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Este texto discute a relação entre política e estética no documentário lixo extraordinário, que mostra a vida de catadores de lixo e suas interações com o artista vik muniz. O autor analisa como as ações e palavras dos catadores criam uma cena de dissenso, revelam a natureza poética da política e promovem rupturas com as identidades fixadas pela lógica policial. Além disso, o texto explora como as obras de arte de vik muniz contribuem para a transformação dos catadores em sujeitos políticos.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de estudo
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Revista Novos Olhares - Vol.2 N.2 6
Doutora em Comunicação Social pela UFMG. Professora do Programa de Pós-graduação dessa mesma instituição. Pesquisadora do CNPq.
Estudante de Iniciação Científica e graduando do Curso de Comunicação Social da UFMG. Resumo: Este artigo pretende, a partir das reflexões do filósofo Jacques Rancière, construir uma análise para o documentário Lixo Extraordinário. Busca-se entender as bases estéticas do conceito de política e percebê-las no documentário. Nosso principal objetivo é ver como se constituem “cenas de dissenso” a partir de algumas ações das personagens, destacando o modo como a criação de cenas polêmicas irrompem em um mundo comum estabelecido, desestabilizando-o. Acreditamos ser possível relacionar a figura dos “sem-parte” com as ações dos catadores de lixo, localizando-os como seres marginalizados capazes de produzir discursos e de iniciar um processo de subjetivação política ao não se identificarem com aquilo que representa ser um catador de lixo. Nesse movimento, explicita-se um dano e procura-se apreender os movimentos dos personagens na busca de uma ruptura com o lugar e nome que lhes foi discursivamente imposto. Palavras-chave: política; estética; dissenso; catadores; documentário. Abstract: The aim of this article is to analyze the documentary Lixo Estraordinário (Waste Land) using the concepts provided by Jacques Rancière concerning politics and aesthetics. We search to understand the aesthetic basis of the concept of politics and perceive them in the documentary. Our main goal is to show how some actions of the characters can produce "scenes of dissent" highlighting the way the creation of polemical scenes erupt within a common world already established and provoke its destabilization. We believe its possible to relate the concept of " sans part " with the garbage collectors’ actions for they are depicted as marginalized people that are capable of produce speeches and give birth to a process of political subjetification. They are political subjects when they cease to identify themselves with the pejorative image associated with the garbage collectors. In this movement, a wrong becomes visible and we try to identify the characters actions that point to a rupture to the name and place imputed on them by discursive means. Keywords: politics; aesthetics; dissensus; garbage collectors; documentary. O filósofo francês Jacques Rancière apresenta estudos que apontam uma discussão entre os seres excluídos, seus discursos e o modo como se movimentam e são localizados na comunidade. Em grande parte de sua reflexão, somos apresentados a duas ordens sociais, simbólicas e discursivas antagônicas: a polícia e a política, utilizadas sempre em tensão de forma a nos colocar diante de uma nova forma de ver o mundo, a comunidade e os acontecimentos que nos rodeiam. (^1) Este trabalho foi realizado com o apoio da Fapemig, do CNPq e da Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais.
