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Uma análise da evolução das interpretações críticas da personagem capitu, no romance dom casmurro, de machado de assis, ao longo do século xx. O texto discute como as transformações sociais influenciaram as interpretações da traição, e o papel da mulher na sociedade brasileira. O estudo também examina as leis vigentes sobre adultério na época da publicação do romance e sua importância para a compreensão da organização social.
O que você vai aprender
Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas
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O estudo apresentado pretende mostrar como as transformações sociais no decorrer do século XX, influenciaram as interpretações críticas da per- sonagem Capitu, do livro Dom Casmurro. O trabalho pretende ainda abordar características da segunda onda feminista brasileira que ocorreu entre 1970 e 1980 e analisar como as transformações advindas com o movimento, influenciaram nas interpretações feitas pela crítica literária à personagem.
PALAvRAS - CHAvE Crítica literária, Capitu, Dom Casmurro, Segunda Onda Feminista.
INTRODUÇãO
romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, teve sua primeira publicação no ano de 1899. A ênfase da narrativa re- pousa na relação entre Capitu e Bentinho, um ex-seminarista que se casou com sua vizinha e amiga de infância. No início do livro os leitores são apresentados ao narrador que é o próprio personagem Bentinho em uma idade já avançada e que resolveu, por intermédio da es- crita, reviver acontecimentos da mocidade. No decorrer do livro a personalidade das personagens foram construí- das por Machado de Assis de forma aprofundada e Bentinho se descreverá como ciumento em inúmeras ocasiões. Entre os diversos capítulos do livro, várias cenas de ciúmes serão descritas e este será o ponto chave do livro: a desconfiança de Bentinho sobre a suposta traição de Capitu com seu ami-
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go, o comerciante Escobar. A narrativa não traz nenhuma prova que concretize a suspeita, a desconfiança do marido é suficiente para que o casamento seja arruinado e que Capitu e seu filho Ezequiel, que segundo o narrador pode ser fruto dessa traição, deixem o Brasil e se mudem para a Suíça. As interpretações do romance, afirmando ou desmentindo a suposta traição, variam de acordo com o período em que estão inseridas e podem ser utilizadas não só para compreensão das transformações da sociedade brasileira, mas também para analisar qual foi o papel da mulher ao longo do século XX.
Observar as leis vigentes que tratam do adultério no período da publicação de Dom Casmurro , é necessário para a compreensão da organização social da época e também para analisar as estruturas do Estado em relação ao controle social.
O Decreto de n° 847, de 11 de outubro de 1890, promulgou, o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil. O artigo 279 desse Código Penal, traz as seguintes resoluções (BRASIL, 1890):
art. 279. A mulher casada que cometer adultério será punida com a pena de prisão celular de um a três anos
§ 1º Em igual pena incorrerá:
1º O marido que tiver concubina teúda e manteúda;
2º A concubina;
3º O co-réo adultero. De acordo com o Caput do artigo 279, o adultério feminino é considerado crime e cabe a ele a pena de prisão que variava de um a três anos. Quanto ao adultério masculino, o ma- rido só seria penalizado caso mantivesse “concubina teúda ou manteúda”. De acordo com a análise de Andrea Borelli,
deve-se observar que “ter teúda e manteúda” indicava a existência de uma mulher que era sustentada pelo homem em questão. Neste ponto, a le- gislação era tremendamente coerente ao punir o homem que “desviava” dinheiro de sua família constituída legalmente, para esta outra. Deve-se ter em vista que o Código Civil considerava o sustento da família uma das obrigações principais do marido e, sob esse prisma, pode-se considerar que a traição masculina só constituía, para os juristas, uma ameaça verda- deira quando colocava em risco o sustento confortável da esposa legítima e dos filhos (BORELLI, 2002, p.4).
O adultério feminino seria então um ato contra a estrutura familiar burguesa, visto que, ainda de acordo com a socióloga Maria Ângela D’Incao (2002), as mulheres depois de ca- sadas assumiam um novo papel social, cabendo a elas demonstrar na sociedade, o nome da família e do marido, seguindo regras que eram consideradas de boa conduta. Os homens ficavam então dependentes da imagem da esposa para traduzir ao restante das pessoas, qual o seu nível social. Sendo assim, ter uma esposa infiel nesta sociedade, era uma mancha no nome da família.
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que seu casamento ocorresse dentro dos moldes vigentes na sociedade. Nas classes mais bai- xas, nota-se que a liberdade de amar, tenha sido um pouco maior do que a das mulheres burguesas. De acordo com Mary Del Priori,
O que a literatura do período informa, é que a mulher das classes baixas, ou sem tantos recursos, teve maiores possibilidades de poder amar pessoas de sua condição social, uma vez que o amor, ou expressão da sexualidade, caso levasse a uma união, não comprometeria as pressões de interesses políticos e econômicos (DEL PRIORI, 2002, p.234).
O casamento era também uma forma de distinção entre as mulheres. As mulheres pobres que não tinham dote, recorriam ao concubinato. Não eram só as questões burocráticas que afastavam a maior parte da população do matrimônio oficial, mas também a questão finan- ceira, devido à impossibilidade do homem de exercer o papel que a sociedade exigia, o papel de mantenedor do lar, já que homens pertencentes as classes mais baixas não ganhavam o suficiente para garantir sozinho o sustento de uma família. De acordo com Rachel Soiher:
as moças brancas, mas pobres sem dotes e sem casamento, abandonavam o sobrenome da família para viver em concubinatos discretos, usando ape- nas os primeiros nomes. Assim, concubinas, mães solteiras ou filhas ilegí- timas viviam em sua maioria no anonimato. A vida familiar destinava-se, especialmente,às mulheres das camadas mais elevadas da sociedade, para as quais se fomentavam as aspirações ao casamento e filhos […] Este com- portamento, no entanto, não chegava a transformar a maneira pela qual a cultura dominante encarava a questão da virgindade(SOIHER, 2002, p.368) Se a virgindade antes do casamento era necessária para garantir que o sistema de heran- ças fosse efetivo, o adultério feminino era então, além de uma mancha no nome da família, também uma quebra no sistema de heranças, visto que, como cabia ao homem o papel de ga- rantir o sustento da casa, poderia ele, no caso de adultério de sua esposa, sustentar um filho de outro homem. Ainda de acordo com Mary Del Priori (2005), eram poucos os homens que assumiam as crianças que eram frutos do adultério de suas esposas e nas classes menos favo- recidas o adultério feminino ainda podia, corriqueiramente, acabar em crimes passionais.
