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Violência e Vale Tudo: Um Estudo Contraditório, Esquemas de Construção

Este artigo explora a teoria elisiana para entender a lógica estrutural da prática do vale tudo, uma atividade física violenta que tem ganho popularidade recente, apesar de ser considerada uma das modalidades esportivas mais violentas. O artigo aborda a tensão entre o controle e o uso da violência pelos praticantes e/ou consumidores desta atividade, e questiona como reduzir a violência para conter sua expressão sem descaracterizar a prática esportiva. Além disso, o texto discute a legitimação da violência presente no vale tudo e sua influência na torcida.

Tipologia: Esquemas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Aquarela
Aquarela 🇧🇷

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A PRÁTICA DO VALE TUDO: alguns apontamentos a partir da teoria elisiana
Miguel A. de Freitas Jr
Centro Universitário Positivo UnicenP
Universidade Estadual de Ponta Grossa UEPG
GRUPO DE PESQUISA ESPORTE, LAZER E SOCIEDADE
RESUMO
Em uma sociedade rotinizada como é a que vivemos, na qual a urgência e o controle rigoroso do tempo são
elementos fundamentais. As atividades recreativas e esportivas sob suas múltiplas formas de manifestações,
tornaram-se uma grande oportunidade para que as pessoas vivenciem experiências emocionais que normal-
mente não são permitidas no seu cotidiano. É comum utilizarmos palavras para expressarmos nossos senti-
mentos, porém não podemos extrapolar os limites do que é determinado socialmente como sendo correto.
Entretanto, em determinados ambientes nossas palavras e atitudes tornam-se normais; isto nos leva a acreditar
que possuímos diferentes níveis de tolerância, que sofrem influência direta do local e do tipo de atividade que
estamos envolvidos. Partindo deste contexto, este artigo busca suporte teórico na teoria elisiana, que nos per-
mita entender a lógica estrutural da prática do “Vale Tudo”. Atividade física que passa por um período de
desportivização, mas que vem despertando grande interesse dos meios de comunicação e do público, algo
inquetante em um momento onde somos bastante sensíveis à violência. Para realizar esta análise partimos de
dois critérios propostos por Elias: 1) Se a violência é legítima, no sentido que concorde com um código de
regras, normas e valores socialmente prescritos, ou que seja não normativa ou ilegítima, no sentido de infligir
as normas sociais aceitas; 2) A violência adote uma forma racional e afetiva, quer dizer, racionalmente prefe-
rida como meio para assegurar o ganho de um fim determinado, ou tomada como um fim em si mesmo,
emocionalmente satisfatória e agradável. Optou-se por estes critérios porque a partir deles a análise do Vale
Tudo torna-se algo contraditório, ou seja, a violência pode ser ilegítima e irracional ao mesmo tempo que
pode ser vista como legítima e racional.
TERMOS CHAVES: VIOLÊNCIA, VALE TUDO, ESPORTE, COMPORTAMENTOS SOCIAIS.
O objetivo central deste artigo é levantar algumas questões que permitam fomentar o debate em torno
da violência que ocorre a partir da prática do Vale do Tudo. Tendo como eixo central de análise uma questão
paradoxal, que é a tensão entre o controle e o uso da violência pelos praticantes e/ou consumidores desta
atividade.
Mesmo tendo Norbert Elias como referência central1 para o desenvolvimento deste trabalho, gostaria
de neste intróito partir do pensamento de George Duby2, estudioso francês que chama atenção por estar preo-
cupado com as questões do seu tempo, pois sempre acreditou ser dever do pesquisador erudito não se fechar
em seus objetos de investigação, sendo importante refletir os problemas da atualidade e para isto sendo neces-
sário trabalhar com o empírico, levantando questões que possam ajudar o devir.
Partindo deste pressuposto e do fato de estarmos vivendo o início de um novo século, sendo este um
momento de transição sócio econômica, proporcionando oportunidades impares para a reflexão, pois alguns
dos padrões mais antigos passam a ser contestados, entretanto os mais novos ainda não conquistaram o seu
espaço. Ou seja, os padrões de comportamentos de nossa sociedade, que ficam gravados no indivíduo desde a
mais tenra idade, como uma espécie de segunda natureza (habitus) e que são mantidos por um forte controle
social, necessitam ser repensados.
Muitas vezes ao tratarmos das condutas dos indivíduos, estabelecemos juízos de valores entre atitu-
des civilizadas (não violentas) X incivilizadas (violentas). Estes comparativos são perigosos se não tivermos
um medidor claro e preciso. Ao tratarmos da prática do Vale Tudo, percebemos que esta questão é algo bas-
tante complexo, pois:
1 As principais obras utilizadas para a construção deste trabalho foram: DUNNING, Eric & ELIAS, Norbert.
A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992. GARRIGOU, Alain & LACWIE, Bernard. Norbert Elias: a
política e a história. São Paulo Perspectiva, 2001.
2 DUBY, Georges. Ano 1000 ano 2000. São Paulo: Fundação da UNESP, 1998.
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A PRÁTICA DO VALE TUDO: alguns apontamentos a partir da teoria elisiana

