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A teoriA do simbólico de durkheim e lévi‑strAuss, Resumos de Religião

Na celebração do centenário de Emile Durkheim na. Sorbonne em 1960, Lévi‑Strauss1 ... um verdadeiro mapa do pensamento do século xixrelativo ao estatuto.

Tipologia: Resumos

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Na celebração do centenário de Emile Durkheim na
Sorbonne em 1960, Lévi‑Strauss1 presta homenagem ao fundador da
escola sociológica francesa saudando sua conversão para a etnologia em
seu livro de 1912, As formas elementares da vida religiosa. Lévi‑Strauss atri
bui à fundação do LAnnée Sociologique o repentino interesse de Durkheim
por tal ciência. Nas resenhas que publicou nesse periódico, do qual foi o
fundador, Durkheim se deu como tarefa comentar e criticar o que apa
recia no mundo como literatura sociológica. Desse modo, passou a in
teirar‑se sistematicamente do que faziam e observavam os etnógrafos
[1] Lévi‑Strauss, Claude. “O que a
etnologia deve a Durkheim”. In: An-
tropologia estrutural dois. Rio de Janei‑
ro: Biblioteca Tempo Universitário,
1976 [1960], pp. 52‑6.
A teoriA do simbólico
de durkheim e lévi‑strAuss
Paula Montero
Resumo
Reconstruindo analiticamente o diálogo entre Claude
Lévi‑Strauss e E. Durkheim em torno do tema do totemismo e das formas de pensamento nas culturas primitivas, este
artigo procura explicitar como a escola francesa inaugurou uma antropologia do simbólico, não hermenêutica e, até hoje,
muito influente no campo dos estudos das religiões. O principal objetivo é demonstrar a centralidade de determinado
conceito de “representação” nessa teoria do simbólico, de viés cognitivista, e examinar, à luz das perspectivas atuais, as
suas limitações para a compreensão dos fenômenos religiosos contemporâneos.
Palavras‑chave: Émile Durkheim; Claude Lévi‑Strauss; simbólico;
estudo das religiões.
AbstRAct
By analytically reconstructing the dialogue between Claude
Lévi‑Strauss and Émile Durkheim on totemism and forms of thought in primitive cultures, this article discusses the
elaboration of a non‑hermeneutic Anthropology of the symbolic by the so called French school, until this day very
influent in the field of religious studies. The central aim is to demonstrate the importance of a certain cognitivist notion
of “representation” in this theory and to examine, from the perspective of current developments, its limits as a tool for
approaching contemporary religious phenomena.
Keywords: Émile Durkheim; Claude Lévi‑Strauss; symbolic; religious
studies.
desdobramentos contemporâneos no estudo das religiões
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Na celebração do centenário de Emile Durkheim na Sorbonne em 1960, Lévi‑Strauss^1 presta homenagem ao fundador da escola sociológica francesa saudando sua conversão para a etnologia em seu livro de 1912, As formas elementares da vida religiosa. Lévi‑Strauss atri‑ bui à fundação do L’Année Sociologique o repentino interesse de Durkheim por tal ciência. Nas resenhas que publicou nesse periódico, do qual foi o fundador, Durkheim se deu como tarefa comentar e criticar o que apa‑ recia no mundo como literatura sociológica. Desse modo, passou a in‑ teirar‑se sistematicamente do que faziam e observavam os etnógrafos

[1] Lévi‑Strauss, Claude. “O que a etnologia deve a Durkheim”. In: An- tropologia estrutural dois. Rio de Janei‑ ro: Biblioteca Tempo Universitário, 1976 [1960], pp. 52‑6.

A teoriA do simbólico

de durkheim e lévi‑strAuss

Paula Montero

Resumo Reconstruindo analiticamente o diálogo entre Claude Lévi‑Strauss e E. Durkheim em torno do tema do totemismo e das formas de pensamento nas culturas primitivas, este artigo procura explicitar como a escola francesa inaugurou uma antropologia do simbólico, não hermenêutica e, até hoje, muito influente no campo dos estudos das religiões. O principal objetivo é demonstrar a centralidade de determinado conceito de “representação” nessa teoria do simbólico, de viés cognitivista, e examinar, à luz das perspectivas atuais, as suas limitações para a compreensão dos fenômenos religiosos contemporâneos. Palavras‑chave: Émile Durkheim; Claude Lévi‑Strauss; simbólico; estudo das religiões.

AbstRAct By analytically reconstructing the dialogue between Claude Lévi‑Strauss and Émile Durkheim on totemism and forms of thought in primitive cultures, this article discusses the elaboration of a non‑hermeneutic Anthropology of the symbolic by the so called French school, until this day very influent in the field of religious studies. The central aim is to demonstrate the importance of a certain cognitivist notion of “representation” in this theory and to examine, from the perspective of current developments, its limits as a tool for approaching contemporary religious phenomena. Keywords: Émile Durkheim; Claude Lévi‑Strauss; symbolic; religious studies.

desdobramentos contemporâneos no estudo das religiões

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[2] Idem. “Religiões comparadas dos povos sem escrita.” In: Antropo- logia estrutural dois. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universitário, 1976 [1965], p. 59.