O código Penal de 1890, deixava brechas para que este tipo de crime fosse cometido. No artigo 27 que tem como título “Não são criminosos”, lê-se no inciso 4° a seguinte frase: “Os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime.” (BRASIL, decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890, art° 27). Ou seja, a legislação abria brechas para que os crimes passionais não fossem punidos. Lavar a honra com sangue era então, juridicamente justificável a partir desse inciso, visto que a defesa do criminoso o utilizava em beneficio de seu cliente. Dizia-se então que o crime havia sido come- tido quando o homem estava cego de ciúmes e fúria.
A condenação sobre os crimes de adultério levavam em conta a conduta que ambos, homem e mulher tinham em sociedade. Segundo Martha de Abreu,
o padrão de honestidade estava associado ao comportamento e à conduta social. O intuito do sistema jurídico não era apenas estabelecer a verdade e determinar o autor. A conduta total dos indivíduos é que iria ou não redimi-los de um crime; não estava em questão o que definitivamente havia ocorrido, mas aquilo que acusado e ofendida eram, poderiam ser ou seriam.(MEDEIROS, 1998 apud Conceição, 2002)
A INFLUÊNCIA DO CONTEXTO HISTÓRICO NAS INTERPRETAÇÕES DE CAPITU: D E A D U L T E R A A SÍMBOLODEAUTONOMIA
Uma das características que o homem deveria ter para amenizar o impacto na hora do julgamento do crime de adultério, segundo Antônio Carlos (2002, p.82),era ter um emprego fixo. Seria então descrito como trabalhador, e no âmbito jurídico, essa característica estava associada a honestidade, a lealdade e ao respeito. Ao se tratar da mulher, a característica leva- da em conta na hora do julgamento recaia sobre a questão sexual. Levava-se em consideração se a mulher frequentava bailes, consumia bebidas alcoólicas, ou até mesmo se tinha o hábito de sair sozinha na rua durante a noite
Os crimes passionais estampavam quase que, diariamente, as páginas dos jornais durante as duas primeiras décadas do século XX. Um exemplo de crime passional ocorrido na época foi o assassinato de Maria José dos Santos, aos 22 anos de idade, em 1905. O responsável por sua morte foi seu ex-namorado, Otávio Domelvírio de Alencastro, de 26 anos. Antônio Carlos (2002, p.84) traz informações desse crime que foi publicado no jornal Diário da Bahia, no dia 8 de janeiro de 1905. Ao observar a descrição do acontecimento feita na matéria jornalística, nota-se que havia uma tentativa de desculpabilização do assassino. A reportagem trazia a seguinte frase: “Octávio era um moço de procedimento exemplar, tendo sido levado a esse extremo por violenta paixão amorosa.”(Diário da Bahia, 1905 apud Cândido, 2009). O crime ocorreu após a vítima ter terminado o relacionamento de quase um ano com Octávio, e o mesmo não ter sucesso nas tentativas de reatar com a vítima. Maria foi então atingida com um tiro de revólver e morreu no local do crime.
Outro crime com destaque na mídia foi o Caso Euclides da Cunha, que levou a morte do escritor do livro “Os Sertões”. “A tragédia grega”, como foi chamada por Monteiro Lobato, em qual Euclides estava envolvido, foi exaustivamente explorada pela mídia durantes anos. Segundo Narra Eluf (2009),o início desse caso começou quando, Anna, a mulher de Eucli- des da Cunha, Passou, junto com seus filhos, alguns meses morando com sua tia, enquanto Euclides fazia uma viagem ao Acre. Nesse período Anna conheceu Dilermando, um rapaz de 17 anos, que aspirava ingressar na carreira militar. Os dois passaram se relacionar amorosa- mente e ao voltar de viagem, Euclides encontrou sua mulher grávida do rapaz. Anna deu a luz a criança, mas ela acabou morrendo ainda no período de puerpério, pois Euclides impediu sua mulher de alimentá-la. O relacionamento declinou e após sofrer com a agressividade e o ciúme de seu marido, Anna o abandonou e acabou mudando-se para a casa de Dilermano com seus filhos. No dia 15 de agosto de 1909, Euclides da Cunha, entrou armado na casa de Dilermando e desferiu contra ele diversos tiros, além de atingir o irmão do rapaz. O amante de Anna, nessa época era tenente do exército e acabou atirando contra Euclides. O autor de “Os Sertões” morreu em decorrência dos tiros. Já o tenente foi absolvido, com a justificativa de legitima defesa. Entretanto, a opinião pública condenou Anna e Dilermando. De acordo com Eurico Barbosa (2016) os jornais do período utilizavam os adjetivos “Assassino”, “mons- truoso” para se referirem a Dilermando, mesmo após a sua inocentação. O Jornal “Folha do dia”, publicou no dia 3 de maio de 1913, uma reportagem com o seguinte trecho:
Mais uma vez, compareceu ontem, à barra do júri, Dilermando de Assis, o assassino de Euclides da Cunha. Mais uma vez ainda ficou adiado esse julgamento reclamado pela voz pública, para satisfação a uma sociedade de um delito monstruoso. A falta de alguns jurados deu motivo a esse adiamento. Lá esteve o réu entretanto — audacioso e cínico, a cuspir os seus olhares de escárnio sobre a multidão que o espreitava como um ser desprezível e asqueroso.(Jornal Folha do dia, 03/05/1913, apud. BARBO- SA, 2016).
