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Este documento discute a interdisciplinaridade entre direito e psicologia no contexto do conflito familiar violento. Ivonete araújo carvalho lima granjeiro, advogada e mestre em psicologia clínica, aborda a importância da interdisciplinaridade para um abordagem mais humana e eficaz do direito. O texto explora a evolução do direito brasileiro em relação à família e o estado, a complexidade da violência familiar e a necessidade de uma abordagem interdisciplinar para seu estudo. Além disso, o documento discute as perspectivas de diferentes atores envolvidos no processo judicial, como juízes, promotoras, psicólogas e defensores públicos.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de estudo
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Brasília a. 47 n. 185 jan./mar. 2010 195
Sumário
Esta pesquisa foi realizada com o obje- tivo de estudar as ações dos profissionais do Direito e da Psicologia que atuam em Vara Criminal dentro da perspectiva do relatório psicossocial, documento elabo- rado pelos técnicos do Setor Psicossocial, com o intuito de analisar as situações de violência intrafamiliar. Procuramos propor um pensamento integrador, dentro das competências e do contexto de trabalho de cada um, passando do pensamento sim- plificador para uma perspectiva complexa (MORIN, 1990, 2000). Buscamos a coerência a esse ponto, até mesmo na relação entre as duas pesquisadoras: uma é Bacharela em Direito e a outra é Psicóloga. Dentro da perspectiva do pensamento sistêmico novo-paradigmático (VASCON- CELLOS, 2002), o observador faz parte do sistema; no entanto, deve-se levar em con- sideração a complexidade dos fenômenos para a sua compreensão. O ordenamento jurídico positivado não tem conseguido dar conta de acontecimentos complexos e multifacetados que exigem do julgador
Ivonete Araújo Carvalho Lima Granjeiro é Advogada, Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília, Professora da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Brasília. Liana Fortunato Costa é Psicóloga, Tera- peuta Familiar, Psicodramatista, Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo, Docente Permanente do Departamen- to de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília.
Ivonete Araújo Carvalho Lima Granjeiro Liana Fortunato Costa
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já uma nova maneira de pensar juridica- mente – que afasta a concepção formalista kelsiana e o seu dogmatismo jurídico (RUBIO; FLORES, 2004) e defende um agir com reflexividade para uma atuação com relevância jurídica, em que os valores, as necessidades e o conceito de Justiça são os melhores argumentos para interpretar e aplicar uma norma jurídica. Essa nova forma de pensar integra conhecimentos, realiza ações, privilegia, ao mesmo tempo, a diversidade e a unicidade, o sujeito – seja individual ou coletivo –, o contexto social do autor e do réu e busca uma articulação entre as diversidades, com a aplicação de diversos saberes.
A família sofreu, nas últimas décadas, profundas mudanças de função, de na- tureza, de composição e, até mesmo, de concepção. Isso se deveu, principalmente, ao aparecimento do Estado Social. O ideal liberal burguês afastou a ideia do aspecto econômico dirigido pelo político, super- valorizou o aspecto econômico e transfor- mou o político em súdito do econômico. Bonavides (1996) salienta que, antes do Estado Liberal, o político era o poder do rei, e este tinha ascendência sobre o econô- mico. Depois, a burguesia, que se tornou o poder econômico, controlava e dirigia o político – a democracia. Segundo esse autor, isso gerou uma das mais furiosas contra- dições do séc. XIX: a liberal-democracia. Como consequência, na visão do Estado Liberal, os direitos das pessoas deveriam acomodar-se de maneira natural por uma liberdade abstrata e formal. Aranha (1999) afirma que os direitos tutelados no Estado Liberal eram limitados por aspectos subjetivos da própria estrutu- ra econômico-social. Não se propunham modificar o mundo, pois a ideia era deixá-lo modificar-se por si mesmo. Dessa forma, o Estado Liberal não apresentava um ca-
