenvolve, apontado

ja

breve e casualmente

por

Gilberto

Freyre.

Fala-nos

ele dos "indios

quase

vegetais

na sua natureza."5 Continuando a sua deixa,

diriamos

que

nao e

o homem

que empresta qualidades

humanas a natureza,

mas a natureza

que

serve

para pintar

o homem. Lembrando-nos

por

certo o inusitado

retrato

que

Cesario Verde

pinta

com

vegetais

em

"Num Bairro

Moderno."

Quando Jose

de Alencar

deseja

tragar

o

perfil

de Iracema,

no

capitulo

II,

recorre a 5

comparagoes

sucessivas:

2: "[ ... ] tinha

os cabelos mais

negros que

a asa da

grauna

e mais

longos

que

o seu talhe de

palmeira."

4: "0 favo da

jati

nao era doce como o seu sorriso;

nem a baunilha rescen-

dia no

bosque

como seu halito

perfumado."

5: "Mais

rapida

era

que

a ema

selvagem

[

Les Fleursdu

Mal

(Paris, Jose

Corti,1950), p.

CrlticaLiterdria (Rio, Jackson,

p.

149 (o

grifo

e nosso).

Reinterpretando

Jose

de Alencar

(Rio,

Ministerioda Educagaoe Cultura,1955),

p.

6

"Jupira,"

Historia e Tradicoes da Provincia de Minas Gerais (Rio, Garnier, s/d),

p.

Luso-BrazilianReview

uma bandeira

politico-social,

nacionalismo. Para o

europeu,

a

fuga;

para

n6s,

a afirmacaoafinal.

Depois

da

independencia politica,

a lite-

r6ria.

E nao

importaque

os nossos Indios

sejam europeizados.

Mesmo

que

Iracemase

padega

cor sentimentoscoreilianos

(o

amor-

dever

para

cor os

tabajaras,

seus irmaos,

que

luta contra o

amor-paixao

para

cor

Martim,

amigo

dos

inimigos

da sua

raga

e

branco),

ainda

que

seja

idealizada

dantescamente,

como nova

Beatriz,

ou

personagem

de

uma

cantiga

de amor

medieval,

para

nao falar das

idealiza9oes

mais

pr6ximas

e

mais

a

mao,

da Elvire

de

Lamartinea heroina de Chatterton

-mesmo assim hAem Alencara conscienciade

que,

se

expressando

como

se

expressava,

tamb6m

expressava

o

Brasil,

buscando o ideal de escrever

"o verdadeiro

poema

nacional,

tal como o

imagino."(p.

JA

Andr

Gide afirmavacorn

seguranga:

"Dans

le domainedes sentimentsle reel ne

se

distingue pas

de

l'imaginaire."

Nao se tratou

aqui

de

julgar

os

rom.nticos,

mas de

compreende-los,

e

para

se

compreender

e necess,rio

que

o criticose

simpatize,

se

"empatize"

corno criador.

Al6m do

mais,

pelo exposto

acima,

nao se faz necessario

explicarporque

o romrntico

portugues

tenha evitado tenazmente

o tema

indianista,

mesmo se a

poesia

de um Cruz e

Silva,

"As Metamorfoses"

por exemplo,

fizesse

prever

o contrArio.

II. Da

lingua

indigena

ao autor-critico

A

par

da

reagao

politica,

a

rea9ao

filol6gica.

Os romanticosforam

os

primeiros

a malbaratar

sistemhticamente

a

lingua

portuguesa

da metr6-

pole,

usando modismos brasileiros

ou

palavras indigenas.

(Talvez

a

unica

excegao

anteriortivesse sido

Greg6rio

de

Mattos,

mas conforme

assinalamuito bem Ant6nioCandido:"Ele nao existiu literariamente

[em

perspectiva

hist6rica]

ate o

Romantismo,

quando

foi redescoberto,"

e

mais adiante: "antesdisso

[do Romantismo],

nao

influiu,

nao contribuiu

para

formaro

nosso sistema

literArio.")