[3] Ibidem, p.70.

“de campo”, tais como Boas, Spencer e Gillen, Cushing etc. Ao aceder diretamente às fontes, Durkheim teria feito, segundo Lévi‑Strauss, uma importante descoberta: voltando‑se para os dados particulares da ob‑ servação direta, abandonando os simples compiladores como Tylor e Wundt, a etnologia durkheimiana pôde libertar‑se das pretensões histó‑ rico‑filosóficas, que faziam dos fatos meras ilustrações de hipóteses es‑ peculativas, e ganhar autonomia como uma nova ciência experimental. Talvez a noção de etnologia então abraçada por Lévi‑Strauss hoje já nos pareça um tanto antiquada: “espécie de inventário humanista de todas as formas de expressão suscetíveis de serem adotadas pela natureza humana”^2. No entanto, para além de seu valor humanísti‑ co, Lévi‑Strauss imputa à etnologia um valor heurístico no campo das ciências sociais, ao mesmo tempo muito próximo e bastante crítico àquele expressado por Durkheim. Ao assumir em 1951 a cadeira de Religiões dos povos não civilizados, fundada em 1888 na École Pratique des Hautes Études, e que fora de Léon Marillier, Marcel Mauss e Mauri‑ ce Leenhardt, Lévi‑Strauss lhe muda o nome para Religiões comparadas dos povos sem escrita. Naquele contexto de descolonização, em que os “ouvintes de ultramar” começavam a discordar das interpretações de Lévi‑Strauss e seus alunos, essa mudança não foi inocente: sen‑ sível aos novos tempos, tornara‑se impossível cultivar a colaboração dos não europeus mantendo o suposto de que as religiões em estudo eram praticadas por povos “não civilizados”. Lévi‑Strauss considerou o epíteto “sem escrita” valorativamente mais neutro, além de acres‑ centar uma estabilidade relativa ao objeto que o deixava mais próprio à pesquisa experimental^3. Foi nesse quadro institucional e ideológico francês de meados dos anos 1950 que Lévi‑Strauss experimentou mé‑ todos de análise das representações míticas e das práticas religiosas antes de migrar, nas décadas seguintes, para a construção sistemática de seu modelo estrutural. São os escritos desse período que nos per‑ mitem, então, perceber com mais clareza o que as suas interpretações sobre as religiões ditas primitivas devem (ou não) a Durkheim. O en‑ sejo deste artigo será, portanto, em parte, o de examinar se e como Lévi‑Strauss reportou‑se ao modelo durkheimiano das religiões di‑ tas primitivas e quais desdobramentos particulares imprimiu a esse legado. Demonstraremos a centralidade de determinado conceito de representação nessa teoria do simbólico, de viés cognitivista, e exami‑ naremos, à luz das perspectivas atuais, as suas limitações para a com‑ preensão dos fenômenos religiosos contemporâneos.

o pRimitivo e suAs Religiões

A trajetória acadêmica de Lévi‑Strauss é, como sabemos, bastante heterodoxa. Recém‑graduado em direito e filosofia teve, entre 1934 e

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[4] Durkheim, Émile. Las formas ele- mentales de la vida religiosa: el sistema totémico en Australia. Madrid: Akal Editora, 1982 [1912].

[5] Para um bom balanço da traje‑ tória do conceito de “representações coletivas” na obra de Durkheim, ver Oliveira, Marcio de. “O conceito de representações coletivas: uma traje‑ tória da divisão do trabalho às formas elementares”. Debates do ner. Porto Alegre, ano 13, n‑º 22, 2012. [6] Durkheim, op. cit., 1982 [1912], p.138.

[7] Ibidem, p. 46.

[8] Ibidem, p. 46.

[9] Durkheim, Émile. “Le Problème religieux et la dualité de la nature hu‑ maine ”. Bulletin de la Société Française de Philosophie, n‑º^ 13, 1913, pp. 63‑100.

