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A História de Kaspar Hauser: Um Estudo da Origem e Desenvolvimento, Notas de aula de Literatura

Uma revisão dos aspectos principais da história de kaspar hauser, discutindo teorias sobre sua origem e analisando-as em uma perspectiva psicanalítica. O texto aborda a falta de desenvolvimento imaginário em kaspar hauser, baseado nas obras de feuerbach e masson, além de fontes como poemas e diários. O documento também explora as teorias sobre a origem de kaspar hauser, incluindo a teoria da fraude.

O que você vai aprender

  • Qual era a origem de Kaspar Hauser, de acordo com as teorias apresentadas no documento?
  • Quais fontes foram utilizadas no estudo de Kaspar Hauser?
  • Por que Kaspar Hauser era considerado carecedor do imaginário?
  • Como a psicanálise foi utilizada no estudo de Kaspar Hauser?
  • Quais são as teorias alternativas sobre a origem de Kaspar Hauser?

Tipologia: Notas de aula

2020

Compartilhado em 06/02/2020

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ISSN 1678-7730 N. 59 – FPOLIS, NOVEMBRO, 2004.
A INÉRCIA DO IMAGINÁRIO
Prof. Dr. Rafael Raffaelli
Editor
Prof. Dr. Rafael Raffaelli
Conselho Editorial
Prof. Dr. Héctor Ricardo Leis
Profa.Dra. Júlia Silvia Guivant
Prof. Dr. Luiz Fernando Scheibe
Profa. Dra. Miriam Grossi
Prof. Dr. Selvino José Assmann
Editores Assistentes
Cláudia Hausman Silveira
Dora Maria Dutra Bay
Elisa Gomes Vieira
Katja Plotz Fróis
Maria da Graça Agostinho Faccio
Silmara Cimbalista
Secretária Executiva
Liana Bergmann
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ISSN 1678-7730 N. 59 – FPOLIS, NOVEMBRO, 2004.

A INÉRCIA DO IMAGINÁRIO

Prof. Dr. Rafael Raffaelli

Editor Prof. Dr. Rafael Raffaelli Conselho Editorial Prof. Dr. Héctor Ricardo Leis Profa.Dra. Júlia Silvia Guivant Prof. Dr. Luiz Fernando Scheibe Profa. Dra. Miriam Grossi Prof. Dr. Selvino José Assmann Editores Assistentes Cláudia Hausman Silveira Dora Maria Dutra Bay Elisa Gomes Vieira Katja Plotz Fróis Maria da Graça Agostinho Faccio Silmara Cimbalista Secretária Executiva Liana Bergmann

A INÉRCIA DO IMAGINÁRIO

THE INERTIA OF THE IMAGINARY

Rafael Raffaelli

RESUMO:

O presente estudo conduz uma revisão dos principais aspectos concernentes à história de Kaspar Hauser, discorrendo sobre as teorias referentes à sua origem. Três teorias são examinadas: a teoria da fraude, a teoria do príncipe e a teoria do acaso. São relatados os exames de DNA já realizados. O caso é examinado também numa perspectiva psicanalítica, analisando-se os eventos mais relevantes da vida de Kaspar Hauser segundo a tópica do Imaginário, do Simbólico e do Real. Kaspar Hauser possuiria uma carência do imaginário no seu desenvolvimento, pois nunca passou por uma fase do espelho.

Palavras-chave : Kaspar Hauser; História; Desenvolvimento; Imaginário

ABSTRACT: The present study conducts a revision of the main aspects concerning Kaspar Hauser’s history, discerning about the theories referring to his origins. Three theories are examined: the fraud theory, the prince theory and the chance theory. The DNA exams already made are related. The case is also examined in a psychoanalytical perspective, analyzing the most relevant events in Kaspar Hauser’s life according to the topic of Imaginary, Symbolic and Real. Kaspar Hauser would possess an absence of the imaginary in his development, as he never got through a mirror stadium.

