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Guias e Dicas
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ALARCÃO, Isabel (org.) . Escola Reflexiva e nova racionalidade. Porto Alegre, Artmed, 2001, Notas de estudo de Pedagogia

Fala sobre a escola como formadora de cidadãos críticos.

Tipologia: Notas de estudo

2017

Compartilhado em 03/06/2017

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ISABEL ALARCÃO ESCOLA REFLEXIVA E NOVA RACIONALIDADE E74 Escola reflexiva e nova racionalidade / organizado por Isabel Alarcão. — Porto Alegre : Artmed Editora, 2001, 1. Educação - Escola reflexiva - Metodos de investigação educativa, — 1, Alarcão, Isabel. II. Título. CDU 37.012 Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto - CRB 10/1023 ISBN 85-7307-861-8 TT. o Introdução Entramos em um novo milênio. Apesar de temores infunda- dos, o tempo correu sereno, sem sobressaltos na continuidade. A era que agora se vive perfila-se às expectativas e às preocupações que herdamos do século passado. Investigações nele iniciadas deram à luz, já no novo ano do século XXI, o conhecimento sobre o genoma humano, sem dúvida uma das grandes descobertas da humanidade. Aumenta assim a esperança da cura de algumas doenças que afligem a humanidade e do prolongamento da vida humana. Mas simultaneamente aumentam também as preocupa- ções sociais pela criação de contextos de vida agradável para os idosos, bem como as interrogações econômicas colocadas pelo aumento da população não-produtiva. Manifestam-se, de uma forma cada vez mais evidente, os aspectos positivos e negativos da globalização: a comunicação entre os povos, o trabalho em tede, a capacidade produtiva das grandes multinacionais, o co- nhecimento simultâneo e direto dos grandes acontecimentos mundiais, mas também a generalização do uso da droga, a perda de identidade ética e cultural, a falência de pequenas e médias empresas, o desemprego e a pobreza. Desenvolvem-se a uma velocidade verdadeiramente vertigi- nosa as possibilidades de acesso à informação por via informática e reconhece-se o poder de quem é detentor da informação. A era industrial é substituída pela era do conhecimento e da informa- ção sem que, contudo, possa se deixar de reconhecer o perigo do que já se chama a literacia informática e de antever as suas temí- veis consequências de exclusão social. 12 Isabel Alarcão Escola Reflexiva c Nava Racionalidade 13 cita-se dos dirigentes escolares a capacidade de liderança mobili- zadora de vontades e idéias partilhadas e a efetiva gestão de servi- sos e recursos. Acredita-se que os alunos formados por uma escola com tais características estarão mais bem preparados para demons- trar resiliência e capacidade de superação diante das dificuldades e pata viver criticamente o cotidiano. Habituados a refletir, terão motivações para continuar a aprender e para investigar, reconhe- cerão a importância das dimensões afetivas e cognitivas do ser humano, reagirão melhor em face da mudança e do risco que ca- racterizam uma sociedade em profunda transformação. Na nossa cultura atual, valorizam-se dimensões há muito des- prezadas e atende-se à globalidade da natureza humana, Basta olhar para a insistente presença da comunicação multimídia para com- preender o valor dos sentidos. E a visita a um dos muitos museus interativos que a sociedade hoje nos oferece chama-nos a atenção para a importância dos cinco sentidos e da experienciação. O tato é um dos que mais tem sido recuperado no sentido real, mas tam- bém, curiosamente, no sentido virtual que lhe é dado por MacLuhan e no sentido simbólico de afetividade como van Manen tão bem o considera. Qual a influência dessas concepções nos contextos de aprendizagem escolar? Ou eles ainda estarão confinados ao livro, ao giz, às transparências e ao professor? Desejamos uma escola do nosso tempo, janela aberta para o presente e para 0 futuro, onde se viva a utopia mitigada que per- mite criar e recriar, sem contudo perder a razoabilidade c a esta- bilidade. Uma escola onde se realize, com êxito, a interligação entre três dimensões da realização humana: a pessoal, a profis- sional e a social. E onde se gerem conhecimentos e relações, com- prometimentos e afetos. Kerkhove (1997), discípulo de MacLuhan, afirma que, nesta mudança civilizacional paradigmática, “o próximo passo é reco- nhecer que somos primitivos numa cultura nova e global. Para evoluirmos do estado de meras vítimas para o de exploradores, temos de desenvolver um sentido de julgamento crítico em tem- po crítico” (p. 115). É em uma atitude de julgamento crítico dian- te desse novo paradigma cultural que nos colocamos. Nele, como escrevcu Roberto Carneiro (1997), antigo ministro da Educação em Portugal, “a educação como actividade eminentemente comu- nitária terá de reformular-se para operar num mundo denso de informação, numa humanidade globalizada, num caldo de multicultura e numa economia sedenta de formas de aprendiza- gem ao longo de toda a vida”, A escola, instituição social, pólo do binômio interativo esco- la-sociedade, irá metamorfosear-se ou permanecerá imutável e estática no modo hierárquico como se estrutura, na comparti- mentalização de turmas, espaços e tempos horários, na estrutura curricular de base disciplinar, na vivência individualista (não con- fundir com pessoalista) e tecnicista do cotidiano escolar, na regulação das avaliações? O novo paradigma cultural, entendido como uma nova visão do mundo e caracterizado por uma racionalidade critica e eman- cipatória dos sujeitos e das instituições que o constituem, cultivadora de um novo homem dotado de uma nova racionalida- de, já é visível, como pretendemos salientar neste livro, em mui- tos aspectos da atividade humana. Destacaremos aqueles que se prendem mais diretamente à nossa atividade. Falaremos então de uma nova forma de estar na profissão e de viver a profissão assu- mindo que, perante a imprevisibilidade, a constante mudança e a exigência dos contextos de atuação, a formação ao longo da vida surge como um imperativo inquestionável. Analisaremos as con- vieções que presidem as práticas renovadas de formação e que trazem para o centro do palco o formando e o seu papel na cons- trução de si próprio c do seu saber, saber que partilha com os outros na construção e na utilização. Olharemos o currículo a uma nova luz e responsabilizaremos a escola e os professores para, juntamente com os alunos, o instituirem na ação concreta. Refle- tiremos sobre as novas configurações organizativas do cotidiano da escola que fazem desta uma organização aprendente e