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A relação entre protesto e deliberação: reflexões para o aprofundamento do debate, Notas de estudo de Conflito

Uma reflexão sobre a relação entre protesto e deliberação na teoria política democrática, baseada nas obras de jürgen habermas e john rawls. A teoria deliberativa confere aos atores civis um papel relevante nos assuntos públicos e no processo democrático, atribuindo grande importância à capacidade dos cidadãos comuns em alçarem temas na agenda política através da deliberação na esfera pública. No entanto, profundos questionamentos surgiram em relação às bases normativas do procedimento deliberativo ideal, sendo interpretadas por vários críticos como barreiras à inclusão democrática. O documento debate a tensão entre participação e qualidade do debate público e questiona a ampliação excessiva do conceito de deliberação.

O que você vai aprender

  • Como a teoria deliberativa confere um papel relevante aos atores civis nos assuntos públicos?
  • Por que a ampliação excessiva do conceito de deliberação pode ser problemática?
  • Qual é a tensão entre participação e qualidade do debate público na teoria deliberativa?
  • Quais são as críticas às bases normativas do procedimento deliberativo ideal?

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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e-ISSN 1807-0191, p. 1-28 OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 24, nº 1, jan.-abr., 2018
A relação entre protesto e deliberação: reflexões para
o aprofundamento do debate
Thiago Aparecido Trindade
Introdução
No decorrer das últimas décadas, a teoria deliberativa tornou-se uma das
principais correntes no âmbito do debate teórico sobre a democracia. Tendo como
referência fundamental as obras dos filósofos Jürgen Habermas e John Rawls (Miguel,
2014a), um dos principais méritos da vertente deliberativa consistiu na formulação de
um modelo teórico cuja visão da política democrática era muito mais ampla que as
abordagens elitistas, em que o foco de análise se concentrava na disputa institucional
pelo poder entre as elites políticas. Em contrapartida, a teoria deliberativa confere aos
atores civis um papel significativamente mais relevante nos assuntos públicos e no
processo democrático em seu conjunto, na medida em que atribui grande importância à
capacidade dos cidadãos comuns em alçarem temas na agenda política através da
deliberação na esfera pública.
No modelo deliberativo, a legitimidade das escolhas políticas não depende apenas
do suporte da maioria pelo voto, mas pressupõe a deliberação de todas as partes
afetadas no processo por meio de uma troca argumentativa racional “que antecede e
guia as decisões alcançadas” (Faria, 2016, p. 205). Apesar das inúmeras controvérsias
envolvidas em sua definição conceitual, em linhas gerais é possível afirmar que a
deliberação pública “significa menos o resultado final que se obtém após um processo
(...), mas, antes, o próprio processo em que argumentos, informações e dados são
intercambiados, com vistas à prolação de uma ulterior decisão” (Tavares, 2016, p. 29). A
deliberação não é entendida, portanto, como sinônimo de decisão; ela está relacionada a
um processo de debate, reflexão e ponderação (intercâmbio de razões), no qual os
debatedores são sujeitos livres, racionais e iguais entre si
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(Cohen, 1989; Habermas,
1997; Avritzer, 2000).
A despeito de sua consolidação no debate acadêmico por conta de um foco
específico de análise do processo democrático, é equivocado compreender a corrente
deliberativa como uma escola homogênea do ponto de vista teórico (Mendonça, 2013, p.
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Sobre esse assunto, recomenda-se a leitura do importante texto de Avritzer (2000), no qual o autor
analisa a concepção decisionística em contraponto à concepção argumentativa de deliberação. Embora,
segundo Avritzer, a obra de Habermas sempre tenha se alicerçado na segunda, Rawls pode ser
considerado “um autor de transição entre uma concepção decisionística de deliberação e uma concepção
argumentativa” (Avritzer, 2000, p. 32).
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e-ISSN 1807-0191, p. 1- 28 OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 24, nº 1, jan.-abr., 2018

A relação entre protesto e deliberação: reflexões para

o aprofundamento do debate

Thiago Aparecido Trindade

Introdução No decorrer das últimas décadas, a teoria deliberativa tornou-se uma das principais correntes no âmbito do debate teórico sobre a democracia. Tendo como referência fundamental as obras dos filósofos Jürgen Habermas e John Rawls (Miguel, 2014a), um dos principais méritos da vertente deliberativa consistiu na formulação de um modelo teórico cuja visão da política democrática era muito mais ampla que as abordagens elitistas, em que o foco de análise se concentrava na disputa institucional pelo poder entre as elites políticas. Em contrapartida, a teoria deliberativa confere aos atores civis um papel significativamente mais relevante nos assuntos públicos e no processo democrático em seu conjunto, na medida em que atribui grande importância à capacidade dos cidadãos comuns em alçarem temas na agenda política através da deliberação na esfera pública. No modelo deliberativo, a legitimidade das escolhas políticas não depende apenas do suporte da maioria pelo voto, mas pressupõe a deliberação de todas as partes afetadas no processo por meio de uma troca argumentativa racional “que antecede e guia as decisões alcançadas” (Faria, 2016, p. 205). Apesar das inúmeras controvérsias envolvidas em sua definição conceitual, em linhas gerais é possível afirmar que a deliberação pública “significa menos o resultado final que se obtém após um processo (...), mas, antes, o próprio processo em que argumentos, informações e dados são intercambiados, com vistas à prolação de uma ulterior decisão” (Tavares, 2016, p. 29). A deliberação não é entendida, portanto, como sinônimo de decisão ; ela está relacionada a um processo de debate, reflexão e ponderação (intercâmbio de razões), no qual os debatedores são sujeitos livres, racionais e iguais entre si^1 (Cohen, 1989; Habermas, 1997; Avritzer, 2000). A despeito de sua consolidação no debate acadêmico por conta de um foco específico de análise do processo democrático, é equivocado compreender a corrente deliberativa como uma escola homogênea do ponto de vista teórico (Mendonça, 2013, p. (^1) Sobre esse assunto, recomenda-se a leitura do importante texto de Avritzer (2000), no qual o autor analisa a concepção decisionística em contraponto à concepção argumentativa de deliberação. Embora, segundo Avritzer, a obra de Habermas sempre tenha se alicerçado na segunda, Rawls pode ser considerado “um autor de transição entre uma concepção decisionística de deliberação e uma concepção argumentativa” (Avritzer, 2000, p. 32).

