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Neste documento, discutimos a evolução da poesia de jerome rothenberg, que se dedica ao diálogo com a tradição mística judaica e a etnopoesia. Exploramos como seu trabalho absorve poeticas surrealistas e se relaciona com a noção de sociedade tradicional. Além disso, analisamos como rothenberg utiliza textos de diferentes fontes para criar suas collages poéticas.
Tipologia: Notas de estudo
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Andrea Martins Lameirão Mateus
São Paulo 2014 o
Resumo A Poética Multifacetada de Jerome Rothenberg investiga o modo operacional da poética de Jerome Rothenberg (1931). Nascido em Nova York, em 1931, Rothenberg fez parte de uma geração intermediária entre movimentos poéticos bastante conhecidos de público e crítica: a poesia beatnik dos anos 1950 e 1960 e a language poetry do início da década de 1970. Junto com o poeta Robert Kelly, Rothenberg concebe a deep image nos anos 1960, movimento de curta duração, mas essencial para seu desenvolvimento poético. Rothenberg é conhecido principalmente por ter criado o termo etnopoesia e por seus experimentos com o que chamou tradução total , ao traduzir a poesia indígena norte- americana. A tradução total foi um método inovador de considerar a musicalidade, a presença de distorções de palavras ou palavras sem sentido, e outros mecanismos poéticos das artes verbais indígenas como parte integrante da composição. Dessa forma, o resultado da tradução deveria necessariamente contemplar todos esses aspectos. A partir de seu dito ―o primitivo é complexo‖ Rothenberg passa a considerar aspectos poéticos da produção oriunda de culturas orais, ditas primitivas , como a base de seu conceito de etnopoesia. Sua busca pelo primitivo também o conecta diretamente com outros autores lidos como experimentais na poesia, de William Blake e Walt Whitman a Allen Ginsberg, passando por uma tríade modernista: Ezra Pound, William Carlos Williams e Gertrude Stein. A hipótese desta tese é demonstrar que o impulso etnopoético, aparentemente restrito ao seu trabalho como antologista e suas traduções, na realidade é mais abrangente e inclui sua própria produção poética. A etnopoesia se torna o conceito pelo qual podemos ler o seu retorno à sua ancestralidade judaica e seus poemas que tratam de temas como a vida dos judeus na Polônia dos anos 1930, a tradição mística da cabala e o Holocausto. A tese aborda também questões como inserção no meio poético, autoria, influência e originalidade.
palavras chave : poesia contemporânea, poesia norte-americana, etnopoesia, vanguarda, holocausto
Abstract
The Multifaceted Poetry of Jerome Rothenberg deals with the methods applied by Jerome Rothenberg‘s poetics. Born in New York, in 1931, Rothenberg was part of a generation in between well known poetic movements: the beatnik poetry from the 1950s e 1960s and the language poetry of the 1970s. With fellow poet Robert Kelly, Rothenberg starts the deep image in the 1960, a short-lived movement, yet an essential one for his poetic development. Rothenberg is better known for having coined the term e tnopoetry and for his experimentations with what he called total translation, while working with North-American Indian poetry. Total translation was an innovative method in considering musicality, the presence of word distortions or meaningless words and other poetic mechanisms of Indian poetry as an integral part of a poem or song, so that the resultant translation would necessarily contemplate all these aspects. From the perspective of his saying ―primitive is complex‖, Rothenberg starts considering the characteristics of poetry from oral culture, or those called primitive, as the basis for his concept of an etnopoetics. His search for the primitive also connects him with authors read as experimental in poetry, from William Blake and Walt Whitman to Allen Ginsberg, passing through the modernist triad Ezra Pound, William Carlos Williams and Gertrude Stein. The hypothesis of this thesis is to show how the etnopoetic impulse, apparently restricted to his work as anthologist and translator, is, in reality, much more broad in its spectrum and includes his own poetic production. Etnopoetry then becomes the concept we can use to read his return to his Jewish ancestrality and the poems dealing with topics such as the life of Jews in Poland in the 1930s, the mystical kabbalah and the Holocaust. This thesis also shows his insertion in the poetic scene, and debates questions like authorship, influence, and originality.
Key words: contemporary poetry, North American poetry, etnopoetics, avant-garde, holocaust.