qualificante, uma organização em desenvolvimento e aprendiza- gem para si mesma e para cada um dos que a constituem. E dedi- caremos alguma atenção à evolução dos paradigmas investigativos, conscientes de que a presença da investigação nas questões educativas também é uma característica da atualidade e uma ne- cessidade sentida, embora nem sempre assumida. Ao atravessar todas essas dimensões, encontramos algumas noções centrais e transversais, a saber: a centralidade da pessoa na sua globalidade e na sua comunicabilidade, a racionalidade dialógica inerente ao discurso crítico-construtivo, a reflexibilidade, 14 Isabel Alareão a autonomia e a responsabilidade não apenas de atores isolados, mas também de organizações, a humildade e o relativismo frente ao ato de compreender a realidade, o relacionamento interativo com a técnica, a valorização do inter-relacionamento evidente em vários aspectos e traduzido na linguagem através de termos como interdisciplinaridade, interdepartamentalismo, intercultu- ralismo, interpessoalidade, interinstitucionalidade, interatividade e interconectividade. Ao eleger uma dessas últimas característi- cas, elegeria a interatividade, pois penso que nela se concentra a essência da atual mundividência. Finalmente, importa interrogarmo-nos sobre as razões que poderão fundamentar uma mudança paradigmática em tantas áreas da atividade humana. A resposta mais plausível tem a ver com o sentimente de impotência diante dos problemas que, nes- sas mesmas áreas de atuação, têm-se colocado ao homem, ser pensante, seja ele o profissional da educação, o investigador, o dirigente institucional ou até o próprio aluno. Perante a desadequação dos paradigmas existentes, a atitu- de pode ser de ruptura em busca de novas soluções. De uma for- ma mais ou menos drástica, estamos rompendo com velhas tradi- ções na expectativa de termos encontrado caminhos melhores é mais adequados para os problemas ocorridos, entre os quais relembro, meramente a título de exemplo, o insucesso escolar, a indisciplina, o desinteresse. Contudo, também devemos questionar-nos sobre um outro nível de adequação. Refiro-me ao nível de adequação entre o dis- curso produzido e a prática vivida. Será que a mudança paradig- mática atingiu tanto a atividade educativa quanto o discurso so- bre a educação deixa entrever? E, se este não é o caso, importa indagar onde estão os constrangimentos à prática ou, em alterna- tiva, a irrazoabilidade do discurso. capítulo —eeeeeeee e O A Escola Reflexiva Isabel Alarcão Assiste-se hoje a uma forte inadequação da escola para fazer face às demandas da sociedade. Diante das rápidas convulsões sociais, a escola precisa abandonar os seus modelos mais ou menos está- ticos e posicionar-se dinamicamente, aproveitando as sinergias oriundas das interações com a sociedade e com as outras institui- ções e fomentando, em seu seio, interações interpessoais. . A mudança de que a escola precisa é uma mudança paradig- mática. Porém, para mudá-la, é preciso mudar o pensamento so- bre ela. É preciso refletir sobre a vida que lá se vive, em uma atitude de diálogo com os problemas e as frustrações, os sucessos e os fracassos, mas também em diálogo com o pensamento, o pensamento próprio e o dos outros. o Por analogia com o conceito de professor reflexivo, hoje tão apreciado, desenvolverei o conceito de escola reflexiva e procura- rei sugerir que a escola que sc pensa e que se avalia em seu proje- to educativo é uma organização aprendente que qualifica não apenas os que nela estudam, mas também os que nela ensinam ou apóiam estes e aqueles. E uma escola que gera conhecimento sobre si própria como escola específica e, desse modo, contribui para o conhecimento sobre a instituição chamada escola. . Antes, porém, de proceder à apresentação do conceito de escola reflexiva, gostaria de convidar os leitores a refletirem co- migo sobre a escola. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CARNEIRO, R. Sociedade e informação. Lisboa: Texto Editora, 1997. KERKHOVE, D. A pele da cultura. Uma investigação sobre a nova realidade electrónica. Lisboa: Relógio d'Água Editores, 1997. 18 Isabel Alarcão Escola Reflexiva e Nova Racionalidade 19 Mas a escola, para além de lugar e contexto, é também um tempo. Um tempo que passa para não mais voltar. Um tempo que não pode ser desperdiçado. Tempo de quê? De curiosidade a ser desenvolvida e não estiolada. Questionemo-nos, então, sobre o modo como respondemos à curiosidade dos nossos jovens peran- te a ciência, a técnica, o desenvolvimento físico, a sexualidade, a droga. E interroguemo-nos também sobre o modo como respon- demos igualmente à curiosidade e ao espírito de iniciativa dos professores mais entusiastas. A escola é tempo de desenvolver c aplicar capacidades como a memorização, a observação, a comparação, a associação, o ra- ciocínio, a expressão, a comunicação e o risco. Quais tarefas, na nossa escola, visam ao desenvolvimento dessas capacidades fun- damentais para uma aprendizagem continuada ao longo da vida? É tempo de atividade e iniciativa. Que tempo e espaço de iniciativa concedemos aos nossos alunos? E aos nossos professo- res? E aos alunos, professores e funcionários em conjunto? É tempo de convivência saudável c de cooperação. Como aproveitamos essas qualidades tão características da juventude e tão saudáveis para os profissionais que trabalham em conjunto? É tempo de turbulência. Como a controlamos, sem excessos e sem repressões não-compreendidas? A escola tem a função de preparar cidadãos, mas não pode ser pensada apenas como tempo de preparação para a vida. Ela é a própria vida, um local de vivência da cidadania. COMO SE ORGANIZA A ESCOLA PARA CUMPRIR ESSAS FUNÇÕES? Sendo a escola um lugar, um tempo e um contexto, sendo ela orga- nização e vida, devendo ela espelhar um rosto de cidadania, que escola temos e que escola precisamos ter? Penso que concordarão comigo se afirmar que a escola não tem conseguido acompanhar as profundas mudanças ocorridas na sociedade. Não obstante as transformações que nela vão sen- do introduzidas, ela não convence nem atrai. É coisa do passado, sem rasgos de futuro, Ainda fortemente marcada pela disciplina- ridade, dificilmente prepara para viver a complexidade que ca- racteriza o mundo atual. Influenciada pela tradição ocidental, que privilegia grandemente o pensamento lógico-matemático e a ra- cionalidade, não potencializa o desenvolvimento global do ser pessoa, ou facilmente discrimina e perde os que não se adaptam a esse paradigma. Não é por acaso que Drucker (1993) advoga que a escola terá de sofrer