Miguel A. de Freitas Jr Centro Universitário Positivo – UnicenP Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG GRUPO DE PESQUISA ESPORTE, LAZER E SOCIEDADE

RESUMO

Em uma sociedade rotinizada como é a que vivemos, na qual a urgência e o controle rigoroso do tempo são elementos fundamentais. As atividades recreativas e esportivas sob suas múltiplas formas de manifestações, tornaram-se uma grande oportunidade para que as pessoas vivenciem experiências emocionais que normal- mente não são permitidas no seu cotidiano. É comum utilizarmos palavras para expressarmos nossos senti- mentos, porém não podemos extrapolar os limites do que é determinado socialmente como sendo correto. Entretanto, em determinados ambientes nossas palavras e atitudes tornam-se normais; isto nos leva a acreditar que possuímos diferentes níveis de tolerância, que sofrem influência direta do local e do tipo de atividade que estamos envolvidos. Partindo deste contexto, este artigo busca suporte teórico na teoria elisiana, que nos per- mita entender a lógica estrutural da prática do “Vale Tudo”. Atividade física que passa por um período de desportivização, mas que vem despertando grande interesse dos meios de comunicação e do público, algo inquetante em um momento onde somos bastante sensíveis à violência. Para realizar esta análise partimos de dois critérios propostos por Elias: 1) Se a violência é legítima, no sentido que concorde com um código de regras, normas e valores socialmente prescritos, ou que seja não normativa ou ilegítima, no sentido de infligir as normas sociais aceitas; 2) A violência adote uma forma racional e afetiva, quer dizer, racionalmente prefe- rida como meio para assegurar o ganho de um fim determinado, ou tomada como um fim em si mesmo, emocionalmente satisfatória e agradável. Optou-se por estes critérios porque a partir deles a análise do Vale Tudo torna-se algo contraditório, ou seja, a violência pode ser ilegítima e irracional ao mesmo tempo que pode ser vista como legítima e racional.

TERMOS CHAVES: VIOLÊNCIA, VALE TUDO, ESPORTE, COMPORTAMENTOS SOCIAIS.

O objetivo central deste artigo é levantar algumas questões que permitam fomentar o debate em torno da violência que ocorre a partir da prática do Vale do Tudo. Tendo como eixo central de análise uma questão paradoxal, que é a tensão entre o controle e o uso da violência pelos praticantes e/ou consumidores desta atividade. Mesmo tendo Norbert Elias como referência central^1 para o desenvolvimento deste trabalho, gostaria de neste intróito partir do pensamento de George Duby^2 , estudioso francês que chama atenção por estar preo- cupado com as questões do seu tempo, pois sempre acreditou ser dever do pesquisador erudito não se fechar em seus objetos de investigação, sendo importante refletir os problemas da atualidade e para isto sendo neces- sário trabalhar com o empírico, levantando questões que possam ajudar o devir. Partindo deste pressuposto e do fato de estarmos vivendo o início de um novo século, sendo este um momento de transição sócio – econômica, proporcionando oportunidades impares para a reflexão, pois alguns dos padrões mais antigos passam a ser contestados, entretanto os mais novos ainda não conquistaram o seu espaço. Ou seja, os padrões de comportamentos de nossa sociedade, que ficam gravados no indivíduo desde a mais tenra idade, como uma espécie de segunda natureza (habitus) e que são mantidos por um forte controle social, necessitam ser repensados. Muitas vezes ao tratarmos das condutas dos indivíduos, estabelecemos juízos de valores entre atitu- des civilizadas (não violentas) X incivilizadas (violentas). Estes comparativos são perigosos se não tivermos um medidor claro e preciso. Ao tratarmos da prática do Vale Tudo, percebemos que esta questão é algo bas- tante complexo, pois:

(^1) As principais obras utilizadas para a construção deste trabalho foram: DUNNING, Eric & ELIAS, Norbert.

