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A paz perpétua: um projeto filosófico - Kant, Manuais, Projetos, Pesquisas de Relações Internacionais

Neste ensaio filosófico, Kant afirma que a guerra seria uma condição natural dos Estados. No entanto, apesar de natural, este estado não seria justo ou moral. Ele delineia, então, as condições necessárias para o estabelecimento da paz entre as nações, em que a autonomia de cada Estado estaria assegurada e a guerra só estaria presente em situações extremamente necessárias. A paz, segundo Kant, seria um ideal construído, pelo qual devemos nos esforçar.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2023

Compartilhado em 18/02/2023

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A PAZ PERPÉTUA
Um Projecto Filosófico
Immanuel Kant
(1795)
Tradutor:
Artur Morão
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A PAZ PERPÉTUA

Um Projecto Filosófico

Immanuel Kant

Tradutor:

Artur Morão

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A Paz Perpétua.

Um Projecto Filosófico

Immanuel Kant

Conteúdo

[Introdução] 3 Primeira Seccção que contêm os Artigos Preliminares... 4 Segunda Secção que contém os Artigos Definitivos... 10 Suplemento Primeiro: Da Garantia da Paz Perpétua 23 Suplemento Segundo: Artigo Secreto para a Paz Perpétua 32 Apêndice I: Sobre a discrepância entre a Moral e a Política... 34 Apêndice II: Da Harmonia da Política com a Moral...... 46

[Introdução]

Pode deixar-se em suspenso se esta inscrição satírica na tabuleta de uma pousada holandesa, em que estava pintado um cemitério, interessa em geral aos homens, ou em particular aos chefes de Estado que nunca chegam a saciar-se da guerra, ou tão-só aos filósofos que se entregam a esse doce sonho. Mas o autor do presente ensaio estipula o seguinte: visto que o político prático está em bons termos com o teórico e com grande autocomplacência o olha de cima como a um sábio académico

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A Paz Perpétua. Um Projecto Filosófico 5

corresponde à dignidade dos governantes, do mesmo modo que tam- bém não corresponde à dignidade de um ministro a complacência em tais deduções, se o assunto se julgar tal como é em si mesmo. Se, pelo contrário, a verdadeira honra do Estado se colocar, segundo os conceitos ilustrados da prudência política, no contínuo incremento do poder seja por que meios for, então aquele juízo afigurar-se-á como escolar e pedante.

  1. «Nenhum Estado independente (grande ou pequeno, aqui tanto faz) poderá ser adquirido por outro mediante herança, troca, compra ou doação.»

Um Estado não é património (patrimonium) (como, por exemplo, o solo em que ele tem a sua sede). É uma sociedade de homens so- bre a qual mais ninguém a não ser ele próprio tem de mandar e dispor. Enxertá-lo noutro Estado, a ele que como tronco tem a sua própria raiz, significa eliminar a sua existência como pessoa moral e fazer desta úl- tima uma coisa, contradizendo, por conseguinte, a ideia do contrato ori- ginário, sem a qual é impossível pensar direito algum sobre um povo^1 ). Todos sabem a que perigo induziu a Europa até aos tempos mais recentes o preconceito deste modo de aquisição, pois as outras partes do mundo jamais o conheceram, isto é, de os próprios Estados poderem entre si contrair matrimónio; este modo de aquisição é, em parte, um novo género de artifício para se tomar muito poderoso mediante alian- ças de família sem dispêndio de forças e, em parte também, serve para assim ampliar as possessões territoriais. – Deve também aqui incluir-se o serviço das tropas de um Estado noutro contra um inimigo não co- mum, pois em tal caso usa-se e abusa-se dos súbditos à vontade, como se fossem coisas de uso.

(^1) Um reino hereditário não é um Estado que possa ser herdado por outro Estado; é um Estado cujo direito a governar se pode dar em herança a outra pessoa física. O Estado adquire, pois, um governante, não é o governante como tal (isto é, que já possui outro reino) que adquire o Estado.

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  1. «Os exércitos permanentes (miles perpetuus) devem, com o tempo, de todo desaparecer.»