uma mudança radical nos métodos e processos de aprendizagem e nos conteúdos que ensina. Acrescento que não é possível desvincular currículo e pedagogia de políticas e adminis- tração. Por isso, para mudar a escola, direi que também é preciso mudar a sua organização e o modo como ela é pensada e gerida. Uma coisa é certa. Urge mudá-la. Não apenas nos currículos que são ministrados, mas na organização disciplinar, pedagógica, organizacional. Nos valores e nas relações humanas que nela se vivem. É preciso repensá-la, pensando-a em contexto. Mas não basta que fiquemos apenas no pensar. Depois, é preciso agir para transformá-la. MUDAR “A CARA” DA ESCOLA Como afirma Paulo Freire, “não se muda a cara da escola por um ato de vontade do secretário” (1991, p. 35). Para mudá-la é pre- ciso envolver as decisões político-administrativo-pedagógicas, os alunos e os professores, os auxiliares e os funcionários, os pais e os membros da comunidade. É preciso envolver o elemento hu- mano, as pessoas e, através delas, mudar a cultura que se vive na escola e que ela própria inculca. A escola inovadora é a escola que tem a força de se pensar a partir de si própria e de ser aquilo que mais adiante designarei por escola reflexiva. Neste tempo de descentralização, de autonomização e de responsabilização que estamos vivendo, algumas escolas têm conseguido fazê-lo com sucesso. A reflexão sobre essa temática e esses fenômenos leva-me a comentar 10 idéias que tentam traduzir o meu pensamento sobre uma escola de “cara mudada” e preparar o leitor para entender o conceito de escola reflexiva, título que escolhi para este capítulo e que figura no do próprio livro. 20 Isabel Alarcão Escola Reflexiva e Nova Racionalidade 21 A Centralidade das Pessoas na Escola e o Poder da Palavra A Escola e o Seu Projeto Próprio Uma escola sem pessoas seria um edifício sem vida. Quem a tor- na viva são as pessoas: os alunos, os professores, os funcionários e os pais que, não estando lá permanentemente, com ela intera- gem. As pessoas são o sentido da sua existência. Para elas existem Os espaços, com elas se vive o tempo. As pessoas socializam-se no contexto que elas próprias criam e recriam. São o recurso sem o qual todos os outros recursos seriam desperdício. Têm o poder da palavra através da qual se exprimem, confrontam os seus pontos de vista, aprofundam os seus pensamentos, revelam os seus sen- timentos, verbalizam iniciativas, assumem responsabilidades e or- ganizam-se. As relações das pessoas entre si e de si próprias com o seu trabalho e com a sua escola são a pedra de toque para a vivência de um clima de escola em busca de uma educação me- lhor a cada dia. Liderança, Racionalidade Dialógica e Pensamento Sistêmico Por trás de escolas inovadoras tem-se revelado a existência de líderes, independentemente do nível em que se situam. Eles es- tão no topo, nas estruturas intermédias e na base. Em uma esco- la participativa e democrática como a que se pretende, a inicia- tiva é acolhida venha ela de onde vier, porque a abertura às idéias do outro, a descentralização do poder e o envolvimento de todos no trabalho em conjunto são reconhecidos como um imperativo e uma riqueza. Mecanismos de comunicação múki- Pla permitem tomadas de decisão que resultam de estratégias e políticas interativamente definidas. Estas são enquadradas por uma visão globalizadora, capaz de, como diz Mintzberg (1995), ver simultaneamente em múltiplas direções. Mas também por um pensamento sistêmico, organizador da conceitualização e da ação, “a quinta disciplina”, na acepção de Senge (1990), Li- derança, visão, diálogo, pensamento e ação são os cinco pila- Tes de sustentação de uma organização dinâmica, situada, res- ponsável e humana. Fruto da consciência da especificidade de cada escola na ecologia da sua comunidade interna e externa, assume-se hoje que cada escola desenvolva o seu próprio projeto educativo. Resultante da visão que a escola pretende para si própria, visão que se apóia na função da escola e é tanto mais comprometedora quanto maior for o nível de construção coletiva nela implicada, a missão especí- fica de cada escola é definida, o seu projeto é delineado, os obje- tivos e as estratégias para atingí-lo são conceitualizadas. A fim de que as boas intenções ultrapassem o mero ato de registo em pa- pel, definem-se os níveis de execução, atribuem-se responsabili- dades aos agentes envolvidos, delineia-se a monitorização que deve nortear todo o processo, incluindo a avaliação dos resulta- dos obtidos. E parte-se para a ação. Um projeto institucional es- pecífico implica margens de liberdade concedidas a cada escola sem que se perca a dimensão educativa mais abrangente, defini- da para a sua área geográfica, o seu país e o mundo. A Escola Entre o Local e o Universal Neste mundo globalizado em que vivemos, emerge em vários se- tores socioculturais a consciência da especificidade e da particu- laridade, como se quiséssemos proteger-nos de uma estandardi- zação nentralizadora daquilo que nos é específico. Sem deixar de partilhar com as outras escolas do planeta a universalidade da sua dimensão instrutivo-educativa e socializante, cada escola tende a integrar-se e a assumir-se no contexto específico em que se in- sere, isto é, tende a ter uma dimensão local, a aproximar-se da comunidade. Mantem-se, porém, em contato com a aldeia global de que faz parte e partilha com todas as outras escolas do mundo a função de socialização que as caracteriza. Sem deixar de ser local, a escola é universal. As novas tecnologias da informação e da comunicação abrem vias de diálogo e oportunidades de culti- var o universal no local. 