A INFLUÊNCIA DO CONTEXTO HISTÓRICO NAS INTERPRETAÇÕES DE CAPITU: D E A D U L T E R A A SÍMBOLODEAUTONOMIA
era difícil, fazendo com que, quase sempre, as personagens principais representasse as classes mais elevadas.
Dom Casmurro foi escrito em uma fase na qual seu autor já possuía reconhecimento social e, por isso, podemos encontrar críticas feitas ao texto por escritores reconhecidos. Uma das primeiras críticas feitas à obra, em 1903, foi a do crítico literário José Veríssimo. Veríssimo era amigo de longa data de Machado, os registros das cartas (ROUANET, 2009) de Assis, mostram que os dois trocavam correspondências há anos, tanto para tratar de assuntos pes- soas, como de negócios.
A crítica feita pelo autor em seu livro nos leva a entender como a imagem de Capitu foi interpretada no período de publicação. Veríssimo ao descrever os protagonistas do romance, tanto Capitu com Bentinho , utilizou diversos adjetivos. De acordo com Veríssimo,
Não sei se acerto, atribuindo malícia no pobre Bento Santiago, antes que se fizesse Dom Casmurro. Não, ele era antes ingênuo, simples, cândido, confiante, canhestro. O seu mestre – tortuoso e irresistível mestre! – de desilusões e de enganos, o seu professor, não de melancolia, como outro que inventou o autor de um certo Apólogo, mas de alegria e viveza, foi Capitu, a deliciosa Capitu. Foi ela, como diziam as nossas avós, quem o desamou, e, encantadora Eva, quem ensinou a malícia a este novo Adão. Somente haveria nele adequadas disposições para receber a agradável dou- trina. Também eu duvido que dele sejam as reflexões, as considerações, a luz a que vê as cousas do seu passado. Dom Casmurro traiu e caluniou o Bentinho, o bom menino, o filho amante, o rapaz inocente e respeitoso, o estudante aplicado, o jovem piedoso, o namorado ingênuo, o amigo devotado e confiante, o marido amoroso e crédulo (VERÍSSIMO, 1916 apud SILVA, 2014). Neste fragmento de sua obra, foi atribuído a Bentinho adjetivos como “ingênuo, cândido e simples”. Já ao apresentar Capitu, as características utilizadas são “encantadora e deliciosa”. Além disso, ocorreu também a comparação de Capitu com a personagem bíblica Eva, alusão a certa fonte de pecado que as duas teriam em comum. De acordo com Silva (2014), a utilização desses adjetivos para caracterizar a menina Capitu, não deixam dúvidas que o crítico literário interpretava a personagem como dona de um caráter questionável, onde Capitolina, malicio- sa desde nova, influenciou Bentinho e exerceu sobre ele dominação, possuindo também a capacidade de persuadi-lo frente as adversidades impostas ao romance.
A análise sobre as personagens feita por José Veríssimo foi além. Ao tratar novamente do romance, ressaltou as qualidades atribuídas a Bentinho e a sua moral inquestionável. Para tratar do suposto adultério, utilizou-se das seguintes palavras:
É o caso de um homem inteligente, sem dúvida, mas simples, que desde rapazinho se deixa iludir pela moça que ainda menina amara, que o enfei- tiçara com a sua faceirice calculada, com a sua profunda ciência congênita de dissimulação, a quem ele se dera com todo ardor compatível com o seu temperamento pacato. Ela o enganara com o seu melhor amigo, também um velho amigo de infância, também um dissimulado, sem que ele jamais o percebesse ou desconfiasse. (Verissimo, 1916 apud Silva, 2014) Neste trecho da obra, o argumento que aparece no fragmento anterior do texto continua preservado. Veríssimo deixa claro, aqui e lá, a sua posição sobre o relacionamento onde Ca- pitu é apontada como a culpada da infelicidade do casal, a dissimulada que traiu o marido com o seu melhor amigo, a mulher cujo qual o comportamento social, desde pequena, indi-
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cava a maliciosidade e o espírito faceiro. Ao observar as análises da obra de Machado feitas por seu amigo, é possível concluir que a proximidade entre os dois escritores interferiu nas interpretações. Veríssimo (1981 apud OLIVEIRA, 2006) ao se referir a Machado de Assis, escreve: “um autor extremamente decente e que era impossível em história de um adultério levar mais longe a arte de apenas insinuar, advertir o fato sem jamais indicá-lo”. Aqui os princípios morais do escritor de Dom Casmurro também foram levados em consideração na condenação de Capitu.
É interessante observar que José Veríssimo não é o único a interpretar a personagem ma- chadiana com esses olhares. Outros críticos literários contemporâneos a ele, Como Alfredo Pujol (1917) e Lúcia Miguel Pereira (1936) seguem essa linha de pensamento frente a Capitu. As transformações sobre a ótica na qual a personagem é observada se dão somente nas trocas de adjetivos a ela atribuídos. “cautelosa, pérfida, ardilosa e fingida” (Pujol, 1934,p. 247),são as características atribuídas a Capitu, por Pujol, para quem a personagem soube desde sem- pre esconder o romance do marido. De acordo com ele:
Capitolina – Capitu, como lhe chamava em família – traz o engano e a perfídia nos olhos cheios de sedução e de graça. Dissimulada por índo- le, a insídia é nela, por assim dizer, instintiva e talvez inconsciente (PU- JOL,1934, p. 238). Ou então,
Ardilosa e pérfida, acautelada e fingida, Capitu soube ocultar aos olhos do marido a sua ligação criminosa com Escobar. A verdade aparece a Ben- tinho esgarçada, a espaços, pelos fios tenuíssimos de coisas mínimas, que ele compara umas às outras, nas suas noites de insônia (PUJOL, 1934, p. 247).