ráter prospectivo dos direitos, ou seja, não tinha um olhar para adiante, para longe. O Estado Social surge com força e traz o conteúdo prospectivo, como um Direito que sensibiliza o tecido da existência, busca as projeções do pensamento, volta os olhos para a realidade social e oferece ao homem a possibilidade de se assumir e de influen- ciar as decisões do Estado. O homem volta os olhos para o hacer vital , que, segundo Siches (1948, p. 274), significa determinar o que o homem vai ser, o que vai fazer no próximo instante: “(...) começa por ser o que ainda não sou, começa por ser futuro, em me ocupar do que hei de fazer, ou o que é mesmo, em me preocupar”. O conteúdo prospectivo traduziu-se em dever-ser do Direito. O dever-ser, consoante Aranha (1999), existe não só para incorporar o com- portamento humano, mas, principalmente, para direcioná-lo rumo aos princípios aga- salhados pelo sistema. O Estado Social limitou a própria criação legislativa ao colocar os chamados direitos fundamentais como catálogos prospectivos, o que fez com que se manifestasse a essência do Direito, que é a conformação do presente mediante preceitos para o futuro. Nesse sentido, propôs a objetivação dos direitos, pois a objetividade permite que o Direito seja algo mensurável, e é um pressuposto para a definição de núcleos essenciais para a sua atuação. Assim, institucionalizaram- se, por meio de regimes jurídicos especí- ficos, temas jurídicos básicos, oferecendo um olhar humanizado para o Direito. Para Aranha (1999), significou a constatação de que um direito, embora uno abstratamente, via-se fragmentado em diversas gradações de acordo com a condição socioeconômica do ser que o reclamava. Os direitos efe- tivos eram daqueles que tinham o poder para usufruí-los, e o Estado Social buscava diminuir a desigualdade de forças, que enfraquecia a liberdade abstrata. Foi nesse contexto que o Estado legis- lador passou a se interessar de forma mais clara e incisiva pelas relações de família,
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agressão física. Incluem-se a violência mo- ral – relacionada à dignidade da mulher como pessoa humana – e a patrimonial, que acontece quando seus bens são reti- rados de sua posse. Além disso, o projeto prevê aumento de pena para lesão corporal praticada contra integrante da família ou companheiro, passando de detenção de seis meses a um ano, para detenção de três meses a três anos. Haverá aumento da pena em 1/3 quando o crime for praticado contra pessoa com deficiência. Os crimes de violência doméstica contra a mulher sairão da competência dos Juizados Es- peciais Criminais, uma vez que essa lei prevê a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência para os processos civis e criminais. Todavia, melhor seria que esses juizados tivessem competência para julgar quaisquer crimes cometidos em âmbito doméstico, entre eles o abuso sexual contra crianças e adolescentes. O jurista pode fundar as bases de uma nova cultura, mais democrática – porque pluralista –, mais humanista, multidisci- plinar, transformadora e apta a realizar as promessas do Direito. O Magistrado pode deixar de adotar o modelo de Juiz-árbitro- declarante do Direito e se transformar em Juiz-acompanhante-participante. Do Juiz onipotente ao Juiz comprometido, não em dar uma resposta pronta, acabada para a situação conflituosa, mas com o resultado concreto de sua decisão. “Do juiz solitário (...) ao juiz chefe e membro de uma equipe (...). Do juiz imóvel (...) ao juiz participante que intervém na família e que a mobiliza com sua própria história de vida” (CÁR- DENAS, 1998, p. 61).
A violência intrafamiliar, principalmen- te a violência contra a mulher, a criança e o adolescente, não pode ser vista apenas pelo olhar jurídico, sem interferência das outras áreas de conhecimento. A multiplicidade e
a complexidade de situações de violência intrafamiliar afastam a ideia de que basta aplicar a lei – quando esses problemas che- gam aos tribunais – que os conflitos fami- liares serão resolvidos. A complexidade da violência familiar demanda, em seu estudo e pesquisa, uma perspectiva de construção do conhecimento, com destaque na partici- pação ativa de todos os sujeitos envolvidos no trabalho: a vítima, o réu, o Juiz compe- tente para julgar o conflito, o representante do Ministério Público, o advogado ou o defensor público, a psicóloga, a assistente social e, também, os pesquisadores. O estudo da interdisciplinaridade no conflito familiar violento constitui um fenômeno complexo e multifacetado, e a pesquisa qualitativa preserva a realidade acima do método, porquanto busca no con- texto estudado informações, segundo Demo (2001), que possam ser manipuladas cien- tificamente, a fim de buscar uma melhor compreensão de intervenção e mudança. A perspectiva qualitativa de investigação em Psicologia constitui-se numa opção epistemológica, teórica e ideológica, e não somente em uma questão de método (GON- ZÁLEZ REY, 2002). Para esse autor, a epis- temologia