Pois ameaçam incessantemente os outros Estados com a guerra, de- vido à sua prontidão para aparecerem sempre preparados para ela; os Estados incitam-se reciprocamente a ultrapassar-se na quantidade dos mobilizados que não conhece nenhum limite, e visto que a paz, em virtude dos custos relacionados com o armamento, se torna finalmente mais opressiva do que uma guerra curta, eles próprios são a causa de guerras ofensivas para se libertarem de tal fardo; acrescente-se que pôr- se a soldo para matar ou ser morto parece implicar um uso dos homens como simples máquinas e instrumentos na mão de outrem (do Estado), uso que não se pode harmonizar bem com o direito da humanidade na nossa própria pessoa. Algo de todo diverso é defender-se a si e defen- der a Pátria dos ataques do exterior com o exercício militar voluntário dos cidadãos empreendido de forma periódica. – O mesmo se passaria com a acumulação de um tesouro; considerado pelos outros Estados como uma ameaça de guerra, forçá-los-ia a um ataque antecipado, se a tal não se opusesse a dificuldade de calcular a sua grandeza (pois dos três poderes, o militar, o das alianças e o do dinheiro, este último poderia decerto ser o mais seguro instrumento de guerra).

  1. «Não se devem emitir dívidas públicas em relação aos assuntos de política exterior.»

Para fomentar a economia de um país (melhoria dos caminhos, no- vas colonizações, criação de depósitos para os anos maus de forneci- mentos, etc.) fora ou dentro do Estado, esta fonte de financiamento não levanta suspeitas. Mas um sistema de crédito, como aparelho de opo- sição das potências entre si, é um sistema que cresce ilimitadamente, é sempre um poder financeiro perigoso para a reclamação presente (por- que certamente nem todos os credores o farão ao mesmo tempo) das dívidas garantidas – a engenhosa invenção de um povo de comercian- tes neste século – ou seja, é um tesouro para a guerra, que supera os

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por exemplo, o emprego no outro Estado de assassinos (percussores), envenenadores (venefici), a ruptura da capitulação, a instigação à trai- ção (perduellio), etc.»

São estratagemas desonrosos; mesmo em plena guerra deve ainda existir alguma confiança no modo de pensar do inimigo já que, caso contrário, não se poderia negociar paz alguma e as hostilidades resul- tariam numa guerra de extermínio (bellum internecinum); a guerra é apenas o meio necessário e lamentável no estado da ntureza (em que não existe nenhum tribunal que possa julgar, com a força do direito), para afirmar pela força o seu direito; na guerra, nenhuma das partes se pode declarar inimigo injusto (porque isso pressupõe já uma sentença judicial). Mas o seu desfecho (tal como nos chamados juízos de Deus) é que decide de que lado se encontra o direito; entre os Estados, porém, não se pode conceber nenhuma guerra de punição (bellum punitivum) (pois entre eles não existe nenhuma relação de superior a inferior). – Daqui se segue, pois, que uma guerra de extermínio, na qual se pode produzir o desaparecimento de ambas as partes e, por conseguinte, tam- bém de todo o direito, só possibilitaria a paz perpétua sobre o grande cemitério do género humano. Logo, não se deve de modo algum per- mitir semelhante guerra nem também o uso dos meios que a ela levam.

  • Que os mencionados meios levam inevitavelmente a ela depreende-se do facto de que essas artes infernais, em si mesmas nunca convenien- tes, quando se põem em uso não se mantêm por muito tempo dentro dos limites da guerra, mas transferem-se também para a situação de paz como, por exemplo, o uso de espias (uti exploratoribus), onde se aproveita a indignidade de outros (que não pode erradicar-se de uma só vez); e assim destruir-se-ia por completo o propósito da paz.

Embora as leis aduzidas sejam simples leis objectivamente proibi- tivas (leges prohibitivae), isto é, na intenção dos que detêm o poder, há todavia algumas que têm uma eficácia rígida, sem consideração pelas

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circunstâncias (leges strictae), que obrigam imediatamente a um não- fazer (como os números 1, 5, 6) Mas outras (como os números 2, 3, 4), sem serem excepções à norma jurídica, tendo porém em consideração as circunstâncias na sua aplicação, ampliando subjectivamente a com- petência (leges latae), contêm uma autorização para adiar a execução sem, no entanto, se perder de vista o fim, que permite, por exemplo, a demora na restituição da liberdade subtraída a certos Estados, se- gundo o número 2, não para o dia de S. Nunca à Tarde (ad calendas graecas, como costumava prometer Augusto), portanto a sua não resti- tuição, mas só para que ela tenha lugar de um modo apressado e assim contra a própria intenção. Pois a proibição afecta aqui apenas o modo de aquisição, o qual não deve valer para o futuro, mas não a possessão que, embora desprovida do título jurídico requerido, foi todavia consi- derada por todos os Estados no seu tempo (da aquisição putativa) como conforme ao direito, segundo a opinião pública da altura^2.