24 Isabel Alarção Escola Reflexiva e Nova Racionalidade 25 e curriculares para uma perspectiva que leva em consideração os contextos escolares” (2000, p. 92). E os mesmos autores conti- nuam, salientando que as organizações escolares são “produtoras de práticas sociais, de valores, de crenças e de conhecimentos, movidas pelo esforço de procurar novas soluções para os proble- mas vivenciados” (idem). A complexidade dos problemas que hoje se colocam à escola não encontra soluções previamente talhadas e rotineiramente aplicadas. Exige, ao contrário, uma capacidade de leitura atempada dos acontecimentos e sua interpretação como meio de encontrar a solução estratégica mais adequada para elas. Esse processo, pela sua complexidade, exige cooperação, olhares multidimensionais e uma atitude de investigação na ação e pela ação. Por outro lado, exige do professor a consciência de que a sua formação nunca está terminada e das chefias e do governo, a assunção do princípio da formação continuada. No entanto, tam- bém lhe dá o reconforto de sentir que a profissão é para ele, com os outros, sede de construção de saber, sobretudo se a escola em que leciona for uma escola, ela própria, aprendente e, consegiien- temente, qualificante para os que nela trabalham. Da Escola em Desenvolvimento e Aprendizagem à Epistemologia da Vida da Escola Schôn (1983, 1987) fala-nos da epistemologia da prática como o resultado do conhecimento que os profissionais constroem a par- tir da reflexão sobre as suas práticas. Considerando os professo- res como co-construtores da escola, acredito que a participação ativa e crítica na vida da instituição contribuirá para o desenvol- vimento do conhecimento sobre a própria escola. Será assim um conhecimento gerado na interação com a natureza e os proble- mas da escola que, a partir do que for específico de cada uma, poderá, de forma iluminativa ou comparativa, assumir por trans- feribilidade um caráter de tendência global. Será uma epistemo- logia da vida da escola desenvolvida a partir da co-construção reflexiva sobre a sua missão, as suas atividades e as consegiiên- cias delas decorrentes. Desenvolvimento Ecológico de uma Escola em Aprendizagem Se a escola como instituição não quiser estagnar, deve interagir com as transformações ocorridas no mundo e no ambiente que a rodeia. Deve entrar na dinâmica atual marcada pela abertura, pela interação e pela flexibilidade. Nesse processo, encontrará amigos críticos, desafios, propostas de colaborações. E nesse pro- cesso se desenvolverá. Com efeito, as instituições, à semelhança das pessoas, são sistemas abertos. Estão em permanente intera- ção com o ambiente que as cerca, que as estimula ou condiciona, que lhes cria contextos de aprendizagem. Ao serem pró-ativas em sua interação, ajudam a sociedade a transformar-se, cumprindo assim um aspecto da sua missão. e Os comentários a essas 10 idéias conduzem ao esclarecimento do conceito nuclear deste capítulo: a escola reflexiva. É o que farei na próxima seção. A ESCOLA REFLEXIVA Tenho designado por escola reflexiva uma “organização (escolar) que continuadamente se pensa a si própria, na sua missão social e na sua organização, e se confronta com o desenrolar da sua atividade em um processo heurístico simultaneamente avaliativo e formativo” (Alarcão, 2001 a, b e c). Se, como dizia Habermas, só o EU que se conhece a si próprio e questiona a si mesmo é capaz de aprender, de recusar tornar-se coisa e de obter a autono- mia, eu diria que só a escola que se interroga sobre si própria se transformará em uma instituição autônoma e responsável, auto- nomizante e educadora. Somente essa escola mudará o seu rosto. Uma escola assim concebida pensa-se no presente para se projetar no futuro. Não ignorando os problemas atuais, resolve- os por referência a uma visão que se direcione para a melhoria da educação praticada e para o desenvolvimento da organização. Envolvendo no processo todos os seus membros, reconhece o va- lor da aprendizagem que para eles daí resulta. 26 Isabel Alarção É uma escola que se assume como instituição educativa que sabe o que quer e para onde vai. Na observação cuidadosa da realidade social, descobre os melhores caminhos para desempe- nhar a missão que lhe cabe na sociedade. Aberta à comunidade exterior, dialoga com ela. Atenta à comunidade interior, envolve todos na construção do clima de escola, na definição e na realiza- ção do seu projeto, na avaliação da sua qualidade educativa. Cons- ciente da diversidade pessoal, integra espaços de liberdade na malha necessária de controles organizativos. Enfrenta as situa- ções de modo dialogante e conceitualizador, procurando compre- ender antes de agir. Diante da mudança, da incerteza e da instabilidade que hoje se vive, as organizações (e a escola é uma organização) precisam rapidamente se repensar, reajustar-se, recalibrar-se para atuar em situação. No início deste capítulo, vimos como urge mudar a es- cola para lhe dar sentido e atualidade. Em uma organização com essas características, os seus membros não podem ser meramente treinados para executar decisões tomadas por outrém, não po- dem ser moldados para a passividade, o conformismo, o destino acabado. Ao contrário, devem ser incentivados e mobilizados para a participação, a co-construção, o diálogo, a reflexão, a iniciativa, a experimentação, Uma organização inflexível, com uma estrutu- ra excessivamente hierarquizada, silenciosa no diálogo entre se- tores, cética em relação às potencialidades dos seus membros, descendentemente pensada em todas as suas estratégias estará fadada ao insucesso. Pelo contrário, uma escola reflexiva, em desenvolvimento e aprendizagem ao longo da sua história, é criada pelo pensamento e pela prática reflexivos que acompanham o desejo de compreen- der a razão de ser da sua existência, as características da sua identidade própria, os constrangimentos que a afetam e as poten- cialidades que detém. Necessita ter uma visão partilhada do ca- minho que quer percorrer e refletir sistemática e cooperativamente sobre as implicações e as consegiiências da concretização dessa visão. Da visão sobre a própria escola deriva o seu Projeto, que conta com o empenho de cada um porque foi interativamente construído através do diálogo entre os seus membros, no entrela- çar de estratégias que vão do topo para a base e da base para o topo. Somente um pensamento estratégico permitirá manter a Escola Reflexiva e Nova Racionalidade 27 visão de conjunto e enquadrar, no projeto global da escola, os projetos e as atividades complementares. A minha convicção é de que, se quisermos mudar a escola, devemos assumi-la como organismo vivo, dinâmico, capaz de atuar em situação, de interagir e desenvolver-se ecologicamente e de aprender a construir conhecimento sobre si própria nesse processo, . Considerando a escola como um organismo vivo inserido em um ambiente próprio, tenho pensado a escola como uma organi- zação em desenvolvimento e em aprendizagem que, à semelhan- ça dos seres humanos, aprende e desenvolve-se em interação. Parafraseando Bronfenbrenner tenho dito que o desenvolvi- mento institucional decorre da “interação mútua e progressiva entre, por um lado, uma organização ativa, em constante cresci- mento e, por outro lado, as propriedades sempre em transforma- ção dos meios imediatos em que a organização se insere, sendo este processo influenciado pelas relações entre os contextos mais imediatos e os contextos mais vastos em que aqueles se integram” (Bronfenbrenner, 1979; Portugal, 