qualitativa possui três princípios, a saber: a) o conhecimento é uma produção construtiva-interpretativa; b) o processo de produção do conhecimento tem um caráter interativo; e c) a significação da singula- ridade possui legitimidade em todo esse processo. Nesse contexto, o conhecimento não é uma realidade externa pré-existente, não é buscado nem descoberto. É o con- texto interativo e relacional que promove o processo criativo de diálogo, reflexão e produção de conhecimento (Idem). O contexto de realização da pesquisa foi o de uma Vara Criminal, e o processo estudado teve como objeto o abuso sexual cometido pelo pai contra duas filhas, uma de um ano e outra de quatro anos. A denún- cia apresentada em agosto de 2003 requereu a condenação do pai das crianças pela prá- tica da infração penal prevista no art. 214,
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caput (atentado violento ao pudor), c/c art. 224, “a” (presunção de violência, por serem as vítimas menores de 14 anos), c/c art. 71 (crime continuado), todos do Código Penal, com incidência das causas de aumento de pena previstas no art. 226, II, do Código Penal (abuso do pátrio poder) e no art. 9 o da Lei 8.072/90 (LEI ..., 1990). Alegou o Ministério Público que o denunciado, senhor Mário 1 , constrangeu suas filhas, Amanda e Mariana, mediante violência presumida em razão da idade das ofendidas, a permitir que com elas fossem praticados atos libidinosos diversos da conjunção carnal, esses consistentes em beijo na boca, seios e vagina, masturbação e tentativa de introdução do pênis na vagina, este último na criança mais velha. Diante da impossibilidade de êxito na inquirição da vítima, pediu o Magistrado o encami- nhamento dos autos ao Setor Psicossocial Forense, a fim de que fosse realizado estudo do caso. Em 2004, o Serviço Psicossocial Forense apresentou relatório técnico do caso, in- cluindo não apenas as crianças, mas tam- bém os seus familiares maternos. O estudo demonstrou que a história de violência denunciada nos autos teve início na geração anterior, fazendo parte de vida não apenas das crianças, mas também de sua mãe. A família da mãe mantinha uma relação de hierarquia exacerbada, a mãe das crianças foi vítima de estupro, aos quinze anos de idade, perpetrado por cinco rapazes. Foi nesse contexto de violência que a mãe das crianças conheceu o denunciado, com quem passou a morar. O relacionamento do casal foi marcado por fortes episódios de violên- cia física, verbal e sexual. Após um longo período de brigas e desentendimentos, o par parental deixou de manter relaciona- mento sexual, caracterizando separação de corpos. Nesse período, a mãe das meninas identificou um comportamento de mastur- bação das filhas, o que a levou a consultar
(^1) Todos os nomes citados neste trabalho são fictícios.
um médico. Detectada a violência, a mãe procurou a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente. Os participantes desta pesquisa foram: três operadores do Direito: o Juiz da cau- sa: 45 anos, quem proferiu a sentença; a Promotora de Justiça: 28 anos, não fez a denúncia, pois substituiu outro promotor; a Defensora Pública: 28 anos, não acom- panhou o processo desde o início; e duas profissionais psicossociais: a Psicóloga: 42 anos, acompanhou o caso sob análise desde o início; a Assistente Social: 35 anos, acom- panhou o caso sob análise desde o início. As entrevistas foram realizadas nos locais de trabalho dos sujeitos. Os instrumentos para a investigação foram entrevistas semiestruturadas gra- vadas em fitas de gravador e transcritas, posteriormente, para análise dos dados. A identidade de todos os participantes da pesquisa foi preservada. A metodologia de análise escolhida foi a Hermenêutica de Profundidade, conhecida como HP, que se constitui em um referen- cial metodológico geral, que tem como enfoque aceitar e levar em consideração as maneiras em que as formas simbólicas são interpretadas pelos sujeitos que constituem o campo-sujeito-objeto. Nessa perspectiva, deve-se conceder um papel central ao pro- cesso de interpretação da vida quotidiana, pois o estudo das formas simbólicas é fundamentalmente um problema de com- preensão e interpretação. “A hermenêutica da vida quotidiana é um ponto de partida primordial e inevitável do enfoque da HP” (THOMPSON, 2002, p. 363).
A complementaridade e a interdisciplinaridade O Direito e a Psicologia são ciências incompatíveis entre si? Como fazer para es- tabelecer elos entre a Psicologia e o Direito? É possível criar uma prática interdisciplinar entre essas duas áreas de conhecimento?
