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A promessa do Terceiro Setor Andres Pablo Falconer, Manuais, Projetos, Pesquisas de Administração Empresarial

AndreFalcogdner s Pablo cmenta sobre o teceiro setor e sbre os temas de maneira aprofundada que envolvem esse tema no brasil. Material excelente de pesqusia

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2020

Compartilhado em 06/05/2020

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A promesa do Terceiro Setor
Andres Pablo Falconer ,
Centro de Estudos em Administração do Terceiro Setor, Universidade de São Paulo
http://www.icd.org.uy/mercosur/informes/2000/falconer1.html
1. Introdução
O campo de estudos do terceiro setor é uma das áreas mais novas e verdadeiramente
multidisciplinares das Ciências Sociais, unindo pesquisadores de disciplinas como Economia,
Sociologia, Ciência Política e áreas acadêmicas aplicadas como Serviço Social, Saúde Pública
e Administração. O estudo do terceiro setor é uma área de conhecimento nova tanto no Brasil
quanto no resto do mundo. No Brasil, as escolas de Administração começaram a debruçar-se
recentemente sobre o tema. Neste país, o terceiro setor não é um tema extensivamente
pesquisado, existindo ainda poucos estudos empíricos abrangentes, e um número
insignificante, até recentemente, com enfoque organizacional. Nos Estados Unidos, com a
tradição de um nonprofit sector firmemente enraizada, os primeiros estudos remontam apenas
à década de sessenta, e pouco foi escrito sobre o tema antes do início da década de oitenta,
sendo que a maior parte da produção existente provém dos anos noventa, um piscar de olhos
em termos de história da ciência. Mesmo assim, o terceiro setor já mereceu a atenção de
estudiosos do mainstream da Administração, como Philip Kotler e mesmo de Peter Drucker,
um dos reconhecidos "pais" da Administração moderna. Michael O’Neill relata que, em 1977,
Columbia University estabeleceu o primeiro instituto e programa acadêmico em nonprofit
management, seguido por outras ao longo dos anos oitenta e noventa, chegando, em 1997, a 49
programas nos Estados Unidos, um no Canadá, um na Inglaterra e um na Austrália e 433
disciplinas oferecidas em mais de 100 universidades.3
Terceiro setor, entre todas as expressões em uso, é o termo que vem encontrando maior
aceitação para designar o conjunto de iniciativas provenientes da sociedade, voltadas, segundo
aponta Rubem César Fernandes4, à produção de bens públicos, como, por exemplo, a
conscientização para os direitos da cidadania, a prevenção de doenças transmissíveis ou a
organização de ligas esportivas. Apesar de tender a prevalecer, no Brasil a expressão divide o
palco com uma dezena de outros: não-governamental, sociedade civil, sem fins lucrativos,
filantrópicas, sociais, solidárias, independentes, caridosas, de base, associativas etc.
A emergência do terceiro setor representa, em tese, uma mudança de orientação profunda e
inédita no Brasil no que diz respeito ao papel do Estado e do Mercado e, em particular, à forma
de participação do cidadão na esfera pública. Isto tem levado à aceitação crescente da
ampliação do conceito de público como não exclusivamente sinônimo de estatal: "público não-
estatal".
O estudo do terceiro setor, ou das organizações sem fins lucrativos, é, atualmente, um dos
temas que mais desperta interesse nas escolas e faculdades de Administração no Brasil. Este
surpreendente e inesperado interesse é reflexo de um conjunto de tendências complexas e
interrelacionadas, como a adoção do discurso da cidadania empresarial e da responsabilidade
social por parte das empresas privadas; dos programas de reforma do Estado que ocorrem no
âmbito do governo federal e em estados e municípios, baseados nos pilares de descentralização
política e administrativa, privatização de espaços anteriormente reservados à esfera estatal; e, o
movimento de progressiva democratização da sociedade brasileira, que, aos poucos, deixa para
trás a herança do período autoritário. O termo terceiro setor, no uso corrente, é usado para se
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A promesa do Terceiro Setor

Andres Pablo Falconer , Centro de Estudos em Administração do Terceiro Setor, Universidade de São Paulo http://www.icd.org.uy/mercosur/informes/2000/falconer1.html

  1. Introdução

O campo de estudos do terceiro setor é uma das áreas mais novas e verdadeiramente multidisciplinares das Ciências Sociais, unindo pesquisadores de disciplinas como Economia, Sociologia, Ciência Política e áreas acadêmicas aplicadas como Serviço Social, Saúde Pública e Administração. O estudo do terceiro setor é uma área de conhecimento nova tanto no Brasil quanto no resto do mundo. No Brasil, as escolas de Administração começaram a debruçar-se recentemente sobre o tema. Neste país, o terceiro setor não é um tema extensivamente pesquisado, existindo ainda poucos estudos empíricos abrangentes, e um número insignificante, até recentemente, com enfoque organizacional. Nos Estados Unidos, com a tradição de um nonprofit sector firmemente enraizada, os primeiros estudos remontam apenas à década de sessenta, e pouco foi escrito sobre o tema antes do início da década de oitenta, sendo que a maior parte da produção existente provém dos anos noventa, um piscar de olhos em termos de história da ciência. Mesmo assim, o terceiro setor já mereceu a atenção de estudiosos do mainstream da Administração, como Philip Kotler e mesmo de Peter Drucker, um dos reconhecidos "pais" da Administração moderna. Michael O’Neill relata que, em 1977, Columbia University estabeleceu o primeiro instituto e programa acadêmico em nonprofit management, seguido por outras ao longo dos anos oitenta e noventa, chegando, em 1997, a 49 programas nos Estados Unidos, um no Canadá, um na Inglaterra e um na Austrália e 433 disciplinas oferecidas em mais de 100 universidades.