1992, p. 37; itálicos meus para assinalar as alterações introduzidas no texto original que se refe- re ao individuo). O modelo bronfenbreniano do desenvolvimento humano pres- supõe que o indivíduo seja influenciado por um conjunto de con- textos interligados (micro, meso e macro), de impacto mais ou me- nos remoto, em que o macro contexto, constituído pelas ideologias e pelos valores assumidos pelo ambiente sócio-político-cultural, exer- ce nos outros contextos, mais próximos, uma enorme influência. O desenvolvimento humano é processado através do que o autor de- signa por transições ecológicas, caracterizadas pela assunção de novos papéis, pela realização de novas atividades e pela interação com novas pessoas. Como resultado desses movimentos, correm transições ecológicas e, em consegiiência, o indivíduo, mais desen- volvido, vai revelando uma capacidade cada vez maior de compre- ensão da realidade e de ação sobre essa própria realidade. Se transpusermos esse modelo para o desenvolvimento insti- tucional e examinarmos histórias de algumas instituições, facil- mente reconheceremos que determinados contextos sócio-políti- co-culturais possibilitaram (ou não) às instituições assumirem novos papéis, realizarem novas atividades e entrarem em novas 30 Isabel Alarcão BRONFENBRENNER, U. The ecology of human development: experiments by nature and design. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1979. (Traduzido pela Artmed com o título A ecologia do desenvolvimento humano. 1996) DRUCKER, E Post-capitalist society, New York: Harper Collins, 1993. FREIRE, P A educação na cidade, São Paulo: Cortez Editora, 1991. - Professora sim, tia não. Cartas q quem ousa ensinar. São Paulo: Olho d'Água, 1997, (1º ed. de 1993), GARRIDO, E.; PIMENTA, S.G.E.; MOURA, M.0. A pesquisa colaborativa na escola como abordagem facilitadora para o desenvolvimento da profissão de profes- soL In: MARIN, Au. (org.). Educação continuada, Campinas: Papirus, 2000. MINTZBERG, H. Strategic thinking us seeing. In: GARRATT, B. Developing strategic thought. Rediscovering the artofdirection-giving. New York: MacGraw-Hill, 1995, p.67-70, PORTUGAL, G. Ecologia e desenvolvimento humano em Bronfenbrenner. Aveiro: Edições CIDINE, 1992. SANTIAGO, R. A escola também é um sistema de aprendizagem organizacional. In: ALARCÃO, 1. (org.). Escola reflexiva e supervisão, Uma escola em desenvolvi- mento e aprendizagem. Porto: Porto Editora, 2001, p. 25-41, SCHÔN, D. The reflective practitioner. New York: Basic Books, 1983. - Educating the reflective practitioner. San Francisco: Jossey-Bass, 1987. (Traduzido pela Artmed com o título Educando o profissional reflexivo. 2000.) SENGE, P The fifth discipline. The art and practice of the learning organization. New York; Currency Doubleday, 1990. (2.ed. 1994). capítulo Fundamentos Sociológicos, Funções Sociais e Políticas da Escola Reflexiva e Emancipadora: Algumas Aproximações Irla Brzezinski ««“a reflexão é dialética: o pensamento do indivíduo se forma por um contexto social e cultural, e estes, por sua vez, são configurados pelo pensamento e ação dos indivíduos” (Kemmis, 1999, p. 98). O tema deste capítulo é muito desafiador, pois envolve um con- teúdo amplo e complexo que está em construção pelos estudiosos do assúnto; portanto, essa temática tem configurações ainda pro- visórias. Também são ainda relativamente provisórias as aproxi- mações que intento realizar. Contudo, não são provisórios os fun- damentos sociológicos, as funções sociais e políticas da escola reflexiva, por tratar-se de um: la real)inserida no contexto Social de um determinado momento histórico'— a sociedade con- temporânea, reconhecida como sociedade do conhecimento, . A escola que se quer reflexiva e emancipadora é também uma escola vivida cotidianamente, dimensionada em seu projeto político-pedagógico-curricular, entendido aqui como elemento de organização do processo educacional que nela Ocorre. Para sistematizar as aproximações com as quais me compro- meti no título deste capítulo, decidi de volver a temática por neio de assuntos que se articulam: Isabel Alarcão < f» a prática social como ponto de partida e de chegada da prática pedagógica, pressuposto decorrente das teorias críticas que estabelecem as relações entre educação e so- ciedade, dando destaque para as funções sociais e políti- cas da escola brasileira; “he o conhecimento crítico da vida cotidiana baseado em Lefebvre (1961, 1977, 1981, 1991), que considera a rea- lidade social como o espaço no qual se concretizam as E transformações através da ação do homem e, nesse espa- +48 . ato ind a Ve ço social, a escola como instituição ocupa lugar privile- RI giado; E Se a concepção de escola reflexiva e qualificante de Alarcão (2001 aeb) e a escola como lugar onde o professor apren- de (Canário, 1997, 2000); * o projeto político-pedagógico-curricular da escola e a cons- trução de uma escola reflexiva e emancipadora. Observo que essa articulação E pretendida deverá possibilitar (á diganização lógica do discurso, ianunciar as âncoras teóricas nas qua fiúndamento e favorecer a con slrução de algumas «aproximações, como afirmei, ainda provisória: As teorias educaciônais que defendem a prática social como ponto de partida e de chegada da prática educacional e que pos- tulam im uma análise dinâmica da relação sociedade-escola encon- tram sua 3 gênese “se TIOS estudos. héterodoxos do pensamento marxis- ta, dos chamados revisionistas de Marx, que adotam o métodg dialé ico como caminho investigativo para a produção do co- Os Os. ; educadores brasileiros, sintonizados com essas concep-. ções “educacionais identificadas como reflexivas, críticas ou pi gressistas (entre elas encontra-se a teoria critica da totalid ade social), começaram a denunciar por volta dos anos BO as caracte- rísticas reprodutivistas da escola que, aportada.no paradigma da racióriálidade tecnicista, procurava perpetuar o sistema desigual e injusto de distribuição do patrimônio cultural. A injustiça do sistema educacional brasileiro, que negava o esso do saber de forma universalizadap permitiu, e ainda per- “mite, a apropriação do sabererudito (episfeme) por uma única classe social — a privilegiada — e, perversamente, retirou da outra — a Escola Reflexiva e Nova Racionalidade 67 trabalhadora — o direito de ter acesso a esse saber veiculado intencionalmente pela instituição escolar, ao mesmo tempo em que expropriava seu saber — o popular (doxa)- Então, os educaderes entanderam-que apenas a denúncia feita nos anos 80.não. gra suficiente; precisavam agir Suas-ações hase- avam- senas