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A existência de uma realidade única, com uma única descrição, leva à construção de uma melhor ou única versão, “um uni- verso , que corresponda à verdade sobre essa realidade” (VASCONCELLOS, 2002, p. 90). E somente o especialista no assunto pode manifestar-se sobre essa verdade. O distanciamento entre o sujeito e o objeto, entre o observador e o sistema observado, afasta a possibilidade de a pesquisa ser contaminada pela subjetivi- dade do pesquisador. Exemplo disso são algumas manifestações que se ouvem nas Faculdades de Direito e nos corredores dos tribunais, tais como: “cabe ao juiz analisar os fatos e as provas e, de forma imparcial, proferir a sentença”; “o juiz pode não ser neutro, mas deve ser imparcial”; “o que não está nos autos não está no mundo jurídico”, entre outras. Essas manifestações demons- tram que, para Vasconcellos (2002, p. 92), “a concepção é de que existe uma justiça melhor a ser feita, que é a que está expressa pela lei, sendo o juiz apenas um instrumen- to de manifestação dessa justiça”. A construção desse quadro permite afirmar que o Direito – entendido no seu paradigma positivista – se fundamenta na lei, é objetivo, separado das outras áreas de conhecimento, e o processo jurisdicional de tutela do Estado, este representado pelo Juiz, transforma-se em uma atividade ex- tremamente formalista e hierarquizada em que os operadores do Direito, especialmen- te o Juiz, classificam-se como aplicadores da lei. A lei apresenta-se como a melhor solução, e o fato jurídico é separado do fato social, do fato psicológico. “(...) o Direito trata a matéria de for- ma bem técnica e nós precisamos só de provas (...). Judicialmente, a nossa lei não exige que o Juiz se aprofunde nessas questões de sequelas emo- cionais ou nessa intervenção mais rápida para evitar a continuação da violência”. (Juiz) O discurso do Juiz acima apresentado corrobora a ideia de que o pensamento
jurídico tradicional continua a remar para uma concepção jurídica de que o ideal- tipo da atuação do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública é o da aplicação do Direito estatal (como encontrado nos manuais de Direito), dentro de uma abordagem de isolamento dos sabe- res, em que o Direito (estatal, autoritário e burguês) é uma caixinha de conhecimentos isolada das outras áreas, é enciclopédico, fragmentado, especializado e disciplinari- zado. O Direito preocupa-se, tão somente, com a precisão dos detalhes (tipos penais, por exemplo), com a produção das provas, com a prolação da sentença. Afasta-se da intersubjetividade do réu e da vítima, pois precisa avaliar, julgar e condenar uma única pessoa e, para isso, tira essa pessoa de seu contexto, de suas relações. Nesses termos, a lei se apresenta tão maravilho- samente complexa que qualquer tentativa de incluir as emoções, de contextualizar as pessoas envolvidas em um conflito judicial poderia obscurecê-la. Nesse panorama, o ser humano perde a sua individualidade, vê-se encerrado, acorrentado à sua própria condição de “parte”, e não de pessoa, e encontra-se reduzido a um mero elemento nesse processo. Como afirma Delmas- Marty (2002, p. 257), “no campo jurídico a humanidade ainda é recém-nascida”. Esquecem-se os profissionais do Direito de que é necessário questionar o próprio pensamento jurídico dominante, a fim de construir um processo de “hominização jurídica” (DELMAS-MARTY, 2002, p. 266), em que o Direito seja direcionado a uma vocação humanista, universal, sistêmica, pluralista e evolutiva. Morin (2002a, p. 559) afirma que a complexidade “(...) é um problema, é um desafio e não uma resposta”. A palavra complexus significa “o que está ligado, o que está tecido” (MORIN, 2002a, p. 564). Refere-se a um conjunto cujos constituin- tes heterogêneos estão inseparavelmente associados e integrados, sendo ao mesmo tempo uno e múltiplo. Vasconcellos (2002,
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p. 110) entende que a melhor pergunta, dentro de um quadro referencial de ciên- cia novo-paradigmática, seria: “como se concebe a complexidade?”