Terceiro setor, entre todas as expressões em uso, é o termo que vem encontrando maior aceitação para designar o conjunto de iniciativas provenientes da sociedade, voltadas, segundo aponta Rubem César Fernandes4, à produção de bens públicos, como, por exemplo, a conscientização para os direitos da cidadania, a prevenção de doenças transmissíveis ou a organização de ligas esportivas. Apesar de tender a prevalecer, no Brasil a expressão divide o palco com uma dezena de outros: não-governamental, sociedade civil, sem fins lucrativos, filantrópicas, sociais, solidárias, independentes, caridosas, de base, associativas etc.

A emergência do terceiro setor representa, em tese, uma mudança de orientação profunda e inédita no Brasil no que diz respeito ao papel do Estado e do Mercado e, em particular, à forma de participação do cidadão na esfera pública. Isto tem levado à aceitação crescente da ampliação do conceito de público como não exclusivamente sinônimo de estatal: "público não- estatal".

O estudo do terceiro setor, ou das organizações sem fins lucrativos, é, atualmente, um dos temas que mais desperta interesse nas escolas e faculdades de Administração no Brasil. Este surpreendente e inesperado interesse é reflexo de um conjunto de tendências complexas e interrelacionadas, como a adoção do discurso da cidadania empresarial e da responsabilidade social por parte das empresas privadas; dos programas de reforma do Estado que ocorrem no âmbito do governo federal e em estados e municípios, baseados nos pilares de descentralização política e administrativa, privatização de espaços anteriormente reservados à esfera estatal; e, o movimento de progressiva democratização da sociedade brasileira, que, aos poucos, deixa para trás a herança do período autoritário. O termo terceiro setor, no uso corrente, é usado para se

referir à ação social das empresas, ao trabalho voluntário de cidadãos, às organizações do poder público privatizadas na forma de fundações e "organizações sociais". Mais do que um conceito rigoroso ou um modelo solidamente fundamentado em teoria - organizacional, política ou sociológica - terceiro setor, no Brasil, é uma idéia-força, um espaço mobilizador de reflexão, de recursos e, sobretudo, de ação.

Neste momento, o Estado, as empresas privadas, a mídia e a própria sociedade passam a olhar com seriedade o conjunto de organizações que compõem o terceiro setor, e a universidade é demandada para produzir conhecimento que permita compreender este fenômeno e apoiar o seu desenvolvimento. As escolas e faculdades de Administração voltam seu foco para este setor e são desafiadas a adaptar o seu arcabouço de técnicas e desenvolver conhecimento aplicado específico a ele.

Questionar o que constitui o terceiro setor deve anteceder a mera transposição do conhecimento acumulado em gestão de empresas privadas e públicas às organizações sem fins lucrativos. Apenas conhecendo a sua real configuração e identificando necessidades específicas poderão as escolas de gestão apoiar o desenvolvimento da sociedade civil organizada.

Há consenso de que a formação de administradores profissionais para o terceiro setor deve ser modelada pelo perfil e demandas específicas destas organizações, e não meramente pela transposição de modelos e técnicas desenvolvidos no meio empresarial ou na administração pública. Questiona-se, neste ensaio, o quanto a capacitação tradicional em gestão é capaz de oferecer a resposta ao gap entre as expectativas em relação ao setor e a realidade de fragilidade observada no Brasil. Mais ainda, questiona-se se falta de capacitação é o problema central do terceiro setor.

A promessa do terceiro setor é, argumenta-se neste paper, um desejo formado a partir da visão de diversos atores externos ao próprio terceiro setor, fundamentada em argumentos frágeis. Uma mais adequada compreensão da contribuição da Administração para o terceiro setor deveria partir da análise destes argumentos, para, sobre eles, modelar a formação de gestores do terceiro setor.

  1. Este ensaio está baseado na dissertação de mestrado em Administração defendida pelo autor na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo em julho de 1999, sob orientação da Profa. Dra. Rosa Maria Fischer.
  2. Mestre em Administração pela FEA-USP e fellow do Johns Hopkins Center for Civil Society Studies 1997-98); coordenador de projetos do CEATS-USP – Centro de Estudos em Administração do Terceiro Setor da Universidade de São Paulo.
  3. Michael O’Neill, "Nonprofit Management Education: History, Current Issues and the Future", in Michael O’Neill & Kathleen Fletcher (eds.), Nonprofit Management Education: U.S. and World Perspectives. Westport: Praeger, 1998.
  4. Rubem César Fernandes, Privado Porém Público: O Terceiro setor na América Latina, Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. Page 1

A promesa do Terceiro Setor

a atribuição do fenômeno, genericamente, à "sociedade civil". A construção do terceiro setor brasileiro, pode-se afirmar com segurança, deu-se de fora para dentro: de fora do país e de fora do setor para dentro dele.

Entidades internacionais e multilaterais foram as grandes introdutoras do conceito e as responsáveis pela valorização do terceiro setor em todo o mundo subdesenvolvido. Algumas fundações e instituições norte-americanas e européias, como a Fundação Ford, vinham apoiando havia décadas, em particular durante os anos do regime militar, iniciativas cujo objetivo era fortalecer a democracia através da participação popular. Uma forma comum de fazer isto era através do apoio a projetos de organizações comunitárias e movimentos populares, principalmente junto a populações carentes. Foram as grandes fundações, Igrejas e mesmo entidades governamentais de países capitalistas desenvolvidos que, desde o fim da década de oitenta, passaram a investir maciçamente na (re)construção das sociedades civis dos países do desmoronado bloco soviético.

Nos anos noventa, outra fundação americana privada, a Fundação W. K. Kellogg, veio a assumir uma posição que pode ser caracterizada como um mecenato do terceiro setor: em praticamente toda a América Latina e outras partes do mundo em desenvolvimento, projetos pioneiros voltados para o "fortalecimento da sociedade civil", para o estudo do terceiro setor e para temas como o desenvolvimento da filantropia e voluntariado contaram com o apoio financeiro maciço desta instituição.