Tanto Pujol quanto Veríssimo tratam Capitu como uma mulher cujo comportamento indicava, desde sempre, a sua propensão a traição. Esse crime seria então, quase que natural de uma mulher com o perfil psicológico dela, deixando claro através dos seus atos e do seu temperamento que a traição ocorreria em algum momento. Isso se deve ao perfil da persona- gem, que foge do padrão de mulher recatada e obediente pertencente a sua classe social no período das análises da obra. Cabia a mulher casada obedecer a seu marido, sem questionar ou se intrometer em assuntos financeiros e mantendo o recato que a sociedade lhe impu- nha, através das vestes e da própria conduta social. Um exemplo da conduta da personagem perante a sociedade, pode ser percebido no capítulo CV do livro, intitulado de Os Braços. Trata-se de uma cena de ciúmes sobre os braços da moça, que aqui são descritos como belos e foram deixados a mostra em um baile público. Bentinho nota que os outros homens do sa- lão observavam sua esposa bailar com os braços encobertos por cendal 1. Ao fim do baile, ao comentar com Escobar sobre o ocorrido, o mesmo comenta que parece indecente vestir vesti- dos que deixem os braços de fora. Bentinho pede então a Capitu que cubra os braços quando saírem novamente para ir a bailes, e a personagem atende ao desejo do marido. Durante todo o romance vemos, como na passagem anterior, Capitu quebrar algumas regras sociais. A personagem foi descrita por Machado de Assis, como uma criatura curiosa e inteligente, que sabia dialogar e conquistar objetivos, diferente de Bentinho, que era dominado pelas suas emoções. Na visão desses autores, “tudo deveria ser calmo, tranquilo e suave, como a própria imagem da mulher que a sociedade produzia e cultuava” (WANDERLEY, 1996, p. 51 apud GUALDA, 2008, s/p).
1 Cendal: Tecido transparente e fino
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E assim, as primeiras interpretações do romance marcaram não só a literatura, mas a história social, tornando possível o estudo de como os homens e mulheres daquele período interpretavam, não só os livros, mas a sociedade de um modo geral. Entretanto, na metade no século algumas transformações sociais ocorreram e o papel feminino na sociedade sofreu alterações, fazendo com que a personagem Capitu fosse vista com outros olhos.
Foi a partir da década de 1960, que outro olhar passou a analisar a personagem Capitu. Este momento está relacionado ao contexto histórico e social no qual a sociedade estava passando neste período, e por isso, para compreender a nova interpretação da personagem, faz-se necessário antes, analisar algumas transformações sociais que ocorreram, contempora- neamente, a mudança na crítica literária.
Foi nesta mesma década que diversos movimentos feministas explodiram em diferentes partes dos Estados Unidos e da Europa. De acordo com Celi Regina Pinto (2003), o momen- to político em que esses ideais surgiram, foi um momento de conflito político e social. Guer- ras e conflitos raciais foram, pouco a pouco, derrubando a ideia de prosperidade e harmonia presentes no mito americano, chamado de American way of life. A partir deste processo , novos movimentos sociais de contestação a cultura ganharam força. Fazia parte deste contexto a presença de ideias conservadoras em relação ao conceito de família e do papel das mulheres na sociedade. Ainda de acordo com Pinto,
Nos Estados Unidos, a Guerra da Coreia e, principalmente, a Guerra do Vietnã foram responsáveis pelo fim do sonho americano popularizado no american way of life. O capitalismo norte-americano pós-guerra prometia a prosperidade econômica, o consumo de bens duráveis e reforçava os valores da família e da moral protestante, nos quais a mulher dedicada à família era apresentada como a rainha do lar que comandava com com- petência e felicidade toda a nova parafernália de eletrodomésticos que o boom econômico do pós-guerra possibilitava (PINTO, 2003, p. 41) Ainda segundo a autora, outro fator de destaque que criou bases para a emancipação das mulheres e da luta feminina, tanto americana, quanto europeia, foi o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Ao se envolver em conflitos externos e aumentar a convocação de homens para participar do exército, ocorreu a necessidade de que as vagas de trabalho que esses homens ocupavam fossem preenchidas e com isso, as mulheres passaram a ocupar profissões, antes destinadas a pessoas do sexo masculino. Antes desse processo, apesar de já estarem inseridas no mercado de trabalho, sobrava para as mulheres os piores serviços nas fábricas. Gustavo Garcia, ao tratar dessa questão escreve que “as mulheres estavam expostas a trabalhos prejudiciais à saúde, com longas jornadas, colocando em risco a sua segurança e a sua vida, com salários inferiores aos pagos aos homens” (2010, p.653). Com o fim das guer- ras e a volta dos soldados, as mulheres que tinham assumido os postos de trabalho durante uma escassez de mão de obra masculina, poderiam voltar aos lares, visto que os homens retornaram aos seus empregos, entretanto, isso não aconteceu. As mudanças na economia e o aumento de produção em diversos países, possibilitaram que as mulheres permanecessem no mercado de trabalho, concorrendo as vagas de empregos com homens. Segundo Mozart Victor Russomano,
quando os soldados voltaram das trincheiras, desaparecendo ou dimi- nuindo as causas sociais que estimularam o trabalho das mulheres (...), es- tas, em nome de suas necessidades individuais, se recusaram a abandonar
A INFLUÊNCIA DO CONTEXTO HISTÓRICO NAS INTERPRETAÇÕES DE CAPITU: D E A D U L T E R A A SÍMBOLODEAUTONOMIA
os empregos de que obtinham sustento, mantendo, assim, em razão de causas pessoais, aberta concorrência ao homem adulto, nas várias frentes de trabalho que o desenvolvimento industrial ia, pouco a pouco, multipli- cando e diversificando ( RUSSUMANO, 2004 apud OLIVIÉRI, 2009). Já na Europa, de acordo com Celi Regina Pinto, um dos motivos que impulsionaram o movimento feminista na década de 1960, foi a queda de um outro ideal, a Revolução Socialis- ta. Pouco a pouco, esse sonho de revolução foi se desmanchando, influenciado, por exemplo, por relatos sobre o que estava ocorrendo na União Soviética. Foi nesse contexto que diversos movimentos jovens, como o movimento Hippie , 2 se espalharam pela Europa, contestando os valores sociais do período e trazendo novas opções de comportamento e de modo de vida. A historiadora narra que
a revelação dos crimes stalinistas, a invasão da Hungria, em 1956, e poste- riormente da Tchecoslováquia, em 1968, foram minando a força da luta unitária e da disciplina férrea para derrotar o capitalismo. Os movimen- tos beatnik e hippie nos Estados Unidos e o maio de 1968 em Paris são as expressões mais fortes de uma nova geração, nascida durante, ou mesmo após, a Segunda Guerra Mundial, que buscava espaço no mundo público, combatendo os cânones tanto da defesa do capitalismo norte-americano como do sonho socialista europeu (PINTO, 2003, p.42). Este foi o contexto social em que a segunda onda feminista ocidental começava a se pro- jetar e ganhava vultos de importância nos cenários políticos e sociais.