A RELAÇÃO ENTRE PROTESTO E DELIBERAÇÃO: REFLEXÕES PARA O APROFUNDAMENTO DO DEBATE 60). Ao longo dos anos, profundos questionamentos surgiram em relação às bases normativas do procedimento deliberativo ideal: as exigências do argumento racional como fundamento epistemológico e da condição de igualdade entre os debatedores, além da ênfase na deliberação pública como um processo orientado para o consenso, foram interpretadas por vários críticos como sendo barreiras à inclusão democrática, uma vez que os grupos sociais oprimidos enfrentariam diversos obstáculos para se ajustar a esse modelo (Pereira, 2012, p. 70-72; Sanders, 1997, p. 349, citado por Miguel, 2014b, p. 122). Tais críticas ecoaram fortemente entre teóricos relevantes do próprio campo deliberacionista (Young, 2000; Dryzek, 2000) e abriram margem para o questionamento sistemático do real potencial democrático da deliberação. O recente debate travado entre Mendonça (2013) e Miguel (2014b) na revista acadêmica Opinião Pública^2 é representativo do conjunto de questões que, ao longo de várias décadas, têm motivado profundos embates teóricos no interior da corrente deliberativa e entre esta e seus críticos externos. O presente artigo tem como objetivo principal aprofundar esse debate a partir de um ângulo específico, que está longe de ser questão pacífica na literatura: a relação entre protesto (ativismo)^3 e deliberação. Um dos pontos levantados por Miguel no referido debate com Mendonça consiste precisamente na dificuldade dos teóricos deliberacionistas em incorporar, nos seus modelos analíticos, as práticas ativistas de caráter disruptivo protagonizadas pelos grupos subalternos. Tal dificuldade se daria justamente em razão da centralidade que os deliberacionistas conferem às trocas argumentativas orientadas para o consenso – ou, no mínimo, para um acordo de cooperação entre as partes (Miguel, 2014b, p. 127 - 12 8). A controvérsia analítica envolvendo protesto e deliberação revela que, se, por um lado, ativistas e deliberativos convergem – tanto no plano teórico quanto prático – na crítica aos limites da democracia liberal, por outro, “divergem quanto aos melhores mecanismos para radicalizá-la” (Faria, 2010, p. 102). Em linhas gerais, é possível argumentar que os teóricos mais alinhados ao ativismo tenham como foco a ampliação da participação dos cidadãos nos assuntos públicos, preocupando-se mais com a inclusão do que com a “qualidade das razões apresentadas para justificar as preferências dos atores. Os deliberativos, por sua vez, estão mais preocupados com a qualidade da discussão e da interação que irão gerar as escolhas políticas” (Papadopoulos e Warrin, 2007, p. 450-451, citados por Faria, 2010, p. 107). Nesse sentido, a tensão entre protesto e deliberação também pode ser compreendida como uma tensão entre participação e qualidade do debate público. (^2) A revista Opinião Pública é uma publicação do Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O texto “Teoria crítica e democracia deliberativa: diálogos instáveis”, de Ricardo F. Mendonça, foi publicado em junho de 2013; a resposta de Luis Felipe Miguel, através do texto intitulado “Deliberacionismo e os limites da crítica: uma resposta”, foi publicada na edição de abril de 2014. (^3) Neste artigo, utilizamos “protesto”, “ativismo” e “desobediência civil” como termos intercambiáveis.

A RELAÇÃO ENTRE PROTESTO E DELIBERAÇÃO: REFLEXÕES PARA O APROFUNDAMENTO DO DEBATE Young (2014) – Activist challenges to deliberative democracy , originalmente publicado em 2001 – , tecendo fortes críticas à excessiva ênfase da corrente deliberativa no processo de argumentação racional orientado para o consenso como forma de resolução dos conflitos sociais em detrimento do papel do ativismo extrainstitucional no campo da disputa política. Essa linha de argumentação procura trazer a corrente deliberativa para o debate sobre a importância do conflito para a teoria democrática, em geral historicamente negligente com as formas de resistência popular que se manifestam pela via extrainstitucional. Por essa lente, protesto e deliberação são colocados em posições opostas por todos aqueles que nutrem uma visão mais crítica em relação aos pressupostos deliberacionistas, inclusive por teóricos identificados com a corrente deliberativa, como é o caso da própria Young. Recentemente, contudo, a relação aparentemente antagônica entre protesto e deliberação passou a ser contestada de forma mais incisiva por outros estudiosos no interior da corrente. Essa posição defende uma concepção ampliada de deliberação, na qual esta não seria um procedimento restrito aos fóruns e canais formalmente institucionalizados, mas sim um processo descentralizado que atravessa múltiplos espaços e redes comunicativas. Nessa acepção, o protesto seria parte desse processo mais amplo, constituindo-se como mais um elemento nas redes comunicativas sistêmicas e mais uma forma de interação entre diferentes atores. Na essência, essa posição teórica contesta a tese – defendida enfaticamente por teóricos como Mouffe (2005) e Rancière (2004)^4 – de que deliberação e conflito sejam antagônicos, abrindo margem para que o protesto e outras formas de interação não consensuais sejam incorporados ao campo teórico deliberacionista. Na primeira seção do artigo, “Protesto (ativismo) x deliberação: demarcando limites entre práticas distintas”, analisamos a perspectiva que coloca protesto e deliberação em posições de confronto no debate teórico, explicitando os argumentos de Young e a linha argumentativa explorada pela autora para sustentar sua posição. Na seção seguinte, “Repensando a oposição entre protesto e deliberação”, apresentamos a posição defendida por Mendonça e Ercan (2015) no seu estudo sobre os protestos de 2013, procurando demonstrar quais são os principais pontos de apoio na teoria deliberativa que permitem aos autores trabalhar com uma concepção ampliada de deliberação e advogar em favor de sua conciliação analítica com as práticas ativistas. Na terceira seção, “O controverso debate sobre a deliberação e seus limites: apontamentos a partir dos escritos de Habermas”, analisamos a concepção habermasiana sobre a política deliberativa expressa em sua importante obra Direito e democracia (1997) com o intuito de compreender em que medida suas formulações nos permitem eliminar a (^4) Cabe advertir apenas que este artigo não pretende avançar no debate sobre o caráter supostamente consensualista da deliberação (ponto fundamental da crítica de Mouffe e Rancièrie aos preceitos de Habermas), mas sim no entendimento de quais práticas ou procedimento caracterizam afinal o processo deliberativo.