O Banco Mundial é, sem dúvida, a instituição internacional que mais contribuiu para a consolidação e disseminação deste campo no mundo em desenvolvimento. A colaboração operacional com ONGs (para o Banco Mundial, terceiro setor é sinônimo de non- governmental organization sector) nas atividades do Banco tornou-se mais comum a partir da década de setenta e, deste momento em diante, experimentou rápida expansão. Entre 73 e 88, apenas 6% dos projetos envolviam colaboração de ONGs. Em 93, um terço e, em 94, a cifra alcançou os 50% 6. Desde 1983, existe um Comitê ONG-Banco Mundial. Para o Banco, o interesse em trabalhar com ONGs decorre da sua constatação de que estas organizações podem contribuir para a qualidade, sustentabilidade e efetividade dos projetos que financia. O Banco Mundial acredita que o trabalho em parceria com ONGs permite incorporar em seus projetos as vantagens características destas organizações: a inovação, devido à escala pequena dos projetos, a incorporação da multiplicidade de alternativas e opiniões diversas; a participação de populações locais e a consulta à população beneficiária; a melhor compreensão dos objetivos dos projetos pela sociedade; o alcance ampliado da ação, atingindo a quem mais precisa e finalmente; a sustentabilidade, ou continuidade de projetos após a retirada do Banco. 7

No âmbito do governo federal, a nova relação com as organizações da sociedade civil tem como principais eixos dois programas que, embora independentes e mal articulados entre si têm diversos pontos comuns. Por um lado, um dos instrumentos de política social do governo, o Programa Comunidade Solidária, e, por outro lado, o programa de reforma administrativa, que propõe um mecanismo de "publicização" e criação de organizações sociais. 8

De acordo com documentos do governo federal, uma das quatro áreas principais da política social do governo de Fernando Henrique Cardoso é a parceria com a sociedade civil.9 O principal mecanismo de "parceria" é o Conselho da Comunidade Solidária, composto por vinte e um membros da sociedade civil e dez ministros de Estado. Suas funções são opinar sobre ações governamentais na área social, propor novas estratégias, incentivar iniciativas não- governamentais e promover meios para o fortalecimento do terceiro setor. Suas principais

estratégias de atuação têm sido a realização de ajustes na legislação que causa impacto no terceiro setor, o estímulo à criação de redes de informação de organizações da sociedade civil, e a promoção do voluntariado. O objetivo principal de atuação do Conselho, de acordo com o governo, é "tornar mais claras, produtivas e eficientes, as relações entre o Estado e o terceiro setor"10. Os recursos para a implementação de algumas linhas de atuação do Conselho do Comunidade Solidária e em particular para as iniciativas destinadas ao fortalecimento do terceiro setor provêm em grande parte da iniciativa privada e de organizações multilaterais, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a UNESCO.

  1. "Entrevista com Silvio Caccia Bava - Presidente da ABONG - Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais", obtida em 4/12/98 no site http://www.cogeae.pucsp.br/~sircri/utilid/trabalha/polsoc/abong.html.
  2. Carmen Malena. Working with NGOs: A Practical Guide to Operational Collaboration Between the World Bank and Non-governmental Organizations. Washington, D.C. Operations Policy Department, World Bank, 1995.
  3. Carmen Malena, op. cit.
  4. É, evidentemente, uma simplificação afirmar que há apenas dois pontos de interface do governo federal com as organizações da sociedade civil: o terceiro setor interage com o governo em praticamente todas as suas áreas de atuação. Estes dois "eixos", no entanto, representam importantes fontes de mudança da relação entre estes setores. Um possível "terceiro eixo" é o da política fiscal. Sua relação com o terceiro setor foi colocada em evidência no final de 1998, com as alternações nos benefícios fiscais concedidos às entidades filantrópicas.
  5. As outras áreas são: articulação entre planos econômicos e projetos sociais; busca da eficiência/racionalização das políticas sociais; e ações focadas de combate à fome e bolsões de pobreza.
  6. BRASIL. Por Um Brasil Mais Justo: Ação Social do Governo. Brasília: Presidência da República, 1996.

Page 2 A promesa do Terceiro Setor Andres Pablo Falconer, Centro de Estudos em Administração do Terceiro Setor, Universidade de São Paulo

No tocante à reforma administrativa, o Plano Diretor de Reforma do Estado, de responsabilidade do Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE), sob o comando de Luiz Carlos Bresser Pereira, parte da constatação do esgotamento do modelo de Estado até então adotado no Brasil e propõe um novo modelo, que reserva um papel de destaque às organizações privadas sem fins lucrativos. Para o MARE, a crise brasileira é uma crise do Estado, da estratégia estatizante e do modelo de "administração pública burocrática". Como resposta a este esgotamento, propõe o conceito de "administração pública gerencial", caracterizada pela eficiência e qualidade, descentralizada e com foco no cidadão 11. Este modelo distingue quatro setores do Estado e a cada um atribui um tipo ideal de propriedade. Uma destas formas de propriedade, "pública não-estatal" é representada por organizações sem fins lucrativos, "que não pertencem a ninguém e estão orientadas para o atendimento do

"O GIFE, representando o segmento advindo da atividade empresarial no Terceiro Setor, busca expressar a responsabilidade e conseqüente participação da iniciativa privada na reorganização do espaço público (...)" 18

Tem-se então que, no Brasil, a exemplo do que vem ocorrendo em diversos cantos do mundo, o setor empresarial, o Estado e as organizações multilaterais contribuíram para a formação e o reconhecimento de um novo espaço institucional, o terceiro setor. Este terceiro setor desponta sob a promessa brilhante de eficiência, participação cidadã, inovação e qualidade; um setor que se consolida sob o signo da parceria e se mescla com o setor empresarial, como alternativa intermediária entre a atuação do Estado e a privatização. Um setor que nasce de fora para dentro, que é estranhado pelas próprias organizações que o compõem e que surge em uma época de aparente desmobilização dos movimentos sociais.

Há aspectos obscuros e um intenso debate ideológico sobre a relação entre os três setores, que não conta com o necessário suporte de fatos documentados, justificando a necessidade de pesquisa sobre o terceiro setor e sobre as relações intersetoriais. Alguns vêem no setor uma ameaça neo-liberal de precarização de conquistas sociais, através da defesa do Estado mínimo; para outros, representa um importante avanço da sociedade, que pode tornar o Estado mais transparente, aberto e sintonizado com os anseios da população. Esta divergência de posições parte dos próprios setores organizados da sociedade: seus partidos, sindicatos, associações.