. Assim, citando Wittgenstein (1921, p. 110), percebe que “o complexo significa perceber que suas partes constitutivas se comportam umas em rela- ção às outras, de tal ou qual modo [e que] não podemos nem imaginar um objeto a não ser em conexão com outros objetos”. A fim de pensar complexamente, é ne- cessário mudar de convicções e de atitudes: afastar-se da crença de que o objeto de es- tudo – o elemento ou o indivíduo – deverá ser delimitado para ser entendido. Pelo contrário, a delimitação simplifica o objeto e o afasta de seu contexto. Morin (2002a) apre- goa que os princípios de explicação do fenô- meno jurídico, por exemplo, passaram por um pensamento de simplificação, no qual a aparente complexidade das coisas pudesse ser explicada por meio de procedimentos de separação e redução dos fenômenos. Então, não resta dúvida de que, para realizar a contextualização do objeto ou problema, faz-se mister proceder a um exer- cício de “ampliação de foco, o que nos leva a ver sistemas amplos ” (VASCONCELLOS, 2002, p. 112). “(...) o Juiz conhece só o Direito. Pou- cos juízes têm vivência prática, pri- meiro vivência prática, convivência com a violência. A maioria dos nossos juízes é retirada da classe média, mé- dia alta (...), não convivem com esse tipo de violência”. (Juiz) “(...) no Direito eu só tenho duas possibilidades: condeno ou absolvo, e não pode ser para o bem do Estado, para o bem da coletividade, para o bem das vítimas, não é para o bem de ninguém que eu condeno, eu condeno para realizar o Direito, para realizar o tipo penal, para realizar a vontade do Direito Penal e, aí, eu fico de mãos atadas”. (Juiz) Essas palavras deixam claro que o re- crutamento de futuros juízes se dá, primor-
dialmente, pelo conhecimento do Direito positivado. Não há preocupação com o domínio de outras áreas do conhecimento e com a construção de uma capacidade de análise e pensamento crítico sobre as questões que se encontram em julgamento. Os juízes são levados a construir represen- tações, noções e crenças que governam a tomada de posição concreta em relação ao processo judiciário e a sua produção teóri- ca. A isso Warat (1993, p. 101) denominou “senso comum teórico dos juristas”. Essa montagem condiciona ideologicamente o trabalho profissional dos juristas. Constrói-se, assim, um apanágio à lei. Só ela tem validade e importância. Ignora- se qualquer possibilidade de estudar a complexidade dos fenômenos que lhes são apresentados, no caso da violência, v. g. , o contexto em que se inserem as pesso- as, as famílias, as instituições, no qual se constituem as redes sociais e no qual se desenvolvem as políticas sociais. Nesse diapasão, “o saber jurídico emana da ne- cessidade de justificar a ordem jurídica, e não de explicá-la” (WARAT, 1993, p.
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versa com a Psicóloga as provas necessárias para acusar e julgar o réu. Afastam-se, dessa forma, das ideias apresentadas pela Psicóloga, que deseja mais que um diálogo rápido acerca do caso sob análise, mas o estabelecimento de um código de trabalho conjunto entre o Setor Psicossocial e a Ins- tituição Judiciária, principalmente. Outro ponto relevante a destacar nessas falas é que os juristas reconhecem a com- plexidade, a intersubjetividade e o contexto dos fenômenos que lhes são apresentados, mas não conseguem ainda integrar. Contu- do, isso não é um pecado, é um momento, pois lhes faltam condições de formulação teórica e cognitiva para avançar nessa pers- pectiva, na medida em que foram condicio- nados a pensar em um Direito indelével, estável, ordenado e previsível. “(...) o que eu retiro do relatório, o que eu busco na história do relatório é uma constatação de que aquilo que está sendo contado, que está sendo relatado ali não é uma fantasia, uma fantasia engendrada por alguém, uma história, história contada para que a criança repita (...). mas, se eu tenho o relatório psicossocial, (...) eu tenho o meu convencimento (...), se o relatório vier me dizendo que há dúvidas quanto à veracidade dos fatos narrados, a minha maneira de abordagem vai ser diferente”. (Juiz) “(...) eu não citei o laudo em nenhum momento no processo, mas eu mudei a minha defesa por causa do laudo. Eu ia sustentar que ela poderia está inventando, como tem vários casos aqui, e porque foi para esse lado que o interrogatório dele caminhou. Ti- nham lotes que eles queriam dividir, não sei o quê, então eu ia levar para esse lado. Aí eu comecei a fazer a defesa (...) daí eu cheguei aqui e falei não, não vou alegar, a acusação foi estritamente técnica, aleguei um ne- gócio que não vai colar no Tribunal”. (Defensora)
