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Este texto discute a evolução do conceito de boa ciência, desde o ideal indutivista de francis bacon até a sociopsicologia do conhecimento. O autor reflete sobre a importância de analisar a formação e incorporação de definições de boa ciência na prática científica efetiva. A crise do ideal racionalista de boa ciência é abordada, com destaque para a crítica de pierre duhem e a importância de um ideal de boa ciência objetivo.
Tipologia: Notas de aula
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O colapso do ideal baconiano de boa ciên- cia, consumado com o advento da teoria da rela- tividade, o subseqüente insucesso dos empiristas do Círculo de Viena em estabelecer um ideal subs- tituto e a pertinência da crítica de Pierre Duhem ao ideal racionalista levaram a reflexão sobre o que é boa ciência a subordinar-se a uma análise naturalística do processo de aquisição de conheci- mento ou, simplesmente, a dissolver-se em uma sociopsicologia do conhecimento. Gostaria de su- gerir que nenhuma dessas formas de capitulação é necessária. A reflexão sobre o que é boa ciência, ou, para usar um termo mais familiar, a metodolo- gia, pode reencontrar seu caminho se assumir a posição que, por assim dizer, lhe é de direito: a de carro-chefe da história da ciência. É verdade que há algo de megalomaníaco em supor que a meto-
dologia possa assumir tão elevada posição, mas não consigo vislumbrar um caminho intermediário entre o recuo a uma das formas de naturalismo a que acabo de fazer menção e uma operação de al- tíssimo risco. Receio que a metodologia tenha sido conduzida ao fundo de um poço do qual não há mais como sair a não ser dando um salto vertigi- noso. O objetivo deste artigo é discutir a viabilida- de deste salto.
O ideal de boa ciência que por mais tempo seduziu a ciência moderna foi, sem dúvida, a con- cepção indutivista de Francis Bacon. Eu o resumi- ria assim: boa ciência é a que se mostra capaz de inferir leis naturais a partir do acúmulo de obser- vações. Mais precisamente, é a que dispõe de princípios que, uma vez postos em prática, permi-
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Artigo recebido em maio/ Aprovado em dezembro/
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tem que essas leis se mostrem espontaneamente ao intelecto. O princípio fundamental é manter a mente a salvo de enganos. Estes podem vir de toda parte: da imerecida confiança que usualmen- te depositamos em nossos sentidos, de nossos sentimentos subjetivos, do intercâmbio social e de toda sorte de sistemas, religiosos ou laicos, de pensamento. Se é assim, a condição primordial para a produção de uma boa ciência é a existên- cia de mentes suficientemente bem treinadas para não se deixar enganar por nada disso. Satisfeita esta condição, observações e inferências confiá- veis poderão ser feitas, e a produção de uma boa ciência estará garantida. Nada menos que Newton e, posteriormente, Darwin se disseram tributários dessa concepção. Ambos acreditavam, algo inge- nuamente, que suas respectivas ciências eram o resultado de um acúmulo criterioso de observa- ções. Na verdade, o ideal baconiano de boa ciên- cia desfrutou de um status canônico por quase três séculos. Com o benefício do olhar retrospec- tivo, é de espantar que tenha sido preciso que os alicerces da física newtoniana fossem abalados para que ele também se visse abalado. Seja como for, o início do século XX assistiu ao colapso da idéia de que os princípios baconianos garantem uma boa ciência. Isso conduziu a metodologia a um impasse: decidir se a ciência, para merecer este nome, precisa ou não de garantias. Respon- der que sim demandaria mostrar quais seriam es- sas garantias. Responder que não demandaria ex- plicar como, na ausência de garantias, a ciência poderia ser uma forma particularmente privilegia- da de conhecimento. Os filósofos que, como Car- nap e os empiristas lógicos de um modo geral, responderam sim, não foram capazes de mostrar as garantias. Os que, como Popper, responderam não, foram mais bem-sucedidos. Eles foram capa- zes de conceber uma ciência sem garantias: a ciência, disseram, mesmo não dispondo de um método capaz de assegurar, de antemão, a valida- de de seus resultados, constitui uma forma privi- legiada de conhecimento porque é a única capaz de se expor a testes e de resistir a eles. Com essa resposta, a metodologia pôde sair da encruzilha- da a que foi conduzida pela crise da Física do fim do século XIX. Postulou-se, a partir daí, que a
qualidade de uma ciência não reside na extensão em que observações e generalizações indutiva- mente estabelecidas se mostram depuradas das ilusões cognitivas a que a mente humana está ine- vitavelmente exposta, mas, sim, na diversidade de conseqüências empíricas que podem ser deduzi- das de seus enunciados e na capacidade que es- sas exibem de resistir a testes. Esse novo ideal de boa ciência, de caráter racionalista, foi plenamente encampado pelos li- vros-textos de metodologia científica. Tome-se, por exemplo, o notável livro de Stinchcombe, Constructing social theories , de 1968. Ele apresen- ta a abordagem sociológica de Durkheim sobre o suicídio como um modelo de boa ciência. Com efeito, é difícil imaginar um trabalho – refiro-me, evidentemente, ao clássico O suicídio – em que o ato de derivar conseqüências empíricas de enun- ciados e submetê-las a testes seja tão ubíquo. A discussão de Durkheim sobre o suicídio no exér- cito merece particular atenção. Sabia-se que os militares se matavam mais do