Paradoxalmente, para um setor que surge com tão elevadas expectativas a respeito de suas qualidades e seu potencial de atuação, o terceiro setor brasileiro parece mal equipado para assumir este papel. Ouve-se, simultaneamente ao discurso que idealiza o setor, que estas entidades são mal geridas, excessivamente dependentes, amadoras e assistencialistas em sua atuação, e, por vezes, sujeitas a motivações pouco filantrópicas, para não dizer criminosas. Neste momento, configura-se o desafio de gestão do terceiro setor.

Alguns dos poucos estudos existentes apontam no terceiro setor brasileiro importantes limitações a sua capacidade de desempenhar satisfatoriamente estes papéis que lhe são propostos. Notadamente, ressalta-se a fragilidade organizacional; a dependência de recursos financeiros governamentais e de agências internacionais, cada vez mais escassos; a falta de recursos humanos adequadamente capacitados e; a existência de obstáculos diversos para um melhor relacionamento com o Estado19. Esta fragilidade pode ser observada na baixa capacidade de continuidade - de sustentabilidade - das organizações e das experiências promovidas por estas, na perda de eficiência e eficácia de suas ações e, conseqüentemente, no enfraquecimento de sua capacidade de interlocução, tanto com o Estado quanto com a sociedade civil propriamente dita.

Constata-se que, embora o terceiro setor esteja sendo alçado a uma posição de primeira grandeza, como "manifestação" da sociedade civil e parceiro obrigatório do Estado na concepção e implementação de políticas públicas, a realidade deste setor, quanto ao seu grau de estruturação e capacidade de mobilização, ainda está muito aquém da necessária para que cumpra os papéis para os quais está sendo convocado, seja por características políticas e culturais brasileiras, como a alegada "falta de tradição associativa", seja por deficiências na gestão destas organizações.

Diversas ações estão em curso para a reversão deste quadro: no plano macro, o Estado elabora leis visando a criação de um ambiente legal mais propício às organizações do terceiro setor que têm finalidade pública; no plano organizacional, começam a surgir iniciativas destinadas a

apoiar as entidades do terceiro setor e ao aperfeiçoamento de sua gestão. O terceiro setor torna- se uma área de estudo acadêmico, entrando na universidade, principalmente, através das escolas e faculdades de Administração. O campo de Administração de organizações sem fins lucrativos começa a se desenvolver no país: inicia-se uma tímida produção acadêmica e surgem os primeiros programas de formação em gestão específicos para organizações sem fins lucrativos 20. Identificadas insuficiências na gestão das organizações, saná-las tornou-se um dos alvos prioritários para o fortalecimento do terceiro setor. A profissionalização é o discurso corrente: formar líderes, capacitar em administração e profissionalizar a direção das entidades.

As ações de desenvolvimento do terceiro setor no plano organizacional fundamentam-se na suposição de que a gestão organizacional é o principal ponto fraco do setor e, conseqüentemente, a capacitação em gestão é a principal arma para que este desempenhe plenamente o seu papel esperado. Aceitar esta suposição, fundamentada no bom senso e na experiência organizacional de inúmeras organizações, levanta importantes questões, necessárias para modelar programas de gestão:

Qual é a contribuição do conhecimento em Administração para as organizações do terceiro setor?

Ou:

Para quais problemas a Administração pode oferecer soluções concretas?

E, como corolário destas:

Quais são as limitações das disciplinas de Administração para os desafios atuais do terceiro setor? Ou seja, para quais problemas não oferece soluções?

Finalmente, uma questão que provoca discussões acaloradas:

Em que medida a Administração para o Terceiro Setor é semelhante ou difere da Administração de Empresas com finalidade de lucro e da Administração Pública?

Se a Administração de organizações sem fins lucrativos constitui (ou tem o potencial de se constituir em) um campo ou uma disciplina próprio nas Ciências de Gestão, ou, na verdade, apenas utiliza os mesmos conhecimentos e técnicas já aplicados em outro tipo de organização, é um tema há muito discutido pelos estudiosos do terceiro setor. Em síntese: há um novo campo de conhecimento ou trata-se, apenas, de ensinar Administração a quem, reconhecidamente, entende pouco do assunto?

Estas questões são fundamentais para as escolas de Administração, ao passarem a estudar o terceiro setor, mas são centrais para um plano que não é usualmente abordado pela Administração: a dimensão de políticas públicas, que trata da solução de problemas públicos, e não apenas os organizacionais. A resposta às questões enunciadas acima fornece elementos que permitem desmistificar o campo de estudos do terceiro setor, tão sujeito a posições pouco fundamentadas, e oferece indícios da real potencialidade e limites do terceiro setor enquanto produtor de soluções públicas.

  1. BRASIL. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: Presidência da República, 1995.
  1. Administrando um Setor Sem Fins Lucrativos

Há um virtual consenso entre estudiosos e pessoas envolvidas no cotidiano de organizações sem fins lucrativos de que, no Brasil, a deficiência no gerenciamento destas organizações é um dos maiores problemas do setor, e que o aperfeiçoamento da gestão - através da aprendizagem e da aplicação de técnicas oriundas do campo de Administração - é um caminho necessário para o atingir de melhores resultados. O problema fundamental do terceiro setor, nesta visão, é um problema de gestão. Esta parece ser a premissa que fundamenta o recente surgimento de inúmeros programas de capacitação para instituições do terceiro setor e, não surpreendentemente, é a visão predominante entre as escolas de Administração. O modismo do terceiro setor nas escolas e departamentos de Administração brasileiros, as primeiras e ainda praticamente únicas unidades universitárias a se interessarem seriamente por esta área, fundamenta-se nesta percepção do "desafio de gestão". Refletindo este interesse, bem como a evolução do envolvimento empresarial em ações de finalidade social - a filantropia empresarial

  • nota-se que são as revistas de gestão21, que oferecem maior cobertura ao tema da emergência de atores privados, sem fins lucrativos, como solução para problemas sociais que, antes, eram reservados ao Estado.