Keywords: Kaspar Hauser; History; Development; Imaginary

∗ (^) Professor Titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e do Corpo Permanente do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas (DICH/UFSC), Editor dos Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas.

Ô vous tous, ma peine est profonde: Priez pour le pauvre Gaspard.

Rainer Maria Rilke (1875-1926) também dedicou o poema “ O Menino ”, de 1906, ao pequeno prisioneiro:

Der Knabe (1906)

Ich möchte einer werden so wie die, die durch die Nacht mit wilden Pferden fahren, mit Fackeln, die gleich aufgegangenen Haaren in ihres Jagens großem winde wehn. Vorn möcht ich stehen wie in einem Kahne, groß und wie eine Fahne aufgerollt. Dunkel, aber mit einem Helm von Gold, der unruhig glänzt. Und hinter mir gereiht zehn Männer aus derselben Dunkelheit mit Helmen, die, wie meiner, unstät sind, bald klar wie Glas, bald dunkel, alt und blind. Und einer steht bei mir und bläst uns Raum mit der Trompete, welche blitzt und schreit, und bläst uns eine schwarze Einsamkeit, durch die wir rasen wie ein rascher Traum: Die Häuser fallen hinter uns ins Knie, die Gassen biegen sich uns schief entgegen, die Plätze weichen aus: wir fassen sie, und unsre Rosse rauschen wie ein Regen.

O poeta austríaco Georg Trakl (1887-1914) compôs “A Canção de Kaspar Hauser” em 1913, fazendo referência ao poema de Verlaine:

Kaspar Hauser Lied (1913)

Er wahrlich liebte die Sonne, die purpurn den Huegel hinabstieg, Die Wege des Walds, den singenden Schwarzvogel

Und die Freude des Gruens. Ernsthaft war sein Wohnen im Schatten des Baums Und rein sein Antlitz. Gott sprach eine sanfte Flamme (Verlaine) zu seinem Herzen: O Mensch! Stille fand sein Schritt die Stadt am Abend; Die dunkle Klage seines Munds: Ich will ein Reiter werden. Ihm aber folgte Busch und Tier, Haus und Daemmergarten weisser Menschen Und sein Moerder suchte nach ihm. Fruehling und Sommer und schoen der Herbst Des Gerechten, sein leiser Schritt An den dunklen Zimmern Traeumender hin. Nachts blieb er mit seinem Stern allein; Sah, dass Schnee fiel in kahles Gezweig Und im daemmernden Hausflur den Schatten des Moerders. Silbern sank des Ungebornen Haupt hin.

Mas a descrição original do caso pertence ao jurista alemão Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach (1775-1833), o qual redigiu um livro sobre sua história: “Kaspar Hauser. Um caso de um crime contra a alma de um ser humano” ( Kaspar Hauser. Beispiel eines Verbrechens am Seelenleben des Menschen ). Responsável pela abolição da tortura na Bavária e pai do filósofo Ludwig Feuerbach, ele era o presidente da corte de apelação de Ansbach e tinha jurisdição sobre o caso. O texto de Feuerbach, editado originalmente em 1832, foi traduzido para o inglês por Jeffrey M. Masson em 1996, com uma importante introdução e comentários. Coube também a Masson o descobrimento do diário de Georg F. Daumer, o primeiro preceptor de Kaspar, nos arquivos pertencentes a Hermann Pies (1888-1983), que foi o mais renomado pesquisador do assunto. Serão utilizados nesta análise os textos de Feuerbach e de Masson, além de elementos da autobiografia e sonhos do próprio Kaspar, fazendo referência aos filmes de Werner Herzog e Peter Sehr^1. O referencial teórico empregado para a análise da questão

(^1) O filme de Werner Herzog foi fundado no romance “ Kaspar Hauser oder die Trägheit des Herzens ” (1908) - traduzido na edição brasileira por “Kaspar Hauser ou A Indolência do Coração” (1966) - do austríaco Jacob Wassermann (1873-1934), o qual, por sua vez, se baseou principalmente no texto de Feuerbach.