evolucionismo sociológico em direção a um “evolucionismo metodo‑ lógico”, que evita a questão das origens. As formas elementares da vida religiosa (1912)^4 , obra que pretende co‑ locar o fato religioso em bases teóricas distintas do evolucionismo, é um verdadeiro mapa do pensamento do século xix relativo ao estatuto da religião em suas relações com a filosofia e a teoria do conhecimen‑ to. Nesse trabalho, Durkheim toma o totemismo como uma forma elementar de religião que, pela sua simplicidade, permitiria acessar o fundamento de toda configuração religiosa como um modo de conhe‑ cimento sistemático do mundo a partir de sua divisão nas categorias sagrado e profano, formas primeiras e universais de “representação”. O totemismo também é estratégico para a tese durkheimiana de que as categorias de pensamento não são dadas a priori, isto é, não são an‑ teriores à experiência nem imanentes ao espírito. Durkheim dá especial atenção aos processos de simbolização, co‑ locando a noção de “representações coletivas”^5 no centro de sua teoria do conhecimento. O primeiro sistema de representações que o ho‑ mem teria construído para si seria religioso. Desse modo, segundo Durkheim, as “crenças religiosas” nada têm que ver com a ideia de deus ou de vida eterna, mas diriam respeito a uma representação do mundo^6 que tem, universalmente, um caráter dual e oposto. O totemismo, essa religião sem deus, seria um caso exemplar para demonstrar a tese de que o traço distintivo do pensamento religioso em toda parte é o de representar o mundo “em dois domínios, um que compreende tudo o que é sagrado, e outro que compreende tudo que é profano”^7. Nesse sentido, crenças, mitos, lendas etc. seriam “sistemas de representa‑ ções” que expressam a natureza das coisas sagradas, as suas virtudes, os poderes que lhes são atribuídos e as suas relações com as coisas profanas. Sagrado e profano seriam categorias de pensamento que, na teoria durkheimiana, classificam o universo conhecido e cognoscível em “dois gêneros que compreendem tudo o que existe”^8. Essa polari‑ dade antitética, pilar que sustenta qualquer classificação do real, di‑ vide o mundo em dois domínios heterogêneos e separados, mas que podem se comunicar, desde que regras disciplinadoras desse contato sejam respeitadas. Por meio das crenças, a sociedade define a quali‑ dade das coisas sagradas, e, pelo rito, sanciona institucionalmente as modalidades autorizadas de atitudes do homem diante do sagrado. Os símbolos lógicos são construídos pelo homem, que toma como modelo a vida coletiva. As classificações são sistemas cujas partes es‑ tão dispostas em ordem hierárquica de gênero e espécie, categorias estas que o homem emprestou de seu modo de agrupar a vida social em fratrias, clãs e subclãs^9. Para Durkheim, crenças e categorias de pensamento estão asso ‑ ciadas, mas não são exatamente a mesma coisa. Poderíamos afir ‑

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[10] Durkheim, Las formas elementa- res… op. cit., 1982 [1912], p. 38.

[11] Ibidem, p. 38

[12] Ibidem, p. 41.

[13] Lévi‑Strauss, Claude. «Postfa‑ ce au chapitre xv». In: Anthropologie structurale. Paris: Plon, 1958 [1955], pp. 347‑51.

mar, talvez, que as crenças, como representações coletivas, seriam a roupagem cultural, a forma particular com a qual as sociedades ex‑ perimentam as categorias abstratas. As crenças designam as coisas sagradas e as conectam mediante relações de subordinação, equiva‑ lência, hierarquia, oposição etc. Ao experimentar essas relações na vivência social, o homem se vê pela primeira vez capaz de conceber e operar categorias abstratas. As categorias mentais, tais como tem‑ po, espaço, gênero etc., são para Durkheim a “ossatura da inteligên‑ cia”^10. E essas categorias “nasceram da e na religião, são produto do pensamento religioso”^11. O conceito de “formas elementares” nos remete a duas ordens de realidade distintas, embora conectadas: o mundo das representações coletivas, que se desenvolve no plano das relações sociais e diz respei‑ to aos conteúdos das coisas sagradas, e o das categorias de entendi‑ mento, que se desenvolve no plano da mente humana. Durkheim não tem dúvidas quanto ao modo universal de operação dessas categorias, entendidas como “um quadro abstrato e impessoal que envolve não apenas a nossa existência individual, mas a da humanidade”^12.

lévi‑stRAuss e A escolA sociológicA fRAncesA

Em um de seus posfácios ao livro Antropologia estrutural , Lévi‑Strauss postula que, para o etnólogo, toda sociedade englo ‑ ba um conjunto de estruturas que correspondem a diferentes tipos de ordem social, como parentesco, organização social e estratifi‑ cação econômica^13. O desafio que se coloca para a etnologia seria o de formular o modelo geral de uma sociedade particular que fosse capaz de determinar o modo como todas essas ordens se regem umas às outras de um ponto de vista sincrônico. Na perspectiva levistraussiana, as tentativas de construção desse modelo geral não tiveram muito êxito porque levaram em conta apenas as es‑ truturas tais como podem ser objetivamente observadas na vida social. Lévi‑Strauss distingue, assim, as estruturas de ordem “vi‑ vidas” (que equivalem à realidade objetiva) das estruturas de or‑ dem “concebidas” — as representações que os homens fazem de sua realidade. Desse modo, enquanto o parentesco, a organização social, as relações de troca pertencem à primeira ordem, a religião e o mito correspondem à segunda. Essa formulação inspira‑se ex‑ plicitamente na distinção marxista infra/superestrutura, correla ‑ cionando as religiões e os mitos das sociedades não europeias ao campo da ideologia nas sociedades contemporâneas. No entanto, as conclusões que Lévi‑Strauss retira dessa distinção da sociedade em duas ordens diversas (a social e a representacional) estão mais próximas de Durkheim do que de Marx.

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[15] Marcio de Oliveira, op. cit., p. 71, sugere que o conceito de “represen‑ tação coletiva”, em termos teóricos, mantém semelhanças com o conceito de fato social, embora seja pensado de modo menos coercitivo porque tem como foco as interações sociais.

[16] Durkheim, Las formas elementa- res… op. cit., 1982 [1912], viii.