teorias progressistas, que trouxeram em seu bojo o anúncio doc compromisso 5 social da educação, qual seja, criticar a is capazes de libertar o homem pelo domínio do conhecimento e pela formação da cor cons- ciência cri Sobre essas teorias, Kowarsik (1983, p. 14) desta- ca: a em que a ciência da educação se compreende dialeticamente a partir do interesse libertário do conhecimento de uma teoria crítica da sociedade, voltada à emancipação e li- bertação dos homens, torna-se possivel a ela criticar, por sua vez, a realidade educacional”. Apesar de pautada na libertação do homem pelo domínio do conhecimento e na crença da transformação global da sociedade, a teoria crítica da totalidade social apresentava-se determinista ao estabelecer as relações sociedade-educação e sociedade-esco- ta, sobretudo porque admite uma total dependência da educação de uma concepção de sociedade, a capitalista globalizada. Assim, para osidefensores ortodoxosda teoria crítica da totalidade so- cial, as relações escola-sociedade condicionam a atividade “educativa e a teoria empregada para interpretar 0 processo social ating o processo educacional por inteiro, Entre esses defensores, radicais chegaram a advogar a desescolarização da socie- dadé: Todavia, não se pode admitir que a escola seja um simples reflexo da sociedade sem poder de interferência no todo social; não resta dúvida de que ela tem uma relativa autonomia e tam- bem contribui para a formação da sociedade, Em nossos dias, feconhece-se que; Escola) apesar de sua dimensão -conservadora e reprodutora) constitui-se, paradoxal- mente, uma ameaça ao conservadorismo porque ela também re- presenta “ameaça à ordem estabelecida e possibilidade de liber- tação” (Snyders, 1981, p. 106). A escola hoje é reconhecida em sua ambiguidade intrínseca: uma certa dependência em relação aos madelos sociais, ao assu- mir o uma relativa autonomia, também de- terminante daqueles modelos. an assumir-seu-papel-inovader e 70 Isabel Alarcão coneretizam as transforma: ões através da ação « do homem ativo, criativo é prático que ao mesmo tempo se transforma e provoca s. As mudanças, indiscutivelmente, ocorrem no curso das lutas reais quando há o enfrentamento dos conflitos inerentes às divergências de interesses de classes opostas. Nesse embate, os interesses convergentes da classe detentora da força do trabalho impulsiona a formação da consciência de classe. Esta é conceituada por Lefebvre (1985) como a consciência coletiva, a qual não surge da espontaneidade, mas emerge na e da realidade objetiva e brutal, inicialmente pela resistência, depois pelo enfrentamento e busca de alternativas, e amplia-se para toda a vida do sujeito individual e social. A instituição escolar em sua ambigiiidade intrínseca, vivo um cotidiano repleto de. contradições, conflitos e lutas internas pelo domínio do poder e do mento e também na escola, * vive-se em tempos de incertezas e rápidas mudanças notadamente, no qu que diz Z respeit espeito mica de quem à sociedade exige respostas (criações). Em face cias, a! + escola não tem ue gera « conflitos, ntar.com profes- dividualmente em seq-cotidiano escolar, Isto é, aqueles que constroem “uni conheci mento profissional contexiualizado e sistematizado em uma per- manente dinâmica interativa entre a ação e o. pensamento ou a reflexão” Alarcão; 2001 b, p. 17). É na luta pela defesa de inte- “Tesses convergentes, por todos os elementos envolvidos no pro- cesso educativo, que vai sendo formada a consciência coletiva, em uma permanente dinâmica interativa entre a ação e o pensa- mento ou a reflexão. Assim, constrói-se a reflexão sobre a prática na escola, com a consegiente construção de conhecimento sobre ela própria. A essa forma de construção em que não se separam dos atores sociais (dos produtores) suas concepções, suas ativi- dades, suas idéias e suas criações, Lefebvre denomina “criação de uma obra”, que se contrapõe à “feitura de um produto”, que sig- nifica reproduzir em série ou em massa. É preciso ter clareza de que a formação dessa consciência coletiva é um processo histórico que impulsiona a transformação Escola Reflexiva e Nova Racionalidade 71 da ação-reflexão-criação individuais para a ação-reflexão-criação coletivas, em um contexto determinado onde há embates de idéias convergentes e divergentes. Por certo, a organização escolar con- siste em um desses contextos, Nesse processo dialético de passagem da esfera individual para a coletiva, noto uma aproximação entre os postulados de Lefebvre sobre a formação da consciência coletiva e os ensina- mentos de Alarcão (2001 b). Para a autora, a trajetória a ser per- corrida para uma escola construir-se reflexiva consiste de um pro- cesso que parte do conceito de professor reflexivo, introduzido por Schôn!, como “epistemologia da prática” para uma “episte- mologia da vida da escola”. Nesse aspecto, identifico também algumas aproximações entre Alarcão e Canário (1999, p. 14), para quem a organização escolar é “lugar decisivo onde as competências escolares ajudam a produzir competências profissionais, mediante um processo que permite a passagem “da capacitação individual à capacitação co- letiva”. Também é interessante a aproximação entre o processo an- teriormente mencionado e a concepção de reflexão de Kemmis (1999). Segundo o autor, a reflexão orientada para a ação é so- cial, política e dialética, pois “parte do pensamento do individuo que se forma em um contexto social e cultural e, esse contexto, por sua vez, é configurado pelo pensamento e ação dos indiví- duos” (p. 98). Para esclarecer essa dialética, Kemmis referencia seus estudos em Habermas, para quem “o estudo da reflexão re- quer uma crítica da sociedade capaz de abarcar e entender esta relação dialética entre o indivíduo e sociedade” (1999, p. 98). Kemmis (1999, p. 96-97) também discorre sobre a natureza da reflexão, dimensionando-a nas seguintes proposições. A refle- xão: * não é um processo psicológico puramente interior, mas um processo orientado para a ação e faz parte da história; * não é um processo puramente individual, mas um pro- cesso social; * está a serviço dos interesses humanos, sendo um proces- so político; * dá forma à ideologia, essa por sua vez dá forma à reflexão; 72 Isabel Alarcão * é uma prática que expressa o poder do homem para reconstituir a vida social por meio da comunicação (diá- logo), na tomada de decisões e na ação social. O autor prossegue afirmando que os métodos de reflexão que não levarem em conta as proposições decorrentes do estudo acerca da sua natureza serão limitados ou errôneos. Além