Ai

estao,

como

documento,

as

constantes

querelas

de Alencar cor os

portugueses,

ou

pseudo-portu-

gueses,

estudadas exaustiva e

condignamente

por

Gladstone Chaves de

Melo.ll

No

entanto,

se a

filologia

estuda estas

transgressoes

e

procurajustifica-

las,

ou

negA-las,

baseando-seem

normase tradi5oes

lingii'sticas,

a nossa

fungao

6 outra.

Averiguar

em

que

o conhecimento

da

lingua indigena

10

Formafao

da Literatura Brasileira,

2 vol. (Sao

Paulo, Martins, 1959), I, p.

1 "Alencar e a

lingua

brasileira,"

Obras

Completas

de Jos

de Alencar (Rio, Jose

Olympio,

1951),

vol. X, pp.

11-88.

Luso-Brazilian

58 Review

afetou, esteticamente,

uma das obrasde

Alencar,

Iracema. E

aqui,

entao,

cremos

que

nos distanciaremosdo

que

comumente se ter dito s6bre

Alencar.

Que

tivesse conhecimentos

inegaveis

de

tupi-guarani

nao se

discute,

e

que

desse

grande

6nfase

t

sua

importanciapara

o escritorbrasileiro

resta

ainda menos duvida. Estes

pontos

estao

claros,

seja

nas suas abundantes

"Notas,"

colocadasno final do

volume,

seja

na tradicional"Cartaao Dr.

Jaguaribe,"

que

se

lhe

segue

nas

edi9oes

comerciaisde Iracema.

Que

ainda

compreendesse

a

primeiraimportancia

estetica do

conheci-

mento da

lingua indigena,

nem se

comenta,

pois

6 ele

pr6prio quem

divide as obras indianistasem dois

grupos:

as

que pecam pelo

"abuso

de termos

indigenas

acumulados uns s6bre os outros,"

e cor isso

quebra-

se "a harmonia da

lingua

portuguesa"

e

perturba-se

"a

inteligencia

ao

texto,"

e as

outras,

mais

equilibradas,que,

no

entanto,

nao comunicamao

leitor a "rudez

ingenua

de

pensamento

e

expressao,que

deve ser a

lingua

dos

indigenas."(p. 185)

Via

1icidamente

os inconvenientese as armadilhas

em

que

o escritor

poderia

cair.

Colocava,

inclusive

para

si

mesmo,

numerosos

problemas,

e ao mesmo

tempo

fornecia ao leitor mais

arguto algumas pistas seguras

para

a

compreensao

total do seu romance.

isso

que

me

empolga hoje

em

Alencar,

a

capacidade que

ter

de,

sendo

criador,

ser critico tambem.

Enquadra-se,pois,

dentro desta cate-

goria

tao

prestigiadahoje

em dia dos criadores-criticos:Baudelaire,

Mal-

larme,

Valery,

Eliot,

na

poesia;

Henry

James,

Flaubert,Gide,

no romance

-e muitos outros. E

Alencar,

como

estes,

usa a critica como

justificagao

e estimulo

(emulagao) para

a

obra

que

realiza.

E me estao

presentes

estas

palavras

recentes do romancistaAlain Robbe-Grillet

que,

recusando-se

a ver uma "antinomiaentre

criagao

e

consciencia,"

conclui: "I

semble

que

ron s'acheminede

plus

en

plus

vers une

6poque

de la fiction

ou les

problemes

de l'ecritureseront

envisages

lucidement

par

le

romancier,

et

oA les soucis

critiques,

loin de

steriliser

la

creation,

pourront

au contraire

lui servir de moteur."

Fica

claro,

portanto,que

Alencarse

propunha

a

pensar

constantemente

a sua lenda. Nao e a t6a

que

Cavalcanti

Proenga

p6de

dizer dMle:

que

o

distingue

dos

contemporAneos

e a

consciencia,

despertada

cedo,

de

que

o artista se faz e

pelo

dominio do seu

instrumentode trabalho.

Fantasia ele a

tinha,

e

vertiginosapor

vezes,

mas sob suas

leves

nuvens,

havia chao

s6lido de

preparo,

de leitura e de

exercicio,

em

que

firmava

pe

para

os

saltos,

v6os

e ate

cabriolas

que

executou."13Essa

opiniao jA

12

Pourun nouveauroman (Paris,Gallimard,1963), p.