[17] Ibidem.

caracterizam por processos classificatórios de oposição e homologia. Comparando, no entanto, os dois procedimentos, poderíamos dizer que a diferença entre as duas démarches estaria no lugar atribuído às categorias para o funcionamento da mente. Durkheim relaciona cren‑ ças (que estão no plano etnológico) às categorias mentais (que são universais), ferramentas de todo conhecimento humano. As primeiras dão acesso às segundas. Lévi‑Strauss as coloca no plano etnológico — as categorias são sensíveis. Elas dão acesso à estrutura da mente, pensada como um conjunto de relações lógicas, mas elas mesmas per‑ manecem no plano particular. Ou seja, se, por um lado, os dois autores trabalham com a mesma ideia universal de mente humana, por outro, trabalham a teoria da representação por caminhos distintos: enquanto, para o primeiro, ela é uma teoria do pensamento, para o segundo, tra‑ ta‑se de uma teoria da comunicação.

mito e Religião como foRmAs de RepResentAção

Pode‑se atribuir a Durkheim a cristalização do conceito de re ‑ presentação nas ciências sociais^15. A noção de “sistema de represen‑ tações” é ainda muito influente nas ciências sociais contemporâne‑ as e designa, de modo geral, o conjunto de ideias e valores próprios de uma sociedade. Essas “representações coletivas”, pensadas como relativamente autônomas tanto no que diz respeito à materialidade social como em relação à consciência dos indivíduos, elaboram mo‑ dos de representar o cosmos, a totalidade social, a magia, a feitiçaria, a pessoa etc. Em sua crítica à psicologia, Durkheim é bastante enfático em sublinhar que as atitudes intelectuais do grupo são independen‑ tes das disposições mentais individuais. Além de defender a posição de que as ideias religiosas não podem ser consideradas indícios de um pensamento ou emoção aberrantes ou equivocados, o autor ainda postula que elas constituem um modo particular de expressar o real e a vida social. “[…] [D] ebaixo do símbolo , é preciso saber atingir a re‑ alidade que ele figura e que lhe dá sua significação verdadeira […]”^16 , observa Durkheim ao afirmar que as religiões primitivas não podem ser consideradas nem “erro” nem “mentira”, porque estão “fundadas na natureza das coisas ”. Temos aqui a distinção entre estrutura social e estrutura mental mencionada por Lévi‑Strauss. Está bastante claro nesse trecho que o autor entende a representação como imagens men‑ tais transfiguradas do mundo real. Mas qual seria a relação que essas imagens mantêm com a materialidade das coisas? Durkheim afirma que “[…] quando abordamos o estudo das religiões primitivas, é com a certeza de que elas pertencem ao real e o exprimem ”^17. Há aqui um modo bastante atual de formular as relações entre ideia e mundo. Para Durkheim as representações são compostas de símbolos. O conceito

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[18] Ibidem, p. 73.

[19] Ibidem, p. 73.

[20] Ibidem, pp. 138‑9.

durkheimiano de símbolo postula que as representações religiosas expressam o mundo das coisas sociais. Desse modo, o símbolo nele mesmo não é o objeto da reflexão. Ele precisa ser decifrado em termos daquilo que esconde. A significação, portanto, diz respeito a buscar os referentes das ideias que estão em outra dimensão, fora do mundo simbólico: uma ideia significa quando encontra sua contrapartida so‑ cial. É nesse sentido que Durkheim considera o totem “antes de tudo simbólico”. “O deus do clã [no caso dos Arunta], o princípio do totem, nada mais é do que o próprio clã, hipostasiado e representado na imagi‑ nação sob a forma perceptível de espécies vegetais ou animais vistas como totens”^18. O engano aqui — indicado na escolha da palavra de origem grega hipóstase — diz respeito ao fato de o homem primitivo tomar como real o que apenas existe na abstração. Duas implicações interessantes podem ser retiradas dessa colocação: a primeira se refere a esse entendimento da representação como engano; a segunda, à re‑ presentação como figuração. Em sua crítica à interpretação naturalista da religião em Max Müller, Durkheim argumenta que, se a função da religião fosse “nos dar uma representação do mundo que nos guiasse em nossas relações [práticas] com ele […], os fracassos, infinitamente mais frequentes do que os êxitos, rapidamente lhes teriam advertido de que estavam em um caminho equivocado […]”^19. Nesse comentário, é possível perce‑ ber que, se a religião expressa o mundo real, esse real não é a natureza física. As representações religiosas não são, para ele, uma teoria extra‑ vagante sobre as causas que regem os fenômenos físicos. Ainda assim, Durkheim trata a crença como um engano. Qual seria então a diferença do estatuto do engano na teoria durkheimiana com relação aos autores que ele critica? Questão que nos leva à segunda implicação, a da repre‑ sentação como figuração. Para encontrar uma alternativa à ideia de representações religiosas como engano, Durkheim desenvolve uma estratégia argumentativa na qual é possível perceber uma diferenciação entre a categoria de crença e a noção de ideias religiosas. Na minha leitura do texto de Durkheim, as crenças são o modo como as ideias religiosas são ditas, o modo como os nativos expressam as ligações que concebem entre as coisas. No caso das crenças totêmicas, elas aparecem na forma do medo e/ou res‑ peito a certos animais, na convicção do parentesco entre homens e animais. “Quando o australiano da tribo Port‑Mackay sustenta que o sol, as serpentes etc. pertencem à fratria […] [ele] realmente crê que os ‘caimãs são cangurus’, e que os cangurus são Wootaroo”^20. Ao enfatizar o verbo ser, em itálico no texto, Durkheim explica que a etiqueta da fra‑ tria tem para o nativo um sentido : o de expressar que há um laço que liga coisas e animais às pessoas, tornando‑os parte do mesmo grupo. O homem simboliza essas crenças em imagens e lhes rende culto. Cabe,

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[25] Ibidem, p. 140.