Figura 1. Capa de New Young German Poets , 1959, número 11 na linha de bolso da editora City Lights. .................................................................................................................................................. 14 Figura 2. ―A grande onda de Kanagawa‖ de Hokusai (1760–1849) a primeira da série ―36 Vistas do Monte Fuji.‖ ......................................................................................................................... 66 Figura 3. Capa do livro White Sun/ Black Sun. ................................................................................ 79 Figura 4. O agiota e sua esposa, Quentin Matsys, 1514, Museu do Louvre, Paris. ....................... 89 Figura 5. Detalhe do Manuscrito do Inferno (Jigoku Zoshi), séc. XII, Museu de Tóquio. ............ 90 Figura 6. Chamada para Technicians of the Sacred na revista Alcheringa #2, de 1971, com excertos da recepção de Robert Creeley, Armand Schwerner e David Antin. ................................................... 94 Figura 7. fac-símile da página 64 da Revista Alcheringa #1, 1970. .............................................. 102 Figura 8. ―(song #1)‖ em A Seneca Journal, 1978, p.9. ............................................................ 103 Figura 9. Auschwitz-Birkenau - Station 1 - 1998 - desenho a carvão e pastel branco ...................................................................................................................................... 133 Figura 10. Fourteen Stations — Instalação no Morris Museum, Morristown, NJ. ..................... 134 Figura 11. Excerto de ―Vortex. Pound.‖ fac-símile de BLAST #1. p. 153. ................................ 149 Figura 12. Arshile Gorky, The Pirate I , 1942. Sra. Julien Levy, Bridgewater, Connecticut. .......... 158 Figura 13. Arshile Gorky, Agony, 1947, Museum of Modern Art, Nova York. ............................ 164 Figura 14. Arshile Gorky, The Orators (detalhe) , 1947-48. Óleo sobre tela, Coleção Particular, New York................................................................................................................................. 166 Figura 15. Versão colorizada da foto de Hugo Ball em sua leitura no Cabaré Voltaire. .............. 172 Figura 16. Xamã esquimó, Alaska, 1890. ................................................................................... 173 Figura 17. Gravura de Wallace Berman. ..................................................................................... 178 Figura 18. Capa de Abulafia’s Circles ........................................................................................... 178 Figura 19. Manuscrito de O Livro do Mundo Vindouro , de Abraão Abuláfia. ................................... 179 Figura 20. Detalhe de de O Livro Do Mundo Vindouro , de Abraão Abuláfia. ................................... 179
O Instinto Artístico é permanentemente primitivo. Wyndham Lewis, BLAST, 1914
Esta tese tem por objeto de análise a obra de Jerome Rothenberg (1931), e por eixo temático dois conceitos que, embora por vezes se aproximem muito, serão tomados como estruturas separadas: os conceitos de primitivo ou primitivismo na arte, e a ideia do sagrado como arte. Quando utilizo a expressão ―obra‖, no caso de Rothenberg, é necessário salientar que se trata de um conjunto muito heterogêneo de textos literários e ensaísticos, além de traduções e compilações de outros autores, com ênfase na produção poética. Toda sua obra é, em certa medida, poética. Sua produção ensaística se debruça principalmente sobre questões relativas à relevância da poesia hoje, como é escrita, regida por que preceitos, etc., propondo mesmo um perpassar da obra poética em textos críticos e manifestos de intenções poéticas. Suas antologias e traduções lidam quase exclusivamente com poemas, e toda a prosa que lhe interessa é tratada como poesia. Rothenberg é também conhecido por seu trabalho com etnopoesia , expressão que cunhou e ajudou a definir, e que hoje se tornou de uso corrente. É desse conceito, muitas vezes fugidio em sua concepção e uso, que retiro o direcionamento do presente trabalho. A etnopoesia, tal como apresentada na influente antologia Technicians of the Sacred , de 1968, nos trazia o axioma primitive is complex [o primitivo é complexo]. Na introdução a essa obra, Rothenberg apresenta uma espécie de manifesto poético da etnopoesia em forma de prefácio. O título foi tomado da expressão técnicos do sagrado , de Mircea Eliade (1907–86), historiador de religiões, também responsável por uma leitura comparativa da ideia de xamã que se tornou bastante influente, a partir de O xamanismo e as técnicas sagradas de êxtase^1. O termo xamã ― a respeito do qual existe muita polêmica ― se popularizou como
(^1) São Paulo, Martins Fontes, 2002.