Se nas décadas de setenta e oitenta os maiores desafios das entidades do terceiro setor brasileiras eram a sobrevivência em um ambiente político hostil e a conquista de reconhecimento público para suas causas, como o ambientalismo e a defesa de direitos, nos anos noventa a legitimidade do setor parece advir da sua competência em agir de forma eficiente e eficaz na prestação de serviços.

O perfil das organizações do terceiro setor no Brasil parece, à primeira vista, apenas confirmar a percepção de que o problema do setor é, fundamentalmente, um problema de competência na gestão: operando em um meio desfavorável, caracterizado pela falta de recursos e de apoio do poder público, as organizações não conseguem romper o ciclo vicioso:

falta de recursos humanos capacitados --> gerenciamento inadequado -->

falta de dinheiro --> insuficiência de resultados

Uma organização do terceiro setor típica (se é possível afirmar a existência disto) é uma entidade muito pequena, tanto em termos de recursos financeiros quanto em número de profissionais de que dispõe. Mesmo organizações de maior porte, como hospitais, que, pela especificidade de sua atividade, necessitam de mais recursos e profissionais de elevada especialização, usualmente contam com uma disponibilidade de recursos financeiros e humanos muito abaixo do que necessitariam para operar em condições ideais.

As organizações do terceiro setor pareceriam ser, por natureza, cronicamente deficitárias e sub-capacitadas para desempenhar o seu papel; o aperfeiçoamento da gestão destas organizações teria um papel importante na ruptura deste ciclo de condições precárias de operação levando ao desempenho insatisfatório, substituindo-o por uma relação ideal onde o bom gerenciamento permitiria alcançar resultados positivos que, por sua vez, permitiriam a captação de recursos suficientes e a atração de profissionais qualificados, superando as adversidades do meio.

Iniciativas de aperfeiçoamento da gestão, através da educação continuada (cursos de Administração), assessorias, contratação de profissionais e adoção de técnicas e práticas

modernas de administração estão, de fato, revolucionando o terceiro setor no Brasil e no mundo. Entidades organizam-se, redefinem sua orientação, seus processos, serviços ou atividades segundo critérios de excelência gerencial, adquirem domínio de técnicas de planejamento, acompanhamento e avaliação de processos e resultados, e adotam modelos de gestão de empresas competitivas, com significativo impacto em sua forma de atuação.

A Administração surge como área de conhecimento portadora de soluções para os problemas do terceiro setor. Temas de Administração - planejamento, gestão de projetos, marketing, finanças, auditoria, liderança, motivação - antes restritos apenas ao mundo empresarial ou à administração pública, tornam-se comuns entre as organizações do terceiro setor. O jargão anglófono de gestão entra no vocabulário dos profissionais do setor: benchmarking, fundraising, accountability, stakeholders. Seja pela percepção de seus dirigentes ou por pressão externa de financiadores, a habilidade de gerir é vista como a competência mais desejável e menos presente nas organizações do terceiro setor.

A idéia de que a eficiência e a eficácia de resultados constituem o principal desafio das organizações da sociedade civil é fundamentalmente diferente do que se via em um passado recente, quando a mera existência de uma organização ou a validade da causa defendida por esta seriam apontados, freqüentemente, como suficientes para justificar uma doação de recursos a fundo perdido, sem maiores exigências quanto aos resultados a serem alcançados com o emprego destes. No cenário atual, as grandes disputas do terceiro setor no campo ideológico e político parecem arrefecer. Agora, na discussão sobre os fins das organizações, a Administração adquire maior importância com a adoção do discurso empresarial de resultados. Esta não é uma mudança cultural completa, mas manifestação visível de um processo gradual de transformação pela qual vêm passando os atores organizacionais do campo do desenvolvimento social em todo o mundo - ONGs, fundações, entidades multilaterais de desenvolvimento e mesmo o Estado. Apenas com dificuldade, dirigentes e líderes de antigas e politizadas organizações não-governamentais - majoritariamente identificadas com a esquerda política - admitem ter algo a aprender com as empresas do mercado e aceitam gerir suas organizações como empreendimentos comerciais. O depoimento de um dirigente de uma entidade da Malásia retrata uma posição ainda comum das ONGs frente às questões de administração, indicando que este não é um traço exclusivo ao Brasil:

Em geral, liderança é um ponto muito fraco nas ONGs. Isto ocorre porque muitos daqueles que criam ONGs não se identificam com os conceitos e práticas tradicionais de management e administração. Management é uma forma de controlar pessoas ou manipulá-las. Administração tem um mau nome. Pessoas nas ONGs tendem a ser mais boêmias ou mais individualistas no caráter. Elas tendem a ter uma atitude anti-management, e isto ocasiona problemas. 22

Tancredi confirma a validade desta percepção no Brasil ao afirmar que "sem sombra de dúvidas, existe uma forte dose de amadorismo no trato da administração estratégica de projetos (...) (apesar de) ninguém admitir que ignora a importância destas dimensões". "Em que pese sua experiência no campo profissional específico de onde foram trazidos, acabam caindo e se enredando nas armadilhas dos processos e fenômenos das mudanças institucionais"23.

A Administração é agora invocada - principalmente por quem admite conhecer pouco do assunto - como um elixir milagroso. Freqüentemente é tratada como uma caixa preta cujo conteúdo é desconhecido. O discurso empresarial contemporâneo mistifica a natureza da verdadeira contribuição da Administração ao terceiro setor, como nota Vera Lúcia Salvatore:

Nos EUA, diferentes perspectivas competem pela primazia no campo acadêmico do terceiro setor no que se refere à formação de profissionais para atuar na gestão de suas organizações. A perspectiva de administração do terceiro setor, pensada como um setor específico com necessidades distintas e que merece, portanto, uma área acadêmica própria; a visão de administração pública que enfatiza o caráter "público não-estatal" das organizações deste setor; e a ótica de políticas públicas que, sem enfatizar o nível organizacional, enfatiza a necessidade de encontrar solução a problemas públicos.