No Brasil, o movimento feminista surgiu em um período de repressão política, e esteve fortemente associado a luta pela redemocratização do país. O golpe de 1964 e a sua supres- são de direitos tornou, principalmente depois de 1968, com o decreto do Ato Institucional n° 5, qualquer tipo de participação política e social em ato de extremo perigo. Enquanto os Estados Unidos e a Europa, tinha nesse período, cenários de revolução comportamental e questionamento de valores, no Brasil o clima era de repressão e morte (PINTO, 2003, p.52). Entretanto, tanto aqui como lá, o movimento feminista, apesar das especificidades políticas de cada país, começou a tomar forma.
De acordo com Paola Cappellin Giulani (2002), foi durante o fim da década de 1960 e no decorrer da década de 70, que diversos movimentos sociais surgem no país reivindicando melhorias em diversos setores sociais. Dentro desses movimentos, a participação de mulheres começou a ser cada vez mais frequente, como por exemplo, em 1968, o Movimento Nacional contra a Carestia, em 1970, o Movimento de Luta por Creches, e, em 1974, o Movimento Brasileiro pela Anistia. Não podemos dissociar esses movimentos de mulheres do movimento feminista. A historiadora Celi Regina Pinto (2003, p.66), diz que deve-se evitar especificida- des nesses movimentos. Entretanto, apesar de contarem com a ampla participação feminina, eles não contestavam a condição social na qual estavam inseridas, não colocando em xeque, a opressão sofrida pelas mulheres. A principal busca pela participação delas estava relacionada a condição de dona de casa, esposa e mãe, para interferir na vida pública, exercendo o papel de cidadãs.
O papel da igreja foi importante nessa organização feminina. De acordo com Cynthia A. Sarti (1998), a Igreja católica influenciou na organização das mulheres, principalmente nos grupos menores, de âmbito regional. Frente a falha política do Estado em atender algumas
(^2) O movimento hippie foi um movimento que teve a sua origem nos Estados Unidos, durante meados da década de 1960. Os participantes desse movimento tinham, na maioria das vezes, idade entre 17 e 25 anos. Uma das contestações do movimento era contestar os valores sócias do período e um dos lemas do grupo eram pregar a ideia de liberdade sexual e espiritual, além do conhecido lema de “Peace and Love”.
A INFLUÊNCIA DO CONTEXTO HISTÓRICO NAS INTERPRETAÇÕES DE CAPITU: D E A D U L T E R A A SÍMBOLODEAUTONOMIA
Após surgir no Brasil na década de 1970, em momento de repressão política e sofrer discriminação por ser entendido como um movimento de origem burguesa que deixava de lado a luta por direitos sociais e pela redemocratização do país, as reivindicações específicas do movimento feminista, foram formuladas de maneiras conflitantes. A historiadora Celi Regina Pinto, destaca o papel fundamental das mulheres exiladas na Europa pela ditadura militar brasileira na manutenção das ideias desse movimento, trazendo livros e teorias que vinham das organizações internacionais. De acordo com Celi (2003, p. 59), foram essas mu- lheres exiladas na Europa que tiveram contato com as transformações sociais e culturais que ocorriam, principalmente, em Paris e nos Estados Unidos. Foram elas que começaram a in- trodução das ideias feministas no Brasil e que pensaram sobre a estruturação do movimento.
As definições dos questionamentos levantados como bandeira da luta feminista não fo- ram um consenso entre todos os participantes do movimento. De acordo tanto com Sarti (1998, p.6) quanto com Pinto (2003, p. 61), as definições do que abrangiam a luta feminis- ta foram influenciadas pelo cenário político brasileiro. A luta contra a ditadura, apesar de propiciar a participação de mulheres na sua organização, também influenciou para que as questões específicas que tratavam das opressões sofridas pelas mulheres, fossem deixadas em segundo plano, na maioria das vezes.
A ala Marxista do movimento entendia que tratar de questões individuais e comentar sobre os problemas sofridos pelas mulheres tirava o foco da luta contra a ditadura, além de ser uma atitude burguesa que colocaria o individualismo acima do coletivismo. De acordo com Celi Regina Pinto:
As três grandes tendências do movimento feminista eram: a marxista, a liberal e a radical. As duas primeiras, apesar de suas obvias diferenças, tinham uma natureza mais política e tendiam a ver os problemas enfren- tados pelas mulheres como questões coletivas com uma dimensão que extrapolava a luta especifica da mulher. As marxistas tendiam a reduzir a luta das mulheres a luta de classes, e as liberais, a luta por direitos indi- viduais. O terceiro grupo, o que mais dificuldades teve de se manter na organização, era composto de mulheres que colocavam sua própria condi- ção de mulher no centro da discussão; levantando questões menos aceitas, expunham de forma aberta a condição de opressão e não apresentavam uma plataforma coletiva para justificar a sua própria militância (REGINA, 2003, p.60) Foi este terceiro grupo de mulheres, como nos narrou Pinto (2003, p. 82), que ao levan- tar questões não só da luta de classes, mas também de cunho pessoal, tratando sobre temas como métodos contraceptivos, liberdade sexual e aborto, que na década de 1980, passaram a dirigir o movimento e trouxeram à tona para a sociedades questões relacionadas a opressão feminina gerada socialmente. Este fato ocorreu também devido a abertura do movimento, que havia ocorrido na década anterior, e cada vez mais trazia mulheres para essas discussões.