que os civis em qualquer país da Europa. Convencionalmente se pensava que seria por causa das adversidades ine- rentes à vida militar. Vida militar envolve privação da liberdade, convívio forçado e permanente ex- posição a toda sorte de humilhações. Tudo isso é verdade, admite Durkheim, mas o suicídio no exército nada tem a ver com isso. O suicídio nes- ta corporação é da mesma natureza que o suicí- dio nas sociedades ditas primitivas. Em ambos os casos, uma fatia considerável de autonomia é sub- traída dos indivíduos em favor de uma identidade coletiva. No limite, a própria noção de autonomia individual perde sentido. O sentido da vida pas- sa, então, a se localizar fora dela. Daí, o suicídio. Para tornar esta tese empiricamente tratável, Dur- kheim derivou nada menos que quatro conse- qüências empíricas, três das quais extremamente contra-intuitivas, e testou-as uma a uma. Sua tese demandava que os voluntários se matassem mais do que os não voluntários, que os militares mais antigos na corporação se matassem mais do que os mais recentes, que os militares de alta patente se matassem mais do que os de bai- xa patente e que, em países protestantes, o ín- dice de agravamento do suicídio fosse menor
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E permanentemente a salvo de refutação, o que seria um golpe mortal para o ideal racionalista de boa ciência. Pierre Duhem chamou pioneiramente a atenção para esse problema antes mesmo que esse ideal viesse a se estabelecer. Popper, bom leitor de Duhem que era, mostrou-se ciente de tudo isso, mas não pensou que estivesse diante de um problema tão grave (Popper, 1999, pp. 43- 44). É verdade, ele diz, que muitas vezes não é possível saber que enunciado de um sistema teó- rico está sendo falseado quando uma conseqüên- cia empírica deste sistema é falseada. Nesses ca- sos, ele prossegue, o cientista deve seguir seus instintos e contar com a sorte ( Idem , pp. 80-81). Se não há como afastar a espada, nada mais res- ta a fazer a não ser torcer para que ela não caia! Mas houve quem não achasse prudente contar com a sorte. Refiro-me a Lakatos. Lakatos quis manter o novo ideal canônico de boa ciência a salvo das objeções de Duhem propondo o que denominou “metodologia dos programas de pesquisa”. Um “programa de pes- quisas” é uma série de teorias ancoradas em um conjunto articulado de pressupostos teóricos e metateóricos, cuja validade pode ser, até segunda ordem, presumida (Lakatos, 1970). Para que exis- ta uma série de teorias é necessário que haja uma primeira, da qual se possa derivar uma ou mais conseqüências empíricas. Suponhamos que uma dessas conseqüências seja contrariada pela expe- riência. Como, nesse caso, identificar a parte da teoria que foi afetada? Não precisamos identificar, responde Lakatos. Podemos, nesse caso, recorrer a uma hipótese auxiliar para manter a teoria a sal- vo do contra-exemplo. Há, entretanto, algo a exi- gir dessa hipótese auxiliar: que se mostre capaz de antecipar fatos novos. Na medida em que o faz, converte-se na segunda teoria da série que com- põe o programa de pesquisas. Esse processo pode continuar indefinidamente. Mesmo as hipóteses auxiliares que não são bem-sucedidas o suficiente para se elevarem à condição de teoria de um pro- grama de pesquisa cumprem um papel fundamen- tal. Nenhum programa de pesquisa pode prospe- rar se não for capaz de desenvolver uma heurística
que sirva de “cinto de proteção” para seu núcleo básico de pressupostos, e as hipóteses auxiliares são a fonte dessa heurística. Para ilustrar tudo isso vou me valer da fa- mosa tese de Marx de que a revolução comu- nista deveria ocorrer na Inglaterra, país cujas “condições materiais” eram, então, as mais ma- duras para uma ação revolucionária. A revolu- ção comunista, como sabemos, ocorreu na Rús- sia, país cujas “condições materiais” não eram nada propícias. Isto parece afetar a tese, que faz parte do “núcleo duro” de pressupostos me- tateóricos do marxismo, de que o “ser social de- termina a consciência”. Uma hipótese auxiliar veio, entretanto, em socorro deste pressuposto. A chamada tese do “elo mais fraco da corrente”, de Lênin. De acordo com ela, a Inglaterra e a Rússia não podem ser tomadas como unidades estanques. Ambas constituem elos de uma mes- ma corrente e, portanto, o que ocorre em um país tem repercussão sobre o outro. Uma vez que esta tese encerra a regra “não se deve tomar fronteiras nacionais como unidades auto-conti- das de análise sociopolítica”, a qual passou a fa- zer parte da heurística marxista, ela torna o enunciado “A revolução comunista deve ocorrer na Inglaterra” imune ao fato de a revolução ter ocorrido na Rússia porque o vincula ao enuncia- do “Inglaterra e Rússia são elos de uma mesma corrente”. Mas, vale isso? Sim, responde Lakatos, desde que a teoria do elo mais fraco da corren- te se mostre capaz de antecipar fatos novos. Ela antecipa, por exemplo, a revolução chinesa e/ou a cubana? Se sim, estamos diante de uma boa ciência. Se não, não estamos. Há, entretanto, um problema, para o qual Feyerabend (1977) cha- mou devidamente a atenção. Lakatos quer rela- xar os critérios popperianos de boa ciência su- gerindo que se dê uma chance às teorias cujas conseqüências empíricas foram falseadas. Mas por que não duas, ou três? Afinal, teorias não são como namorados mal-comportados que só merecem uma única chance. Lakatos, certamen- te, teria de admitir isto, o que, no limite, condu- ziria a uma completa imunização da teoria con- tra o falseamento. Seria a espada de Duhem de volta ao cenário.