"IntrodugaoGeral,"

Obra

Completa

de Jose

de Alencar (Rio, Aguilar,

vol. I, pp.

Silviano Santiago

quando

se

juntam

na

forma9ao

das

palavras,

ao

passo que

na

portuguesa,

flexiva,

sao meros condutores de "conceitos." Do

tupi-guarani

ao

portu-

gues,

entao, passamos

do vocabulo

a

perifrase.

Dos

poucos

criticos a abordar e chamar atencao

para

este

problema

e

processo

em Alencar e o sr. Cavalcanti

Proenga que, apoiando-se

em

opini6es

de

Cardim,

nao vai muito alem do

mero constatar,

chegando

a

conclusao bastante

geral, para logo depois

abandonar o assunto.

O

que importa

estudar sao os efeitos

que

Alencar retira do seu conheci-

mento da

lingua indigena

e ainda os derivados da sua consciencia-este-

tica do

processo.

Inicialmente,

se

desejarmos

retragar

a genese deste entroncamento

em

Alencar,

teriamos de falar do seu ideal

(e

como todo ideal

inatingivel)

de "traduzir em sua

lingua

as ideias,

embora rudes e

grosseiras,

dos in-

dios,"

e na tradugao necessario e

que

"a

lingua

civilizada

se molde

quanto

possa

a

singeleza primitiva

da

lingua

barbara."

(p.

Seguindo

o seu

proprio

conselho,

foi ate a

lingua

barbara,

e de la trouxe uma nova

visao,

um n6vo

"approach" para

o

problema

lingiilstico

no romance in-

dianista. "Os assuntos

pouco

interessavam a sua musa fertil;

a

linguagem

era

tudo."21-adianta-nos Araripe

Junior.

Criaria

palavras, expressoes,

perifrases,

em

portugues, segundo

os moldes do

tupi-guarani.

Em outros

termos, aplicaria

o metodo da

criagao

de

palavras

duma

lingua agluti-

nante numa

lingua

flexiva.

Isso estA bastante claro,

bem

exemplificado

e

explicado, longamente,

na "Carta ao Dr.

Jaguaribe":

"Ocorre-meum

exemplo

tirado deste livro.

Guia,

chamavam os

indigenas,

senhor do caminho,

pyguara.

A beleza da

expressaoselvagem

em sua

tradugao

literal e

etimologica,

me

parece

bem saliente. Nao dizem sabedor,

embora

tivessem termo

pr6prio,

coaub, porque

essa frase nao

exprimiria

a

energia

de

seu

pensamento.

O

caminho no estado

selvagem

nao existe;

nao e coisa de

saber;

faz-se na ocasiao da marchaatraves da florestaou do

campo,

e em certa

direcao; aquele que

o tem e 6 da,

6 realmente senhor do caminho."

(p.

Assim,

no

capitulo

IX,

o

guerreiro Cauby

e

apresentado

como "senhor

do caminho,"

e nao como

"guia."

Reside

ai,

no

entanto, apenas

uma das

faces do

problema,

a mais 6bvia e discutida

(cujo

exagero

nos condu-

ziria a falsidade da "fala de

Tarza"), problema

bastante mais

complexo

e interessante no reverso da moeda.

Gostaria de referir-me em

especial

aos momentos em

que

Alencar nao

traduziu o vocabulo

indigena,

e o usou

tranqiiilamente

em

portugues,

acrescentando-lhe,

no seu

aspecto

exterior,

audivel,

um valor

encantat6rio,

de

magia,

de

evocacao,

e

oferecendo,

no seu

aspecto significativo,

mul-

20

Op.

cit., pp.

56-57.

21

op. cit., p.

Silviano

Santiago

tiplas

ressonancias

que

deveriam

ser adivinhadas

pelo

leitor. Cor isso,

engrandeceu

a sua obra e mostrou

pleno

o esf6rgo

do criador. Pelo

menos sob

quatro aspectos.

Enriqueceu

a

lingua portuguesa

de novos

vocabulos, alguns que

seriam

aceitos,

e outros

repudiados.