A polícia é por ele caracterizada como uma ordem impositiva e hierárquica que estabelece os lugares, normas que prescrevem a nossa realidade, estruturando o que é permitido ou não é, fixando as pessoas em certas posições e definindo o que está ou não à nossa disposição numa determinada situação, no campo da própria percepção (RANCIÈRE, 2010: 82). A ordem da polícia estabelece aqueles que têm parte, que tomam decisões e aqueles que não têm parte, e são subordinados pelos outros. A polícia, enquanto modo consensual de partilha do sensível, define “um corpo coletivo com seus lugares e funções alocados de acordo com competências específicas de grupos e indivíduos” (MARQUES, 2013:128). É a ordem que designa os modos de ser e de dizer, quem faz isto ou aquilo, que define que esta palavra tenha importância e que a outra nem seja percebida. É preciso deixar claro que a polícia não é uma ordem repressora e violenta (nem pode ser confundida com a instituição policial), nos moldes de Michel Foucault, mas ela existe como ordem presente no mundo, como um modo de divisão do sensível, ou seja, do que se pode ver, dizer e fazer. A ordem da polícia atribui indivíduos a determinadas posições na sociedade e assume que a sua maneira de se comportar e pensar vai seguir a partir de sua posição: de acordo com a ordem policial, a sociedade é composta por grupos dedicados aos modos de ação específicos, de lugares onde estas ocupações são exercidas, de modos de ser correspondentes a essas ocupações e esses lugares (DAVIES, 2010: 82) Quando Rancière trata da política ele a relaciona com o conceito de estética que, em sua obra, possui uma acepção ligada à criação de cenas de dissenso (ou de desentendimento), nas quais se coloca em jogo a reinvenção de modos de ver, dizer e sentir. Rancière afirma que a política possui uma base estética, que se expressa como recorte ou divisão de tempos, espaços e corpos. A política de base estética lidaria com as definições que estabelecem o que pode ser visto ou não, o que pode ser ouvido ou não – distinguindo entre a palavra e o ruído, além de apontar aquele que pode e aquele que não pode ocupar um lugar no jogo da política vista como forma de experiência (RANCIÈRE, 2009: 16). Uma forma de romper com a ordem policial, segundo Rancière, é o ato político. A política declara sua existência nas rupturas que provoca em uma situação definida e controlada pela ordem policial e pelo consenso. A política não existe sem a polícia, ambas são faces da mesma moeda e não representam um simples binarismo dicotômico. Para Rancière (2011), a política é vista quando ocorre a reconfiguração do comum por meio do dissenso. Dito de outro modo, a política é uma forma de questionar o consensual, o tido como dado, o inquestionável: ela irrompe diante de olhos acostumados à normalidade (e à normalização) e promove rupturas e transformações. Assim, a política se vale pelo novo, pela quebra de conceitos estabelecidos, de cenas naturais ou comuns, por um questionamento das disposições em que são colocados os sujeitos. A ordem da polícia é desafiada por um momento quando uma perturbação acontece no consenso por ela promovido e alimentado. Na reflexão de Rancière, o gesto político associa-se à ação de “tomar a palavra” desempenhada por aqueles que naturalmente não tem voz, vez e visibilidade; associa-se também ao gesto de promover a constituição do sujeito político através de diferentes modos, ao fazer com que aqueles que são condenados, marginalizados e oprimidos se distanciem do lugar, da imagem e da ocupação que lhes foi imposta. Tais sujeitos são convidados a tornar perceptível sua presença por meio do conflito, do dissenso, do questionamento de uma igualdade pretensamente universal e assegurada por direitos. Segundo o próprio Rancière, “o dissenso é uma divisão inserida no senso comum: uma disputa sobre o que é dado e sobre o enquadramento segundo o qual vemos algo que é dado” (2010: 35). Na política, aquilo que não era sequer ouvido com importância, o barulho e o ruído daqueles que não estão incluídos na comunidade política, passam a receber atenção. Destacam-se nessa ordem a ação política dos oprimidos e excluídos, uma