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Antes que Lakatos pudesse, bem ou mal, se haver com a advertência de Duhem, houve quem se valesse dela para colocar em cheque a própria pertinência de uma reflexão apriorística sobre o que é uma boa ciência. Refiro-me, agora, a Qui- ne. De acordo com ele, se alguma reflexão meto- dológica (isto é, sobre o que é uma boa ciência) é, de todo, possível, esta não pode ter um caráter apriorístico. Ela deve estar subordinada a uma in- vestigação sobre como o conhecimento é efetiva- mente adquirido – sobre como, a partir de tão pouco: as estimulações sensoriais, que é tudo o que nos é imediatamente dado, podemos produ- zir algo tão magnífico quanto, por exemplo, as teorias científicas. Inaugurou-se, assim, o que veio a ser conhecido como a abordagem naturalista do conhecimento. A reflexão metodológica passou, a partir daí, a ser vista como um dos possíveis sub- produtos de uma análise sobre o modo como se dá a aquisição de conhecimento. Para analisar esse processo, Quine tomou o aprendizado de uma língua como modelo. Gros- so modo, ele diz, este aprendizado se dá por duas vias. A primeira, mais primitiva, é a da os- tensão. Esta se verifica quando um adulto apon- ta um objeto para uma criança (ou um nativo aponta um objeto para um estrangeiro) e diz o nome desse objeto. Após algumas indicações, a criança (ou o estrangeiro) saberá associar palavras como “pássaro”, “camisa”, “meia” etc., aos objetos correspondentes. A segunda é, entretanto, a que mais interessa no que concerne a seu argumento. Trata-se, agora, do processo de aprender a associar palavras e sentenças não a objetos, mas umas às outras, em níveis crescentes de autonomia em re- lação à experiência sensível. Assim, aquilo que, no plano primitivo da ostensão pode ser, na melhor das hipóteses, descritível como, digamos, “pássa- ro”, num plano mais complexo pode se traduzir em “eis um pássaro batendo as asas”, “o pobre ani- mal está assustado” e, num plano ainda mais com- plexo, “há transformação de energia nesse local”. Compreender a ciência, sugere Quine, não é diferente de compreender como um estímulo tão
primitivo como o espetáculo de um pássaro agitan- do as asas pode acabar por conduzir a uma respos- ta tão formidável quanto o enunciado “há transfor- mação de energia nesse local”. Como um salto como este pode ser dado? Só pode haver uma ex- plicação, raciocina Quine: entre o estímulo senso- rial e a resposta formidável deve haver uma miría- de de outros enunciados, alguns mais próximos do estímulo, outros da resposta, os quais são forma- dos à medida que uma resposta ao estímulo origi- nal serve de estímulo para uma resposta de nível um pouco mais complexo, e assim sucessivamen- te, até que um enunciado como “há transformação de energia nesse local” possa ser produzido. Nes- sa perspectiva, a ciência tem um caráter necessaria- mente holístico. Ela consiste de redes inteiras de enunciados que só fazem sentido em bloco. A principal lição metodológica que Quine tira daí é a de que, ao contrário de tudo o que os livros-textos de metodologia científica apregoam, não é (logica- mente) possível refutar um enunciado via submis- são de suas conseqüências empíricas a testes. Du- hem pôs uma espada sobre o ideal racionalista de boa ciência. Popper e Lakatos tentaram, de alguma forma, afastá-la. Quine soltou-lhe as amarras. Com este ideal fora do caminho, o que nos resta? O pragmatismo, responde Quine. A cada ho- mem, ele diz, é dada uma herança científica e uma carga contínua de estimulação sensorial. Cabe-lhe ajustar uma coisa à outra, e as considerações que o guiam nessa empreitada são, quando racionais, de ordem estritamente pragmática (Quine, 1953, p. 46). Mas, se é assim, então não se pode vetar, a priori , o ato de submeter enunciados a testes via dedução de suas conseqüências empíricas. Tudo o que se pode fazer a respeito é advertir que re- corremos a tal expediente por uma mera questão de conveniência, isto é, apenas como um meio eficiente de “prever a experiência futura à luz da experiência passada” ( Idem , p. 44). Não devemos nos esquecer, Quine diria, que há maneiras alter- nativas de conectar o passado ao futuro e que, desde que uma determinada maneira se mostre eficiente na sua esfera específica de atuação, ela vale tanto quanto qualquer outra. Em seu célebre Humano, demasiado huma- no , seção 111, Nietzsche nos fala de um tempo
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quando um navio desaparece na linha do horizon- te ocupa a posição mais periférica. Entre um e ou- tro, é possível conceber a existência de muitos ou- tros enunciados, não explicitados, uns mais próximos do centro (os anteriormente menciona- dos E 2 e E 3 ), outros da periferia (o enunciado E 1 ), conectados entre si e aos dois enunciados em con- sideração. Se acontecer de a experiência sensorial contrariar um enunciado situado na periferia des- se “campo de forças”, este último não se verá em dificuldade. Nesse caso, os outros enunciados se redistribuem dentro do campo, isto é, deslocam-se para posições mais centrais ou mais periféricas, de forma a manter o sistema, como um todo, à salvo da experiência sensorial que contrariou o enuncia- do periférico. Nessa perspectiva, ao contrário do que dizem os livros-textos de metodologia, teorias não se sustentam porque se mostram capazes de resistir a testes cruciais – mesmo porque, agora, teorias sequer podem se prestar a testes cruciais –, mas porque encerram redes de enunciados capa- zes de se proteger mutuamente sempre