disso, esses métodos limitados não serão capazes de explorar a “dupla dialética” que se estabelece entre o pensamento e a ação, entre o indivíduo e a sociedade. Nessa “dupla dialética”, a reflexão está orientada para a ação e é social e política pelo fato de que, em um movimento em espiral, o processo de refletir penetra o interior do pensamento, atravessa o processo de pensamento e articula- se ao exterior da situação, isto é, articula-se ao contexto onde se situam os atores da reflexão. Para o autor, o produto desse movi- mento consiste na ação humana informada e comprometida, mais coerente e com papel social importante — a práxis. É preciso salientar a semelhança de concepções de práxis entre Kemmis (1999) e Lefebyre (1979). Segundo esse último, a práxis abrange a totalidade de prática humana, incluindo tanto a atividade humana, transformadora da natureza e da sociedade, quanto a formação de subjetividade humana. Desse modo, a no- ção de práxis pressupõe a reabilitação do sensível (subjetividade) e a restituição do prático sensível (a atividade humana transfor- madora). O sensível, para Lefebvre, coincide com o sensível de Feuerback: é rico de significação e de ação (p. 30). Lembro que a práxis nas organizações escolares manifesta- se como núcleo de mediação entre a prática social global (cultura externa à escola) e a prática educativa (cultura interna da esco- la). Desse núcleo emergiu a dimensão pública, gratuita e demo- crática da escola brasileira, nos tempos atuais tão lembrada como princípio constitucional, porém intencionalmente esquecida pe- las políticas governamentais. Em síntese, a dimensão pública, gratuita e democrática é decorrente do movimento que valoriza tanto a cultura interna da organização escolar quanto a externa, movimento observado ao aceitarmos o princípio de que a prática social é ponto de partida e de chegada da prática pedagógica. Tendo presente a interação das culturas interna/externa das organizações escolares, é possí- Escola Reflexiva e Nova Racionalidade 73 vel explicitar as mais expressivas funções políticas e sociais da escola, segundo meus referenciais. Entre tantas funções, é importante destacar o papel especifi- co da escola pública e sua função política e social como uma ins- tituição da sociedade comprometida com a educação de todos os brasileiros. Essa sim é a escola orientada pela lógica da inclusão, o que significa permitir o acesso aos saberes escolares a todos os que batem às portas da escola pública, respeitadas as diferenças de cada um. Sob essa lógica, entendo que a função social e política da escola básica é a socialização do saber por meio do ensino de qualidade e da pesquisa qualificada, garantido Aingresso eosu- cesso escolar para todos. Essa função primordial 'da escola, que confere à educação um ethos próprio como bem social e direito de todos, diz respeito à formação do homem para O exercício da cidadania e deve ser assim compreendida por todos os atores edu- cacionais. Entre eles, estão não só os responsáveis pelas politicas educacionais que deveriam oferecer condições de ingresso a to- dos os que buscam a escola básica, como também os profissionais da escola que devem garantir o sucesso do aluno em toda a sua trajetória educacional. Desse modo, essa função social e política nega a prática mais comum de os governantes oferecerem reduzi- das oportunidades educacionais públicas e nega também a práti- ca de certos professores que se vangloriam do insucesso do aluno em suas disciplinas. A propósito, não são poucos os professores que contraditoriamente revelam que seu sucesso como bom pro- fessor é balizado pela número elevado de reprovações de seus alunos. Esse fato indica que tais professores pertencem à única categoria de profissionais que, no mundo do trabalho, orgulha-se por vitimar o seu cliente, o que, sem dúvida, repercute na desva- lorização da profissão. Outra função social e política da escola, em uma sociedade na qual o acesso à informação, à produtividade e a competitivida- de são critérios de valorização do homem, é a de prepará-lo para ingressar no mundo do trabalho, instrumentalizando-o para a defesa de seus direitos e para o cumprimento de seus deveres como cidadão. No momento atual, marcado pelo tempo da globalização do capital e do trabalho e da revolução tecnológica, pela organiza- 76 Isabel Alarcão Escola Reflexiva e Nova Racionalidade 77 O projeto político-pedagógico-curricular, como expressão con- ereta do trabalho coletivo na escola, por um lado, é um elemento mediador entre a cultura interna à escola e a cultura externa do sistema de ensino e da sociedade, na conquista da autonomia da organização escolar e, por outro, poderá tornar-se instrumento viabilizador da construção da escola reflexiva e emancipadora, É importante afirmar que a construção desse projeto na es- cola só tem significado quando é resultante de um trabalho inter- disciplinar, transdisciplinar e coletivo, com base em relações de- mocráticas, em gestão participativa e colegiada e na produção do conhecimento, referenciada na pesquisa-ação. A construção do projeto político-pedagógico, exatamente por ser uma ação auda- ciosa e desafiadora para as condições atuais da escola pública, supõe “rupturas com o presente e promessas para o futuro” (Gadotti, 1994, p. 579). Em uma visão descentralizada de siste- ma educacional, o projeto político-pedagógico-curricular deveria consolidar a escola como lugar central da educação escolar, Diante dessa exigência, a ação de projetar e executar implica sair de um estado confortável instituído e consolidado, romper. com a rotina e correr o risco de entar um período de instabi- lidade, denominado aqui ituinte (em. construç ançar-se em busca de uma possível nova estabilidade mais qualificada. Enfim, essa procura deve concorrer para uma mudança paradig- mática da organização e da gestão centrada nos modelos racio- nais-funcionalistas para um paradigma de organização e gestão escolar interacionista. Talvez seja essa a maior mudança necessá- ria, mas como destaca Zeichner (2000, P- 15) “não requer somen- te uma mudança individual (...) a mudança tem que ser institu- cional”, É preciso lembrar que Zeichner compartilha o ideário do professor como profissional que reflete sobre sua prática e da escola que instala o diálogo para discutir as práticas articuladas às idéias de alguns autores em educação que são importantes para o dia-a-dia dos professores. Em uma entrevista que enfatizava sua atuação como professor em um programa na Namíbia (Áfri- ca) de formação de professores em contato direto com a realida- de