abordagem estética da política em Rancière e o documentário Lixo Extraordinário , de modo a buscar respostas às seguintes questões: as narrativas audiovisuais também são capazes de fazer emergir a política? Em que circunstâncias? Quais as características que podem ser destacadas no documentário como aquelas que auxiliam na configuração de cenas de dissenso e de processos de desidentificação? Lixo Extraordinário é um documentário dirigido por Lucy Walker e codirigido por João Jardim e Karen Harley. Foi lançado em 2010 e recebeu muitas premiações. Retrata o trabalho do artista plástico Vik Muniz em um dos maiores aterros sanitários do mundo: Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro. Durante dois anos (de 2007 a 2009) a produção do documentário acompanha a relação do artista com os catadores de lixo. Em Jardim Gramacho, ele fotografa um grupo de catadores de materiais recicláveis, com o objetivo de retratá-los em obras de arte que se servem do próprio material coletado pelo grupo. A narrativa nos insere em um mundo estranho, distante, por meio da apresentação desses indivíduos, suas angústias, esperanças e ideias. Dessa relação entre artista e catadores resulta a série de obras “Retratos do Lixo”. O documentário revela a capacidade transformadora da arte na vida dessas personagens. Os catadores de lixo que têm importante papel no desdobrar da narrativa são Tião, Suellen, Magna, Zumbi, Isis, Irmã e Valter. São também eles que se tornam responsáveis por ajudar a desconstruir a imagem pejorativa que lhes é atribuída. Vik, logo no início do filme, afirma que seu desejo nos seus próximos trabalhos é mudar a vida de um grupo de pessoas utilizando o mesmo material com o qual que elas lidam todos os dias. Resta saber se transformar sujeitos subalternos em sujeitos políticos é algo que pode ser obtido por meio de ações pontuais ou se é um processo que a arte ajuda a construir e desdobrar na medida em que esses sujeitos se distanciam do lugar o do registro que lhes é imposto no seio de uma comunidade. Arte, política e experiência devem ser conjugadas em comum para quebrar/romper com a partilha do tempo que sustenta a sujeição social conduzindo a processos de emancipação e de reconfiguração de um estado de coisas, marcado pela opressão e pelo assujeitamento. Um olhar para o lixo no documentário Nos dias de hoje, o lixo apresenta-se como um problema social que adquire forma em discussões, seminários, fóruns nacionais e internacionais. Os resíduos sólidos tornaram-se tema de uma agenda, que coloca em evidência a necessidade de soluções para esse “mal” que hoje ameaça a vida humana. A quantidade cada vez mais crescente de lixo produzido pelo homem faz com que se discuta mundialmente possibilidades de solução, tendo em vista os desdobramentos negativos e as mazelas causadas à sociedade, como doenças, aumento da poluição e ausência de controle no processo de descartagem e coleta dos detritos. Os aterros pelo Brasil já foram cenário de muitas histórias cinematográficas sobre a relação entre o lixo e sujeitos excluídos. Os documentários Boca de Lixo (1994), Estamira (2004) e Lixo Extraordiário (2010) se utilizaram dessa temática e são notavelmente reconhecidos. Estes documentários mostram a vida de catadores, suas falas e a relação que possuem com os resíduos sólidos, como destacam Santos e Fux, o que caracteriza as subjetividades desses seres é “o lixo, que se faz vestimenta, alimento, casa e filosofia de vida.” (2011: 130). Além disso, esses documentários nacionais, ao conferirem visibilidade a rostos anônimos que se escondem e rejeitam a representação contumaz (a da reportagem de denúncia, por exemplo, em que são reduzidos a vítimas ou a um estigma), fazem com que homens e mulheres que trabalham no lixo sejam alçados a sujeitos de sua experiência e de seu discurso, no campo do documentário (MESQUITA, 2003).
Segundo Mesquita e Saraiva (2012), na negociação entre quem filma e quem é filmado para que haja documentário, o que se negocia, na arena pública instaurada pela câmera, é a própria identidade dos personagens. Os documentários acima citados apresentam as imagens produzidas a seus “donos”, como forma não só de desafir a lógica da mídia tradicional (que captura as imagens através das lentes estereotipadas e perpetuam narrativas estigmatizantes), mas sobretudo de revelar que as pessoas filmadas não são “unas”, iguais a si mesmas, prontas para o retrato: elas possuem múltiplos nomes, imagens e lugares de fala. Diante disso, é possível afirmar que o documentário é um tipo de cinema que se dedica ao “real”, a um espaço-tempo que corresponde a ações existentes da sociedade. O documentário, como cita Rancière (2009: 58) “joga com a combinação de diferentes tipos de rastros (entrevistas, rostos significativos, documentos de arquivo, etc.) para propor possibilidades de pensar essa história”. Ele é uma narrativa audiovisual que se utiliza de vestígios que ajudam a construir a relação entre imagem e memória. É uma espécie de filme que faz um “recorte do real”, pois apresenta uma parte da realidade que compõe um fato. Segundo Migliorin (2010), faz-se um documentário porque: O real está sendo inventado, com imaginação e ficção, porque podemos muito mais do que existe, porque certas palavras ainda circulam sem fazer diferença no mundo, porque os recortes do que é visível e do que é dizível dependem da nossa força de imaginação e de invenção do real. Porque diante da dor do outro não há retake. (MIGLIORIN, 2010: 20). Em Lixo Extraordinário o que está presente é a percepção de Vik Muniz da relação que ele constrói com os catadores. O que ele vê são as mudanças