que algu- ma conseqüência empírica de algum desses enun- ciados é contrariada pela experiência. Daí a impossibilidade, a priori , de uma teoria científica em desarmonia com qualquer fato conhecido de seu domínio. Estamos, então, diante de uma crítica radical ao ideal racionalista de boa ciência. Conforme vi- mos, este último veria a sociologia que Durkheim oferece em O suicídio como um inequívoco exem- plo de boa ciência. Durkheim procurou mostrar, via submissão de teorias em competição a testes cruciais, isto é, via derivação de uma conseqüên- cia empírica de uma das teorias, cuja negação é implicada pelas demais, que: 1) o suicídio no exército é da mesma natureza que o suicídio em sociedades ditas primitivas, 2) o índice comparati- vamente baixo de suicídio entre os católicos é da mesma natureza que o índice comparativamente baixo de suicídio entre os judeus e, 3) em ambos os casos, pode-se perfeitamente prescindir da psi- cologia porque a explicação só pode ser encontra- da em um exame da natureza dos laços sociais. Se isso não é um exemplo de boa ciência, diria o ideal racionalista, o que mais poderia ser? O natu- ralismo holista de Quine, entretanto, não veria ra-
zão para tanto entusiasmo. Ele argumentaria que os enunciados que Durkheim presumivelmente re- futou podem ser facilmente reabilitados desde que outros enunciados venham em seu socorro. Re- lembremos, por exemplo, a tese de Durkheim de que a taxa comparativamente elevada de suicídio entre os voluntários requer uma explicação socio- lógica e exclui a possibilidade de qualquer expli- cação psicológica para o suicídio no exército. Pode- se, contra isto, argumentar que os voluntários se matam mais porque, antes de entrar para o exér- cito, alimentam expectativas sobre a vida militar e estas se frustram amplamente. A psicologia estaria, assim, reabilitada. Se esse tipo de exercício for ge- neralizado, algo que pode facilmente ser feito, não restaria pedra sobre pedra do argumento socioló- gico a respeito de mortes voluntárias. Isso signifi- caria que O suicídio é um irremediável fracasso? Bom pragmatista que é, Quine responderia que não. Responderia que para entender a real contri- buição de Durkheim é necessário entender o que ele efetivamente fez. E, de um ponto de vista prag- matista, o que Durkheim efetivamente fez, ao su- por haver contribuído para o avanço do conheci- mento científico via falseamento de teorias psicológicas incapazes de perceber que a explica- ção para o comportamento humano reside na na- tureza dos laços sociais, foi mascarar o fato de que “natureza dos laços sociais” é, tanto quanto o apa- rato conceitual psicológico a que esta concepção se contrapõe, um dos possíveis “mitos” a que pode- mos recorrer para estabelecer uma conexão entre nossas experiências passadas e futuras. Se a socio- logia de Durkheim pode, de todo, ser considerada uma boa ciência, é somente por razões dessa natu- reza, ou seja, é somente por ter produzido um ou mais “mitos” potencialmente úteis, e não pelas ra- zões mencionadas nos livros-textos de metodologia científica.
Apesar de implicar tal crítica contundente aos livros-textos de metodologia, essa versão do naturalismo deixa ainda alguma margem para a
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preocupação com a questão metodológica. Quine questionou a pertinência de uma reflexão metodo- lógica de caráter apriorístico, e não de qualquer reflexão metodológica concebível. Houve, entre- tanto, quem desse esse passo adicional, conduzin- do a abordagem naturalista a um verdadeiro ma- nifesto antimetodológico. Subordinar a reflexão metodológica a uma análise naturalística do pro- cesso de aquisição de conhecimento pareceu, a al- guns, pouco. Melhor mesmo, diriam, seria acabar logo com esta saga do ideal de boa ciência, dissol- vendo-o em uma sociopsicologia do conhecimento. Refiro-me, agora, àqueles que, por falta de melhor nome, chamarei de behavioristas wittgensteinianos. Embora seja clara a influência que receberam de Wittgenstein e de Kuhn, eles são, de fato, herdeiros diretos do empirismo de Hume. Eu reconstruiria idealmente a posição antimetodológica desses so- ciólogos pós-kuhnianos nos seguintes termos: to- das as tentativas de mostrar o que é uma boa ciên- cia fracassaram. Não há, na verdade, por que insistir nisso. No que concerne à prática científica, todos sabem o que é uma “boa” (agora entre as- pas) ciência. Devemos, portanto, deixar a questão metodológica de lado e concentrarmo-nos na ati- vidade científica tal como realmente se dá. Em vez de indagarmos o que é uma boa ciência, devemos indagar como definições de “boa ciência” são es- tabelecidas, aprendidas e incorporadas à prática científica efetiva. Para além de uma boa crônica da ciência, a quê pode, entretanto, esta linha de investigação conduzir? David Bloor, o mais importante desses sociólogos, parece ter se dado conta de que essa radicalização do naturalismo não tem interesse al- gum a menos que possibilite, de alguma forma, atin- gir o que ele mesmo chamou de “o próprio coração do conhecimento” (Bloor, 1976). Ele pretendeu, en- tão, via uma peculiar combinação da psicologia em- pirista de Stuart Mill com uma estranhíssima concep- ção sociológica de objetividade à qual chegou, espantosamente, a partir de Frege, “tocar o próprio coração” do conhecimento matemático. Natural- mente, os ecos do naturalismo de Quine se fizeram presentes: só é possível fazê-lo, argumenta Bloor, investigando o modo como efetivamente este co- nhecimento é adquirido. Como, afinal, isto se dá?