[26] Ibidem, p. 178.

[27] Ibidem, p. 114. [28] Embora a teoria durkheimiana das representações sociais se diferen‑ cie significativamente de uma antro- pologia simbólica que se desenvolveu na França na década de 1930 em tor‑ no de Marcel Griaule, a ideia de que os saberes nativos são formas de representar o mundo de maneira in‑ dependente do mundo que conhece também está implícita nos estudos desta abordagem. Empenhada em interpretar as significações dos sis‑ temas de pensamento mitológicos, teológicos, cosmológicos das socie‑ dades africanas ditas “tradicionais”, essa corrente inaugura, ao mesmo tempo, a prática etnológica e o afri‑ canismo francês. A teoria do conhe‑ cimento subjacente a essa corrente de pensamento, centrada nas formas discursivas da literatura de tradição oral — nos mitos, contos, lendas, provérbios —, no estudo das línguas e dos saberes filosóficos, religiosos e artísticos, está menos preocupada com os modos de funcionamento da mente ou com o fundamento social das ideias como em Durkheim do que com a reconstituição dos siste‑ mas de pensamento e conhecimento em si próprios. O seu principal foco é a teoria que a sociedade estudada elabora para dar conta de si própria; seus desdobramentos abrem o cami‑ nho para estudos que se qualificam hoje como “etnociência”.

Todas as crenças religiosas conhecidas, sejam simples ou complexas, apresentam um mesmo caráter comum: supõem uma classificação das coisas, reais ou ideais, que os homens concebem, em duas classes, em dois gêneros opostos, designados geralmente por dois termos distintos que as palavras profano e sagrado traduzem bastante bem”^25.

E, para Durkheim, existe religião, ou sentimento religioso, no mo‑ mento em que se distingue sagrado e profano. Explicar o sistema reli‑ gioso totêmico é, pois, demonstrar as razões que movem os homens a designar essas imagens como sagradas. A resposta durkheimiana a essa questão é bem conhecida. O culto não se dirige aos emblemas, mas à “força anônima e impessoal”, esse princípio comum, neles pre‑ sente, mas que não se confunde com nenhum deles. Analisando o totemismo na chave da representação , isto é, da “for‑ ma material por meio da qual a imaginação se representa essa subs‑ tância imaterial, essa energia que se difunde em todo tipo de seres heterogêneos, e que é o único objeto de culto”^26 , Durkheim propõe uma ideia de simbólico como forma mental separada das coisas em‑ píricas. Quando o autor lança mão do termo “representação”, ele informa ao leitor que está se deslocando para o ponto de vista do nativo. “Significado”, neste caso, seria o sentido que o nativo dá aos símbolos inseridos de modo mais ou menos visível em suas cren‑ ças. As imagens do ser totêmico são mais sagradas — leia‑se mais significativas — do que o ser ele mesmo, porque as imagens repre‑ sentam e permitem formular abstratamente a ideia da força social que os move. Pode‑se, talvez, para concluir, arriscar o desenho de um paradigma durkheimiano das representações que incluiria duas dimensões: uma teoria do conhecimento e uma teoria da signifi ‑ cação. Na primeira, as representações são concepções nativas que nos dão acesso à “ossatura da inteligência”; modos universais e não religiosos de organizar o mundo para conhecê‑lo — estamos aqui no plano das proposições lógicas que implicam o uso das categorias; já a teoria da significação diz respeito ao plano das ideias religiosas que produzem, mais do que pensam, forças de coesão social. Neste plano, as imagens são a forma mental por meio da qual o nativo sim‑ boliza, ou “imagina” na linguagem de Durkheim, essa substância imaterial, essa energia dinamogênica que os une. Nesse sentido, o símbolo é uma imagem mental composta pelo nativo para expressar sua crença ou sentimento de coesão. Esta teoria do simbólico pos‑ tula a vida mental como separada do mundo das coisas. Sacralizar as coisas é fazer delas o símbolo de algo que está fora delas. “É o emblema que é sagrado. Conserva este caráter com independência do objeto sobre o qual ele se representa”^27. O símbolo aqui está no lugar da coisa representada^28.