filosóficas, jurídicas e políticas do caso e a ele tanto se apegou que acabou sofrendo conseqüências trágicas. Depois de Kaspar ter sido encontrado por um residente, a polícia o colocou numa torre, pois acreditavam que estava fingindo ou que poderia ser perigoso. Kaspar foi tratado com dureza no início, pois a polícia pensou que ele estava dissimulando. Devido a isso ele teria chorado durante oito dias e noites. Tinha aversão a toda comida – em especial a carne  com exceção do pão e só bebia água. Não entendia as perguntas que lhe eram dirigidas e “sua linguagem consistia primariamente de lágrimas, gemidos de dor, sons ininteligíveis, ou as freqüentemente recorrentes palavras: ‘cavaleiro quero, como pai era’”. No dizer do capitão a quem o envelope fora endereçado, “ele se comportava como uma criança pequena, o que contrastava com seu tamanho”. Alguém teve a idéia de dar uma pena e tinta ao rapaz para verificar se ele era capaz de escrever e, para surpresa geral, ele pegou a pena de maneira desajeitada e escreveu seu nome com “letras firmes e legíveis”. Pediram-lhe que escrevesse mais, porém ele se desinteressou pela tarefa e passou a repetir sua frase padrão. (Feuerbach, 1996, pp.76-78) Além da carta, Kaspar trazia consigo um pequeno envelope contendo ouro em pó, um lenço com as iniciais “K.H.” bordadas e uma série de textos religiosos, um dos quais, aponta Feuerbach (1996, pp.79-80), parecia referir-se cinicamente à situação: “A Arte de Recuperar o Tempo Perdido e Anos Mal-Passados”. O carcereiro Andreas Hiltel - com cinqüenta e um anos à época - pôde observá-lo de modo furtivo durante oito semanas, buscando traços de um possível embuste, mas chegou à conclusão que nele não havia nada de falso. Nesse período, Kaspar desenhava muito e participava do dia-a-dia da casa de Hiltel, convivendo com sua família. Hiltel manifestou, inclusive, o intento de adotá-lo, mas sua falta de recursos materiais o impediu de realizá-lo. Ele chegou a dizer a Daumer posteriormente – em 1830, quando se colocava em dúvida a autenticidade de Kaspar – que não tinha dúvida de sua inocência e da veracidade de sua história. (Feuerbach, 1996, pp.90-92) Feuerbach relata também sua suspeita que Kaspar tivesse sido dopado com ópio durante seu aprisionamento, para evitar que reconhecesse seu captor durante os momentos em que ele realizava sua higiene e a limpeza de seu calabouço (Feuerbach, 1996, p.95). Entretanto, isso não combina com a pobreza da alimentação que Kaspar

recebia, sendo de se estranhar o uso dessa substância para adormecê-lo, dado que seria algo de difícil acesso a um camponês. O prefeito de Nuremberg, Jakob Friedrich Binder (1787-1856) publicou uma proclamação pública sobre Kaspar em 07 de julho de 1828. Jornais da Europa e dos Estados Unidos noticiaram a história com algum destaque. Feuerbach e Binder escolheram Georg Friedrich Daumer (1800-1875), então com 28 anos, para cuidar de Kaspar. Daumer foi aluno de Schelling (1775-1854) e Hegel (1770-1831) e era tutor dos filhos do último. Fundou em 1840 a “Sociedade Alemã para a Prevenção da Crueldade com os Animais”, e era seguidor na homeopatia e poeta. Devido à grande curiosidade popular sobre a figura de Kaspar, Binder se viu obrigado a fazer um comunicado público em 19 de julho de 1828 proibindo visitas à casa de Daumer. Apesar disso, continuou sendo procurado por um grande número de estrangeiros de passagem por Nuremberg, tendo-se tornado uma atração turística da cidade. No início de setembro de 1829, Kaspar começou a escrever a história de sua vida, após ganhar certa fluência na compreensão do idioma. Ele inicia sua narrativa explicando as condições em que foi encarcerado e qual sua rotina diária. Apesar da monotonia de suas atividades diárias, da escuridão, da alimentação pobre e da água insuficiente, ele afirmava que se sentia feliz. Seu contato com o ‘homem’ que o cuidava aumentou quando ele o ensinou a escrever e Kaspar soube “como se chamava um cavalo”. Uma única vez teria apanhado, pois estaria fazendo muito barulho. Mas, de modo geral, “estava sempre de bom humor e contente, porque nada nunca me machucou”. (Masson, 1996, pp.190-