Por vezes, ouvem-se argumentos contra a necessidade de formação especializada para gestores do terceiro setor com base na idéia de que, afinal, "management is management" em qualquer tipo de organização. Esta visão é mais comum no meio empresarial: a experiência pessoal de sucesso do "self-made man" e a autoconfiança do executivo podem levá-lo à conclusão fácil de que a gerência de um empreendimento social baseia-se nos mesmos princípios seguidos pela empresa de mercado. As fascinantes histórias de sucesso empresarial e o fato de estes indivíduos deterem os recursos financeiros que as entidades do terceiro setor tanto precisam faz com que esta visão tenha também seus entusiastas no terceiro setor, apesar do estranhamento que a linguagem e a cultura empresarial causam a suas entidades. Sem desqualificar a especificidade do terceiro setor frente ao Mercado, enfatizam a semelhança entre a gestão nestes dois tipos de organização estudiosos como Letts, Ryan & Grossman25, que propõem que as fundações adotem novas formas de atuação, próprias do Mercado; Dees, que indica que entidades sem fins lucrativos estão voltando sua atenção para práticas empresariais comerciais26; ou Drucker, que sugere que são as empresas que têm muito a aprender com as nonprofits, que estariam se tornando "America’s management leaders"27.

  1. Cláudia Vassalo, "Fazer o Bem Compensa? Por que a Filantropia Empresarial está se Transformando numa Vantagem Competitiva para as Empresas". Exame, Ano 31, No 9 São Paulo: Abril, 1998; "Um Caso Exemplar - Nos Bastidores da Empresa Mais Admirada pelo Trabalho Social que Desenvolve: A C&A". Exame, Ano 32, No 1, São Paulo: Abril, 1999.
  2. Sjef Theunis (org.), Non-Governmental Development Organizations of Developing Countries: And the South Smiles..., Dordrecht: Martinius Nijhoff, 1992.
  3. Francisco B. Tancredi, "Institucionalização e Sustentabilidade: Desafios Permanentes do UNI", in Divulgação, Londrina: CEBES, 1995.
  4. Vera Lúcia de Oliveira Salvatore, "Desafios das Entidades Sociais na Busca da Identidade", São Paulo: Federação de Obras Sociais, mimeo, 1998.
  5. Christine W. Letts, William Ryan & Allen Grossman, "Virtuous Capital: What Foundations Can Learn from Venture Capitalists", in: Harvard Business Review, Cambridge: Harvard, março/abril de 1997.
  6. J. Gregory Dees, "Enterprising Nonprofits", in Harvard Business Review, Cambridge: Harvard, janeiro/fevereiro de 1998.
  7. Peter Drucker, "What Business Can Learn from Nonprofits", in Harvard Business Review, Cambridge: Harvard julho/agosto de 1989. Page 4 A promesa do Terceiro Setor Andres Pablo Falconer,

Centro de Estudos em Administração do Terceiro Setor, Universidade de São Paulo

A perspectiva de Administração Pública

A proposição de um modelo de administração que envolva a participação de agentes privados não-governamentais tanto na formulação quanto na implementação de políticas públicas é possível como resultado da lenta mudança de paradigmas na administração pública. Em seu modelo clássico de gestão, desenvolvido em paralelo e influenciado pela disciplina da Administração Científica, as organizações públicas, governamentais, eram concebidas e desenhadas como estruturas centralizadas e hierarquizadas. Uma tese central deste modelo propunha a perfeita separação entre política e administração. "Administração" era tida como uma atividade neutra e técnica, dirigida por profissionais - burocratas - segundo princípios de eficiência, como Frederick Taylor os havia definido28. A separação entre fins e meios, formulação e implementação, pressupõe que a implementação é uma etapa distinta e posterior à formulação, pautada meramente por decisões racionais entre alternativas para atingir fins previamente definidos. Nunca o estudo da Administração Pública demonstrou tanto otimismo quanto no período do pós-guerra, em que acreditou contar com soluções técnicas definidas para situações e políticas específicas e em que se definia como a ciência do conhecimento das condições organizacionais para avançar o bem-estar humano29. Este modelo foi posteriormente criticado por contrariar a realidade das organizações, onde a ação segundo princípios e prescrições científicas provou ser uma descrição incorreta do trabalho do administrador, e onde a distinção entre decisões políticas e administrativas era nebulosa; inevitavelmente, o administrador dispunha de muito mais poder político discricionário, ao escolher alternativas de implementação, do que se previa e considerava desejável no modelo clássico. Esta constatação colocou o modelo clássico de Administração Pública de ponta- cabeça: o poder não se situava onde os teóricos o haviam previsto.

Modelos subseqüentes de Administração adotaram enfoques sistêmicos em substituição às analogias mecanicistas e lineares da Administração Científica. Em lugar de perceber a etapa de implementação como separada e posterior à da formulação, passou-se a compreendê-la como um entre diversos elementos em interação que compõem um sistema. A administração pública adotou esta orientação mas manteve a percepção da burocracia do Estado como formulador, financiador e implementador de programas. Ainda neste modelo, o foco na administração direta pelo Estado deixava pouco espaço para terceiros na implementação de políticas públicas.

Nos anos noventa, as escolas de Administração Pública despertaram para o terceiro setor e para o espaço público não-estatal. Estes é um dos principais fenômenos de renovação desta área, que alternava entre a estagnação da burocracia formal e a importação de modelos de origem empresarial. Um número expressivo dos programas e cursos voltados à gestão das organizações sem fins lucrativos se originaram em escolas e departamentos de Administração Pública. O enfoque público tanto das agências governamentais quanto das organizações sem fins lucrativos, e o fato de que o Estado tem sido estimulado a interagir com o terceiro setor tem levado a isto. A ligação com as disciplinas da Administração Pública confere aos estudos do terceiro setor um nível de compreensão maior de sua natureza entre o público e o privado do que a vinculação com escolas cuja tradição de estudos é voltada exclusivamente a empresas do setor privado.