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Retomando criticamente os problemas sobre as formas primiti‑ vas de pensar inaugurados por Durkheim, Lévi‑Strauss lhe inverte radicalmente os termos: ao invés de uma teoria sociológica do sim‑ bolismo, ele propõe uma teoria simbólica da sociedade. Lévi‑Strauss trata as culturas ditas “primitivas” não como um conjunto de dados a serem descritos, mas como ponto de partida para um modelo a ser construído pelo observador. Dito de outra forma, não é a variedade empírica particular das culturas que o interessa, mas a regra de suas variações. Pela comparação é possível estabelecer uma gramática das diferenças, isto é, demonstrar que apenas um número limitado de invariantes organiza todas as estruturações possíveis. É nesse sentido que Lévi‑Strauss se interessa pela religião primitiva e pelos mitos. Para ele, toda religião diz respeito a uma exigência univer‑ sal de ordem: “essa exigência de ordem está na base de todo pensa‑ mento que chamamos de primitivo, mas somente porque ela está na base de todo pensamento”. Ao submeter ao foco de sua atenção o modo primitivo de pensar, Lévi‑Strauss retoma criticamente o tema durkheimiano da classificação. Quando Lévi‑Strauss se coloca o problema do simbolismo ani‑ mal, conclui que os fenômenos totêmicos traduzem uma cesura en‑ tre a ordem da natureza e a da cultura. A ideia do quadro de permuta‑ ções entre diferenças e semelhanças relativas seja aos grupos sociais, seja às espécies animais ou vegetais resulta de uma hipótese sobre um duplo movimento do intelecto: por um lado, os nativos, em sua observação do mundo natural, comparam as coisas e percebem suas homologias e diferenças; por outro, tomando como modelo a natu‑ reza, se aproveitam dessas distâncias e aproximações lógicas para descreverem a si próprios. Trata‑se, pois, como em Durkheim, de colocar em operação uma lógica do contínuo/descontínuo ineren‑ te aos sistemas de classificação. No entanto, se para Durkheim os homens tomam como modelo a sociedade, para Lévi‑Strauss os ho ‑ mens tomam como modelo a natureza. Ao privilegiar o tema das classificações primitivas, Lévi‑Strauss privilegia a vertente durkhei‑ miana de uma teoria do conhecimento em detrimento de uma teoria da significação na qual o símbolo está no lugar da coisa represen‑ tada. Na abordagem estruturalista, o pensamento primitivo articula proposições cosmológicas por meio de categorias sensíveis. A sig‑ nificação se produz, então, como se sabe, na relação dos elementos nas frases das narrativas míticas ou na tradução daquilo que está expresso em uma linguagem para outra situada em nível diferente, mas isomórfico^29. Para Lévi‑Strauss falar em significação é, pois, fa‑ lar em regras de tradução. Como Durkheim, Lévi‑Strauss procurou

[29]Lévi‑Strauss, Claude. Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 1978, p. 24.

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[33] Asad, Talal. The formations of the secular christianity, islam, moder - nity. Stanford: Stanford University Press, 2003

[34] Ingold, Tim. “Pare, olhe, es‑ cute! Visão, audição e movimento humano”. Revista do nau , ano 2, jul.,

[35] Lenclude, Gérard. “Croyan‑ ce”. In: Bonte, Pierre e Izard, Mi‑ chel. Dictionnaire de l’ethologie et de l’anthropologie. Paris: puf, pp. 184‑6.

[36] Pouillon, Jean. “Remarques sur le verbe ‘croir’’’. In: Izar, Michel e Smith, Pierre. (dir). La Fonction sym- bolique. Essais d’anthropologie. Paris: Gallimard, 1979.

[37] Lenclude, op. cit., p. 186.

categorias não precedem o social, posto que a mente é socialmente constituída. O sistema classificatório vai do mundo social ao mun‑ do lógico, ou seja, as coisas só se tornam lógicas porque foram antes sociais. Em contrapartida, é a relação do homem com o meio natural que possibilita, para Lévi‑Strauss, tomar as espécies como operadores lógicos. No entanto, se também neste caso a elaboração dos conceitos não é anterior à linguagem, ainda assim, a mente é concebida como uma especificidade humana biologicamente dada. Essa centralida‑ de do conceito de “função simbólica” no estudo das representações e das crenças religiosas já tem sido bastante criticada pela antropo‑ logia contemporânea, seja porque retira as formas de conhecimento de seus contextos particulares e dos contextos de poder, como sugere Talal Asad^33 , seja porque pensa a percepção, como observa Tim Ingold, “como uma atividade computacional de uma mente dentro de um cor‑ po”, dentro de uma lógica que opõe “representação mental à sensação corporal”^34. Mas antes de desenvolvermos este ponto, voltemo‑nos para a ideia de crença. Na tradição antropológica o suposto de que o objeto central da ob‑ servação de campo eram as crenças dos povos estudados foi, até muito recentemente, um consenso silencioso que não exigia uma reflexão prévia^35. Admitiu‑se como postulado geral que não há sociedade sem “sistema de crenças". O etnólogo é esse “descrente que crê que os cren‑ tes creem” na formulação tornada célebre de J. Pouillon^36. Essa asso‑ ciação e, às vezes, até sinonímia entre uma teoria das representações e o sistema de crenças predominou nos modos antropológicos de inter‑ pretação das culturas não ocidentais. Embora, como vimos acima, no caso de Durkheim, as “crenças religiosas” nada tivessem que ver com a ideia de deus ou de vida eterna, mas dissessem respeito a uma repre‑ sentação do mundo social e, em Lévi‑Strauss a categoria central seja “espírito humano” e “saberes ou especulações míticas” mais do que “crença”, quando se imputa ao nativo um “modo de pensar”, esse pon‑ to de partida heurístico coloca necessariamente o pensamento antro‑ pológico às voltas com os problemas dos “critérios e das possibilida‑ des das coisas pensadas”, da “realidade ou verdade” das formulações religiosas, da “coerência dos sistemas das crenças”, de como medir a “convicção ou a disposição para a ação conferida pela crença” etc.^37. Quando Lévi‑Strauss afirma, a respeito da Gesta de Asdival, que “as especulações míticas […] buscam, em última análise, não descrever o real, mas justificá‑lo”, ele está sublinhando uma relação homomór‑ fica entre pensamento mítico e mundo real. Essa relação de adequação do mito à realidade, tributária da função primordial do mito, que se‑ ria reunir as pessoas em torno de uma ideia primordial de ordem do mundo e das coisas, supõe o real como separado das imagens mentais. Bruno Latour intui esse problema quando aponta para o dilema que o