THIAGO APARECIDO TRINDADE disjunção entre protesto e deliberação. Trazer Habermas para o debate não é mera questão de formalidade: trata-se de um autor incontornável em qualquer análise acadêmica que procure avançar no tema da deliberação pública. Na última seção, “Apontamentos ‘conclusivos’: elementos para a continuação do debate”, apresentamos nossas considerações gerais sobre as questões debatidas ao longo do artigo, na expectativa de que elas sejam capazes de fomentar o debate teórico sobre a relação entre as práticas ativistas e a deliberação. Protesto (ativismo) x deliberação: demarcando limites entre práticas distintas Em um dos momentos mais relevantes no debate sobre os aspectos excludentes da deliberação pública, Young (2014) apontou para a tensão existente entre as práticas ativistas, de um lado, e as trocas argumentativas em fóruns deliberativos, de outro. O ponto de partida de Young fundamenta-se na seguinte premissa: quando se considera a linha argumentativa do debate teórico proposto pela corrente deliberativa, pode-se inferir que essa corrente “seja crítica em relação a táticas características do ativismo, como passeatas, boicotes ou ocupações, dado que estas são atividades de enfrentamento, em vez de debate, com as pessoas das quais os integrantes do movimento discordam” (2014, p. 188). Nas palavras da própria Young: Entendo a democracia deliberativa como uma visão normativa das bases da legitimidade democrática e uma receita de como os cidadãos devem engajar-se politicamente. A melhor e mais adequada maneira de conduzir a ação política, influenciar e tomar decisões públicas é a deliberação pública. Na deliberação, as partes do conflito, da divergência e da tomada de decisões propõem soluções para seus problemas coletivos e oferecem razões para elas, criticam as propostas e as razões umas das outras e estão abertas a ser criticadas. A democracia deliberativa difere de algumas outras atitudes e práticas na política democrática por exortar os participantes não apenas a se preocuparem com seus próprios interesses, mas a ouvir e levar em conta os interesses dos outros, desde que sejam compatíveis com a justiça. Práticas da democracia deliberativa também têm o objetivo de suspender a influência das diferenças de poder nos resultados políticos, pois o acordo entre os deliberadores deve ser alcançado com base no argumento, e não como resultado de ameaça ou força (p. 189). O trecho citado evidencia claramente o conteúdo normativo da teoria em questão. Um ponto relevante é que as decisões políticas devem ser tomadas através de processos deliberativos de caráter público capazes de envolver todas as partes afetadas (ou aqueles que as representam). Desse modo, é inegável que a corrente deliberativa

THIAGO APARECIDO TRINDADE decisão, ou até mesmo criando instituições/fóruns deliberativos. Essa inclusão formal através da criação de arenas abertas à participação civil, todavia, não constitui medida capaz de equacionar de forma satisfatória as assimetrias estruturais inerentes à deliberação pública (Tavares, 2012, 2016; Miguel, 2014a, 2014b), o que se deve basicamente a três elementos. Em primeiro lugar, a criação de novas arenas abertas à participação civil (ou a abertura dos espaços já existentes aos cidadãos comuns) não significa que as condições de participação política entre os diferentes atores serão equalizadas. Dedicar-se a atividades políticas requer, além de capacidade organizacional e recursos materiais, tempo livre. A maioria das pessoas comuns ocupa seu tempo com as atividades necessárias para sua sobrevivência material, ou seja, o trabalho. Isso quer dizer que os cidadãos que mais precisariam participar da deliberação pública (assumindo que a deliberação ideal deve envolver todas as partes afetadas) são justamente aqueles que dispõem de menos condições materiais para tanto: Mesmo quando se anuncia uma série de audiências públicas para tratar de um tema, as pessoas que talvez quisessem falar nelas precisam ficar sabendo delas, ser capazes de organizar seus horários de trabalho e do cuidado com os filhos para poder participar, conseguir chegar até lá e ter conhecimento suficiente do processo de audiência para participar. Cada uma dessas habilidades está presente de forma desigual entre membros de uma sociedade (Young, 2014, p. 199). Em segundo lugar, mesmo para aqueles que conseguiram se inserir presencialmente nas discussões, ainda existem obstáculos importantes a ser superados. Os códigos de comportamento social reconhecidos como legítimos, desde o vestuário, a maneira de se portar em público e os padrões formais linguísticos da fala e da escrita, impõem sérios constrangimentos para que pessoas de baixa renda, com baixo grau de instrução formal ou então pertencentes a grupos marginalizados na sociedade (como negros, indígenas ou quilombolas) sejam capazes de pautar os rumos do debate público e impor sua agenda no interior dos fóruns deliberativos (Levine e Nierras, 2007, p. 13). Como sublinhado por Miguel (2014b, p. 122), o “peso destas desigualdades continua a se manifestar até mesmo nos modos dos discursos”, uma vez que tais debates ocorrem em “espaços sociais estruturados, capazes de impor ônus ou vantagens de acordo com a adequação a expectativas e/ou normas tácitas que, por sua vez, refletem as hierarquias vigentes”. Ao analisar a questão da qualificação técnica dos atores civis engajados em conselhos gestores, a análise de Tatagiba (2002) segue caminho similar: O grande desafio presente nas experiências participativas é construir mecanismos capazes de minorar os efeitos das desigualdades sociais no interior dos processos deliberativos, de forma a permitir que a construção