(^2) Até agora, duvidou-se e não sem fundamento que, além do mandado (leges preceptivae) e da proibição (leges prohibitivae), pode ainda haver leis permissivas (leges permissivae) da razão pura. Pois as leis em geral contêm um fundamento de necessidade prática objectiva, mas a permissão contém um fundamento da contingên- cia prática de certas acções; por isso, uma lei permissiva conteria o constrangimento a uma acção a que não se pode estar obrigado, o que seria uma contradição se o objecto da lei tivesse o mesmo significadoo em ambos os casos. – Mas agora aqui, na lei permissiva, a suposta proibição refere-se apenas ao modo de aquisição futura de um direito (por exemplo mediante herança), ao passo que o levantamento da proibição, isto é, a permissão, se refere à posse presente, a qual pode ainda persistir segundo uma lei permissiva do direito natural na transição do estado de natureza para o estado ci- vil como uma posse, se não conforme ao direito, todavia sincera (possesio putativa). Ora uma posse putativa, logo que se reconheceu como tal, é proibida no estado de natureza do mesmo modo que um tipo semelhante de aquisição é proibido no ulterior estado civil (após a passagem); a possibilidade de uma posse duradoira não existiria se tivesse havido uma aquisição putativa no estado civil, pois, neste caso, teria de ces- sar imediatamente como uma lesão, logo após a descoberta da sua não conformidade com o direito. Aqui, tentei apenas incidentalmente chamar a atenção dos professores de direito natural para o conceito de uma lex permissiva, que se apresenta como tal a uma ra- zão sistematicamente classificadora; de semelhante conceito faz-se muitas vezes uso, sobretudo no direito civil (estatutário), só que com a diferença de que a lei impera-

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/ Primeiro Artigo definitivo para a Paz Perpétua

A Constituição civil em cada Estado deve ser republicana.

A constituição fundada, primeiro, segundo os princípios da liber- dade dos membros de uma sociedade (enquanto homens); em segundo lugar, em conformidade com os princípios da dependência de todos em relação a uma única legislação comum (enquanto súbditos); e, em terceiro lugar, segundo a lei da igualdade dos mesmos (enquanto cida- dãos), é a única que deriva da ideia do contrato originário, em que se deve fundar toda a legislação jurídica de um povo – é a constituição republicana^4. constantemente ameaçado por ele; e não posso forçá-lo a entrar comigo num estado social legal ou a afastar-se da minha vizinhança. – Logo, o postulado que subjaz a todos os artigos seguintes é este: Todos os homens que entre si podem exercer influências recíprocas devem pertencer a alguma constituição civil. Mas toda a constituição jurídica, no tocante às pessoas que nela estão, é

  1. Uma constituição segundo o direito político (Staatsbürgerrecht) dos homens num povo (ius civitatis);
  2. Segundo o direito das gentes (Völkerrecht) dos Estados nas suas relações recí- procas (ius gentium);
  3. Uma constituição segundo o direito cosmopolita (Weltbürgerrecht), enquanto importa considerar os homens e os Estados, na sua relação externa de influência recí- proca, como cidadãos de um estado universal da humanidade (ius cosmopoliticum). Esta divisão não é arbitrária, mas necessária em relação à ideia da paz perpétua. Pois, se um destes Estados numa relação de influência física com os outros estivesse em estado da natureza, isso implicaria o estado de guerra, de que é justamente nosso propósito libertar-se. (^4) A liberdade jurídica (portanto externa) não se pode definir, como é habitual fa- zer, mediante a faculdade de «fazer tudo o que se quiser, contanto que a ninguém se faça uma injustiça». Pois, que significa faculdade (Befüg nis)? A possibilidade de uma acção enquanto por ela a ninguém se faz uma injustiça. A explicação da definição soaria então assim: «Liberdade é a possibilidade de acções pelas quais a ninguém se faz uma injustiça. Não se faz dano a ninguém (faça-se o que se quiser), se apenas a ninguém se fizer dano algum»: é portanto uma tautologia vazia. – A minha liberdade exterior (jurídica) deve antes explicar-se assim: é a faculdade de não obe- decer a quaisquer leis externas senão enquanto lhes pude dar o meu consentimento. – Igualmente, a igualdade exterior (jurídica) num Estado é a relação entre os cidadãos