Como se aprende matemática? Bloor vai buscar a resposta em Stuart Mill: aprende-se matemática to- mando-se operações físicas com objetos como um modelo para raciocínios abstratos. Crianças brin- cam com pedrinhas. Elas as ordenam, agrupam, se- param etc. Processos de raciocínio matemático são apenas pálidas sombras de operações físicas dessa natureza. É em razão de nossa experiência anterior em ordenar, agrupar e separar objetos físicos que somos capazes, por exemplo, de entender uma equação como x (x + 2) + 1 = (x + 1)^2. Bloor, en- tão, ancora-se em Stuart Mill para mostrar como uma experiência tão primitiva quanto brincar com pedrinhas pode conduzir a algo tão formidável quanto tal equação. Há, entretanto, lembra Bloor, uma séria lacu- na no raciocínio de Mill, para a qual Frege cha- mou devidamente a atenção: o caráter objetivo do conhecimento matemático ficou sem explicação. Os números, diz Frege, não estão no mundo ma- terial da mesma forma que uma árvore está. De uma árvore podemos dizer que é frondosa, verde etc. De um número não é possível dizer nada dis- so. Os números tampouco estão na mente, no mesmo sentido em que, por exemplo, um senti- mento está. Não há o “meu” dois ou o “seu” “dois”. Os números, então, fazem parte de um mundo que não é nem o dos objetos materiais nem o das disposições subjetivas. Fazem, antes, parte daquilo que Frege denominou o mundo da objetividade. Bloor concorda com tudo isso e se pergunta: o que é esta objetividade de que fala Fre- ge? A resposta, ele vai buscar no que faltou a Mill: uma sociologia. O único erro de Mill, segundo Bloor, foi não ter percebido que nem toda manei- ra de operar com objetos físicos serve de matéria- prima para nossos raciocínios matemáticos. Há maneiras “caracteristicamente matemáticas” de operar. “Tocar o coração do conhecimento mate- mático” seria, então, uma questão de entender o que faz de uma situação na qual certas operações são realizadas uma situação “caracteristicamente matemática”. Posto o problema desta forma, a res- posta ficou fácil: o que torna uma situação “carac- teristicamente matemática” é um conjunto deter- minado de convenções que organizam, a priori , nossas experiências com objetos. Estas autorizam
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no (Magee, 1998, pp. 194-195). Popper (1972) en- campou essa concepção e levou-a adiante. Se a ló- gica é objetiva, teorias também o são: encerram, além de uma heurística objetiva, conforme já vi- mos, um conjunto de pressupostos (teóricos e me- tafísicos) objetivos, problemas objetivos e implica- ções objetivas. Esses pressupostos, problemas e implicações objetivas constituem, por sua vez, si- tuações objetivas que encerram novos problemas objetivos, os quais, se descobertos e tentativamen- te solucionados, conduzem a novas teorias objeti- vas que encerram novos problemas, novas implica- ções objetivas etc. Quero sugerir que a chave para o resgate de um ideal de boa ciência está nessa noção fre- giana-popperiana de implicações objetivas. Afir- mar que uma teoria tem implicações objetivas é afirmar que ela é compatível ou incompatível com outras, que pode abranger teorias mais res- tritas ou ser um caso limite de uma teoria mais abrangente, que objetivamente constitui, ou não constitui, uma ruptura importante com um esta- do objetivo de conhecimento existente, que, por sua vez, encerra um arcabouço conceitual obje- tivo, quer de natureza teórica, quer de natureza metateórica, dentro do qual todo um conjunto de teorias formuladas posteriormente vem obje- tivamente a se mover, entre muitas outras coisas. Essas considerações abrem um campo formidá- vel de investigações: averiguar se, e em que sen- tido, uma determinada teoria representa uma ruptura com um estado objetivo de conhecimen- to existente, se sua contribuição objetiva para um estado objetivo de conhecimento reside em seu sucesso experimental ou no fato de encer- rar, objetivamente, uma heurística compatível com certas teorias e incompatível com outras e/ou um arcabouço conceitual dentro do qual outras teorias, formuladas posteriormente, obje- tivamente se movem etc. O crucial de meu argu- mento é o de que não é possível se haver com indagações dessa natureza sem que um ideal de boa ciência, imune à espada de Duhem, esteja objetivamente subentendido. Posto de outra for- ma, a própria existência desse campo objetivo de investigação pressupõe a existência objetiva de tal ideal.
Se é assim, e se estamos no mundo fregiano da objetividade, então tudo o que temos de des- cobrir é se existe objetivamente alguma área de investigação que não possa existir como tal se não se houver permanentemente com indagações como aquelas levantadas acima. Em outras pala- vras, se existe alguma área de investigação que para se manter como tal precisa permanentemen- te se perguntar se uma teoria representa ou não alguma descontinuidade com um dado estado ob- jetivo de conhecimento, se a importância de uma teoria reside em seu arcabouço conceitual ou em seu sucesso experimental etc. Receio que esta área de investigação exista e seja conhecida pelo nome de história da ciência. A fim de desenvolver este ponto, peço licen- ça para fazer uma longa citação. Como é a primei- ra e será a única deste artigo, espero que o leitor releve. Trata-se de um texto do célebre historia- dor da ciência Bernard Cohen, publicado original- mente em 1956. Interessa-me mostrar quão vulne- rável fica a historia da ciência à espada de Duhem e, por extensão, à capitulação ao naturalismo na ausência de um bom ideal de boa ciência. Passe- mos, então, a palavra a Cohen:
Um dos mais importantes assuntos de pesquisa na História da Ciência, nós o encontramos na re- lação entre a “Revolução Científica” do século XVII e a imaginação humana. Um dos maiores momentos na evolução da ciência, um momen- to, realmente, com que nada se compara na evo- lução de todo o pensamento científico, ocorreu em 1609, quando Galileu apontou seu telescópio para os céus. Até então, travavam-se discussões sobre a natureza e movimento das estrelas e ou- tros corpos celestes, além de especulações sobre a natureza dos sistemas cósmicos, caráter e carac- terísticas desses corpos. Quando Copérnico afir- mou que a Terra era apenas outro planeta, suas palavras pouco significavam porque as observa- ções a olho nu não revelavam qualquer seme- lhança entre a Terra e as estrelas. Dizer que algu- mas estrelas, chamadas de planetas, moviam-se nos céus em relação umas às outras, algumas ve- zes para frente e outras para trás, pouco justifica-
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va a opinião de que eram semelhantes à Terra. A maioria das pessoas considerava as estrelas como uma espécie de corpos perfeitos, imutá- veis, puros, em contraste com a Terra, onde ha- via decomposição, nascimento, vida, morte e transformações de todo os tipos. As característi- cas físicas da Terra, por conseguinte, podiam ex- plicar sua posição única como centro do univer- so, o lar conveniente para o homem que era, em si mesmo, impuro, pecador e corrompido. Ao as- sestar para o céu o telescópio, Galileu viu pela primeira vez como era realmente o firmamento. Descobriu que a Lua possuía montanhas e vales e que parecia uma Terra em miniatura, embora fosse uma Terra morta. A Terra, descobriu ele, refletia a luz do Sol e iluminava a Lua, o que comprovava que a Terra brilhava como os de- mais planetas e teria o mesmo aspecto para um observador que se encontrasse em Marte ou Vê- nus. Este último mostrava fases como a Lua, o que presumivelmente acontecia também à Terra e aos demais planetas. Verificou ele ainda que Júpiter possuía quatro luas, dessa maneira elimi- nando mais um dos aspectos de singularidade da Terra, até então considerada o único corpo celes- te que possuía satélite. As descobertas de Galileu sugeriram que as opi- niões de Copérnico sobre o universo podiam ser consideradas como algo mais do que simples abstração matemática, mais do que um expedien- te para computar posições futuras dos planetas e da Lua. Não era mais absurdo julgar a Terra um planeta, uma vez que a Terra e os planetas pos- suíam tantas características comuns, como revela- va o telescópio. Evidentemente, quando Galileu publicou um relato de algumas dessas descober- tas no Mensageiro Sideral, de 1610, o efeito foi explosivo. Daí em diante, cientistas e teólogos eram forçados a considerar as conseqüências da residência do homem sobre uma Terra que fora posta em movimento e que estava relegada a uma posição sem maior importância no sistema solar e não mais era o centro do universo. Ao mesmo tempo, poetas, teatrólogos e filósofos en- contravam campo para a imaginação nas possibi- lidades de um vasto e até então desconhecido universo, finalmente revelado ao homem. As es- trelas, os planetas, a Via Láctea, o próprio sol, e as nebulosas, presumivelmente, circulavam no espaço desde o dia em que Deus havia criado o mundo, mas o homem jamais os conheceu até o dia em que Galileu apontou seu telescópio para os céus (Cohen, 1963, pp. 166-167).
O exacerbado otimismo epistemológico que este texto exibe é tudo o que o naturalismo socio- lógico peculiar a Bloor e aos sociólogos pós-kuh- nianos de um modo geral precisa para se regozi- jar. Para Cohen, acreditar que a Terra é apenas mais um planeta ou que a lua possui montanhas e vales é uma mera questão de substituir o olho nu por um telescópio. Para ele, crer é uma ques- tão de saber ver. Contra esse exacerbado otimis- mo, deve ser suficiente lembrar que, de um modo geral, só acreditamos no que vemos quando o que vemos não contradiz nossas expectativas sobre o modo como o mundo é. Como as descobertas de Galileu a que Cohen faz menção contradiziam as tenazes expectativas dos teólogos e astrônomos aristotélicos, é uma ingenuidade supor que a ba- lança penderia tão facilmente para o lado dessas descobertas. Ao incorrer neste deslize, Cohen tor- nou-se extremamente vulnerável à espada de Du- hem; ele tornou-se uma presa fácil de objeções do tipo: o quê, no século XVII, poderia garantir que as “montanhas e vales na lua”, ou as “luas de Jú- piter”, não eram apenas uma ilusão de óptica a que o uso de tão estranho instrumento, o telescó- pio, poderia ter conduzido? Por que, nessa época, dar crédito a um instrumento óptico cujo funcio- namento mal se conhecia se ele contrariava uma sabedoria já consagrada por uma tradição mile- nar? Toda uma historiografia da ciência, cuja obra paradigmática parece ser o livro Leviathan and the Air-Pump (Shapin e Schaffer, 1985), desenvol- veu-se nos últimos anos em torno de questões dessa natureza, isto é, em torno da tese trivial- mente correta de que crer não é uma mera ques- tão de ver; de que a verdade não traz uma mar- ca na testa. Esta historiografia da ciência é sobretudo um legado natural da capitulação do ideal de boa ciência, e deve ser muito grata aos historiadores da ciência que se permitiram exibir o mesmo imoderado otimismo epistemológico que Cohen exibiu. Esse imoderado otimismo pode, entretanto, ser evitado desde que o carro-chefe da história da ciên- cia não traia, como no caso de Cohen, um ideal de boa ciência tão nitidamente vulnerável à espada de Duhem. Foi somente por subscrever irrefletida- mente um ideal desta natureza que Cohen pôde