Por fim, Vasconcellos (2002, p. 102) apresenta a terceira dimensão da ciência contemporânea emergente, que é a inter- subjetividade na constituição do conhe- cimento. Trata-se da impossibilidade da existência de uma realidade independente de um observador, de um conhecimento objetivo do mundo. O conhecimento cien- tífico é uma construção social, “em espaços consensuais, por diferentes sujeitos/obser- vadores. Como consequência, o cientista coloca a ‘objetividade entre parênteses’ e trabalha admitindo autenticamente o multi-versa : múltiplas versões da realida- de, em diferentes domínios linguísticos de explicações”. Vasconcellos (2002, p. 132) expõe a ideia de Morin (1983) de que, “nas ciências so- ciais, é ilusório acreditar-se que se elimina o observador. O sociólogo não apenas está na sociedade; conforme a concepção hologramática, a sociedade também está nele; ele é possuído pela cultura que ele possui”. Como analogia, é possível afir- mar que a intersubjetividade do Juiz está presente na sentença que profere, como a intersubjetividade do Promotor está na denúncia que oferece ao Poder Judiciário, e assim por diante. Não obstante a tentativa de objetividade a que o Direito se propõe, é praticamente impossível em um mesmo caso (de abuso sexual contra criança, v. g. ) receber sentenças iguais – quantidade de anos, meses, dias –, quando julgado por juízes diferentes. Isso demonstra que a sentença não é um relatório impessoal. Se o fosse, bastaria criar um programa de computador especial para julgar os casos colocados em juízo. O computador recebe- ria as informações concernentes ao processo e, imediatamente, proferiria a sentença. Mas não haveria subjetividade também nessa programação? Quem a fez não foi uma pessoa, dotada de crenças, costumes e influenciada pelo meio em que vive? O quadro acima propõe o relativis- mo do conhecimento; “o conhecimento é relativo às condições de observação; o
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cientista conhecerá o fenômeno no estado em que escolher produzi-lo e descrevê-lo” (VASCONCELLOS, 2002, p. 133). Essa perspectiva de escolha fica associada à ideia de complementaridade: a realidade é cheia de relevos complexos, mas um só caminho não poderia levá-los ao conhecimento como um todo. “(...) a complementaridade está mais relacionada ao fato de o nosso parecer ser aceito ou não (...). Eu posso fazer um parecer que vai influenciar ou não Juiz, que vai subsidiar ou não a decisão do Juiz, e vai depender muito de como esse Juiz aceita o meu conhecimento, aí, quando esse conhecimento é aceito, eu acho que há complementaridade”. (Psicóloga) “(...) mas eu acredito que, se o Juiz cita o relatório na sentença, ele não está meramente reproduzindo, não. A sua reprodução indica algum nível de integração, que ponto essa integra- ção é realizada eu acho que só o Juiz que utilizou poderia passar isso para você. Ele tem o conhecimento de que aquilo é crime, que dá tanto e tanto tempo de prisão, com mais a minha, o meu conhecimento que foi produzido em cima das consequências, ou da ve- racidade dos relatos, ou do contexto que é construído e favorece aquilo, eu acho que ele junta tudo para poder fazer um julgamento, eu acho que a integração existe”. (Psicóloga) “(...) eu acho que a complementarida- de vem em que o nosso conhecimen- to, a nossa competência de alguma forma reforça a competência do ou- tro, ressalta, ou aumenta, ou amplia, ou acrescenta, então eu acho que o que falta na complementaridade é na relação”. (Psicóloga) “(...) na denúncia não (...), na denún- cia não pode constar nenhum juízo de valor, o que a gente faz é objeti- vamente dizer, por exemplo, se eu tenho um laudo que fala, a criança
manipulando os brinquedinhos, (...), demonstrou que o pai pegou o pênis e esfregou em suas pernas, aí eu coloco conforme se apurou (...), então eu não posso me reportar ao relatório, mas eu extraio os fatos do relatório e coloco na denúncia”. (Promotora) “(...) onde é que eu encaixo o relatório na minha decisão? Eu descrevo os fatos (...), uso o relatório como sendo o parágrafo de conclusão, como sen- do a coroação de tudo isso, falando também qual foi a impressão que tiveram as profissionais que lidam com o comportamento humano, os profissionais do psicossocial tiraram a mesma conclusão a que chego, a de que efetivamente o réu agrediu as vítimas”. (Juiz) “(...) não citei o laudo em nenhum momento, mas eu mudei minha defe- sa por causa do laudo”. (Defensora) “(...) eu acho que o nosso trabalho é muito complementar, assim, auxilia bastante no sentido de que a gente lida diretamente com a família, com as pessoas envolvidas no processo e é um complemento com as provas, com a parte legal do processo. Então, assim, é como o Juiz, nós somos um (...) eu vou usar isso, um braço do Juiz, uma assessoria”. (Assistente Social) Os trechos acima indicam que o campo de interação – de acordo com a Hermenêu- tica de Profundidade – entre a Psicologia e o Direito se realiza numa dimensão comple- mentar. A leitura jurídica afasta a perspecti- va de compreensão do ato da violência – o seu significado simbólico, que se inscreve em um contexto familiar ou social mais amplo – e utiliza as informações contidas no estudo psicossocial para complementar o ato de acusar, defender e julgar. O termo “nós somos um (...) braço do juiz”, interpretado e reinterpretado dentro da HP – utilizado pela Assistente Social, confirma essa tese. O Juiz é um corpo, é mais importante. Se um braço lhe faltar, o corpo