provocadas pelos processos artísticos de criação a partir do lixo. As ações dos catadores no documentário afirmam essas modificações e apontam para a possibilidade de oportunidades de formação de sujeitos políticos. O documentário tem, segundo Migliorin (2010: 10) “um interesse pelo humano”. Ele se constrói com perspectivas acerca do homem, suas transformações, a mobilização pela palavra, a afirmação da inteligência, entre outros aspectos. No caso estudado, vemos homens comuns, catadores de lixo que tomam parte de alterações no seu cotidiano por meio da arte e se expressam sob o registro da política. Ao abordar o mundo, o documentário tem como atributo um trabalho a contrapelo via quebra de expectativas, já que algo pode se atualizar, um sujeito ordinário se transformar, uma palavra fazer a diferença. Como afirma Migliorin (2010: 17), “o papel do documentário é recolocar esses sujeitos na política, o que não se faz sem escritura, sem tensão e dissenso”. Com o documentário, podemos perceber as rupturas feitas pelo sujeito marginalizado na ordem policial, com novas formas de dizer, ser e ver que criam uma cena polêmica. Com Lixo Extraordinário , pretendemos ver como as habilidades dos catadores de lixo são produtoras da diferença, como os desconhecidos surgem como sujeitos “interessantes”. Conforme percebido por Souza (2006: 31) “ocorre na vida atual uma hierarquização social, em que pessoas são classificadas como mais ou menos, como dignas de nosso apreço ou nosso desprezo”. Os catadores são inferiorizados nessa hierarquização, característica da ordem polícial. Contudo, nesse documentário podemos ver como as noções e práticas estabelecidas são quebradas e desafiadas várias vezes por essas personagens. Dano e Cenas de Dissenso A formulação de política proposta por Rancière implica que uma cena de dissenso (palco de surgimento da política) é originada da palavra questionadora de indivíduos que, por não teriem sido nomeados como parte de uma comunidade,
entre Tião e Vik. O catador desde o início apresenta-se como um líder da classe e revela-se certo dos objetivos de suas mobilizações. Ele quer mostrar que é possível superar o “não vai dar em nada” e mudar o rumo da história dos catadores. Aqui, é possível ver a encenação do dano fundamental. Os catadores constituem uma “parcela dos sem-parcela” e muitos de seus direitos não são garantidos ou sequer considerados pela ordem policial. O “barulho” dos catadores em frente à prefeitura existe para demonstrar que há uma necessidade de rever a contagem, de promover rupturas em consensos, de promover uma verificação do “estado de coisas” que abrange a vida desses sujeitos. Entendemos que a mobilização dos catadores é uma busca pela verificação de igualdade presumida pelas normas, pela universalidade da lei, mas nunca de fato comprovada. Nas cenas de dissenso coloca-se em questão a igualdade universal, sendo a política a responsável por criar uma situação comunicativa para construção de novas subjetividades, novas configurações de enunciação e convivência. A política desfigura, faz pensar sobre outras possiblidades de cenário de interlocução, uma vez que é no momento que atores agem, que tomam a palavra e com ela performam mudanças, que um novo contexto é criado, colocando em destaque funções, comunicações e palavras desses que configuram uma ordem de inscrição dissensual chamada de parte dos “sem-parte”. De acordo com Guimarães (2010), o sujeito subalterno é representado pelos meios de comunicação predominantemente mostrando “violência espetacularizada e as condições dificílimas nas quais os moradores desenvolvem suas táticas de sobrevivência, sem falar dos acontecimentos trágicos a que sucumbem tantas vezes”(GUIMARÃES, 2010: 182). E Lixo Extraordinário não foge dessa percepção, pois neste documentário é apresentada a vida miserável dos catadores, a pobreza de suas casas, a sujeira do ambiente de trabalho, os quais tomados juntos com o silenciamento de seus anseios e dores e a invisibilidade de seus corpos e gestos, evidenciam o dano que marca esses que não têm parcela na comunidade. Desidentificação do catador A subjetivação política proposta por Rancière diz respeito a um processo em que o “sem-parte” cria uma cena de dissenso, capaz de romper com uma identidade fixada pelo consenso policial. É a construção de uma identificação transformada que caminha junto com a reconfiguração do campo da experiência, da ação política (RANCIÈRE, 1996). A lógica da subjetivação política não é jamais a simples afirmação de uma identidade, ela é sempre, ao mesmo tempo, a negação de uma identidade imposta por um outro, fixada pela lógica policial. A polícia deseja nomes exatos, que marquem para as pessoas o lugar que ocupam e o trabalho que devem desempenhar, a política, por sua vez, diz nomes impróprios que apontam uma falha e manifestam um dano (RANCIERE, 2004:121). A subjetivação política desdobra-se