O principal local de discussão dessas mulheres foi o Centro de Desenvolvimento da Mulher Brasileira, criado, em 1976, na cidade do Rio de Janeiro. O depoimento de uma das militantes do movimento feminista do período deixa as divergências de opiniões claras presentes nesse local:
Todas no Centro da Mulher Brasileira se diziam feministas, mas defen- diam um feminismo diferente daquele dos países desenvolvidos: aqui, tratava-se de lutar pela causa de outras mulheres, de salvar as operárias,
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cuja causa era mais importante do que a nossa, já que tínhamos comida, casa e instrução. Era engraçado, tinha gente até saía vomitando se se falas- se em aborto; não se podia falar em problemas pessoais, todas se diziam bem felizes, quem tinha problemas eram as operárias, as outras mulheres, uma dissintonia total com a realidade (GOLDBERG, 1987 apud PINTO, 2003). De acordo com Joana Maria Pedro (2006, p.19), o movimento feminista só começou a tratar de forma mais unificada a questão da sexualidade feminina, quando a ala marxista ortodoxa do movimento buscou outras formas de atuação fora do espaço do Centro, propi- ciando que as outras marxistas que haviam ficado juntamente a outras mulheres, pensassem o movimento e o redefinissem, colocando em pauta questões que iam além da luta de classes
Apesar de diversas autoras considerarem que o ano de 1975 foi o ano inaugural do movi- mento feminista no Brasil, uma conferência de importância para a luta ocorreu em 1972. O congresso promovido pelo Conselho Nacional da Mulher, organizado por Romy Medeiros, permitiu um encontro entre diversas mulheres. Segundo Celi Regina Pinto (2003, p.47), Romy era uma mulher que tinha contato com diversos governantes do país, advogada e com algumas participações políticas como, por exemplo, o envio de uma proposta de projeto cívico para mulheres na área da educação e da saúde que foi enviado para o general Emílio Garrastazu Médici, em 1971. Sua influência política possibilitou que o congresso de 1972 ocorresse, contando inclusive com o financiamento do alto clero da Igreja Católica e também da Coca-Cola.
Em um período em que as organizações sociais eram duramente reprimidas, Romy Me- deiros, apesar não se definir ideologicamente como uma pessoa de esquerda, também teve que prestar conta de suas ações para os dirigentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Um depoimento dado pela própria, dá noção do problema onde esteve en- volvida:
Eu não tinha a menor ideia do que estava acontecendo naquele momen- to, não sabia que era uma loucura organizar aquele encontro debaixo do autoritarismo que existia. Tinha pessoas da família envolvidas em política e fui muito bem recebida pelo Chagas Freitas [então governador nomeado do estado da Guanabara], que me deu todo o apoio para o encontro, que só se realizou graças às minhas relações com o governo [...]. Fui chamada ao Dops várias vezes durante a sua preparação, e eles me diziam: ‘A senho- ra é uma pessoa distinta, mas anda muito mal acompanhada ’ (GOLD- BERG, 1987 apud PINTO, 2003) O congresso organizado por Romy, sem dúvidas teve um papel importante no movimen- to que começou a surgir no Brasil. Entretanto, os encontros e as organizações feministas passam a ocorrer com mais frequência três anos depois.
A organização do movimento de forma mais ampla e mais aberta a sociedade, ocorreu em 1975, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) declarou este ano como o ano Internacional das Mulheres e realizou no México uma conferência com mulheres vindas de diversos lugares do mundo, todas especialistas sobre a condição da mulher na sociedade. De acordo com Joana Maria Pedro (2006), aqui no Brasil, o papel da ONU foi fundamental para que essa luta se desenvolvesse. A autora destaca também a semana de debates, ocorrida em junho de 1975 e organizada pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI) com o tema: “O papel e o comportamento da mulher na realidade brasileira”, na cidade do Rio de Janeiro. Além de propiciar palestras e debates sobre o assunto, foi lá que se originou a ideia de criação
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Como se pode ver, a segunda onda feminista brasileira acabou por transformar o modo de pensar da sociedade em diversos aspectos. Suas conquistas em direitos sociais foram de grande importância política, mostrando que alguns dos seus ideais de luta passaram a fazer parte do Estado e das suas políticas sociais, buscando melhorar a qualidade de vida de muitas mulheres e de protegê-las contra a violência que estavam expostas. Foram também essas trans- formações que influenciaram as novas interpretações da personagem Capitu e possibilitaram que o romance fosse visto sobre outra ótica, levando a absolvição da culpa da personagem feminina.