Nonprofit Management

que emprega na gestão de ONGs as funções da Teoria Clássica de Administração: planejamento, organização, direção e controle31. O mesmo pode ser dito para as áreas funcionais e departamentos típicos de uma empresa, como marketing, gestão de pessoal, operações, gestão contábil e financeira etc.; todos podem ser encontrados também em entidades sem fins lucrativos. Mas o perfil do terceiro setor reveste estas funções de atribuições específicas que requerem do seu profissional os conhecimentos, habilidades, atitudes e valores específicos a que se refere O’Neill.

Gestão de voluntários é um dos casos de diferenças mais marcadas entre a aplicação da administração de recursos humanos em empresas e em organizações sem fins lucrativos. Embora soe paradoxal, a "profissionalização" do voluntariado está em curso no terceiro setor. Isto significa, entre outras coisas, desenvolver a capacidade de recrutar e capacitar pessoas para a atuar como voluntárias, compartilhar com estas os valores da organização, definir cuidadosos planos de trabalho e acompanhar a sua atuação para que o trabalho seja efetivamente cumprido, sem deixar espaço para o amadorismo que, muitas vezes, caracteriza o voluntariado32.

Comercialização e marketing no terceiro setor também diferem acentuadamente da forma em que são praticados em empresas. Raramente o usuário de um bem ou serviço produzido por uma organização sem fins lucrativos é quem efetivamente paga por este, e mesmo quando os serviços são cobrados do usuário, dificilmente estes são os únicos responsáveis pelo seu custeio. Desta forma, o uso do termo "cliente" no terceiro setor é enganador: é cliente quem financia pelo serviço ou quem o usa? Uma ação de marketing que tem como alvo o financiador

  • o Estado ou uma fundação internacional, por exemplo - difere profundamente de uma campanha de arrecadação de fundos junto a cidadãos de classe média. Estas ações, por sua vez, diferem de uma atuação de marketing que tem como objetivo promover uma causa social, como a erradicação do trabalho infantil, ou divulgar serviços gratuitos ao público em geral. Em suma, o chamado marketing social é mais complexo do que a relação comercial cliente- fornecedor que, tipicamente, caracteriza os mercados onde atuam empresas e apesar do parentesco com a marketing de empresas, envolve um conjunto de técnicas e metodologias distintas33.
  1. Robert T. Nakamura & Frank Smallwood, The Politics of Implementation, Nova York: St. Martin’s Press, 1980.
  2. Vincent Ostrom, The Intellectual Crisis of Public Administration, Tuscaloosa: University of Alabama Press, 1973.
  3. Michael O’Neill, "Nonprofit Management Education: History, Current Issues, and the Future", in Michael O’Neill & Kathleen Fletcher, Nonprofit Management Education: U.S. and World Perspectives, Westport: Praeger, 1998.
  4. Fernando G. Tenório (org.), Gestão de ONGs: Principais Funções Gerenciais. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997.
  5. James C. Fisher & Kathleen M. Cole. Leadership and Management of Volunteer Programs: A Guide for Volunteer Administrators. San Francisco: Jossey-Bass, 1993.
  6. Marcio Ruiz Schiavo, "Conceito e Evolução do Marketing Social", in Conjuntura Social, São Paulo: Comunicarte/Instituto Ayrton Senna, ano 1, N. 1, 1999.

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Políticas públicas e terceiro setor

Lester Salamon sustenta que o "desafio central" para os administradores de organizações sem fins lucrativos não é simplesmente aperfeiçoar a gestão de suas organizações, mas encontrar soluções para os problemas públicos através da gestão de relacionamentos colaborativos complexos que se estabelecem entre os setores e que tendem a se tornar mais comuns em todo o mundo34. Para Salamon, a solução de problemas públicos, que deveria ser a raison d’être do terceiro setor, não é responsabilidade de um único setor, o Estado, e esta responsabilidade não poderá ser transferida para o terceiro setor. Em sua perspectiva de "relacionamentos colaborativos", ou parceria intersetorial, afirma que os gestores devem ser formados com foco na solução de problemas e criação de parcerias, indo além de uma visão voltada unicamente para um tipo de organização e suas necessidades específicas. Sem desmerecer a existência de um campo específico de formação para o terceiro setor, Salamon sugere que gestores públicos, de nonprofits e de agências governamentais, sejam formados lado a lado, até porque a carreira destes profissionais, freqüentemente, os faz passar pelos dois tipos de organização.

O "problema" do terceiro setor, que as universidades devem tentar remediar através da formação profissional, varia de acordo com a perspectiva adotada para olhar o setor. O problema pode ser compreendido como a sustentabilidade das organizações, no sentido de assegurar a sua sustentação financeira; ou o fortalecimento do terceiro setor, em termos do número de organizações existentes, da pluralidade da sua atuação e da sua pujança econômica. Ou ainda, a questão central pode ser alcançar os resultados sociais a que se propõem a maioria das organizações do terceiro setor, como erradicar a pobreza, assegurar que direitos sejam respeitados, que uma "rede de segurança" esteja disponível a todos os cidadãos ou, melhor ainda, que esta rede não seja sequer necessária. Não é irrelevante esta diferença de perspectiva em um setor que, supostamente, se diferencia dos demais pelo comprometimento com ideais de transformação social e pela finalidade pública.

As considerações sobre a diferença de objetivos existentes nas perspectivas organizacional, setorial e publica são úteis para refletir sobre a gestão para o terceiro setor. Se esta for pensada em sua forma clássica, destinada apenas a instrumentalizar a atuação no plano organizacional, é evidente que se estará privilegiando um nível que não tem no interesse público, necessariamente, a sua maior motivação, a despeito do discurso do terceiro setor. Esta visão é comparável à da administração pública tradicional, que, também ela, é voltada para dentro, para as necessidades de um tipo específico de organização - a agência governamental - sem, no entanto, refletir adequadamente sobre a perspectiva de problemas públicos.