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Uma vez exposta a concepção de boa ciên- cia de Koyré, posso mostrar como ela constitui o carro-chefe de sua investigação histórica. No mes- mo ano em que Cohen publicou o texto que re- produzi anteriormente, Koyré publicou um artigo intitulado: “As origens da ciência moderna: uma nova interpretação” (Koyré, 1991). Ao contrário de Cohen, contudo, que irrefletidamente assumiu um ideal de boa ciência vulnerável à espada de Duhem para discorrer sobre as origens da ciência moderna, Koyré subordinou sua interpretação so- bre este mesmo processo a uma prévia reflexão metodológica. Ele se perguntou o que faz da ciên- cia de Galileu uma boa ciência. A resposta, ele foi buscar nos impactos objetivos, retrospectivos e prospectivos, desta ciência. O impacto retrospec- tivo mais importante foi a destruição do Universo fechado e hierarquizado da física escolástica via substituição do espaço concreto de Aristóteles pelo espaço abstrato da geometria euclidiana. O prospectivo está em ter preparado o terreno para o desenvolvimento do conceito de inércia ao rom- per com a concepção aristotélica de que o repou- so é o estado natural e o movimento uma altera- ção forçada deste estado. Galileu não permitiu que o repouso desfrutasse do privilégio ontológi- co que a física escolástica lhe concedera. Sem essa dupla subversão, argumenta Koyré, um telescópio nada pode. É ela, e não o telescópio a que tão en- tusiasticamente alude Cohen, que está na base da transição do sistema ptolomaico para o coperni- cano. Um bom ideal de boa ciência permitiu, en- tão, a Koyré nos mostrar a verdadeira natureza da revolução científica: tratou-se, sobretudo, de uma revolução conceitual. Diante do exposto, o contraste com a capitu- lação naturalista é inevitável. Esta, conforme vi- mos, consiste em subordinar a questão metodoló- gica a uma análise do processo de aquisição do conhecimento. Para proceder a tal análise, o apren- dizado de uma língua materna, ou de uma língua estrangeira, é tomado como modelo. Um efeito imediato dessa maneira de proceder é excluir, de antemão, a possibilidade da existência de descon- tinuidades no conhecimento. Afinal, o aprendiza- do de uma língua é um processo cumulativo, con- tínuo. Tomemos, como exemplo, o aprendizado
do inglês. Não foi preciso esperar por Quine ou Wittgenstein para que soubéssemos que uma sen- tença como “ this is a table ” não esgota as possibi- lidades de traduzir a sentença “isto é uma mesa”. Entretanto, o naturalismo holista de Quine, ele próprio uma variante da tese wittgensteiniana de que o significado das palavras reside em seu uso efetivo, convida-nos a admitir uma possibilidade mais radical: a de traduzir uma sentença como “isto é uma mesa” para o inglês sem que seja ne- cessário fazer uso de termos como “ this ”, “ is ”, “ a ” e “ table ”. Mais do que isto, convida-nos a conce- ber traduções de “ this is a table ” que sejam incom- patíveis com “isto é uma mesa”. Não tenho qual- quer dificuldade em concordar com essas idéias. Afinal, não é difícil conceber situações do uso co- tidiano das palavras em que “sim” significa “não”, ou vice-versa. Todavia, nada disso implica descon- tinuidade. Esta só se verificaria se fosse possível conceber uma tradução para “ this is a table ” que tornasse uma tradução como “isto é uma mesa” objetivamente inconcebível. Assim, a descontinui- dade no aprendizado de uma língua é também im- possível. Receio que a realização mais espetacular da capitulação naturalista tenha sido a de estender, de antemão, essa impossibilidade para o conheci- mento. Em outras palavras, é ter tornado o conhe- cimento necessariamente contínuo e cumulativo. Isso excluiria a possibilidade de rupturas como a que Cohen descreve. De acordo com esse raciocí- nio, a verdadeira razão para refrear o entusiasmo de Cohen não está no imoderado otimismo epis- temológico que este traz embutido, mas no fato de encerrar uma visão descontínua do conhecimento. Koyré subverte tudo isso ao subordinar todo um campo de investigação à reflexão metodológi- ca. Deste campo faz parte averiguar aquilo que o naturalismo proíbe de antemão: se há, e em que sentido, descontinuidades no conhecimento. Se Koyré discorda de Cohen, não é porque este últi- mo permitiu que entre Aristóteles e Galileu hou- vesse uma descontinuidade, mas, sim, em razão de faltar a Cohen um ideal de boa ciência bom o suficiente para viabilizar a compreensão da natu- reza dessa descontinuidade. Há, entretanto, um importante ponto em comum entre Quine e Koy- ré: ambos rejeitam, enfaticamente, a emissão de
juízos baseados em cânones metodológicos esta- belecidos a priori. Quine, conforme vimos, não partilharia do entusiasmo que um livro-texto de metodologia científica alimentaria por discussões como a de Durkheim sobre o suicídio no exérci- to ou sobre as taxas comparativamente baixas de suicídios entre católicos e judeus. Ele veria esse tipo de discussão como uma presa fácil para a es- pada de Duhem. Koyré, certamente, partilharia desse desencanto. Mas não teria, a meu ver com razão, por que creditá-lo à vulnerabilidade dos ar- gumentos de Durkheim às advertências de Duhem. O problema está em outro lugar. Receio que a so- ciologia contida em O suicídio seja um claro exem- plo de má ciência que passa por boa ciência quan- do submetida aos cânones metodológicos de boa ciência. Não que eu me oponha a procedimentos como, por exemplo, corroborar um enunciado e, ao mesmo tempo, refutar vários enunciados alter- nativos por meio de um simples expediente como derivar do primeiro uma conseqüência empírica cuja negação é demandada por todos os outros. Porém, se tal procedimento é tão louvável, e tão ubíquo em O suicídio , então por que considerar a sociologia contida nesse livro uma má ciência? A resposta está em três perguntas: Que problema ob- jetivo emergiu a partir desta sociologia? O que ela objetivamente destruiu? O que ela objetivamente pôs no lugar? Para dar uma idéia do que estou per- guntando, vou mostrar quais seriam as respostas se a pergunta se referisse à teoria da fagocitose de Metchnikoff. O que ela objetivamente destruiu? A concepção passiva do processo de imunidade pe- culiar a toda a imunologia do século XIX, incluin- do-se a de Pasteur. O que ela objetivamente pôs no lugar? Uma concepção ativa do processo de imunidade, sobre a qual se moveu objetivamente toda a imunologia do século XX. Que problema objetivo emergiu a partir dela? O de como o orga- nismo distingue o que lhe é próprio do que lhe é estranho. É possível dar respostas remotamente análogas a estas se perguntarmos pelo impacto objetivo , quer retrospectivo quer prospectivo, da sociologia de O suicídio? Acredito que A divisão do trabalho social e, para não dizer que não falei de Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo resistiriam com folga a um teste des-