Ao analisarmos as críticas feitas a obra Dom Casmurro ao longo do século XX, nota-se uma transformação na forma como o texto foi interpretado pelos críticos literários no decorrer do período. Essa mudança ocorreu, principalmente, na visão que se tinha sobre a personagem Capitu. Se nos primórdios da crítica literária a personagem foi vista como uma mulher adúl- tera que tinha um filho fora do casamento, a partir da década de 60, outra leitura passou a ser feita sobre a obra, desculpabilizando, na maior parte das vezes, a personagem. De acordo com Paulo Franchetti (2009, p.289), foi a crítica literária norte-americana, Helen Caldwell, que inaugurou uma nova forma de interpretação da trama de Machado de Assis , defendendo a personagem Capitu das acusações de adultério. Ao se referir a Caldwell e sua ação sobre a personagem, Franchetti diz:
O movimento da advogada Caldwell é, entretanto, mais complexo do que a simples substituição do acusado. Se ela retira Capitu do banco dos réus e ali coloca Bento, ao mesmo tempo toma precauções para que, ao en- viar Bento para essa posição, não envie junto o autor Machado de Assis (FRANCHETTI, 2009, p. 290). A obra de Caldwell, que inicia a defesa de Capitu contra as acusações de Bentinho , é inti- tulada d e O Otelo Brasileiro de Machado de Assis, publicada na Califórnia em 1960. A autora propõe logo no início do seu trabalho responder duas questões relacionadas a Dom Casmurro. As questões levantadas por Caldwell são:
O núcleo de meu estudo consiste em responder duas questões suscitadas [...]: A heroína é culpada de adultério? Por que o romance é escrito de tal forma a deixar a questão da culpa ou inocência da heroína para a decisão do leitor? (CALDWELL, 2002, p. 13)
Ao observar a lógica dos argumentos utilizados pela norte-americana neste trecho, nota-se que a tese de um romance aberto, onde o leitor decidirá sobre os fatos, foi utilizada. Assim, para Helen, Machado de Assis não condenou Capitu como uma mulher adúltera, mas dei- xou vestígios no decorrer da sua obra que possibilitam a absolvição da personagem. Segundo Luciana Fidelis de Melo (2005, p.15), a autora norte-americana recorrera às falas de Bentinho para defender Capitu das acusações por ela sofrida durante a primeira metade do século XX. Um dos trechos da sua obra deixa um destes tópicos claro ao leitor da seguinte forma:
Capitu está no banco dos réus. [...] No capítulo final (CXLVIII), o leitor percebe em sobressalto que foi convocado como jurado. A “narrativa” de Santiago não passa de uma longa defesa em causa própria. […] E, sa- gaz advogado que é, deixa indeterminado o caráter de cada personagem do caso que possa testemunhar contra ele, suprime evidências, impõe adiamentos até que as testemunhas morram. O argumento funciona da
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seguinte forma: ele, Santiago, não é ciumento sem causa; ele não execu- tou uma vingança injusta: Capitu é culpada. Caso os leitores o julguem inocente, ele estará limpo a seus próprios olhos [...] Praticamente três gerações – pelo menos de críticos – julgaram Capitu culpada. Permitam- -nos reabrir o caso (CALDWELL, 2002, p.99-100). Outro aspecto relevante, que deve ser observado na obra de Caldwell e como o próprio título já deixa claro, trata-se da relação que a autora vê entre Dom Casmurro e a obra Otelo de Shakespeare.^3 No próprio romance machadiano há um capítulo intitulado Otelo, no qual ele narra a ida de Bentinho ao teatro. Neste cenário a peça Otelo está sendo encenada. A rea- ção da personagem foi a seguinte:
Jantei fora. De noite fui ao teatro. Representava-se justamente Otelo, que eu não vira nem lera nunca; sabia apenas o assunto, e estimei a coincidên- cia. Vi as grandes raivas do mouro, por causa de um lenço- um simples lenço! […] O último ato mostrou-me que não era eu, mas Capitu que deveria morrer. Ouvi as súplicas de Desdêmona, as suas palavras amorosas e puras, e a fúria do mouro, e a morte que este lhe deu entre aplausos frenéticos do público. E era inocente – vinha eu dizendo rua abaixo – que faria o público, se ela deveras fosse culpada, tão culpada como Capitu? (MACHADO, 2012, p. 233). O impacto da obra de Caldwell para a nossa sociedade não pode ser negado. Partiu dela o ponta pé inicial que revolucionou as interpretações de Dom Casmurro. De acordo com Roberto Schwarz:
Em suma, o resultado substancioso do livro foi a inviabilização da leitu- ra conservadora de um clássico nacional, até então assegurada por uma aliança tenaz de convencionalismo estético e preconceitos de sexo e classe (SCHWARZ, 2006, p.7).
Outro crítico que teve papel de destaque na interpretação de Dom casmurro foi John Gledson. O inglês publicou pela primeira vez, em 1984, sua obra intitulada Machado de Assis: Impostura e Realismo. Nesse estudo, o autor também desenvolveu uma análise da personagem Capitu. Para o inglês está presente na trama, uma questão social. Roberto Schwarz analisa o texto de Gledson, chegando a conclusão quê:
Atrás da agitação sentimental de primeiro plano, Gledson identifica a presença de interesses propriamente sociais, ligados à organização e à crise da ordem paternalista. Em lugar do novo Otelo, que por ciúme destrói e difama a amada, surge um moço rico, de família decadente, filho de ma- mãe, para o qual a energia e liberdade de opinião de uma mocinha mais moderna, além de filha de um vizinho pobre, provam intoleráveis. Neste sentido, os ciúmes condensam uma problemática social ampla, historica- mente específica, e funcionam como convulsões da sociedade patriarcal em crise (SCHWARZ, 2006, p.86). A inovação dessa crítica literária se deu por incorporar justamente em sua análise, ca- racterísticas sociais do período de escrita do romance, levantando a hipótese de que a obra Machadiana, não só não condenava a personagem Capitu pelo adultério, mas também trazia críticas à sociedade paternalista do período de publicação da obra. Em Machado de Assis: Impostura e Realismo 3 , John deixa claro que enxerga as atitudes de Capitu como de alguém que Em Otelo, o protagonista da história mata sua esposa, Desdêmona, após acreditar que ela o traia com outro homem. Após o assassinato, Otelo acaba descobrindo que tudo não havia passado de uma armação e que a traição não ocorreu. Sentindo-se culpado, a personagem tira a sua própria vida, caindo morto em cima do corpo de sua amada.