em três ações interligadas: 1) demonstração do dano na cena de dissenso; 2) encenação criativa capaz de revelar a natureza poética da política; 3) a ruptura com a identidade fixada pela lógica policial. Podemos perceber essa subjetivação quando Zumbi, outro catador, revela-se como amante dos livros e diz pretender montar uma biblioteca comunitária na favela de Jardim Gramacho com os exemplares descartados pela população. Não é de se esperar que o conhecimento seja literalmente jogado fora, como questiona Tião, mas os livros que vão para o aterro mudam a percepção dos catadores e do que era tratado como comum. Ocorre uma ruptura da imagem que se tinha acerca dos catadores, a percepção de Vik ao tratá-los a priori como “rudes” não se sustenta. Percebemos seres instruídos e que são capazes de articular seus pontos
de vista e demandas em discursos. Ver o catador como possível intelectual não seria percebido a princípio como algo possível. O ato político está presente quando os “sem-parte” alcançam o reconhecimento, quando rompem com as representações usuais que definem espaços, o enunciável, o visível e o discurso inteligível. Ocorre, assim, a produção de “cenas de dissenso”, que são as cenas polêmicas capazes de modificar nossa percepção e nossas atitudes com relação ao ambiente coletivo (MARQUES, 2013). Quando Tião faz um discurso sobre grandes escritores e pintores, quando diz que gosta de Maquiavel, que lê Nietzsche, etc., vemos a política despontar. A dimensão do catador apaga-se por um momento, e mergulhamos na dimensão intelectual do “mundo vivido” de Tião. Em um momento do filme, começa a ser posto em prática o projeto de Vik Muniz: Tião Santos percebido pelo olhar do artista é um sujeito intelectual e, como tal, o “ser” catador se transforma em uma representação da pintura de David. Tião caracteriza-se como o revolucionário Jean Paul-Marat, utilizando recursos encontrados no próprio aterro, para ser fotografado numa reprodução do quadro A morte de Marat. A cena polêmica está criada. Um ser desconhecido torna-se uma representação de uma importante obra do Neoclassismo. E assim como Marat, Tião possuía um espírito de liderança. No original, as pinceladas dão forma a uma banheira, tecidos e papéis. Na cena sugerida pela conversa entre Tião e Vik, um monte de lixo aparece ao fundo, sacos plásticos tomam o lugar dos papéis e um catador assume o status de personagem principal. Ao assumir, metaforicamente, o lugar do revolucionário Marat, podemos dizer que é posta em prática uma subjetivação política, já que está expressa uma manifestação de afastamento das identidades já dadas de modo a problematizar o próprio lugar que o sujeito ocupa na sociedade. Na composição dessa cena ocorre um deslocamento do catador como dedicado ao lixo, ao desprezível, e vemos uma proximidade do catador com um famoso intelectual. Apesar de Vik Muniz propor a Tião a imitação do quadro, logo depois do artista explicar ao catador quem foi Marat, Tião Santos revela: “Ah! já parece comigo”. O fato de Tião ser intelectual, ler autores que ninguém gosta, como próprio diz, mostra que essa identificação de Tião com o intelectual Marat leva a uma discussão da lógica policial, de seu caráter inquestionável e consensual. “Toda subjetivação é uma desidentificação, o arrancar à naturalidade de um lugar, a abertura de um espaço de sujeito onde qualquer um pode contar-se porque é o espaço de uma contagem dos incontados, do relacionamento entre uma parcela e uma ausência de parcela” (RANCIÈRE, 1996: 48). O fato de Tião identificar-se com Marat conduz a um questionamento do que foi constituído pela polícia, a nova roupagem com a qual Tião se identifica é a manifestação de um afastamento do que era fixado e imposto como natural ou “normal”. Lixo Extraordinário apresenta-nos outra personagem: Magna, mulher firme que se mostra disposta a falar e a dialogar com Vik. Ela cita situações de sua vida e coloca em questão o significado do trabalho digno. Como ela própria menciona, as pessoas na rua sentem-se incomodadas com seu cheiro após trabalhar, porém ela afirma com convicção que é melhor essa situação do que se “prostituir em Copacabana”. “É um trabalho honesto, sem venda do corpo”. As outras catadoras juntam-se a ela em concordância com esse discurso ao relatarem que seu trabalho é digno, ao não se envolverem com o tráfico de drogas ou com a prostituição. Magna é também a responsável por sustentar um discurso feminista ao dizer que ela, mulher, não está submissa ao homem. Pode-se perceber que as catadoras criam uma desindentificação, por meio da qual expressam uma subjetivação política. Elas produzem uma enunciação que não era percebida ou considerada na lógica policial. Quando usam a linguagem para argumentar, produzem discurso e impelem a reconfiguração do campo da experiência. “Toda subjetivação política é a manifestação de um afastamento” (RANCIÈRE, 1996: 48).