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Esta é, pois, no tocante ao direito, a que em si mesma subjaz a todos os tipos de constituição civil; e, agora, surge apenas a questão: será também ela a única que pode conduzir à paz perpétua? A constituição republicana, além da pureza da sua origem, isto é, de ter promanado da pura fonte do conceito de direito, tem ainda em vista o resultado desejado, a saber, a paz perpétua; daquela é esta o fun- damento. – Se (como não pode ser de outro modo nesta constituição) o consentimento dos cidadãos se exige para decidir «se deve, ou não,

segundo a qual nenhum pode vincular juridicamente outro sem que ele se submeta ao mesmo tempo à lei e possa ser reciprocamente também de igual modo vinculado por ela. (Não é necessária nenhuma explicação a propósito do princípio da dependência jurídica, já que este está implícito no conceito de uma constituição política). – A vali- dade dos direitos inatos inalienáveis e que pertencem necessariamente à humanidade é confirmada e elevada pelo princípio das relações jurídicas do próprio homem com entidades mais altas (quando ele as imagina), ao representar-se a si mesmo segundo esses mesmos princípios também como um cidadão de um mundo supra-sensível. – No tocante à minha liberdade, não tenho qualquer obrigação mesmo em relação às leis divinas por mim conhecidas através da simples razão a não ser que eu próprio tenha podido prestar o meu consentimento (pois, mediante a lei da liberdade da mi- nha própria razão é que faço, primeiro, para mim um conceito da vontade divina). No tocante ao princípio de igualdade em relação ao Ser supremo do mundo, fora de Deus, tal como eu o poderia imaginar (um grande Eão), não existe fundamento algum para que eu, se no meu posto fizer o meu dever como aquele Eão no seu, tenha sim- plesmente o dever de obedecer, e aquele o de mandar. – O fundamento da igualdade reside em que este princípio (tal como o da liberdade) também não se ajusta à relação com Deus, porque este Ser é o único no qual cessa o conceito de dever. Mas, no que diz respeito ao direito da igualdade de todos os cidadãos enquanto súbditos, é necessário contestar a questão da admissibilidade da nobreza hereditária: «se o estatuto concedido pelo Estado (a posição de um súbdito sobre o outro) deve preceder o mérito, ou este àquele». – Ora, é claro que, se o estatuto está vinculado ao nascimento, é de todo incerto se o mérito (capacidade e fidelidade profissionais) também virá depois; por conseguinte, é como se ele fosse concedido (ser chefe) ao beneficiado sem qualquer mérito – o que nunca a vontade geral do povo decidirá num contrato originário (que, no entanto, é o princípio de todos os direitos). Com efeito, um nobre não é necessariamente por isso um homem nobre. – No tocante à nobreza de cargo (como se poderia denominar o estatuto de uma elevada magistratura e à qual é necessário elevar-se por meio dos méritos), o estatuto não pertence à pessoa como uma propriedade, mas ao lugar, e a igualdade não é por isso lesada; pois, quando a pessoa abandona o seu cargo deixa, ao mesmo tempo, o estatuto e retoma ao povo.