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A novidade do ensaio de Schwarz é que, da sua óptica, o leitor (ao me- nos o leitor comum) já não é jurado e muito menos destinatário de uma ação curativa. Junto com Bento, senta-se agora no banco dos réus o leitor homem, brasileiro, católico (e presumivelmente sem perspicácia nem es- pírito democrático). E sua pena é dupla: é condenado como cúmplice de Bento e é ridicularizado como objeto da ironia da composição machadia- na (FRANCHETTI, 2009, p.292). Outro título no qual a imagem de Capitu foi desconstruída foi o trabalho de Ana Maria Machado, publicada em 1999, intitulado A audácia dessa Mulher. Neste livro, a autora acaba por dar voz a Capitu , atitude que não era possível através da obra Machado, já que em Dom Casmurro , o narrador do romance é o próprio Bentinho. De acordo com Jaqueline Souza (2014, p.472), a atitude de Ana Maria Machado em reescrever o romance, possibilitou a Ca- pitu dar a sua própria visão da história, já que em Dom Casmurro , a personagem permanência escondida atrás dos olhos do marido. A personagem principal do livro é Beatriz, uma jor- nalista que foge dos moldes de mulher de uma sociedade patriarcal. De acordo com Souza:
A personagem Bia é uma mulher própria do século XX, possui caracterís- ticas próprias da mulher contemporânea, pois, ela é independente, tem seu próprio emprego, a sua própria casa, viaja para vários lugares, possui um relacionamento mais aberto com o namorado. Ela é uma personagem feminina pouco comum na literatura brasileira, mesmo a de autoria femi- nina, uma vez que é decidida e determinada, inteligente e prática, sempre buscando coisas novas (SOUZA, 2014, p.478). Beatriz, a protagonista, é jornalista e tem um romance aberto com seu namorado, além de não se dar bem em tarefas domésticas, como cozinhar e arrumar a casa. Ainda consoante a Souza, a entrada da personagem Capitu no romance, dá-se da seguinte forma:
A escritora retoma a trajetória de Capitu, recriando-lhe os contornos, reinventando-lhe os caminhos percorridos durante o tempo em que es- teve casada com Bentinho, até seu exílio na Suíça. O ponto de partida é um caderno de receitas, também usado como diário íntimo que, após ter sido uma herança legada a diversas gerações de mulheres, durante mais de um século, chega às mãos de Beatriz, personagem principal de A Audácia dessa Mulher. Esse caderno de receitas é acompanhado por uma carta assinada por Maria Capitolina (SOUZA, 2014, p.472). Souza destaca ainda (2014, p.478) que essa releitura da obra só foi possível, pois tanto a autora, como a protagonista, partilham de uma nova mentalidade, levando em consideração os direitos das mulheres e os seus papéis sociais, encarando-as como cidadãs que tem o direito de terem suas próprias histórias e de escolher os seus caminhos.
As transformações que ocorreram no modo de ver a personagem machadiana Capitu , aconteceram em um momento no qual as mulheres haviam conquistado uma série de direi- tos e estavam lutando por uma melhoria de condição de gênero. Teria sido então, a influên- cia dessa organização feminina que influenciou uma nova leitura da personagem, buscando enxergá-la com outros olhos e dar voz aquela que foi silenciada?
A construção da interpretação de um determinado objeto, fato ou acontecimento está relacionada ao período que o mesmo foi analisado e também por quem fez essa análise. O mesmo ocorre com a interpretação de um livro, ou no caso aqui trabalhado, de uma perso-
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nagem. O crítico Antônio Cândido (2000, p.68), como já trabalhado anteriormente, aborda as mudanças das interpretações com o passar do tempo.
Foi no início da década de 1960, que a crítica literária feminista começou a se desenvol- ver. De acordo com Natalia Helena Wiechmann (2006, p.3), isso aconteceu em decorrência da movimentação das mulheres em busca de direitos. Um dos intuitos dessa nova forma de observar a literatura, era o de dar voz as personagens femininas. Elas que sempre estiveram presentes em obras clássicas, mas que foram interpretadas de acordo com as normas com- portamentais vigentes em sociedade, fazendo com que as mulheres que fugissem do padrão de donas de casa, mães de família e esposas fiéis, fossem vistas como um péssimo exemplo a ser seguido e merecedoras dos fins, quase sempre trágicos, que as acompanhavam. De acordo com José R. Neres Costa:
Narrativas naturalistas/realistas sempre caminham para um desfecho trá- gico em que a figura feminina é sempre sacrificada em prol da defesa da ideologia de que é a mulher a causadora de grande parte da desgraça do homem (2000, p.4). O trabalho feito por essas mulheres que buscavam um novo olhar sobre a literatura não foi algo simples de se fazer. Com uma tradição de escrita literária patriarcal que durou déca- das, cabia a elas quebrar paradigmas sociais. Segundo Constância Lima Duarte, foi “a indús- tria cultural masculina que se encarregou da construção e quase cristalização das imagens do feminino” (1987, p.18). Esta imagem construída pelo olhar masculino, possibilitou apenas uma visão maniqueísta das mulheres nos romances. De acordo com Natália Wiechmann (2006, p.6), a imagem das personagens femininas ficou dividida então entre a mulher “Anjo” e a mulher “Monstro”. Acerca desta dualidade, Wiechmann nos diz que:
a representação angelical da mulher se refere à imagem idealizada de pu- reza, bondade e delicadeza e tem como ícone a figura da Virgem Maria. Sempre dentro de casa, a mulher angelical é a responsável pelo cuidado do lar e da família, agradando ao marido ou a qualquer outra figura masculi- na que prevaleça na casa e se submetendo a sua autoridade. O que se tem atrás desse rótulo de anjo é, na verdade, uma vida de submissão completa à figura masculina e, desse modo, a ausência de autonomia coloca a mu- lher numa posição comparável a de um objeto de arte a ser contemplado […] Opondo-se à imagem angelical, a mulher monstro é o estereótipo que condensa em si as transgressões ao ideal feminino. Em outras palavras, essa representação se refere às mulheres que assumem características tradi- cionalmente masculinas, como a autoridade, a força e a iniciativa sexual. Diante disso, o ato de criação é visto no patriarcado como algo essencial- mente masculino (WIECHMANN, 2006, p.8).
Foi necessário que a nova critica buscasse “desmascarar a misoginia da prática literária, as imagens estereotipadas de mulher como anjo ou monstro, o abuso literário da mulher na tra- dição masculina” (FUNCK, 1999 apud GUALDA, 2008). Contrapondo a esta característica, a crítica literária feminista veio para mudar o formato de como as análises de obras literárias eram feitas, observando questões presentes além do texto, como ocorreu com o caso de Ca- pitu. Segundo Elaine Showalter:
O objetivo dessa crítica é ratificar injustiças construídas sobre modelos existentes, oferecendo leituras feministas de textos que levam em consi- deração as imagens e estereótipos construídos sobre as mulheres na litera-