significando o detentor, dentro de uma sociedade tradicional, de técnica de manipulação do mundo espiritual, e de diferentes tipos de transe extático, com finalidades diversas, normalmente associadas à cura ou restabelecimento de algum tipo de equilíbrio. A despeito das questões polêmicas suscitadas pelo uso do termo, o xamã arquetípico, sua força simbólica e imaginária é o que nos interessa mais diretamente ao ler a poesia de Rothenberg, e muito do que identificaremos com uma arte do sagrado carrega consigo elementos do primitivo na arte, mas não restrito àquilo que se chamou primitivismo como movimento estético. É especialmente após a escrita de Technicians of the Sacred que Rothenberg, de forma mais sistemática, volta a se dedicar ao diálogo com a tradição mística judaica, e então veremos como entra em relação dialógica com a etnopoesia. Primitivo nos leva ao primitivismo como estética, especialmente no modo como foi lido pelo modernismo, a partir de artistas como Henri Matisse (1869–1954), Constantin Brancusi (1876–1957), Pablo Picasso (1881–1973), Wyndham Lewis (1882–1957) e André Breton (1896–1966), para citar alguns. Acredito ser possível justapor a ideia de arte primitiva com a noção de sagrado , pois ainda que não sejam inseparáveis, frequentemente caminham juntas. Em seu último livro, The Preference for the Primitive: Episodes in the History of Western Taste and Art^2 , Ernst Gombrich (1909–2001) analisa transformações e implicações do que foi considerado como impulso primitivo em arte , desde a Grécia antiga até a Arte Moderna. Gombrich defende que qualquer tipo de excesso na utilização de clichês ou outras formas de apelo ―fácil‖ em arte faz surgir o impulso de volta às raízes — uma busca por uma simplicidade aparente, aquela que esconde sutilezas e complexidades não presentes em um fazer artístico lido como apelativo ou diluidor. Considerando o modo como o modernismo de língua inglesa e aquilo que se chamou de pós-modernismo na poesia norte-americana nos anos 1950 e 1960 tratam o primitivo em arte, percebemos o mesmo impulso; na poesia norte-americana contemporânea muitos autores/poetas promoveram, em algum momento de suas carreiras, a ideia de uma ―volta‖ ao primitivo, partindo de como o primitivismo, quer tomado como um conceito ou como escola artística, havia sido lido pelo modernismo. Se pensarmos, por exemplo, no modo
(^2) London, Phaidon, 2002.
especialmente da obra de Gertrude Stein (1874–1946), ousadíssima em suas técnicas bruscas de choque e reconstrução. A poesia de Rothenberg, ainda que bastante diversificada em técnicas e temas, possui algumas características comuns à sua geração e à de alguns antecessores poéticos, em especial de poetas americanos que poderíamos dividir ainda de um modo distinto do que esbocei acima. É possível pensar nos americanos exilados na Europa (p. e., Ezra Pound & Gertrude Stein) e, dentre aqueles que permaneceram no EUA, poetas da primeira geração do modernismo, como William Carlos Williams (1883-1963) e Marianne Moore (1887– 1972). Críticos como Hugh Kenner^4 e Marjorie Perloff^5 costumam tratar certa linha de poetas norte-americanos como descendentes diretos das ideias de Pound: seriam poundianos Williams, os imagistas, os objetivistas, e muito do que se fez em poesia sob o rótulo de ―experimental‖ nos anos 1950 e 1960 nos EUA. Rothenberg, por sua ligação com Charles Olson (1910–1970) e com a poesia da contracultura dos anos 1960 (beatniks, San Francisco Renaissance, Black Mountain, etc.), todos fortemente ligados a Pound, pode ser considerado como tal; porém, a questão mais propriamente poundiana em sua obra está ligada sobretudo às suas antologias e ideias sobre tradução do que à sua escrita poética. Considero que a influência de Pound na poesia de Rothenberg se dá mais por meio de poetas para
quem Pound foi importante ― e que posteriormente desenvolveram uma voz poética própria ― do que pelo verso poundiano per se. Dentre tais poetas, destacarei o verso modernista homemade^6 de Williams e seu desenvolvimento posterior com os objetivistas,^7 além do tipo de verso anafórico de Allen Ginsberg (1926–97), engendrado a partir de Walt Whitman (1819–92). Fora da tradição poundiana , será tratada a influência de Stein que, além de receber várias referências nas antologias de Rothenberg e ser citada nominalmente em sua obra poética e dramática, traz em seus experimentos com repetição e renovação da linguagem um tipo de poesia que Rothenberg associará com a poesia tribal. Dentro dessa história literária
(^4) Ver The Pound Era , 1971. (^5) Em boa parte de sua obra, mas especialmente em The Dance of the Intellect , 1985. (^6) Hipótese descrita e definida por Hugh Kenner em A Homemade Wolrd: The American Modernist Writers , 1975. (^7) Vale lembrar que a questão judaica é importante entre os mais proeminentes poetas objetivistas: Zukofsky, Oppen e Reznikoff.