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[38] Geertz, Clifford. “A religião como sistema cultural”. In: A inter- pretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 106.

[39] Ibidem, pp. 109‑10.

fetichismo coloca para o pensamento antropológico: na interpretação antropológica o poder dos objetos não está neles, mas só pode ser ex‑ plicado por meio de forças que estão fora deles, tais como “a sociedade” (em Durkheim), o “inconsciente” (em Lévi‑Strauss). A noção de cren‑ ça, essa forma de engano quanto àquilo que confere poder aos objetos e às imagens, produz, portanto, heuristicamente, essa separação do pensamento e da sociedade em duas ordens de realidade distintas. Parece‑nos que Talal Asad, ao propor um deslocamento do estudo das religiões do regime das representações para o regime dos discur‑ sos, abre um caminho interessante para a superação desse dualismo. Para o autor, a ideia antropológica de mito herdada da antiguidade alimenta uma série de oposições dualistas, tais como crença vs. co‑ nhecimento; símbolo vs. alegoria; natural vs. sobrenatural, que caberia superar. Os seus argumentos ficam claros na crítica que ele endereça à noção de religião como sistema simbólico tal como trabalhada por Clifford Geertz. Voltemos, pois, nossa atenção para esse texto.

A AntRopologiA ReligiosA de geeRtz

No texto “A antropologia como sistema cultural”, de 1966, Geertz se diz decepcionado com o estado de estagnação do campo dos estu‑ dos antropológicos da religião desde Durkheim e Weber. Em sua ten‑ tativa de trazer os clássicos para o contexto mais amplo do pensamen‑ to contemporâneo, Geertz privilegia uma abordagem simbólica dos fenômenos religiosos. Segundo ele, os símbolos podem ser definidos como “qualquer objeto, ato acontecimento ou relação que serve como vínculo para uma concepção”^38. Os sistemas simbólicos estariam, no entanto, fora do alcance das relações intersubjetivas, mas forneceriam um gabarito para a ação. Já os símbolos religiosos funcionariam para tornar o ethos (as disposições morais e estéticas de um povo) intelec‑ tualmente razoável e adaptado, do ponto de vista prático ao estado de coisas tal como ele é descrito pela visão de mundo. Na antropologia simbólica de Geertz, a função dos símbolos é ajustar as ações humanas a uma ordem cósmica imaginada e projetar imagens dessa ordem no plano da experiência. Mas como descrever analiticamente esse proces‑ so? Ao invés de fazê‑lo tomando as crenças como objeto como propu‑ sera Durkheim, ou as narrativas míticas como sugerira Lévi‑Strauss, Geertz voltou‑se para o que ele chama de “disposições” — conjunto de habilidades, hábitos ou inclinações — para executar certo tipo de ato e experimentar certos sentimentos em determinadas situações^39. Os sistemas de símbolos religiosos induziriam, segundo o autor, uma disposição religiosa ao formularem uma ideia geral de ordem do mun‑ do e do cosmos. Em sua crítica a Lévi‑Strauss que pretendeu ter acesso ao conhecimento nativo pela via de uma “gramática do intelecto”, a