sa natureza. Quanto a O suicídio , tenho sérias dú- vidas. Posso, evidentemente, estar enganado sobre esse assunto. Mas não é isso o que importa. A li- ção que quero tirar daí é outra. Vimos que não pode haver história da ciência sem um ideal de boa ciência – o que pode haver, e infelizmente tem havido, é história da ciência que, ao desde- nhar a reflexão metodológica, deixa-se guiar, irre- fletidamente, por um ideal empirista ou pragmatis- ta de boa ciência. Mas, se não há como escapar de uma reflexão metodológica para reconstruir a his- tória de alguma ciência, por que não utilizar essa reflexão para emitir juízos sobre a qualidade de outras? Por que não usar um juízo sobre, digamos, a teoria da fagocitose, como um modelo para emi- tir juízo sobre a sociologia contida em O suicídio? Trata-se, certamente, de uma operação de alto ris- co. Mas receio que não tenhamos escolha. Ou cor- remos o risco de nos equivocar em nossos juízos, um risco que pode ser atenuado se contarmos com a inestimável ajuda do mundo da objetivida- de de Frege, ou nos condenamos a subscrever, de forma acrítica, juízos já estabelecidos. É verdade que a segunda alternativa tem prevalecido, mas não precisamos daí concluir que ela tenha de con- tinuar a prevalecer, isto é, que a saga do ideal de boa ciência já tenha conhecido o seu fim.
BLOOR, David. (1976), Knowledge and social imagery. Chicago, The University of Chicago Press. COHEN, I. Bernard. (1963), “A imaginação da na- tureza”, in L. White Jr. (org.), As frontei- ras do conhecimento: um estudo do ho- mem , Rio de Janeiro, Fundo de Cultura. FEYERABEND, Paul. (1977), Contra o método. Belo Horizonte, Livraria Francisco Alves Editora. KOYRÉ, Alexandre. (1991), Estudos de história do pensamento científico. 2 ed. Rio de Ja- neiro, Forense.
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REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 19 Nº. 55
A SAGA DO IDEAL DE BOA CIÊNCIA
Renan Springer de Freitas
Palavras-chave Metodologia; História da ciência; Naturalismo; Sociologia do conhecimento; Epistemologia.
O colapso do ideal baconiano de boa ciência, o subseqüente insuces- so dos empiristas do Círculo de Vie- na em estabelecer um ideal substitu- to e a pertinência da crítica de Pierre Duhem ao ideal racionalista levaram a reflexão sobre o que é boa ciência a subordinar-se a uma análise natu- ralística do processo de aquisição de conhecimento ou, simplesmente, a dissolver-se em uma sociopsicologia do conhecimento. Sugere-se que ne- nhuma dessas formas de capitulação seja necessária. A reflexão sobre o que é boa ciência, ou, para usar um termo mais familiar, a metodologia, pode reencontrar seu caminho se assumir a posição que, por assim di- zer, lhe é de direito: a de carro-che- fe da história da ciência. Argumenta- se que a metodologia foi conduzida ao fundo de um poço do qual não há mais como sair a não ser dando um salto vertiginoso, e discute-se a viabilidade deste salto.
THE SAGA OF THE GOOD SCIENCE IDEAL
Renan Springer de Freitas
Key words Methodology; History of science; Naturalism; Sociology of knowled- ge; Epistemology.
The collapse of the Baconian ideal of good science, the subsequent fai- lure of the empiricists of the Vienna Circle in establishing a substitute ideal, and the pertinence of Pierre Duhem’s criticism to the rationalist ideal have led the reflection on what is good science to either submit itself to a naturalistic analysis of the pro- cess of knowledge acquisition or, simply, dissolve itself into some kind of socio-psychology of knowledge. The article suggests that none of the- se forms of capitulation is necessary. A reflection on what good science is, or, to use a more familiar term, me- thodology, can find its way again by taking the position it has always been entitled to, namely that of the very guide of the history of science. The article both claims that metho- dology has been led to the deepest part of a well from which it will not be able to leave unless it takes a ver- tiginous leap, and discusses the via- bility of this leap.
LA SAGA DE L’IDÉAL DE LA BONNE SCIENCE
Renan Springer de Freitas
Mots-clés Méthodologie; Histoire de la science; Naturalisme; Sociologie du savoir; Epistémologie.
Le collapsus de l’idéal de Bacon à propos de la bonne science et l’in- succès qui s’en suivit en ce qui con- cerne les empiristes du Cercle de Vienne d’établir un idéal de substi- tution, ainsi que la pertinence de la critique de Pierre Duhem à l’idéal rationaliste, ont mené à une réfle- xion à propos de ce qu’est la bonne science et de sa subordination à une analyse naturaliste du processus d’acquisition du savoir ou, tout sim- plement, à sa dissolution en une so- cio-psychologie du savoir. Nous suggérons qu’aucune de ces formes de capitulation n’est nécessaire. La réflexion sur ce qu’est la bonne science ou, pour employer un terme plus familier, la méthodologie, peut retrouver son chemin et assumer une position qui, pour ainsi dire, lui revient de droit : celle de chef de file de l’histoire de la science. Nous soutenons que la méthodologie a été lançée au fond d’un puits dont il n’est plus possible d’en sortir, à moins d’un saut vertigineux. Et nous questionnons la viabilité de ce saut.