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o poder executivo (governo) e o legislativo; o despotismo é o princí- pio da execução arbitrária pelo Estado de leis que ele a si mesmo deu, portanto a vontade pública é manejada pelo governante como sua von- tade privada. – Das três formas de Estado, a democracia é, no sentido próprio da palavra, necessariamente um despotismo, porque funda um poder executivo em que todos decidem sobre e, em todo o caso, tam- bém contra um (que, por conseguinte, não dá o seu consentimento), portanto todos, sem no entanto serem todos, decidem – o que é uma contradição da vontade geral consigo mesma e com a liberdade. Toda a forma de governo que não seja representativa é, em termos estritos, uma não forma, porque o legislador não pode ser ao mesmo tempo executor da sua vontade numa e mesma pessoa (como também a universal da premissa maior num silogismo não pode ser ao mesmo tempo a subsunção do particular na premissa menor); e, embora as duas outras constituições políticas sejam sempre defeituosas porque propor- cionam espaço a um tal modo de governo, é nelas ao menos possível que adoptem um modo de governo conforme com o espírito de um sis- tema representativo como, por exemplo, Frederico II ao dizer que ele era apenas o primeiro servidor do Estado^5 , ao passo que a constituição democrática torna isso impossível porque todos querem ser soberano. – Pode, pois, dizer-se: quanto mais reduzido é o pessoal do poder estatal (o número de dirigentes), tanto maior é a representação dos mesmos, tanto mais a constituição política se harmoniza com a possibilidade do republicanismo e pode esperar que, por fim, a ele chegue mediante reformas graduais. Por tal razão, chegar a esta única constituição ple- namente jurídica é mais difícil na aristocracia do que na monarquia e é (^5) Muitas vezes se censuraram os altos títulos que, com frequência, se atribuem a um princípe (os de ungido de Deus, administrador da vontade divina na Terra e representante seu) como adulações grosseiras e fraudulentas; mas parece-me que tais censuras são sem fundamento. – Longe de tornarem arrogante o príncipe territorial, devem antes deprimi-lo no seu interior, se ele tiver entendimento (o que, no entanto, se deve pressupor) e pensar que recebeu um cargo demasiado grande para um homem, isto é, administrar o que de mais sagrado Deus tem sobre a Terra, o direito dos homens, e deve estar constantemente preocupado por se encontrar excessivamente próximo da menina-do-olho de Deus.

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impossível na democracia, a não ser mediante uma revolução violenta. Mas ao povo interessa mais, sem comparação, o modo de governo^6 do que a forma de Estado (embora tenha também muita importância a sua maior ou menor adequação àquele fim). Ao modo de governo que deve ser conforme à ideia de direito pertence o sistema represen- tativo, o único em que é possível um modo de governo republicano e sem o qual todo o governo é despótico e violento (seja qual for a sua constituição). – Nenhuma das denominadas repúblicas antigas conhe- ceu este sistema e tiveram, de facto, de se dissolver no despotismo que, sob o poder supremo de um só, é ainda o mais suportável de todos os despotismos.

/ Segundo Artigo definitivo para a Paz Perpétua

O direito das gentes deve fundar-se numa federação de Estados livres.

Os povos, enquanto Estados, podem considerar-se como homens singulares que, no seu estado de natureza (isto é, na independência de leis externas), se prejudicam uns aos outros já pela sua simples coexis- tência e cada um, em vista da sua segurança, pode e deve exigir do outro que entre com ele numa constituição semelhante à constituição civil, na (^6) Malais du Pain vangloria-se com a sua linguagem pomposa, mas vazia e oca, de, após uma experiência de muitos anos, se ter por fim convencido da verdade do conhe- cido mote de Pope: «Deixa os loucos disputar sobre o melhor governo; o que melhor governa é o melhor». Se isto equivale a dizer que o governo que melhor governa é o mais bem governado, Pope, segundo a expressão de Swift, trincou uma noz e foi-lhe dispensado um verme; se, porém, significa que é também a melhor forma de governo, isto é, de constituição política, é radicalmente falso; pois, exemplos de bons governos nada demonstram sobre a forma de governo. – Quem governou melhor do que um Tito ou um Marco Aurélio? E, no entanto, um deixou como sucessor um Domiciano, e o outro um Cómodo; o que não poderia ter acontecido com uma boa constituição política, pois a incapacidade dos últimos para o cargo tinha sido conhecida bastante cedo e o poder do Imperador era também suficiente para os ter excluído.