e leis, e estabelece uma pressuposta igualdade entre os seres. Chamada de polícia, a ordem social que coloca cada um em seu lugar, sem oportunidades de transformações. Porém, o autor também cita uma outra ordem, a política que faz o questionamento desses lugares, das hierarquias e opressões existentes. Uma ordem que surge das brechas das normas policiais. É provocadora, cria o dissenso, e a igualdade é questionada. Para demonstrar todo o movimento político de uma ação, Rancière relaciona os conceitos de dissenso, cena, dano e subjetivação política. A ação política acontece com base nesses conceitos. Quando Vik, em sua visita a Jardim Gramacho logo no inicio do filme, afirma que “as pessoas (catadores) batem papo. Não vejo gente deprimida. Parecem orgulhosos do que fazem”. Uma fala que objeta ao que ele diz no início do filme. Ele imaginou pessoas de uma forma e encontrou outra realidade. Tanto que considera que quando está perto dessa realidade o “fator humano é belo” como afirma Fabio. Nessas considerações de Vik Muniz, percebemos que a imagem que se tinha dos catadores era dada pela lógica policial. Mas no momento em que o artista se envolve com os catadores, ele compreende que a noção que tinha não era como imaginava. A ação dos catadores, em sorrir enquanto trabalham, a capacidade de falarem, de se organizarem, contribui para essa abertura em que se mostram como sujeitos que também podem ser contados, que podem ir além. A percepção de Vik Muniz sobre os catadores de lixo modifica-se ao longo do filme, os catadores “sem-parte” contribuem na alteração dessa visão dos mundos. Vik, no começo de seus trabalhos, desejava que o dinheiro que conseguiria com as obras vendidas seria revertido para os catadores de forma a ajudá-los de alguma forma, mas, além disso, o que ocorre é uma transformação nos conceitos que se tinha dos catadores, a mudança ocorre, mas fica evidenciado uma mudança de como eles eram percebidos, com a interação do artista e catadores, foi possível compreender muito mais do mundo onde eles viviam, de seus interesses, de suas subjetividades. Durante a exibição de Lixo Extraordinário somos várias vezes postos a ver o lixo, os caminhões descarregando, o chorume, as labaredas à noite devido ao metano, somos confrontados com o descartável, o dispensável, a matéria, a fonte da arte do projeto. São criadas situações opostas, quando frequentemente vemos imagens do lixão, que desconforta, que impressiona, mas também vemos a arte, a beleza que igualmente impressiona e provoca surpresa. É aquele mesmo lixo desconfortável anterior que é transformado no lixo belo após a conclusão da obra. Da mesma forma, aquelas pessoas excluídas pela lógica policial foram capazes de transformar a sua imagem. Ao mostrarem um dano, podem ser chamadas de sujeitos políticos, pois foram capazes de enunciar injustiças e reconfigurar funções, foram capazes de compor uma identificação que “recompõe as relações entre os modos de fazer, os modos de ser e os modos do dizer que definem a organização sensível da comunidade” (RANCIÈRE, 1996: 52). Nos minutos iniciais do documentário, Vik Muniz é o entrevistado no Programa do Jô , talk-show da Rede Globo, mas quando chega o final de Lixo Extraordinário é o catador Tião Santos o entrevistado do programa. O sucesso de seu quadro, em um leilão em Londres, é o motivo de sua presença. O artista antes do processo era a “estrela” do programa, mas quando Tião se envolve com Vik, se declara líder da Associação de Catadores de Jardim Gramacho, e precisamente se mostra dono de um discurso, ele se afirma como sujeito político. É um ser desconhecido que está tendo seu momento de “estrela” na cena. É Tião o aplaudido pelo público no final do filme. A política em Lixo Extraordinário está caracterizada pela ação e pela palavra desses catadores de lixo, que revelaram ser capazes de encenar um dano, de colocar em questão a igualdade na lógica da polícia, criando uma cena de dissenso, que instaura a polêmica e a poética, como quando Tião se apresenta como Marat