procuro pinçar o que acredito ser o mais relevante para um tipo de verso praticado por Rothenberg (mas não apenas por ele), com exemplos de versos dos poetas acima comparados a seus poemas, extraídos de diversos momentos de sua carreira. Todo o primeiro capítulo, ― Uma arte poética de vanguarda‖, pretende mapear linhas de força que, adiante, irão se apresentar como pertinentes para a leitura de Rothenberg. Nesse sentido, alguns poetas como Walt Whitman e William Carlos Williams recebem maior atenção justamente por sua importância para a formulação de modelos poéticos que são, por sua vez, centrais não apenas para Rothenberg, mas para muitos poetas norte-americanos contemporâneos a ele. Ao longo do primeiro capítulo, Whitman aparece como o poeta que, por excelência, tomou para si a tarefa de criar um modo de expressão norte-americano , e fabricar um tipo de verso capaz de expressar a amplitude da sua experiência. Procurei destacar o tipo de verso livre que, a partir de Whitman, ficou conhecido como ―bíblico anafórico‖ e algumas de suas implicações para, a partir daí, contrastá-lo com um segundo modelo: o verso curto e conciso, associado diretamente com a poética de Williams. Como se trata de um poeta, no caso de Rothenberg, muito cosmopolita, no que tange a suas predileções de estilo e poética, julguei ser necessário falar sobre questões diretamente ligadas à feitura do poema, e tipos de técnicas específicas do verso livre, aplicadas por ele, antes de entrar diretamente na sua obra. ―Sol Niger‖, o segundo capítulo, mostra o início da carreira de Rothenberg, nos anos 1960, e procura demonstrar como muito de sua poesia nos anos subsequentes deriva de ideias que, se não plenamente desenvolvidas, já estavam embrionárias na década, apresentando essas facetas ao leitor. Nos capítulos seguintes, ―Etnopoesia 1: Técnicos do Sagrado‖ e ―Etnopoesia II: Místicos Judeus, Ladrões e Loucos‖, abordo o tema da poesia tribal ou tradicional como poesia sagrada, e esses capítulos são, portanto, consequência natural do primeiro. Como dito acima, a leitura de Mircea Eliade e o impacto da introdução de 1968 à antologia Technicians of the Sacred (dentre outras) serão abordados, além do conceito de tradução total, a partir de traduções etnopoéticas, e o significado dessas explorações para uma leitura global da obra de Rothenberg, mostrando como, já desde o final da década de 1960, Rothenberg sempre considerou a perspectiva do outro (por exemplo, os índios seneca) em contraste com a sua
Jerome Rothenberg estréia em sua carreira literária, em livro, em 1959, com uma antologia de poetas alemães, modernos e contemporâneos, na qual não apenas demonstrava seu talento técnico para a tradução, como também para a antologia. Rothenberg havia servido o exército americano na Alemanha, de 1953 a 1955, e usou essa oportunidade para conhecer melhor a cena poética alemã daquele momento. O resultado desse interesse é New Young German Poets^8 [Novos Poetas Jovens Alemães], que traz poetas importantes até então pouco ou nada traduzidos para o inglês, como Paul Celan (1920–70) e Hans Magnus Enzensberger (1929). Dois anos depois dessas traduções, Rothenberg publicaria seu primeiro livro de poemas, White Sun/Black Sun [Sol Branco /Sol Negro], por um selo que ele próprio dirigiu com o poeta David Antin (1932), o Hawk’s Well Press , e ambos editavam também a revista Poems from the Floating World. Com essa editora já havia publicado, em tradução conjunta com David Antin, o livro de Martin Buber, Tales of Angels, Spirits, and Demons^9 [Contos de Anjos, Espíritos e Demônios], em 1958. A escolha não é em nada acidental ou gratuita, uma vez
(^8) São Francisco, City Lights, 1959. Publicado na famosa ―pocket poet series‖ da City Lights, imortalizada pela primeira edição de 9 Howl de Allen Ginsberg (1956), ainda hoje em catálogo. Originalmente publicado como Erzählungen von Engelm, Geistern und Dämonen, (Berlim, Schocken, 1934).