A RELAÇÃO ENTRE PROTESTO E DELIBERAÇÃO: REFLEXÕES PARA O APROFUNDAMENTO DO DEBATE dos acordos não esteja sujeita à influência de fatores endógenos como o poder, a riqueza ou as desigualdades preexistentes (p. 71)^5. E, por fim, um terceiro elemento a ser destacado refere-se ao fato de que tais arenas deliberativas abertas à participação civil não dispõem de poder decisório efetivo para interferir concretamente no desenho e na formulação das políticas públicas. Essa é, precisamente, a problematização feita por Tavares (2016, p. 59) em relação à (falta de) capacidade distributiva de fóruns deliberativos como o orçamento participativo (OP) no Brasil^6 : “Transcorridos quase 25 anos desde as primeiras experiências de orçamento participativo”, iniciadas no princípio da década de 1990, “nenhum efeito distributivo significativo pode ser detectado em tais práticas. Ao contrário, a maioria dos municípios continua a dedicar parcelas (...) simbólicas dos seus recursos para tais programas (...)”. Reforçando essa linha argumentativa, Miguel (2014b, 2014c) concorda com o fato de que novas arenas participativas são incorporadas à institucionalidade estatal em razão das demandas de setores populares por mais participação, mas sua incorporação se dá de forma periférica em relação aos centros decisórios com poder real. Isso significa que as decisões tomadas na esfera das arenas participativas/deliberativas, ainda que sejam consoantes com as reivindicações populares, detêm pouca (ou, em certos casos, nenhuma) capacidade efetiva para interferir de forma mais incisiva no jogo político^7. Em face desses elementos, Young esclarece que, mesmo diante de iniciativas visando à inclusão formal dos cidadãos nos processos deliberativos, os ativistas julgam que, ainda assim, a opção mais sensata continua sendo a realização de atividades de protesto, como boicotes, ocupações e manifestações barulhentas no exterior desses espaços. Nos dizeres de Levine e Nierras (2007, p. 12): “Formas alternativas de comunicação (protestos, greves, resistência não violenta, teatro de rua, campanhas na mídia) podem ser mais efetivas e satisfatórias do que a deliberação, especialmente para os grupos oprimidos”. Ademais, uma vez que a inclusão formal não se mostra suficiente para oferecer às partes afetadas condições mais igualitárias no procedimento deliberativo, tomar parte nesses processos significa conferir legitimidade a decisões que são, em essência, ilegítimas: “Se participarmos desses processos formalmente inclusivos, diz o ativista, ajudaremos a lhes conferir uma legitimidade que não merecem e deixaremos de falar por aqueles que permanecem na condição de outsiders ” (Young, 2014 , p. 200). O protesto, destarte, é o principal meio empregado pelos grupos na (^5) Em seu estudo, a autora traz diversos depoimentos de ativistas que corroboram a interferência das hierarquias sociais na qualidade do processo deliberativo no interior dos conselhos gestores (Tatagiba, 2002, p. 69-73). (^6) Um debate mais aprofundado sobre o tema pode ser encontrado em trabalho anterior do autor (Tavares, 2008). (^7) É importante apenas considerar que existem diferentes modalidades de arenas abertas à participação civil além do OP no Brasil, como os próprios conselhos gestores e as conferências nacionais (Avritzer e Souza, 2013). Algumas conferências, como é o caso da Conferência Nacional de Assistência Social (CNAS), foram capazes de obter resultados significativos no desenho da respectiva política (Faria, Silva e Lins, 2012, p. 280 - 281).