Como coloca bem Gilberto

Freyre:

"Em

Alencar,

a

lingua portuguesa,

sem se

ter tornado a

lingua

de um

grande

escritor,

como

que adquiriu

o

que

os

biologos

chamam de valor

hibrido: conservando-se

portuguesa,

abrasileirou-se,

ora arredondando-se

em

palavras

mais do

que

latinamente

doces,

ora

parecendo lingua

menos

latina

que

barbara com

zz, yy

e

ww,

vindos

do

grego,

do

tupi,

do

nag

e ate do

ingles."

  1. Resolveu satisfatoriamente dois dos

problemas graves que

assaltam

a

qualquer

romancista: dar nomes aos seres e

lugares.

Em muito Alencar

pode

ter

pecado,

e

pecou,

mas nisso

sempre

acertou,

dando aos seus

per-

sonagens

nao s6 a

"particularisation

of

character,"

de

que

fala Ian

Watt,

mas tambem

carregando-os

propositadamente

de valor simb6lico,

como

veremos.

Conseguiu,

ainda,

criar t6da uma

alegoria

ao usar conscientemente

alguns

desses vocabulos,

sem

que

ficasse ofensiva ao

bom-g6sto, pois,

mesmo

para

um leitor brasileiro

cultivado,

os simbolos nao estao evidentes

demais,

antes

requerem que sejam

decifrados

(para

usar um vocibulo

caro a

Mallarme).

  1. Dentro da

lingua portuguesa,

criou estas ilhas condensadas e cheias

de

significado, que

lembram as

experiencias

mais ousadas de autores

anglo-saxoes,

ou mesmo de um Guimaraes Rosa entre n6s. Criando e

usando

palavras

como

"Moacyr,"

em

lugar

da

perifrase

"filho do sofri-

mento,"

dando-nos a chave nas suas "Notas"

(Joyce

escreveu num

tempo

em

que

se confiava mais na

argucia

e

paciencia

do

critico),

vemos

que

Alencar nao esta

longe

da

palavra-mala,

ou mesmo,

num certo sentido,

do

ideograma poundiano,

visto

que para

este a literatura e "dichten: con-

densare."

Tudo isso nao

parecera

estranho a

quem

leu cuidadosamente a bio-

grafia que Araripe Junior

tra9ou do autor

de Iracema.

Ali,

lembra-se o

critico: "Recordo-me de ter ouvido um dia

Jose

de

Alencar

que

estreava

no mundo literaria. gsto

pela

charo

lo

go, pela

divisao

artificial

da

palavra portuguesa

em semantemas

que exprimem

signifi-

cado,

o

acompanhava

desde

crianca.

Na feitura de Iracema,

transferiu-o

para

outra

lingua

onde a charada nao e artificio. A charada foi-lhe reve-

22

Op. Cit.,p.

23

The rise

of

the novel

(Berkeley, University

of California Press,

1962), p.

24

ABC

of Reading

(New York,

New Directions, 1960), p.

25

Op. cit., p.

62 Luso-Brazilian Review

dos amantes

que,

durante as mares vivas,

"vivem nas ansias

sucessivas;"

nas mares mortas,

o mar "menos a conhece," e

portanto

"mare de sau-

dades lhe

parece."

Nao e o mar

que

"senhoreia" a

jovem

Iracema

(de

ira-mel e tembe-

labios),

mas

Martim,

trazido

pelo

mar,

e e curioso como Alencar foi

pre-

cavido na escolha do seu

nome,

e como nos da a chave exata nas suas

"Notas." Ali se

pode

ler: "Da

origem

latina de

seu

nome, procedente

de

Marte,

deduz o

estrangeiro

a

significagao que

Ihe da."

(p.

163), pois

havia

dito a Araken

que

o seu nome na

lingua

dele

significava

"filho de

guer-

reiro"

(cap. III).