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entre elas, caracterizando-se uma interdis- ciplinaridade” (VASCONCELLOS, 2002, p. 114). A atitude interdisciplinar é uma tentati- va de busca do saber unificado para, assim, preservar a integridade do pensamento e o restabelecimento da ordem perdida pela fragmentação dos saberes. A tônica da ati- tude/ação interdisciplinar é a supressão do monólogo e a fundação de uma prática/re- lação dialógica. Para tanto, faz-se necessária a eliminação de quaisquer barreiras entre as áreas de conhecimento e entre as pessoas que pretendem desenvolvê-la. “(...) então, quando nós pudermos somar a Psicologia ao Direito, e nós podemos, nós vamos somar a polpa à casca, como se o Direito olhasse sempre para a casca e a Psicologia pu- desse expressar o que está na polpa, e, se eu posso somar isso, certamente eu vou ter mais informações, mais subsídios para aplicar o justo, além do Direito, aplicar o justo”. (Juiz) “(...) para mim, é essencial a con- tribuição da Psicologia, porque são temas que o Direito não se aprofunda no conhecimento em sua formação. A formação de nenhum advogado, Juiz vai aprofundar conhecimento sobre o fenômeno, sobre as relações, sobre a intersubjetividade, a intra- subjetividade. Isso é específico de cada formação, embora eu ache que quem é formado em Direito tem algum acesso a alguma informação, mas ainda assim não tem o aprofun- damento, não tem a possibilidade, até porque não compete, e, assim ele vai desvirtuar uma coisa que, às vezes, ele poderia até aperfeiçoar. Aí eu acho que vem a interdisciplinaridade, que é aquilo que eu vou a fundo para conhecer”. (Psicóloga) “(...) a gente está construindo uma parceria, a gente entende que a par- ceria é lado a lado, igual para igual”. (Assistente Social)
“(...) eu acho que pode ser feito um trabalho em conjunto, não só no nível do processo, porque eu acho que o Poder Judiciário e o Ministério Público têm condições de trabalhar extraprocesso para resolver deter- minadas coisas (...), é possível, sim, a gente fazer um trabalho em conjunto, não dos psicólogos complementarem o nosso trabalho, mas é possível nós fazermos um trabalho juntos para re- solver esses problemas de violência”. (Promotora) “(...) eu gosto muito dessa parte da Psicologia, assim, sabe, eu acho até que você me deu uma idéia boa de, sei lá, para eu tirar uma dúvida, alguma coisa e conversar com as psi- cólogas.” (Defensora Pública) A interpretação, de acordo com o mé- todo da Hermenêutica de Profundidade, implica um movimento novo de pensa- mento, por construção criativa de possíveis significados –, com o objetivo de buscar uma explicação interpretativa do que está representado ou do que é dito. Nesse sen- tido, o Juiz deixa claro que o seu trabalho é aplicar o Direito. Ele dissocia o Direito da Justiça e entende que só com a soma da Psicologia (a polpa) e o Direito (a casca) é possível aplicar a Justiça ao caso concreto. Mas somar significa juntar, e não neces- sariamente discutir e trocar. Ele pensa na possibilidade da construção de uma relação dialógica entre essas áreas, a despeito de ter utilizado o termo somar, mas se demonstra acorrentado ao formalismo do processo, à hierarquia da instituição, às exigências da lei. Ao mesmo tempo, mostra-se inseguro e perdido em como estabelecer essas práticas interdisciplinares, em como vencer o leão do Direito estatal e buscar novas alternati- vas para a atividade jurídica de julgar. A Psicóloga reconhece a incapacidade de o jurista promover a Justiça sem um relacionamento efetivo com a Psicologia e propõe a interdisciplinaridade como um exercício do diálogo para que novos
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conhecimentos, novas posturas, novos in- dicadores, novas possibilidades de trabalho sejam estabelecidas. A Promotora, ao lado da Psicóloga, avança muito. Para ela, o Direito e a Psicologia podem construir um relacionamento extraprocessual, isto é, para alguns casos, é possível incitar o diálogo, a resolução de um problema de violência, por exemplo, sem a instauração de um processo judicial. Isso se apresenta como uma com- preensão do movimento dialético, ou seja, segundo Barros (2005, p. 3), “rever o velho para torná-lo novo, tornando novo o velho (...) o velho sempre pode tornar-se novo e há sempre algo de velho no novo. Velho e novo, faces da mesma moeda, depende apenas da visão de quem lê, se o faz disci- plinar ou interdisciplinarmente”.