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ção sagrado/profano como a essência universal do religioso. Assim, enquanto a crítica iluminista exigia o desmascaramento das ideias religiosas, o pensamento antropológico transformava os fetiches e tabus em essência do sagrado. Vimos como Durkheim, inspirado em Robertson Smith, fez do tabu a forma típica da religião primitiva e do sagrado uma essência universal do religioso. A religião primitiva seria, conforme notamos, o que a sociedade elabora como represen‑ tação, fonte de suas categorias cognitivas e força transcendente que se impõe ao indivíduo. Asad observa que, em sua teoria dos sistemas religiosos, Geertz retoma a ideia de símbolo como representação, a nosso ver, de manei‑ ra muito próxima à abordagem durkheimiana. O símbolo seria uma imagem que serve de suporte a outra concepção, oculta atrás dele, e que seria o seu significado. Asad propõe que o campo da significação pode ser abordado de duas maneiras distintas: no nível cognitivo, que diz respeito a um modo de conceber o mundo e que visa a compreensão de seu conteúdo; no nível comunicativo, que se refere ao modo de descre‑ ver o mundo e que trata os símbolos como categorias discursivas que se organizam na prática. Embora Geertz pretenda, contra a abordagem “racionalista” de Lévi‑Strauss, introduzir a questão do conhecimento do ponto de vista do nativo, em seu texto da religião como sistema cul‑ tural, Geertz mantém o privilégio de uma abordagem cognitivista dos símbolos religiosos que, como demonstramos anteriormente, está também presente no conceito de representação tal como foi utilizado por Durkheim e por Lévi‑Strauss. Na leitura crítica que faz desse texto de Geertz, Asad introduz o problema teórico da relação entre os sistemas simbólicos e as práticas religiosas, ou entre o plano da cognição e o da comunicação. Quando Geertz sugere que os símbolos religiosos induzem “disposições reli‑ giosas”, ele confunde, no entendimento de Asad, dois níveis distintos de discurso: o falar de (nível cognitivo) e o falar a (nível comunica‑ tivo). O discurso teológico, por exemplo, que insere os símbolos no arcabouço cosmológico, não é o mesmo discurso das atitudes morais, que produz disposições religiosas: são duas operações diferentes que usam signos diferentes. Os discursos envolvidos nas práticas são dis‑ tintos dos discursos sobre as práticas. Talal Asad propõe uma noção não cognitivista de símbolo: para ele, o símbolo não deve ser tomado como objeto/evento que serve de veículo para um significado na men‑ te, mas como um conjunto de relações entre objetos. O que o antropó‑ logo deve se perguntar seria, portanto, como essas relações se forma‑ ram e como tal formação se relaciona com a variedade das práticas. Para esse autor, a formação dos símbolos como resultado das relações entre objetos depende dos contextos sociais. Geertz faz crer que os símbo‑ los são capazes de produzir por eles mesmos “disposições/motivações

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[41] Em seu trabalho sobre o can‑ domblé “Candomblé é em rosa, verde e preto. Recriando a herança religiosa afro‑brasileira na esfera pública de Salvador, na Bahia”. Debates do ner. Porto Alegre, ano 13, n‑º^ 22, 2012, p. 130, Mattijs Van de Port critica a forma clássica como esse culto tem sido estudado pela antropologia bra‑ sileira: o foco da observação centrado em um templo específico; o sacerdote tomado como principal informante e exegeta das crenças; a iniciação como método de conhecimento do culto. Essa opção metodológica revela o parti pris clássico dos estudiosos que pensam estar assim mais aptos a acessar os significados cosmológicos “escondidos" atrás das crenças.

religiosas”. Asad considera que os símbolos não são capazes de fazer isso por si sós. É preciso que as instituições, tais como as igrejas, a família, a escola, produzam sanções, disciplinas, preces, obediência. Assim, não é a mente que se move espontaneamente na direção da verdade religiosa; é o poder material e simbólico das instituições que produz o que ele denomina de uma “rede motivada de práticas". São os processos de autoridade — os discursos teológicos, litúrgicos e, eu acrescentaria, os discursos antropológicos — que criam a relação entre práticas, enunciados, disposições e as ideias cósmicas de ordem. Os discursos religiosos criam espaços religiosos por meio de manuais, proibições, autorizando ou não relíquias e santuários, compilando vi‑ das de santo, reconhecendo milagres etc. A igreja medieval, por exem‑ plo, tinha a necessidade de distinguir o sagrado e o profano não para controlar as convicções, mas para dominar as práticas. Segundo Asad, a ideia de convicção é tributária da emergência da modernidade e da ciência. O problema da teoria da religião de Geertz, ao supor que todo símbolo religioso é um veículo de acesso a significações universais, tais como o desejo de ordem (como propuseram também, cada um à sua maneira, Durkheim e Lévi‑Strauss), é que a teoria antropológica não se distingue do discurso de qualquer atividade evangelizadora. Como já o fizera antes dele Durkheim, Geertz toma a crença como uma pulsão simbólica universal e, conforme bem observa Asad, reconhece como religiosa toda prática de conhecimento que tenha como função dar sentido à existência no mundo.

consideRAções finAis

O problema da abordagem cognitivista da religião, centrada no conceito de representação, é seu suposto implícito de que o mundo simbólico e o mundo social são duas dimensões separadas. Ao ado‑ tar acriticamente esse entendimento, essa abordagem reproduz sem perceber, como sugere Asad, o discurso teológico que transforma ocorrências, gestos e eventos em significados cosmológicos. Por essa razão, o autor sugere que a antropologia da religião abandone esse viés cognitivista, no qual o observador pensa poder definir o sentido das práticas de um ponto de vista exterior a elas. Essa atitude heurística, em grande parte herdada das práticas missionárias cristãs, está pre‑ sente na antropologia das religiões desde os clássicos até o momento atual. Tratar as crenças religiosas como representações simbólicas su‑ põe que, para interpretá‑las, é preciso decifrar as ideias que elas pro‑ duzem na mente e descobrir como os sentidos cosmológicos ocultos organizam as práticas^41. Para superar essa separação do pensamento e da sociedade em duas ordens de realidade distintas, Talal Asad sugere que a antropologia das religiões se pergunte não sobre o sentido das