Simbolismo

que ja aparece

nos Lusiadas

(possivel

fonte

para Alencar), quando

Tetis discorrendo sobre os

governadores

e

os her6is da India,

ao referir-se a Martim Afonso de Souza, cujo passado

nas costas do Brasil

ninguem ignora, engenhosamente

sai-se com estes

versos:

"Este sera Martinho, que

de Marte

O

nome tern co'as obras derivado;

Tanto em armasilustre em Toda

parte,

Quanto

em conselho sabio e bem cuidado."

Martim, Marte, representa

em Iracema o

povo portugues,

"a

que

Marte

tanto

ajuda,"

e

que

vai

conquistando

os mares,

as

terras,

os

povos.

Licito, pois,

era

esperar que

Camoes,

no "Concilio dos Deuses,"

fizesse

com

que

Marte fosse o

protetor

da

gente

lusa,

ajuda que

sera

amplificada

com a

participagao

de

Venus,

deusa do amor.35 Marte e Venus,

a favor,

combatem Baco, protetor

dos

gentios,

nesta verdadeira

guerra

entre os

colonizadores e os

barbaros. Marte e Venus,

valentia e amor,

a alma

por-

tuguesa.

E nao sao tambem essas

qualidades

as de Martim? se nao,

31

Ibid.,

estrofe III.

32

1ste

cuidado,

e mais a

preocupagao

simbolica, ja transpareciam

em

O

Guarani

(Sao Paulo,Melhoramentos,s/d,

onde Peri alterao nome de Cecilia

paraCecy (pp.

pois

este ultimo,

informa-nos Alencar,

"e um verboda

lingua guaranique

significamagoar,

doer."

(p.

Eis um trechodo

dialogo:

"-Mas, entao,

disse a meninacor

alguma

curiosidade,

se tu sabes o meu nome,

porque

naoo dizes

sempre?

-Porque Cecy

e o nome

que

Peritemdentroda alma.

-Ah! e umnomede tua

lingua?

-Sim.

-O

que quer

dizer?

-O

que

Peri sente."

33

Os Lusiadas, X, 63-67,

em

especial

34

Ibid., I,

35

Ibid.,I,

64 Luso-Brazilian Review

vejamos

como o romancista o introduz: " moro

guerreiro aprendeu

na

religiao

de sua mae,

onde a mulher 6 simbolo de terura e amor."

(cap.

II).

Assim nos 6

apresentado

o mo,o:

guerreiro por

um lado,

terno e

amoroso

por

outro,

ainda

que

isto tenha sido

p6sto

h

prova

um minuto

antes,

cor a flechada de Iracema. Ferido,

nao

revida; desconsiderado,

perdoa

e

ama;

amor

a primeira

vista, "coup

de

foudre," romAntico,

fulmi-

nante e etero.

0 recurso ao "licor" (atras

o

mencionAvamos),

tAo

repetido

e tdo a

g6sto

dos

romrnticos, adquire aqui

nova

latitude,

abandonando

por

in-

stante o

apenas lugar-comum,

o abre-te s6samos dos

imbr6glios. Expli-

quemo-nos.

Dentro

da visao

"lusotropicalista" (Gilberto Freyre)

da

civilizagao brasileira,

seria

impr6prio

fazer cor

que

Martim se

apresen-

tasse como

profanador

da

religiao indigena,

ou mesmo da mulher. Ira-

cema, comega

a ficar claro desde o

capitulo

IV,

"guarda

o

segredo

da

jurema,"

e como tal deve

quedar-se virgem. Qualquer

ato de viol6ncia

contra o seu

corpo,

redunda numa ofensa contra os

tabajaras,

e

por oposi-

9ao desprestigio

de Martim, "o homem cordial" de

S6rgio

Buarque

de

Holanda,

"avant la lettre." "lle nao deixarAo rasto de

desgraca

na cabana

hospedeira." (cap.

XV)-decide-se acordado,

na noite da sua

partida.

Para ser

pecador

e se conservar ao mesmo

tempo

inocente,

era

portanto

necess6rio

que

a sua lucidez f6sse

ofuscada, que

o caminho a

seguir,

a

partir

de entao,

Ihe f6sse ditado nao

pelo

livre-arbitrio, pela

razao,

mas

pelos inexplicAveis

meandros do sono/sonho. E 61e

quem pede

a Iracema

"o vinho de

Tupa"

(ela

lhe oferecera

antes, cap.