Em 17 de outubro de 1829 Kaspar sofreu um atentado, quando um homem armado com uma faca de açougueiro tentou cortar seu pescoço, mas só conseguiu feri-lo. Feuerbach (1996, p.135) imputa esse atentado ao fato de vários jornais terem noticiado que ele começara a escrever sua autobiografia. Devido a essa tentativa de assassinato, foi nomeado Gottlieb Freiherr von Tucher (1798-1877) – cunhado de Hegel - como seu guardião e o prefeito destacou dois policiais para acompanhá-lo. Como Daumer ficou doente, Kaspar mudou-se para a casa de um rico comerciante, Johann Christian Biberbach, em janeiro de 1830. Seis meses depois,

3.1.1. A teoria da fraude

Muitos supunham ser Kaspar Hauser uma fraude, desde seu aparecimento em Nuremberg. Já em 1830, um policial de Berlim chamado Johann Friedrich Karl Merker (1775-1842) publicou um livro intitulado “Kaspar Hauser, Mais Provavelmente uma Fraude”, sem ao menos tê-lo encontrado. (Masson, 1996, p.51) Kaspar poderia ter sido um mendigo andarilho que se aproveitou da situação e da credulidade das pessoas para enganar a todos com a falsa história de um menino criado em cativeiro. Preso ao papel que criara – hipótese levantada por Stanhope – só lhe restou continuar até o fim, premido pelas circunstâncias nas quais se envolveu. Seria como se a máscara da tragédia lhe tivesse colado ao rosto e dela não mais pudesse se libertar. Mais tarde, frente à habilidade de Kaspar em montar, Merker levantou a hipótese que ele fosse um jovem cavaleiro inglês que estava troçando dos ingênuos habitantes de Nuremberg com seu disfarce. (Feuerbach, 1996, p.125) É interessante compararmos esse caso com o mistério do “Delfim perdido”, que decorre do destino de Luís XVII, filho de Luís XVI e Maria Antonieta. Tido como morto por tuberculose em 1795 aos 10 anos de idade, surgiram posteriormente rumores que ele teria escapado da prisão do Templo em Paris - onde se encontrava recluso em um quarto sem janelas, como Kaspar - para ser criado em algum lugar distante. Logo apareceram dezenas de reclamantes da identidade de Luís XVII, o mais bem sucedido dos quais foi Karl Wilhelm Naundorff (1775-1845), um inventor e relojoeiro prussiano. Quando saiu da prisão em 1828 – note-se, mesmo ano do aparecimento de Kaspar – passou a se fazer passar por Luís XVII e tomou para si o título de Duque da Normandia. Em 1833 ele viajou a Paris e encontrou-se com mais de 53 pessoas que tiveram contato com o Delfim na infância, inclusive a mulher que foi sua babá do nascimento até os sete anos de idade. Após um pormenorizado interrogatório sobre suas memórias de infância, ela convenceu- se da autenticidade de sua reivindicação. Mas ao invés de ter seus reclamos atendidos pelo governo francês, foi preso e expulso da França como estrangeiro. Após uma estadia na Inglaterra, mudou-se para a Holanda onde morou até o fim de sua vida, obtendo junto ao governo desse país a autorização para ser enterrado como Luís XVII. Seus familiares passaram a empregar o sobrenome Bourbon, referente à dinastia dos Reis de França da linha dos Capetos. Em 1950 um pedaço de osso foi retirado de seus restos mortais para