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palavra direito não tenha ainda podido ser expulsa da política da guerra como pedante, e que nenhum Estado tenha ainda ousado manifestar-se publicamente a favor desta última opinião; pois persiste-se ainda a ci- tar candidamente Hugo Grócio, Pufendorf , Vatel e outros (incómodos consoladores apenas!). Embora o seu código elaborado filosófica ou diplomaticamente não tenha a mínima força legal nem a possa também ter (pois os Estados enquanto tais não estão sob nenhuma coacção exte- rior comum) para a justificação de um ataque bélico, sem que exista um exemplo de que alguma vez um Estado tenha abandonado os seus pro- pósitos em virtude dos argumentos reforçados com os testemunhos de tão importantes homens, esta homenagem que todos os Estados pres- tam ao conceito de direito (pelo menos, de palavra) mostra que se pode encontrar no homem uma disposição moral ainda mais profunda, se bem que dormente na altura, para se assenhoriar do princípio mau que nele reside (o que não pode negar) e para esperar isto também dos ou- tros; pois, de outro modo, a palavra direito nunca viria à boca dos Esta- dos que se querem guerrear entre si, a não ser para com ela praticarem a ironia como aquele príncipe gaulês, que afirmava: «A vantagem que a natureza deu ao forte sobre o fraco é que este deve obedecer àquele.» Visto que o modo como os Estados perseguem o seu direito nunca pode ser, como num tribunal externo, o processo, mas apenas a guerra, e porque o direito não se pode decidir por meio dela nem pelo seu re- sultado favorável, a vitória, e dado que pelo tratado de paz se põe fim a uma guerra determinada, mas não ao estado de guerra (possibilidade de encontrar um novo pretexto para a guerra, a qual também não se pode declarar como justa, porque em tal situação cada um é juiz dos seus pró- prios assuntos); e, uma vez que não pode ter vigência para os Estados, segundo o direito das gentes, o que vale para o homem no estado des- provido de leis, segundo o direito natural – «dever sair de tal situação» (porque possuem já, como Estados, uma constituição interna jurídica e estão, portanto, subtraídos à coacção dos outros para que se subme- tam a uma constituição legal ampliada em conformidade com os seus conceitos jurídicos); e visto que a razão, do trono do máximo poder legislativo moral, condena a guerra como via jurídica e faz, em contra-

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partida, do estado de paz um dever imediato, o qual não pode todavia estabelecer-se ou garantir-se sem um pacto entre os povos: - tem, pois, de existir uma federação de tipo especial, a que se pode dar o nome de federação da paz (foedus pacificum), que se distinguiria do pacto de paz (pactum pacis), uma vez que este tentaria acabar com uma guerra, ao passo que aquele procuraria pôr fim a todas as guerras e para sempre. Esta federação não se propõe obter o poder do Estado, mas simples- mente manter e garantir a paz de um Estado para si mesmo e, ao mesmo tempo, a dos outros Estados federados, sem que estes devam por isso (como os homens no estado de natureza) submeter-se a leis públicas e à sua coacção. – É possível representar-se a exequibilidade (realidade objectiva) da federação, que se deve estender paulatinamente a todos os Estados e assim conduz à paz perpétua. Pois, se a sorte dispõe que um povo forte e ilustrado possa formar uma república (que, segundo a sua natureza, deve tender para a paz perpétua), esta pode constituir o centro da associação federativa para que todos os outros Estados se reúnam à sua volta e assim assegurem o estado de liberdade dos Es- tados conforme à ideia do direito das gentes e estendendo-se sempre mais mediante outras uniões. É compreensível que um povo diga: «Não deve entre nós haver guerra alguma, pois queremos formar um Estado, isto é, queremos im- por a nós mesmos um poder supremo legislativo, executivo e judicial, que dirima pacificamente os nossos conflitos.» Mas se este Estado dis- ser: «Não deve haver guerra alguma entre mim e os outros Estados, embora não reconheça nenhum poder legislativo supremo que asse- gure o meu direito e ao qual eu garanta o seu direito», não pode então compreender-se onde é que eu quero basear a minha confiança no meu direito, se não existir o substituto da federação das sociedades civis, a saber, o federalismo livre, que a razão deve necessáriamente vincular com o conceito do direito das gentes, se é que neste ainda resta alguma coisa para pensar. No conceito do direitto das gentes enquanto direito para a guerra nada se pode realmente pensar (porque seria um direito que determina- ria o que é justo segundo máximas unilaterais do poder, e não segundo

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