A construção de uma parceria, de uma relação lado a lado e de igual para igual é o caminho a ser perseguido pelos pro- fissionais da área jurídica e psicológica. Para tanto, Fazenda (1991) aponta que é primordial o pensar interdisciplinar a partir da premissa de que nenhuma forma de conhecimento é em si mesma exaustiva. O diálogo com outras fontes do saber e a atitude de se deixar irrigar por elas significa transformar-se por dentro e, ao mesmo tem- po, criar condições exteriores para mudar o mundo do saber. O paradigma da parceria é premissa maior da interdisciplinaridade (FAZENDA, 1991). Os profissionais que pretendem ser interdisciplinares não são solitários, são parceiros: parceiros de pa- res, parceiros das pessoas envolvidas em um conflito judicial, parceiros dos outros órgãos da instituição em que trabalham, parceiros na promoção da Justiça. O com- prometimento é com a totalidade, ou seja, com a interdisciplinaridade. Não cabe, aqui, o saber que apenas perquire (o pe- dido do laudo psicossocial) e responde (a resposta à pergunta com a apresentação de um relatório).
O que cabe, efetivamente, é redefinir conceitos, posturas e enfoques para, as- sim, promover a unificação dos saberes, com um olhar que permitirá uma reflexão aprofundada, crítica e salutar, sobre o funcionamento do ato de analisar psicolo- gicamente uma pessoa, de acusá-la de um crime, de defendê-la e de julgá-la. A inter- disciplinaridade pode ser considerada um meio de conseguir uma certa aproximação entre o pensado, o vivido e o executado, a partir da inter-relação de múltiplas e variadas experiências e, também, como uma forma de compreender e modificar o mundo, pois, segundo Fazenda (1991, p. 32), “sendo o homem agente e paciente da realidade do mundo, torna-se necessário um conhecimento efetivo dessa realidade em seus múltiplos aspectos”. O exercício da interdisciplinaridade exige a construção de um projeto coletivo de trabalho, com a intenção de revelar possibilidades, de acrescentar, consolidar, impulsionar e valorizar o pensar e o agir dos parceiros. Para tanto, é indispensável “dar-se a conhecer”, “falar”, “dizer” e rever as práticas individuais num contexto coleti- vo, uma vez que essa revisão pode tornar-se mais que apenas geradora de opinião; pode transformar-se em fundamento do saber (FAZENDA, 1991). Executar esse projeto coletivo interdis- ciplinar pressupõe não só compreender as implicações teórico-práticas desse trabalho, mas vivenciar todas as contradições que o fenômeno complexo, no caso o abuso sexual contra crianças no âmbito familiar, poderá desencadear no desenvolvimento das práti- cas interdisciplinares. Mas como desenvol- ver essas práticas? É possível criar um rol de procedimentos a serem seguidos? Não há como estabelecer um rol de ativi- dades interdisciplinares para resolver esta ou aquela questão. O seu estabelecimento levaria ao erro do tecnicismo, ou seja, à criação de modelos de comportamentos, de procedimentos e técnicas necessárias – apenas – ao arranjo e controle das condições