análise e esse material serviu para um teste de DNA mitocondrial realizado em 2000, que revelou que ele não possuía nenhum parentesco genético com Maria Antonieta, cujo DNA fora obtido através de fios de cabelo que haviam sido conservados em bom estado. Embora seus descendentes não aceitem essas conclusões, alegando contaminação genética do material analisado, não resta dúvida de que Naundorff era um farsante. (Delorme, 2000) Será que Kaspar Hauser poderia ser um aventureiro do mesmo tipo, influenciado pela repercussão das reivindicações desses falsos pretendentes a um nascimento nobre, e que resolveu tentar a sorte em Nuremberg? Stanhope aventou, inclusive, que Kaspar poderia ser um êmulo da denominada “Princesa Caraboo”, pseudônimo de Mary Willcocks (1791-1864), uma impostora que ludibriou a alta sociedade inglesa assumindo ser uma princesa oriental raptada de sua terra natal e que havia sobrevivido a um naufrágio. Tendo surgido na vila de Almondsbury, Gloucestershire, em 1817, com um turbante negro e fingindo que falava um idioma desconhecido, convenceu a todos de sua história e ganhou fama, tendo sido notícia em muitos jornais. De maneira semelhante a Kaspar, recusava toda carne e só comia vegetais, bebendo unicamente água. Apresentava um comportamento bizarro - mesmo quando estava sozinha e era observada em segredo - que passou a ser considerado exótico, conferindo ares de verdade à sua encenação. Embora tivesse traços nitidamente europeus e fosse uma pessoa com pouca educação formal, e mesmo apesar de ter sido interrogada por várias autoridades e acadêmicos de destaque, convenceu a todos da veracidade de sua história por cerca de dois meses, até que uma conhecida sua a desmascarou. (Wells, 1994) Outros fatos chamam a atenção do cético: a habilidade de Kaspar em aprender – atribuída por alguns à sua origem nobre – e ao fato de conseguir escrever uma autobiografia apenas um ano e meio após o seu aparecimento, apesar da precariedade de sua escrita. Essa habilidade poderia ser vista como uma premeditada atitude de autopromoção e até sua manifesta inocência poderia ser encarada como uma artimanha para conquistar a simpatia de pessoas bem-intencionadas como o próprio Feuerbach. Sendo assim, Kaspar talvez não passasse de um “ publicity-hungry egotist ” (Kitchen, 2001, p.3) que encontrou um caminho para os seus anseios.

deve esquecer que Daumer - que foi a pessoa que mais teve contato com Kaspar e que chegou a intuir a culpabilidade de Stanhope - viveu até 1875. O próprio Stanhope, que seria o personagem central na trama do assassinato de Kaspar, estaria intimamente conectado com a casa de Baden e teria mesmo recebido pagamento pelas suas intervenções no caso. (Masson, 1996, p.215) O filme de Peter Sehr amplia a trama, colocando o próprio Rei da Bavária, Ludwig I (1786-1868), como o responsável pelo encarceramento de Kaspar e facilitador da sua morte. O menino, raptado pela condessa Hochberg, teria sido interceptado pelos emissários do Rei, que o mantiveram em lugar seguro como moeda de troca na questão do território do Palatinado, em disputa pelos dois estados. Em outros termos, Kaspar seria o trunfo que o Rei possuía para pressionar Leopold, que havia assumido a chefia do estado, chantageando-o com a perspectiva de abrir uma querela sucessória na casa de Baden. Na película, Feuerbach é tratado pelo Rei como um tolo idealista que havia se metido onde não devia e que buscava provas de um complô do qual ele não poderia sequer supor a verdadeira origem. Após a morte de Kaspar, o Rei da Bavária efetivamente ofereceu uma vultosa recompensa para a captura dos assassinos que nunca foi reclamada. Embora essas teorias conspiratórias sejam bem-montadas e convincentes em muitos aspectos, alguns pontos são questionáveis. Em primeiro lugar, a atitude de Stéphanie – a pretensa mãe de Kaspar – com relação ao episódio. Embora tenha sido informada dos acontecimentos, nunca buscou encontrar-se com seu suposto filho e nem ao menos se comunicou com ele. Essa indiferença poderia indicar um descrédito na veracidade da história apregoada por Feuerbach ou, como sugere o filme de Sehr, um modo de proteger a casa de Baden das maledicências. De qualquer forma, a apatia de Stéphanie com relação ao destino de Kaspar é um ponto frágil das teorias conspiratórias. Outro ponto crítico está na inexistência de qualquer documentação direta e inquestionável que ligue Kaspar à casa de Baden, o que faz dessas teorias apenas suposições históricas, por mais bem fundamentadas que sejam. Contudo, é bom notar que os mais conceituados estudiosos do assunto – Hermann Pies, Johannes Mayer, Fritz Klee, Adolf Bartning – estão de acordo com essa teoria, tendo sido o próprio Mayer o consultor técnico do filme de Sehr, que retrata Kaspar como indubitavelmente o herdeiro da casa de Baden.