A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992. GARRIGOU, Alain & LACWIE, Bernard. Norbert Elias: a política e a história. São Paulo Perspectiva, 2001. (^2) DUBY, Georges. Ano 1000 ano 2000. São Paulo: Fundação da UNESP, 1998.

  • Normalmente é unânime a repudia das pessoas a esta prática, devido a forma violenta que ela é rea- lizada. Não obstante, ao mesmo tempo que há uma certa negação na forma em que a violência é aplicada, o Vale Tudo é uma das modalidades esportivas que mais ganhou popularidade nas últimas décadas. Para corro- borar com este posicionamento basta observarmos alguns números decorrentes das competições, no último Pride^3 realizado no Japão havia 100 mil pessoas na platéia; em setembro o GNT começou apresentar os me- lhores combates disputados no Brasil e, hoje o Vale-Tudo é o terceiro programa mais assistido pelos clientes da TV Cabo em Portugal; nos Estados Unidos os programas de Vale Tudo é o quarto mais vendido no canal fechado; no Brasil existe uma certa resistência a passar este tipo de programa na televisão “aberta”, não obs- tante o índice de audiência nos canais fechados já está sendo comparado com os do futebol^4. Ao perceberem este nicho no mercado as emissoras de televisão na ânsia de venderem o produto, a- cabam em certa medida colaborando com a promoção da violência. Extraímos uma parte de um texto promo- cional exibido por um canal de TV ao divulgar a principal luta de Vale Tudo a ser transmitida: "Dois homens, um ringue e nada mais. Um combate sem regras, sem limite de tempo, onde literalmente tudo é permitido^5 ”. A crônica esportiva em geral considera este o esporte mais violento do mundo, é no mínimo perigoso considerarmos esta atividade como um esporte, pois segundo o etnólogo Allen Gutmann uma entre as diver- sas exigências presentes para que uma atividade física seja considerada um esporte, é existir um órgão buro- crático que padronize suas regras e no Vale Tudo cada evento apresenta as suas próprias regras (as quais le- vam em consideração os seus consumidores). Algumas destas regras se tornaram obrigatórias à partir de 1998, quando um lutador californiano morreu na Ucrânia devido os inúmeros socos desferidos pelo seu adversário. Podemos dizer que o Vale Tudo está passando por um período de desportivização, rumo ao nível i- deal de tensão que a atividade produz. A teoria elisiana é a chave para pensarmos esta questão, pois segundo este autor o processo civilizador não é algo pensado e em certa medida necessita de situações críticas para que atitudes sejam tomadas no sentido de aumentar o auto-controle dos indivíduos. Atualmente as competições de Vale Tudo estão adotando alguns critérios para controlar o ímpeto dos lutadores, entre as principais regras destacam-se: a divisão de categorias por peso, a obrigatoriedade em utili- zar as luvas, protetor genital e bucal, a possibilidade do árbitro interromper o combate caso o atleta não consi- ga responder mais os golpes, não são permitidos golpes baixos, cabeçadas, cotoveladas, nem golpes que te- nham intenção de furar os olhos do adversário, é proibido acertar golpes na nuca e nas costas e em alguns eventos proibi-se chutar o adversário quando ele está no chão. O nocaute pode ocorrer através de diferentes situações, sendo terminado o combate quando um dos lutadores não consegue mais se defender dos golpes deferidos contra ele; quando o lutador bate no tatame indicando que não suporta mais o golpe (normalmente uma chave) ou que não consegue prosseguir no combate; quando o treinador joga a toalha no ringue; quando o lutador desmaia ou o juiz de arena decide que este não pode mais continuar; quando o lutador começa a sangrar o combate deve ser imediatamente interrompido por alguns minutos para o atendimento médico, se o ferimento não estancar o combate é encerrado; quando o lutador viola intencionalmente as regras acima lista- das e quando o tempo de luta pré determinado se esgota, neste cado ficando a critério de cada evento uma votação dos jurados, definindo entre terminar a luta empatada ou prorrogar o tempo para que haja um vence- dor^6. Segundo Elias, nenhuma satisfação pode ser obtida se a atividade não proporcionar uma dose ade- quada de tensão; tensão e prazer são sentimentos inseparáveis neste tipo de prática corporal. O Vale Tudo provavelmente deixará de exercer o seu objetivo desrotinador se for colocado dentro de regras extremamente rígidas, com as quais se perde a função de tensão, risco, de satisfazer a expectativa de algo inesperado e a ansiedade que acompanha o público. Quando surgiu em sua forma original o Vale Tudo podia ser considerada uma atividade física violen- ta (a única regra era que o vencedor seria aquele que conseguisse manter-se em pé), pois de acordo com JOEL NETO a história do Vale Tudo pode ser sintetizada da seguinte maneira:

Hélio Gracie e Waldemar Santana lutaram durante três horas e 40 minutos, naquela noite de Maio de

  1. Amigos desde sempre, os dois jogadores de jiu-jitsu desentenderam-se quando o segundo acei-

(^3) PRIDE: competição de Vale Tudo realizada no Japão no mês de dezembro e que reúne os melhores lutado-

res de Vale Tudo do mundo, oferece premiação em dinheiro onde o campeão ganha cerca de 500 mil dólares. (^4) REVISTA 100% LUTA: nocaute. A evolução do Vale Tudo. São Paulo: Dezembro de 2002, ano 1. (^5) Propaganda realizada pelo Sport Tv em 23 de abril de 2002, para promover a final do Ultimate Fight daque-

le ano. (^6) Cf. Revista Tatame. R egras de Vale Tudo. São Paulo, julho de 2002, número 77.

a locais em que as práticas físicas são violentas. Não obstante, vemos que o público presente no local de lutas é pequeno quando comparado com a audiência televisiva, ou seja, optamos em viver a violência num mundo fictício, que não tocamos materialmente e isto faz bem para a nossa consciência, pois a violência é escondida ou ainda, é mantida à distância, pois ocorre longe, na ficção, ou com grupos que não fazem parte da nossa rede de pertencimento.Em última instância podemos dizer que esta é uma violência sofisticada, própria para pessoas que se julgam civilizadas. A busca do controle da violência através da rigidez das regras, proporciona o aumento de competiti- vidade limitando determinadas atitudes consideradas perigosas. Entretanto, um dos problemas centrais está no fato de que os lutadores utilizam a violência como um fim em si mesmo, passando a sentir prazer em realizá- la além do necessário para alcançar o seu objetivo, pois desta forma o indivíduo consegue demonstrar as suas virtudes atléticas, que o faz merecedor de melhores cotações na bolsa, além de receber elogios e honras entre os membros do seu próprio grupo, da sua comunidade ou academia que representa. Mesmo durante todo o século XX ter ocorrido um processo de intensificação do controle da violência e das normas de quietude ( aversão a castigos corporais e execuções públicas), vivemos a violência de forma sofisticada, onde ela se apresenta compartimentada, pois nos episódios que envolvem lutadores de Vale Tudo as brigas ocorridas na rua, são entre os grupos e neste caso ninguém se considera culpado pelos danos físicos proporcionados ao oponente, o que reforça a idéia entre uma possível cisão entre o lutador de Vale Tudo e o indivíduo que pratica Vale Tudo, aumentando a contradição e a dificuldade de perceber o auto-controle deste indivíduo. Diante desta aporia^10 , podemos dizer que esta contradição tem alcance geral, podendo provocar uma cisão da consciência e um desdobramento da moralidade, afetando as relações de interdependência constituída pela sociedade. A dupla orientação marca, tanto os lutadores quanto os torcedores, pois mesmo que eles não recebam o mesmo papel no uso da violência acabam sendo estimulados, utilizando-a como algo que se torna normal em suas vidas, pois em uma situação de divergência de opiniões e de confronto VALE TUDO!

10 Aporia: conflito entre opiniões contrárias e igualmente concludentes, em resposta a uma mesma questão.