A RELAÇÃO ENTRE PROTESTO E DELIBERAÇÃO: REFLEXÕES PARA O APROFUNDAMENTO DO DEBATE Repensando a oposição entre protesto e deliberação O entendimento da deliberação pública enquanto prática que se desenvolve no interior de instituições específicas está longe de ser consensual. Sob o prisma teórico da democracia deliberativa, é muito provável que a maioria dos estudiosos vinculados a essa corrente não conceba a deliberação pública dessa forma – embora sejam necessárias pesquisas específicas para comprovação empírica de tal fato. Como salientado pela própria Young no texto discutido no tópico anterior, é possível pensar a deliberação pública a partir de uma perspectiva alternativa, na qual as trocas argumentativas ocorreriam de forma muito mais turbulenta e descentrada; segundo a autora, nessa “conceituação alternativa, processos de comunicação democrática engajada e responsável incluem manifestações de rua e ocupações, obras musicais e desenhos animados, tanto quanto os discursos parlamentares e cartas ao editor” (Young, 2014, p. 210). A ideia de um procedimento deliberativo não necessariamente corporificado em instituições específicas, e, portanto, descentrado, era uma pista teórica sugerida pelas obras do próprio Habermas ( 1984 , 1997 , 2012 a). Posteriormente, a concepção ampliada de deliberação seria desenvolvida por um conjunto de autores de forma mais sistemática. Tal perspectiva analítica resultou no conceito de sistema deliberativo (Mansbridge, 1999; Mansbridge et al., 2012; Dryzek, 2009) que vem sendo amplamente debatido por autores de peso na corrente deliberacionista desde o final da década de 1990 (Mendonça, 2011 , 2016b). Cunhado por Mansbridge (1999), tal conceito sugere que a deliberação nas sociedades complexas não deve ser concebida apenas como um processo dialógico que se realiza face a face entre grupos pouco numerosos, mas sim como um amplo debate de ideias que atravessa múltiplas arenas discursivas. Nessa perspectiva, a deliberação é pensada como uma entre diversas etapas do sistema político, sendo que ela ocorre tanto dentro quanto fora dos espaços institucionais e se articula com outras modalidades de ação. A ideia de sistema deliberativo se refere a um conjunto de partes que se diferenciam, mas que são interdependentes entre si, cujas funções são distribuídas pelo sistema de forma a construir um todo integrado (Faria, 2016, p. 213). Nas palavras da própria Mansbridge: “A conversação cotidiana ancora um dos limites desse espectro em cujo outro fim se encontra a assembleia pública de tomada de decisão” (1999, p. 212, citada por Mendonça, 2011, p. 216). A deliberação nessa perspectiva é vista como um continuum que engloba diversos ambientes e produz um abrangente debate sobre as questões de interesse público (Mendonça, 2011). A noção sistêmica de deliberação, todavia, é controversa (Hendricks, 2006; Mendonça, 2011, 2016b; Faria, 2012). Nas palavras de Mendonça (2011, p. 216), o conceito de sistema deliberativo “dá uma ideia de um todo harmônico em que cada elemento do sistema afeta os outros de maneira sistemática”. Dado o modo como o poder político está desigualmente distribuído na sociedade, parece ser difícil conceber um

THIAGO APARECIDO TRINDADE sistema constituído por múltiplas arenas e espaços interdependentes, cada qual com um papel específico nas trocas comunicativas, e que ainda é capaz de incidir nas decisões tomadas no nível das principais instituições políticas nacionais. Em texto mais recente, Mendonça (2016b) aponta também que a concepção sistêmica de deliberação pode tornar ainda mais evidentes as assimetrias de recursos entre os diferentes grupos e, consequentemente, de suas respectivas capacidades para influenciar no debate público. Assim, por mais que setores tradicionalmente marginalizados em relação aos canais decisórios mais relevantes participem do debate (em algum momento e) em alguma parte desse amplo sistema deliberativo, sua força para incidir efetivamente na decisão final é praticamente nula. Na prática, isso mantém as desigualdades estruturais de poder enquanto inclui formalmente os excluídos, conferindo um ar de legitimidade a um processo largamente corrompido por profundas assimetrias (Mendonça, 2016b, p. 4-5)^8. A despeito das críticas, o conceito em questão tem seus méritos. Como explicado pelo mesmo autor (Mendonça, 2016b, p. 2), um dos principais ganhos da abordagem sistêmica foi a aproximação do conceito de deliberação da realidade empírica, demonstrando que, ao contrário do que muitos críticos afirmavam, a deliberação não consiste em uma utopia inviável nas democracias contemporâneas. Ademais, o aprofundamento desse debate permitiu que práticas não tradicionalmente compreendidas como deliberativas fossem estudadas através dessas lentes, o que conferiu maior aplicabilidade à teoria (p. 2) e abriu a possibilidade de uma conciliação entre protesto e deliberação no plano analítico. Movimento expressivo nessa direção é o recente esforço de Mendonça em coautoria com Ercan (2015) na análise dos protestos de 2013 no Brasil e na Turquia. O provocativo título do texto – Deliberation and protest: strange bedfellows? – sinaliza diretamente essa problematização. O argumento central dos autores é que o protesto se constitui como parte integrante do processo deliberativo , especialmente quando esta é concebida de forma ampliada. Para desenvolver o argumento, uma das linhas de diálogo estabelecidas pelos autores é justamente com Young. Segundo Mendonça e Ercan, Young, seguida por estudiosos como Levine e Nierras (2007) e Medearis (2005), entende que ações como marchas (passeatas), boicotes, ocupações e afins estão dissociadas do processo deliberativo: “Eles não as consideram como um meio de colocar argumentos na esfera pública” (Mendonça e Ercan, 2015, p. 269 – tradução livre). Nessa direção, um dos principais argumentos utilizados pelos autores para questionar a dicotomia posta pelos críticos do deliberacionismo é que a distinção entre conflito e deliberação é muito difícil de ser realizada, tanto em termos teóricos como práticos: (^8) É importante mencionar que, no mesmo texto, o autor aponta que é possível mitigar esses e outros problemas inerentes à deliberação sistêmica, tornando o processo menos assimétrico e mais permeável à influência de grupos menos privilegiados em termos de recursos (Mendonça, 2016b, p. 7-15).