3.1.3. A teoria do acaso

Frente às duas teorias anteriores, podemos aventar uma terceira: a teoria do acaso. Podemos considerar como pouco provável que Kaspar fosse um impostor, pois seria difícil ou mesmo impossível uma fraude se manter em face de toda atenção dedicada ao caso. Kaspar morou com várias pessoas e conviveu com outras tantas durante anos – não parece verossímil que todas tenham sido enganadas durante tanto tempo, ao menos não nesse sentido. Se Kaspar fosse de fato um impostor, seria um excelente ator e ao mesmo tempo um grande inconseqüente, por desempenhar um papel tão bem que acabou por atrair para si a morte que afinal lhe coube. Não há sentido psicológico num impostor que continue a manter uma farsa após sofrer um atentado à sua vida. Que vantagens um impostor poderia retirar dessa situação, frente às terríveis forças que o ameaçavam? Só entenderíamos essa atitude de persistir no logro se esse impostor fosse mentalmente insano, mas aí não seria Kaspar Hauser. Apesar dessas considerações, a história demonstra, nunca podemos descartar por completo a imaginação e a engenhosidade humanas, haja vista a história do “Delfim perdido”. Mas neste caso em particular, as evidências apontam vigorosamente na direção da inocência de Kaspar. Pois é justamente na morte de Kaspar, nas circunstâncias misteriosas que a cercaram, que iremos encontrar o maior apoio à teoria conspiratória. Se Kaspar fosse um impostor ou um joão-ninguém qualquer, quem se importaria em assassiná-lo? Entretanto, podemos supor que alguma criança, por razão ignota, tenha sido aprisionada nas condições descritas pela história de Kaspar. Poderia ser o filho bastardo de um nobre com alguma serviçal ou o resultado vergonhoso da gravidez de uma adolescente cujos interesses de família falaram mais alto; ou mesmo, quem sabe, o fruto pecaminoso do incesto que tinha que ser, de todos, ocultado. As razões poderiam ser inúmeras e os Baden não eram a única estirpe da região com esse tipo de problema. Indo mais longe, poderíamos pensar não em conspirações nobiliárias, mas na pobreza abjeta que mantinha a prole em condições sub-humanas. Pensando dessa forma, talvez sua morte seja devida mais a uma coincidência infeliz que sua fama galvanizou - a ação prudente movida pelo temor de consciências

Münster e revelou que todas as seis amostras possuíam o mesmo código genético e que combinavam com a descendente de Stéphanie, ou seja, Kaspar Hauser seria provavelmente da mesma linhagem matrilinear. (ZDF, 2003) Entretanto, a aceitação desse teste ainda não é pacífica entre os estudiosos, havendo mesmo quem tenha dúvidas que tenha sido realizado. (Wikipedia, 2004)