A gestão do terceiro setor deve resgatar a interdisciplinaridade do campo de Administração, trazendo da administração de empresas a visão de negócio, da administração pública a competência de gestão de serviços públicos, mas também do campo de políticas públicas o sentido de capacitar para o atingimento de objetivos públicos e não exclusivamente organizacionais. A perspectiva de problemas públicos e políticas públicas deve estar na mente do administrador do terceiro setor, tanto quanto os problemas imediatos de sobrevivência de suas organizações.

maneira suficiente e continuada, e utilizá-los com competência, de maneira a perpetuar a organização e permiti-la alcançar os seus objetivos.

Todos os segmentos do terceiro setor parecem passar por uma crise de sustentabilidade: a garantia de recursos continuados, se um dia houve, pertence ao passado. Isto vale, indistintamente, para as organizações que captam seus recursos financeiros no Estado, de empresas privadas e de pessoas físicas.

Uma das competências mais necessárias para o gestor do terceiro setor é a capacidade de conhecer e desenvolver todas as possibilidades disponíveis de obtenção de recursos, de maneira a tê-los em volume suficiente, de forma continuada e sem gerar dependência ou subordinação a nenhuma fonte individual de financiamento. Estas fontes podem ser filantrópicas ou comerciais, volumosas ou pequenas, pontuais ou de longo prazo: cada qual tem o seu potencial, suas limitações e seus caminhos mais adequados para sua obtenção. A sustentabilidade financeira se atinge através da combinação habilidosa destas fontes.

Da mesma forma que os recursos financeiros, os recursos humanos de uma organização devem ser identificados, formados, estimulados e mantidos com competência. Na medida em que o terceiro setor se torna mais visível e mais competitivo, a atração e retenção de pessoas, inclusive de voluntários, passa a se pautar por critérios que se assemelham àqueles utilizados por organizações empresariais. Mais ainda: o trabalho voluntário compete pela atenção das pessoas com as opções de lazer, com a convivência em família e até com o ócio.

A sustentabilidade não se limita à capacidade de captação dos recursos de que uma organização necessita, mas também ao seu emprego de maneira eficiente, de modo a maximizar os resultados alcançados e assegurar que a entidade continuará a contar com o apoio do público.

Qualidade de serviços

Nos próximos anos, parece evidente que as organizações do terceiro setor deverão assumir um papel cada vez mais preponderante na prestação de serviços de caráter público, sejam estes oferecidos espontaneamente e financiados com recursos próprios da organização, sejam decorrentes de contratos públicos, ou ainda oferecidos comercialmente para um público consumidor pagante.

O caráter assistencial da atuação das organizações filantrópicas justificou, no passado, uma postura resistente à introdução de práticas gerenciais. Qualidade significava, alternadamente, oferecer o melhor serviço possível a um número limitado de beneficiários ou diluir entre uma população carente os recursos disponíveis. A postura, em ambos os casos, era de que o que quer que se fizesse seria melhor alternativa a não fazer nada.

Uma postura que enfoca a qualidade de serviços deve deixar esta visão assistencial no passado. A substituição da caridade e da filantropia por serviços prestados a consumidores ou a cidadãos conscientes de seus direitos introduz a exigência do uso eficiente dos recursos, e a necessidade de avaliação adequada do que deve ser priorizado, em função dos recursos disponíveis, das necessidades do público e das alternativas existentes. O aprimoramento da qualidade deve ser um objetivo contínuo das entidades, que não podem se acomodar em uma postura de satisfação de estar fazendo a sua pequena parte, ou de paralisia frente ao sentimento de impotência diante da magnitude dos déficits sociais.

Capacidade de articulação

As organizações do terceiro setor não poderão mais atuar de forma isolada se pretenderem abordar de forma séria os complexos problemas sociais para os quais são geralmente criadas. O passado onde cada organização era auto-suficiente e soberana em uma determinada jurisdição não retrata a realidade do presente nem o que se espera do futuro.

O paradigma do século XX segundo o qual problemas são melhor enfrentados por organizações formais é, aos poucos, substituído por um modelo que enfoca a necessidade de articulação de redes. Em lugar de privilegiar o espaço organizacional, olha para as relações: entre indivíduos, grupos, organizações, setores.

A solução dos problemas públicos passa pela articulação cada vez maior de segmentos diversos da sociedade. Isto se dá através da formação de alianças, de parcerias, de redes e coalizões. O compartilhamento de informação e a atuação conjunta são os caminhos para a potencialização da capacidade de atores públicos, empresariais e não governamentais para abordarem questões públicas e alcançarem resultados de impacto.

As redes que se formam hoje são organizações formais, como fóruns, associações, federações e grupos de trabalho mas, crescentemente, são formadas iniciativas "virtuais" de articulação e intercâmbio de informação. A comunicação eletrônica tem um impacto no terceiro setor ainda maior do que tem tido nos outros setores.

A capacidade de articulação depende da existência de interesses compartilhados, dos recursos necessários para promovê-la mas também de uma competência gerencial, que inclui técnicas e habilidades interpessoais, que deve ser desenvolvida nos gestores de organizações do terceiro setor.

  1. Lester M. Salamon, "Nonprofit Management Education: A Field Whose Time Has Passed?", in Michael O’Neill & Kathleen Fletcher, Nonprofit Management Education: U.S. and World Perspectives, Westport: Praeger, 1998. Page 6 A promesa do Terceiro Setor Andres Pablo Falconer, Centro de Estudos em Administração do Terceiro Setor, Universidade de São Paulo
  2. Terceiro Setor: Uma Promessa a Cumprir

A trajetória percorrida neste ensaio apresenta o nascimento de uma promessa chamada terceiro setor. Esta promessa pode ser caracterizada pela emergência de um tipo de entidade: a organização privada sem fins lucrativos, de finalidade pública, e pela assunção por esta de um amplo conjunto de atividades e papéis, sustentadas pelas supostas atribuições e qualidades do terceiro setor.

Esta trajetória é percorrida na busca de confirmação da promessa do terceiro setor e da validação de uma das afirmações raramente contestadas e feitas com elevada freqüência: a afirmação de que o maior desafio do terceiro setor é o desenvolvimento da capacidade gerencial das organizações que o compõem. A baixa competência em gestão das organizações