Figura 1. Capa de New Young German Poets , 1959, número 11 na linha de bolso da editora City Lights.
que a filosofia de Buber informa em muitos aspectos a obra de Rothenberg, como será visto adiante. Ainda na década de 1960 Rothenberg publica os Gorky Poems, [Poemas a Gorky] (1966), referência à obra do pintor armênio Arshile Gorky (1904–48); Between [No meio] (1967) e Conversations Conversas, entre outras publicações, como panfletos, broadsides , contribuições para revistas^10 , etc. O que se nota da produção dessa década inicial é que, de alguma forma (mesmo que apenas embrionariamente em alguns casos), suas principais preocupações poéticas, sejam temáticas ou formais — muito daquilo que será recorrente ao longo de sua carreira — já estão presentes na produção do período. Podemos percorrer seus livros e perceber onde cada uma dessas facetas começa a despontar e se desenvolve. Utilizo a ideia de ―faceta‖ nesta leitura de Rothenberg por afirmar que se trata de uma poesia ―multifacetada,‖ como diz o título. A escolha se desdobra em mais de um sentido da palavra faceta. Primeiramente como ―cada uma das faces planas e polidas das pedras preciosas que resultam da lapidação^11 ‖, pois a obra de Rothenberg não é apenas variada: suas várias faces se conectam e são parte de um todo, e o resultado da lapidação em que desbastou sua matéria poética. Faceta também se refere à ―particularidade de alguém ou de alguma coisa‖, e sua obra, ainda que inserida na cena poética de sua época, tem muitas particularidades; ainda, como sinônimo de face, ou rosto , lembramos que é próprio de Rothenberg assumir vozes diversas, seja através da leitura e incorporação de vozes de outros poetas, de outras culturas, ou simplesmente pela criação de personagens que dialogam com a sua própria voz. Rothenberg, por exemplo, chama seus prefácios de pre-faces,^12 para acentuar o momento de ―mostrar a face‖ — muitos de seus prefácios podem ser inseridos no que se intitulou ―Arte do Manifesto‖: explicam novos termos cunhados por ele (e.g. deep image, total translation, ethonopoetics ) e demonstram intenções poéticas sem esquecer sua visada política, e o sentido da poesia para seu tempo e sua comunidade de leitores.
(^10) Para uma listagem completa das publicações de Rothenberg até parte da década de 1980, ver Jerome Rothenberg: A Descriptive Bibliography 11 , de Harry Polkinhorn, 1988. 12 Utilizei as definições do dicionário^ Caldas Aulete. Literalmente pré-face, que poderia ser traduzido como pre-facial para manter o duplo sentido.