THIAGO APARECIDO TRINDADE era o sentimento de insatisfação para com as instituições políticas tradicionais (Mendonça e Ercan, 2015 , p. 278). É nesse sentido que os autores acreditam não haver razões para dissociar as práticas ativistas do processo deliberativo. Analisando os impactos das manifestações de 2013 sob vários aspectos, concluem que protesto e deliberação não estão em relação de oposição, mas devem ser compreendidos como partes constitutivas de um mesmo processo. O controverso debate sobre a deliberação e seus limites: apontamentos a partir dos escritos de Habermas As controvérsias teóricas envolvendo o conceito de deliberação são diversas. No campo deste artigo, interessa-nos verificar em que medida os escritos de Jürgen Habermas nos autorizam a estabelecer a conjugação analítica entre protesto e deliberação advogada por Mendonça e Ercan (2015). Antes de dar prosseguimento, porém, é pertinente tecer alguns esclarecimentos sobre a metodologia adotada aqui. O retorno a elementos que consideramos fundamentais das formulações habermasianas sobre a democracia deliberativa ocorre por uma questão de “força teórica”: ainda que o conjunto de autores filiados à corrente da democracia deliberativa seja amplo, diverso e profundamente heterogêneo sob vários ângulos, há que se concordar com Tavares (2016, p. 30), quando este afirma que o principal arcabouço teórico da referida vertente repousa nos escritos de Habermas sobre a teoria do agir comunicativo e a esfera pública. É nesse sentido que, indiscutivelmente, todos os autores vinculados a essa corrente e cujas formulações incorporam o conceito de deliberação têm, em maior ou menor medida, um débito para com a obra de Habermas. Basicamente, ao assumir-se como um “democrata deliberativo”, o pesquisador se coloca a obrigação incontornável de lidar com os preceitos habermasianos. Portanto, o debate sobre a relação entre protesto e deliberação precisa, necessariamente, seguir o mesmo caminho. É claro que não há espaço neste artigo para um debate profundo sobre a obra de Habermas^9 , mas nossa intenção consiste em apontar elementos que consideramos cruciais no pensamento do autor e que nos possibilitarão avançar na investigação teórica aqui indicada. Pela lógica do raciocínio aqui exposto, a pergunta mais óbvia seria a seguinte: há, nos escritos de Habermas, elementos que indiquem ser possível compreender o protesto como parte do processo deliberativo? Importante registrar que nossa análise se (^9) Vale registrar que o recente livro de Tavares (2016), intitulado Deliberação e capitalismo: uma crítica marxista ao pensamento de Habermas , oferece uma análise profundamente abrangente sobre a obra do filósofo alemão, constituindo-se em uma leitura obrigatória para todos os que anseiam compreender com mais clareza os escritos de Habermas, especialmente através de uma perspectiva crítica.

A RELAÇÃO ENTRE PROTESTO E DELIBERAÇÃO: REFLEXÕES PARA O APROFUNDAMENTO DO DEBATE baseia fundamentalmente na obra Direito e democracia ( 1997 )^10 , uma vez que esse foi o livro que conferiu “sistematicidade ao entendimento habermasiano sobre a política democrática e o direito” (Tavares, 2016, p. 23). Dito isso, é necessário reforçar o que já foi apontado anteriormente: a concepção habermasiana sobre deliberação não se restringe à dimensão institucional desta , e muito menos a um processo de troca argumentativa face a face (Habermas, 1997, p. 28 - 33). Na verdade, a deliberação pública para Habermas é um processo que compreende tanto espaços institucionais quanto extrainstitucionais (Mendonça, 2016a), muito embora ela não abranja a totalidade das instituições políticas e sociais (Faria, 2000, p. 50). Nas palavras do próprio autor: “pretendo interpretar o procedimento que legitima as decisões corretamente tomadas como estrutura central de um sistema político diferenciado e configurado como Estado de direito, porém, não como modelo para todas as instituições sociais” (Habermas, 1997, p. 28; grifo no original). De qualquer modo, é evidente a noção de uma deliberação ampla no pensamento de Habermas: A formação da opinião, destrelada das decisões, realiza-se numa rede pública e inclusiva de esferas públicas subculturais que se sobrepõem umas às outras, cujas fronteiras reais, sociais e temporais são fluidas. As estruturas de tal esfera pública pluralista formam-se de modo mais ou menos espontâneo, num quadro garantido pelos direitos humanos. E através das esferas públicas que se organizam no interior de associações movimentam-se os fluxos comunicacionais, em princípio ilimitados, formando os componentes informais da esfera pública geral (Habermas, 1 997, p. 32-33). A concepção habermasiana, portanto, não pode ser reduzida a um processo de deliberação institucional. Quem buscou oferecer um modelo mais operacional da política deliberativa, no sentido de imprimir um formato mais diretamente institucionalizado a essa prática, foi Joshua Cohen (Faria, 2000, 2010; Avritzer, 2000). Dialogando criticamente com as duas grandes referências do deliberacionismo, Cohen será um dos primeiros autores “a sacar conclusões institucionais da intenção rawlsiana e habermasiana de recuperar elementos argumentativos na forma como eles concebem a deliberação”; em outras palavras, “Cohen transforma o processo de discussão argumentativa proposto por Rawls e Habermas em um processo de deliberação institucional” (Avritzer, 2000, p. 41). Como sublinhado por Faria (2000, p. 54), a proposta de Cohen tinha como objetivo principal esboçar um modelo teórico no qual os cidadãos comuns desempenhassem papel mais “ofensivo” no processo político de tomada (^10) Essa obra assume fundamental importância no constructo teórico da democracia deliberativa, uma vez que ela foi publicada 30 anos após Mudança estrutural na esfera pública e 11 anos depois de Teoria do agir comunicativo , o que significa que os escritos de Habermas sobre a racionalidade comunicativa e a deliberação pública já se encontravam em estágio bastante amadurecido do ponto de vista do debate acadêmico.