na obra de arte de Vik Muniz ou quando os catadores colaboram para realizar as montagens. Assim, esse movimento poético e político dos catadores contribui para tornar possível a percepção, no documentário Lixo Extraordinário , do dano, da cena de dissenso e da desidentificação que ajudam a formar a reconfiguração do comum desses “sem-parte”. A política fez-se presente no documentário menos pela construção de discursos de denúncia e reivindicação por justiça, e mais por meio dos jogos de cena, da revelação dos momentos em que os catadores se descolam do serviço inferior que lhes é dado e tomam a palavra, rompem com definições estabelecidas, e mostram-se também competentes a fazer arte. No documentário, Vik Muniz é um agente que motiva as mudanças nas vidas dos catadores, mas eles próprios revelam-se além daquilo que era “esperado”: não foi somente participar da elaboração de uma obra de arte que os fez descobrirem- se como sujeitos políticos, mas também a sua intelectualidade, suas palavras e sonhos, foram determinantes para alterar imaginários, fabricar novas lentes para olharem para si mesmos e para tornar concretas formas de emancipação e de autonomia. Sabemos que um documentário pode não mudar uma conjuntura desigual e injusta, mas reconfigura a cena da política a partir da experiência particular, inensificando a reflexividade do sujeito filmado e endereçando ao público novos ordenamentos do visível e do dizível. O silêncio nomeado que anteriormente existia se torna ruidoso por um momento, para nos mostrar um devir possível dos catadores, para revelar que ainda que os catadores continuem vivendo em condições semelhantes após o documentário - e que a ordem policial não acate de pronto as irrupções da política, muitas vezes cooptando-as e reduzindo-as a manifestações esporádicas – seus modos de agir, ser e dizer são transformados pela dinâmica intensa de conexões e desconexões entre os nomes e lugares que os definem como sujeitos. Referências Bibliográficas GUIMARÃES, Vitor. A intermitência política no documentário : figurações do hip hop no cinema brasileiro contemporâneo. n 175. Dissertação- FAFICH, UFMG, Belo Horizonte, 2013. LIE, Truls. Nossa ordem policial: O que pode ser dito, visto e feito. Revista Urdimento .Santa Catarina, v.1, n.15, p.81-90, Outubro de 2010. WALKER, Lucy; HARLEY, Karen; JARDIM, João. Lixo Extraodinário. Reino Unido/ Brasil, 2010, 99 min, cor. MARQUES, Ângela Cristina Salgueiro. Três bases estéticas e comunicacionais da política: cenas de dissenso, criação do comum e modos de resistência. Revista Contracampo , v. 26, n.1, ed. Abril, ano 2013. Niterói: Contracampo, 2012, p.126-
_____________. Reconfigurações do “comum” e criação de comunidades de partilha: estética e política em Cinco Vezes Favela – agora por nós mesmos. In: Revista Ipotesi , Juiz de Fora v.15, n.2, p. 139-150, jul./dez. 2011. MIGLIORION, César (org). Ensaios no real : O documentário brasileiro hoje. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010. RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento -política e filosofia. São Paulo: Editora 34,
____________. A partilha do sensível : estética e política. São Paulo: Editora 34,