VI).

Sob o efeito da

droga, pode expandir-se,

dar vasao aos seus

desejos;

e

aparecem

duas

conclus6es reveladoras na

b6ca do romancista, uma

logo

em

seguida

da

outra,

partes que

sao da mesma frase: "o

g6zo

era vida," "o mal era

sonho

e ilusao."

(cap.

XV)-o julgamento

e o

perdao.

Na manha

seguinte,

as

dguas

banham o

"corpo

casto da recente

esp6sa." (cap.

XV)

A

viol6n-

cia nao f6ra cometida,

pelo

menos

licidamente,

mas a uniao se realizou.

Mistura de

ragas,

ausencia de

preconceito.

O

portugu6s,

ao contrArio

do

anglo-saxao,

nao havia trazido a

esp6sa para

o N6vo Mundo.

A

partir

de entao

hA no livro um

significativo

intercAmbio

de

valores,

valores de civilizagao.

E Martim

que,

"tendo adotado a

pAtria

da

esp6sa

e do

amigo," (cap.

XXIV)

passa pela

cerim6nia da

pintura guerreira,

e

recebe mesmo um nome de batismo, Coatyabo (cap.

XXIV),

o

que

sofreu

a

a9io

da

pintura,

16-se nas "Notas." Se brasileiriza,

se

tropicaliza.

Em

86

Processo de abrasileiramentotamb6m existe no romance de Aluizio de Azevedo,

O

Corti/o

(Rio, Briguet,

nao

pela religiao

cat6lica,

mas influenciado

pelos

habitos,

costumese sensualismodo mulato. Nao maiscontato

entre

portugues

e indio,

masentre

portugu8s

e

negro

(ou mulato).O personagem-chave

Jer8nimo,que logo

no

capitulo

VI 6

enfeitigado pela

mdsicae dancabrasileirasda mulataRita. E acom-

Silviano Santiago

filho;

do

desencontro,

o sofrimento. Ou como o

quer

AfrAnio

Peixoto,

mais

patriota:

"Simbolo

desses

primeiros

brasileiros,

os mamelucos,

mAr-

tires da civilizagao,

que

atraigoaram

a

raga

aut6ctona,

da

qual jA

nao

eram,

para

serem maltratados

pela

raga

invasora,

a

qual

ainda nao

per-

tenciam."

V. Dura lex

Iracema e,

pois,

como

qualquer

obra

aleg6rica,

um livro

que

oferece

ao leitor dois niveis de leitura.

Suporta

uma

primeira

leitura, corrida,

da

casca

para

fora,

onde s6 se

apreende

o

extero,

a

imagem simples

e

inge-

nua,

o amor

de um

portugues por

uma india,

nos

primordios

do

Brasil,

leitura feita

magnificamente por

Machado de Assis. Tambem,

caso

queira

o leitor

aprofundar-se,

ai encontrara diferente material: a

alegoria

do nascimento do

Brasil,

da civilizagao brasileira,

dos contatos entre

portugueses

e

indios, arquitetada

cuidadosamente e carinhosamente

pelo

autor,

atraves de todo um trabalho na

linguagem.

Disso

talvez, por

ricochete,

advenha o defeito maior do livro,

e a critica

maior

que

Ihe fazemos. Por

querer

sustentar estes dois niveis de leitura

durante todo o

tempo,

Iracema

passa pela superficialidade

no tratamento

psicol6gico

dos

personagens. Ja

Lucia

Miguel-Pereira,

aguda

leitora,

havia assinalado

que

"o carater simbl6ico

emprestado

aos her6is-aos dos

livros indianistas,

os mais

importantes-como que

os desumanizam."41 E

mesmo Lins do

Rego,

com

intui9ao

de criador,

num

rapido panorama

advertia

que

"Alencar nos dera uma

alegoria

imensa,

e n6s

precisavamos

de

pesquisadores

de alma humana."42 Os

personagens

de Iracema sao

apresentados pelo

exterior,

e o autor nunca

quis

se intrometer corn o

intimo de Iracema ou de Martim.