A RELAÇÃO ENTRE PROTESTO E DELIBERAÇÃO: REFLEXÕES PARA O APROFUNDAMENTO DO DEBATE explicação. Tais atos de transgressão simbólica não violenta das regras se autointerpretam como expressões do protesto contra decisões impositivas, as quais são ilegítimas no entender dos atores, apesar de terem surgido legalmente à luz de princípios constitucionais vigentes (Habermas, 1997, p. 116 - 11 7). É mais do que evidente, portanto, que Habermas entende o protesto como um modo de ação legítimo no âmbito do processo político mais amplo, o que relativiza a ideia de que o filósofo alemão desconsidera as práticas agonistas em sua teoria. Sobre essa questão, entretanto, propomos dois pontos para a reflexão. Primeiramente, se, de um lado, é possível constatar que Habermas não desconsidera o papel do ativismo em seu modelo analítico, por outro, isso não significa que o conflito tenha um papel central em seu edifício teórico-epistemológico. Se é verdade que Habermas não pode ser considerado simplesmente um “teórico do consenso”, como parecem taxar alguns de seus críticos mais enfáticos, isso também não nos autoriza a classificá-lo como um “teórico do conflito”. É óbvio que o filósofo alemão não ignora a existência do conflito no mundo real e muito menos o papel exercido pela desobediência civil no embate democrático na esfera pública; mas daí a dizer que, em sua extensa obra, a ênfase nos processos dialógicos orientados para a cooperação e o consenso seja equivalente à relevância do ativismo popular como instrumento de luta pela democracia, há profundas controvérsias. Nos parece mais lógico, portanto, sugerir que em Habermas o conflito não é ignorado, mas ele não ocupa uma posição central no seu esquema teórico-conceitual. Os escritos mais recentes do autor parecem deixar mais clara essa posição. Ao analisar as políticas de austeridade implementadas pela União Europeia nos últimos anos, o autor considera que as revoltas protagonizadas pela juventude representam um sinal de ameaça à paz social (Habermas, 2012b, p. 337). Ademais, conforme análise de Tavares (2016, p. 284), Habermas também aposta no protagonismo das “elites políticas”, de quem se espera uma mudança decisiva de comportamento como principal artifício para a superação da atual crise (Habermas, 2012c, p. 51, citado por Tavares, 2016, p. 284). Ou seja, A Europa radicalmente democrática se inicia, assim, não por protestos dos jovens (que são caracterizados como ameaça à paz social), mas por uma mudança comportamental das elites políticas. Schumpeter não iria tão longe. Apesar de se declarar radicalmente democrático e de se opor retoricamente ao neoliberalismo, o autor concretiza sua teoria política em um arranjo eurocêntrico, alheio às lutas sociais travadas nas ruas e associado a um protagonismo social das elites políticas (Tavares, 2016, p. 284). Em suma, a análise de Habermas sobre o significado dos protestos e o protagonismo conferido às elites denuncia uma indisfarçável aproximação com as

THIAGO APARECIDO TRINDADE abordagens elitistas da democracia, que, não por coincidência, entendem a participação popular na política como um fator que coloca em xeque a estabilidade político- institucional, e por isso deve ser reduzida ao mínimo necessário (leia-se, ao direito de votar periodicamente) (Pateman, 1992; Miguel, 2002; Trindade, 2014). Em segundo lugar, é importante registrar que o reconhecimento do papel da desobediência civil no processo democrático por Habermas em Direito e democracia não necessariamente nos autoriza a associar protesto com deliberação – operação analítica concretizada por Mendonça e Ercan (2015). No mesmo capítulo em que o filósofo frankfurtiano analisa a importância do ativismo na democracia liberal, sua linha de raciocínio sugere que a desobediência civil é um instrumento mobilizado para contestar decisões ilegítimas tomadas no âmbito de práticas deliberativas, ou seja, a desobediência civil parece ser concebida como um meio de redefinir os rumos da deliberação , e não como parte do processo deliberativo. Quando os cidadãos se engajam no protesto, segundo Habermas (1997, p. 117), eles “apelam aos responsáveis e mandatários, para que retomem deliberações políticas formalmente concluídas , e para que revisem eventualmente suas decisões , tendo em conta a persistente crítica pública” (grifo nosso). Percebe-se que, no limite, o raciocínio de Habermas é muito similar ao de Young em seu famoso texto analisado no primeiro tópico: o protesto serve como um meio de interromper a deliberação pública, ou (na melhor das hipóteses) redefinir os rumos desta. A diferença é uma questão de escala: enquanto Young se restringe a uma leitura da deliberação institucional em fóruns específicos (desde uma reunião da OMC até um espaço deliberativo aberto à participação civil), a análise de Habermas se volta para a esfera pública e para o processo político mais amplo. Mas o sentido que ambos os autores conferem ao protesto parece ser exatamente o mesmo. Não é, entretanto, apenas essa citação pontual retirada de Direito e democracia que corrobora essa posição: a distinção entre protesto e deliberação, ou, em outras palavras, entre a política deliberativa e a política não deliberativa, é feita por outros autores relevantes de dentro da própria corrente deliberacionista , ou seja, não é algo que aparece como uma crítica externa. Um primeiro exemplo pode ser retirado da obra assinada em conjunto por Gutmann e Thompson (2004), intitulada Why deliberative democracy? , na qual é possível detectar claramente a distinção estabelecida pelos autores no que tange aos meios deliberativos e não deliberativos, quando eles afirmam que a própria deliberação pode “justificar o uso de meios não deliberativos (...) quando esses meios são necessários para estabelecer as precondições socioeconômicas a uma democracia decente para uma tomada de decisão nos moldes deliberativos” (2004, p. 179; tradução livre). Em outra passagem do texto, o raciocínio fica ainda mais claro: Algumas questões não podem nem mesmo alcançar a agenda política a não ser que alguns cidadãos se disponham a agir com paixão, fazendo declarações ao invés de desenvolver argumentos e respostas. (...) a política não deliberativa – marchas antiguerra, sit-ins e greves de trabalhadores –