da escola, afirmou: “meu projeto tem sido tentar integrar al- gumas dessas idéias (dos teóricos) a um contexto prático dos pro- fessores, de maneira que eles percebam a importância disso” (p. 15). Neste caso, em que se pretende a construção de uma escola reflexiva e emancipadora, de acordo com o autor “a pergunta não é se os professores são reflexivos, mas como estão refletindo e sobre o que estão refletindo” (p.14). , Alguns indicadores dão o desenho de uma possível escola reflexiva e emancipadora no Brasil, sujo.arcabauço trárico é o.da escola democrática: universalidade da educação básica, com igual- dade de oportunidades de ingresso e de sucesso do aluno em sua trajetória educacional; ensino de qualidade para todos; liberdade je aprender, de ensinar e de pesquisar; participação da reflexão tiva sobre a prática, partilhando a construção do.conhecimen- to; autonomia para criticãr € divulgar a arte, a cultura e o. saber; ia da prática de gestão participativa e colegiada; valoriza- ç magistério, mediante a formação inicial e continuada de professores associada a salários dignos e condições de trabalho adequadas, . , , Entre tantas aproximações que poderiam ser feitas a partir do que até aqui foi discutido, assinalo aquelas que na minha per- cepção são mais significativas: * A problematização da criação da obra — o projeto politi- co-pedagógico-curricular — como elemento viabilizador da construção da escola reflexiva e emancipadora con- funde-se com a própria discussão sobre a construção da escola reflexiva, porque ambas partem dos mesmos pres- supostos e têm objetivos comuns. o . * A construção do projeto político-pedagógico-curricular significa a criação de uma verdadeira obra da comunida- de escolar, enraizada no chão da escola. A construção da escola reflexiva e emancipadora, embora necessite de estudos mais aprofundados, na minha concepção, tem idêntico significado, pois sua construção ocorre no lugar de trabalho, com o envolvimento de todos os professores “no diálogo do trabalho com os outros e na assunção de objetivos comuns”. . * Os princípios lefebvrerianos que « consideram const. ção coletiva como uma criação que parte da análise do cotidiano para chegar a uma elaboração em nível mais a à realidade . ana para sia legiti- 78 Isabel Alarcão no processo de trabalho com os outros que trazem consi- go sua bagagem cognoscitiva, o conhecimento é cons- truído coletivamente, Essa ciência produzida será então reconhecida, à medida que sãa aplicável ao cotidiano, que também é uma forma de construir ciência, Tais prin- cípios poderão ser aplicados ao processo de construção da escola reflexiva e emancipatória concebida por Alarcão (2001 a e b), pelo fato de que essa escola consiste em um processo de formação no contexto profissional, em que o professor despoja-se de seu individualismo e “aprende na partilha e no confronto com os outros, qualifica-se para.o trabalho, no trabalho e pelo trabalho”. A reciprocidade autonomia/dependência da escola em relação aos modelos de sociedade, bem como a interação cultura interna/externa da organização escolar consisi tem em uma das dimensões do projeto político-pedagógico- curricular, qual seja, à política. Também são considera- das como uma das funções sociais e políticas da escola reflexiva e emancipadora. Essa dimensão política/ função social e política, a rigor além de considerar a prática so- cial como ponto de partida e de chegada da prática peda- gógica, inclui o compromisso da educação escolar em atender aos interesses reais da população, sob a égide da universalização e da democratização da escola pública, gratuita e de qualidade, atualmente traduzida pela esco- la inclusiva, A dimensão pedagógica do projeto político-pedagógico- curricular reside na intencionalidade da escola para de- senvolver ações a fim de cumprir sua finalidade de for- mar cidadãos nas dimensões sociocultural, política, pro- fissional e humana. Na essência, a dimensão pedagógica da escola reflexiva e emancipatória está na formação con- tinuada do professor que se realiza no locus de trabalho. Em um processo de reciprocidade, o professor qualifica- se junto com os outros professores e a escola qualifica-se, Teconceitualiza-se e reorganiza-se. A própria organização escolar é desvelada quando há uma reflexão sobre os con- flitos inerentes a ela, bem como são reveladas as relações de poder nela existentes, o que conduz a um redimensio- Escola Reflexiva e Nova Racionalidade 79 namento institucional. Com tal sentido, Alarcão utiliza a expressão “escola reflexiva e qualificante”. Preferi a ex- pressão “escola reflexiva € emancipatória” por entender que a dinâmica da formação coletiva, que é reflexiva e qualificante, confere aos participantes, por meio da prá- tica interdisciplinar, certa autonomia de saberes e liber- ta-os da prisão epistemológica exclusiva de sua discipli- na no currículo. Nessa perspectiva, cada um no coletivo da reflexão-ação-refleção assume responsabilidades e toma decisões. Trata-se de uma conquista da autonomia e da emancipação pela participação que facilita o exercí- cio individual no coletivo de uma “autoridade coerente- mente democrática” (Freire, 1996, p. 104). Nesse pro- cesso, o professor vai complementando sua profissionali- zação e a escola ressignifica suas relações de poder pau tada na partilha do saber, na gestão colegiada, na ética e na solidariedade. * A dimensão curricular do projeto político-pedagógico- curricular expressa-se pela construção do currículo que, em síntese, consiste na organização do conhecimento es- colar em busca da qualidade social do ensino. Na escola reflexiva e qualificante, ocorre também uma reconstru- ção do conhecimento escolar em face da necessária mu dança de paradigma na construção dos saberes profissio- nais do professor que interferem no conhecimento que eles ensinarão que, por sua vez, provoca mudanças na organização do currículo. Se o professor irá qualificar-se por meio da interação entre os saberes sistematizados que adquiriu e os saberes evidenciados pela reflexão so- bre as situações educacionais no lugar onde trabalha, cuja interação é mediada pela avaliação em processo, conse- glentemente o conjunto de professores estará imprimin- do outra qualidade ao conhecimento escolar. É preciso enfatizar que a transformação da escola historica- mente conservadora e racional em escola reflexiva e emancipadora é um processo em construção e não ocorre sem rupturas. Não é tarefa fácil romper com a ordem estabelecida, tampouco é fácil ultrapassar as molduras imóveis do definitivo e acabado. Toda-