(Gongalves

Dias,

no

poema "I-Juca

Pirama," alcanga

mais nuances de sentimentos do

que

Alencar no seu

s

Op.

cit., p.

9

Op. cit., pp.

74-86.

40

Nao se trata de

julgar

se falsa ou verdadeira tal tese. Problema bastante com-

plexo que

levou os nossos literatos aos mais desencontrados julgamentos.

Machado

de Assis: "A certo

que

a civilizagao

brasileira nao esta

ligada

ao elemento indiano,

nem dele recebeu influxo

algum;

e isso basta

para

nao

ir buscar entre as tribus ven-

cidas os titulos da nossa

personalidade

literaria." (Ibid., p.

136).

Na

decada

1920-30,

encontramos duas atitudes

opostas:

a de Oswald,

Mario e outros,

defendendo o

passado

fndio da civilizacao brasileira,

e a de Graca Aranha, machadiana,

em decla-

rac6es

como esta:

" nosso

privilegio

de nao termos o

passado

de civilizag6es

abo-

rigenas

facilitarAa liberdade criadora. [... ] O

Brasil nao recebeu nenhuma heranga

estetica dos seus primitivos habitantes,

miseros

selvagens

rudimentares."

(Espirito

Moderno [Sao Paulo, Monteiro Lobato, 1925], p.

36).

41

Prosa de

ficcao (Rio, Jose Olympio,

1950), p.

42

Confergncias

no Prata (Rio, CEB, 1946), pp.

34-35.

Sildiano

Santiago

romance.)

Sao mais

joguetes

na mao do

autor,

do

que personagens-

s&res

engomados.

E deve ter sido

por

isso,

e mais

pela linguagem

artifi-

cial

que

constantemente

usa,

que

nao tenha

querido

chamarIracema de

romance,

nem

mesmo de romance

hist6rico. Lenda

apenas.

Iracema

se nos

apresenta

cor o

candor,

a

ambigiiidade

(pronta

corrigidapelas

"Notas"),

a atmosfera

irreal,

idealizada,

a

rusticidade,

a

ingenuidade

das

hist6rias

que

se contam "a calada da

noite, quando

a lua

[

... ]."

(cap.

I).

Lenda: visao

subjetiva, interpretagaopessoal, alegoria,

ausencia de

rigor

hist6rico.Aceite-se Cesar

pelo

que

Cesar Ihe

oferece,

e

de-lhe,

em

troca,

o

que

tle merece.

No caso

especifico

de

Alencar,

porem,

a nossa afirmativa

inicial,

o

encasulamento

politico

da

literatura,

deve ser

revista,

a fim de

que ganhe

maiores matizes.

Alguns

historiadores

(Silvio

Romero,

Araripe

Junior)

t6m mesmo

exagerado

o

papel que alguns

dos seus

antepassados,princi-

palmente

a av6 e o seu

pai,

tiveram na

forma9ao

do seu

espirito

anti-

lusitano. Em Iracema o

que

vemos 6 um

aperto

de mao com o indio e

cor o

portugues.

Por6m cor o

portugues que

(frisemos)

abandonou

Portugal

e aceitou sem

restrigao

a

patria

de

adogao,

o

coatyabo,

con-

forme ainda fica

patente

na reveladoracena do sonho

(o

licor de

n6vo):

"Mas

porque,

mal de volta ao

bergo

da

p4tria,

o

jovem

guerreiro

de n6vo

deixa o teto

paterno

e demandao sertao?"

(cap.

VI).

E o mesmo

Martim,

deus da

guerra,passa

a ser simbolizadomais tarde no livro

pelo jatoba

que,

como

vimos,

serra nos

bragos

o ubirata e

protege

a relva. Anti-

lusitanosforam

os

diversos

participantes

do

grupo "Antropofagia,"

inclu-

sive na violencia das

palavras,

dos

conceitos,

nao

condizentes com

o

espirito

Pitt de

Alencar,

ou dos outros romanticos.Ou melhor: anti-lusi-

tanos teriam

sido. ..,

pois o indianismo

para

eles era sobretudo uma

atitude estetica.

68

Luso-Brazilian Review