Em seu seminal ensaio ―Reflections on Vers Libre ‖ [Reflexões sobre o Vers Libre ] (1917), T. S. Eliot (1888–1965) procura, de forma irônica, defender sua prática poética do verso livre — tal como o entendia e havia utilizado em poemas como ―The Love-Song of J. Alfred Prufrock‖ [A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock] (1915) — daqueles que não a compreendiam como técnica, e, nesse momento em particular, defendê-la (ainda) de seus detratores, mas, mais do que tudo, de seus defensores. Os advogados do vers libre , que rapidamente se tornara moda, pareciam preocupar (ou irritar) Eliot mais do que leitores incapazes de compreender um verso que não lhes parecesse verso. Era mais importante ilustrar os incautos defensores do ―novo‖ verso que, se fosse efetivamente livre, não seria verso: ― Vers libre does not exist^15 ‖ [O verso livre não existe]. No mesmo ano de 1917, Ezra Pound escreve, para a revista The Egoist, de forma sintomática: ‗It is too late to prevent vers libre , but conceivably, one might improve it‘[É tarde demais para prevenir o vers libre , mas é concebível que se possa melhorá-lo].^16 Ao escrever, nos Cantos, ―To break the pentameter, that was the first heave‖ [para quebrar o pentâmetro, esse foi o primeiro esforço^17 ], Pound estava se referindo tanto a si mesmo quanto a Eliot. Mas a quebra com o pentâmetro estava longe de sugerir um mero desejo de liberdade: eles buscavam uma forma nova que pudesse abarcar uma nova percepção. Essa nova percepção ecoa o flâneur baudelairiano como um modelo cosmopolita em sintonia com a voz urbana, mas é ampliada também em outras instâncias — vozes de um passado remoto, vozes distantes do ambiente citadino ou o registro conversacional —, desde que relevantes, isto é, sinceras em relação à percepção. Era importante que essas vozes, que precisavam de um veículo específico para ser expressas, fizessem sentido em relação a uma prosódia que soasse verossímil para um tom conversacional, que Eliot gostava de chamar demótico^18. Em um ensaio mais tardio, de 1942,
(^15) T. S. Eliot, in: To Criticize the Critic and Other Writings , 1991, p. 183. (^16) apud Humphrey Carpenter, in: A Serious Character: the Life of Ezra Pound , 1988, p. 329. (^17) Ezra Pound, ―Canto LXXXI‖, tradução de José Lino Grünewald, in: Os Cantos , 2002, p. 564. (^18) Como no verso Asked me in demotic French [Perguntou-me em francês demótico], de ―The Waste Land‖. (T. S. Eliot, in: The waste land: authoritative text, contexts, criticism , 2001, p.12.
―The Music of Poetry‖ [A música na poesia], T. S. Eliot faz um arrazoado do que seria, idealmente, a consideração da musicalidade e do ritmo na poesia:
Mas há uma lei da natureza mais poderosa do que quaisquer tendências variadas, ou influências vindas de fora ou do passado: a lei é de que a poesia não deve se afastar demasiado da língua comum de cada dia que usamos e ouvimos. Seja a poesia rítmica ou rimada, formal ou livre, ela não pode se dar ao luxo de perder o contato com a linguagem mutante da conversação ordinária.‖^19
Essa qualidade de linguagem extraída da ―conversação ordinária‖ passava pelos critérios anteriores que Pound havia proposto ao chegar à conclusão de que a poesia perdera sua primazia como arte da escrita quando Stendhal (1783–1842) e os irmãos Goncourt, Edmond (1822–96) e Jules (1830–70), escreveram seus romances, provando que uma arte da percepção precisaria estar viva nos modos de sua expressão em linguagem, e que isso necessariamente exigia a manutenção de mecanismos que produzissem uma proporção do escrito em relação ao falado. Era o que Pound chamara, em um ensaio, abordando Ford Madox Ford (1873–1939), ―The Prose Tradition in Verse‖ [A tradição da prosa em verso]. Ford havia chamado a atenção de Pound para o estilo ―capa-e-espada‖ de seu verso, carregando demasiado peso de impostação antiga e artificial, no sentido de um distanciamento da experiência da fala. E Pound adotou o método de investigar a prosa para dela extrair essa força de atualização do velho jargão poético, transformando, assim, as próprias expectativas da prosódia em inglês. Ainda sobre ritmo, Pound também diria, em seu ―Credo‖: ―Creio num ‗ritmo absoluto‘, isto é, num ritmo que, em poesia, corresponde exatamente à emoção ou nuance emocional a ser expressa. O ritmo de um homem deve ser interpretativo; será, portanto e finalmente, peculiar a ele, não falsificado, infalsificável.‖^20. A afirmação de Pound não está muito distante de Allen Ginsberg (1926-97), quando ele considera seu poema ―Howl‖:
(^19) T. S. Eliot, in: De Poesia e Poetas , tradução de Ivan Junqueira, p.42, 1991. (^20) ―I believe in an ‗absolute rhythm‘, a rhythm, that is, in poetry that corresponds exactly to the emotion or shade of emotion to be expressed. A man‘s rhythm must be interpretative, it will be, therefore, in the end, his own, uncounterfeiting, uncounterfeitable.‖, Ezra Pound, in: Literary Essays of Ezra Pound , 1960, p.9.