THIAGO APARECIDO TRINDADE política deliberativa. Quando Habermas se refere à desobediência civil como “atos de transgressão simbólica não violenta”, parecem claros os limites do que seriam consideradas práticas legítimas de protesto na perspectiva de uma teoria deliberativa da democracia. Essa é uma linha de raciocínio da qual discordamos. Entendemos que as práticas disruptivas protagonizadas pelos setores populares não necessariamente precisam estar vinculadas a algum “projeto deliberativo” para gozarem de legitimidade normativa e relevância teórica. Como destacado por Miguel (2014a, p. 35), em muitos casos, “sobretudo quando ocorre fora da institucionalidade vigente, a ação política dos dominados tem um caráter apenas de negação do mundo existente, sem incorporar qualquer programa efetivo para seu reordenamento”. Não é obrigatoriamente toda e qualquer ação de protesto que busca racionalmente intervir na esfera pública a partir de uma ação política previamente articulada e com objetivos específicos. Nesse sentido, não se pode simplesmente descartar a “positividade do momento destrutivo da política” (2014a, p. 35), isto é, daquelas ações que não têm um projeto de futuro como mote, mas que expressam “apenas” a negação do presente e das normas hegemônicas que governam as relações sociais em dado contexto histórico. O aprofundamento desse debate em específico, todavia, fica para outro momento^14. Em suma, este tópico procurou expor uma importante controvérsia envolvendo os limites do conceito de deliberação, tendo como base a discussão travada pelo próprio Habermas em uma de suas obras mais relevantes. O exame analítico realizado nas linhas anteriores nos indica que o fato de Habermas trabalhar com uma concepção ampliada de deliberação pública não nos autoriza a conceber o protesto como parte do processo deliberativo. No tópico seguinte, esboçamos nossas conclusões gerais sobre o debate teórico proposto por este artigo e procuramos explicar por que a distinção entre protesto e deliberação deve ser mantida. Apontamentos “conclusivos”: elementos para a continuação do debate O papel do ativismo e das táticas disruptivas não ocupa lugar de destaque no debate teórico no interior da corrente deliberacionista. Como sublinhado por Tavares, se, por um lado, os autores que constituem a linha mestra da referida vertente têm realizado esforço importante para alinhar suas formulações conceituais aos preceitos “das forças dirigentes do Estado e do mercado”, por outro eles não parecem “ter o mesmo ânimo em relação aos movimentos e práticas emanados dos setores (...) subalternos” (2016, p. 61). Nesse sentido, é louvável o esforço de Mendonça e Ercan (2015) no sentido de “trazer” o protesto para o debate sobre a deliberação pública. Não resta dúvida de que o reconhecimento das práticas ativistas e de sua importância para a construção da (^14) Os textos de Gutmann e Thompson (2004), Medearis (2005), Dryzek (2000) e Miguel (2014b), todos citados no presente artigo, servem como boas referências para o aprofundamento nesse debate.

A RELAÇÃO ENTRE PROTESTO E DELIBERAÇÃO: REFLEXÕES PARA O APROFUNDAMENTO DO DEBATE democracia constitui um ganho analítico inquestionável para a teoria deliberativa, uma vez que esta se propõe a pensar uma democracia mais aprofundada e capaz de ir além da disputa institucional pelo poder entre as elites. Todavia, a proposta dos autores em associar protesto com deliberação parece ser mais uma tentativa – dentre outras já feitas – no intuito de aproximar o conceito de deliberação da realidade empírica, tornando-o mais palpável e operacional do ponto de vista da pesquisa e, ao mesmo tempo, mais blindado ante os críticos, que apontam ser a deliberação nos moldes habermasianos uma utopia irrealizável. Se, por um lado, é totalmente válido (e necessário) trazer o protesto para o debate sobre deliberação, por outro, discordamos da forma como os autores o fazem, na medida em que, basicamente, sua proposta consiste no abandono da tensão analítica entre protesto e deliberação. Na perspectiva defendida por Mendonça e Ercan (2015), portanto, o protesto é interpretado como sendo parte do processo deliberativo mais amplo na esfera pública, o que elimina a clivagem entre a política deliberativa e a política disruptiva (não deliberativa). É precisamente aí que localizamos o problema: a amplitude que os autores conferem ao conceito de deliberação nos parece uma operação analítica altamente questionável. Ora, se não houver nenhum tipo de distinção entre práticas deliberativas e não deliberativas, isso esvazia de sentido analítico o conceito de deliberação. É sempre arriscado quando um conceito passa a tornar-se um amplo guarda-chuva com pretensão demasiadamente generalista. Como nos lembra Bendix (1996, p. 38), “o ganho em generalidade é obtido muitas vezes em detrimento da utilidade analítica”. No decorrer da década de 1990, essa foi uma das principais críticas direcionadas ao conceito de estrutura de oportunidades políticas (EOP) no âmbito do debate teórico sobre movimentos sociais (Gamson e Meyer, 1996; Meyer, 2004; Goodwin e Jasper, 2003), e, atualmente, o mesmo vem ocorrendo com o conceito de direito à cidade , cunhado originalmente por Henri Lefebvre no final de década de 1960 (Souza, 2010, p. 315- 31 6). Em um de seus mais recentes trabalhos, Jasper (2016, p. 28) pondera que a “cultura está em toda parte, mas não é tudo. Se não houvesse nada além da cultura, isso a tornaria menos útil como conceito”. Para fazer valer nosso argumento, basta apenas substituir a palavra “cultura” por “deliberação”. Além do mais, entendemos que um outro risco subjacente à proposta de Mendonça e Ercan (2015) consiste na “normalização” do protesto, transformando-o em um meio convencional de fazer política, ainda que essa não pareça ser a intenção dos autores. Na medida em que o argumento de Mendonça e Ercan pressupõe a eliminação da clivagem entre política deliberativa e não deliberativa, esse é um desdobramento inevitável. Por mais que em certos casos seja difícil traçar a linha divisória que identifica claramente onde termina o protesto e começa a deliberação, é razoável o entendimento de que ações como ocupações de latifúndios improdutivos e barricadas com pneus em chamas guardam profundas diferenças em relação a debates travados no parlamento ou mesmo em fóruns deliberativos abertos à participação civil. Em muitos casos, protestar