3.1.5 Conclusão

O resultado do último teste de DNA, somados às evidências históricas, deixam pouca margem de dúvida sobre a origem de Kaspar Hauser: ele provavelmente era o príncipe da casa de Baden, filho de Stéphanie de Beauharnais, neto de Napoleão. Até que algum outro teste venha a demonstrar o contrário  e apesar das reticências quanto à validade da última prova - tal conclusão parece irrecusável. Dessa forma, a hipótese de Kaspar ser um impostor cairia definitivamente por terra. Entretanto, se Kaspar Hauser foi ou não filho de Stéphanie de Beauharnais isso em nada altera a relevância do estudo de seu caso. Ou seja, Kaspar poderia ser qualquer um, mas certamente não é um qualquer, no sentido que representa uma exceção exemplar cujo estudo é valioso para a análise de questões históricas, psicológicas e sociais.

3.2. Sobre o Desenvolvimento de Kaspar Hauser

3.2.1. “ Nature versus nurture

Kaspar Hauser era o ser humano naturalmente bom, não corrompido pela sociedade, em suma, o bom selvagem. Feuerbach (1996, p.131) afirmava que ele era “imaculado e puro como o reflexo da eternidade na alma de um anjo”. Essa interpretação origina-se, historicamente, das idéias de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), segundo a qual Kaspar seria uma refutação viva da doutrina do pecado original, pela sua inocência e bondade. Na perspectiva de Rousseau, nos originamos de um estado de natureza sem mal, mas essa mesma natureza permanece sufocada em nós pela nossa história, fonte do mal e da liberdade: “Tudo está bem quanto sai das mãos do autor das coisas, tudo degenera entre as mãos do homem” (Rousseau, 1999, p.7), assim inicia-se o Emílio.

Contudo, se a natureza é dada, a cultura deveria ser uma construção dirigida a tornar a natureza mais humana, daí a relevância da educação. Para muitos Kaspar era a criança inocente de Rousseau e uma oportunidade de observar o papel da educação sobre a sua natureza original. O debate centrava-se sobre a questão da influência da educação sobre a personalidade ou, em outras palavras, do meio ambiente sobre a hereditariedade, questão que posteriormente Francis Galton (1822-1911) resumiu na célebre expressão “ nature versus nurture ”. É relevante notar que essa questão já procede dos albores da História: Heródoto descreve algo similar com a experiência realizada por Psammetichus^4. Frederico II (1194- 1250), imperador do Sacro Império Romano, também realizou um ‘experimento’ fracassado no qual algumas crianças eram criadas sem ouvirem fala nenhuma, para verificar qual era a linguagem natural do ser humano. A visão dos Antigos quanto à linguagem era baseada no que nós denominaríamos hoje de um inatismo radical, na suposição que a língua fosse determinada pela natureza ou pela divindade e não pela socialização e pelo aprendizado. Para alguns psicanalistas, como o próprio Sigmund Freud e principalmente Melanie Klein, a educação também pode muito pouco frente às determinações inconscientes inatas. Freud, com a admissão da pulsão de morte, no que se contrapõe às visões de Groddeck e de Reich, que supunham uma benignidade essencial do inconsciente, em consonância à tese de Rousseau. Klein, quando afirma que a capacidade de amar, bem como os impulsos destrutivos, “parecem ser inatos”. (Klein, 1974, p.46). Isso significaria que uma péssima maternagem pode não provocar graves conseqüências para o

(^4) Heródoto (1950, v.1, II, pp.111-112) relata assim esse ‘experimento’: “Os Egípcios, antes do reinado de Psamético, julgavam-se o povo mais antigo da terra. Tendo esse príncipe procurado saber, ao subir o trono, que nação tinha mais direito ao referido título, disseram-lhe que pensavam ser os Frígios mais antigos do que eles, Egípcios, embora eles o fossem mais do que qualquer outro povo. Como as pesquisas do soberano haviam sido, até então, infrutíferas, imaginou ele um meio engenhoso para chegar a uma conclusão: tomou duas crianças recém-nascidas e de baixa condição, entregando-as a um pastor para criá- las entre os rebanhos, ordenando-lhe não pronunciar qualquer palavra diante delas, e mantê-las encerradas numa cabana solitária e a levar com regularidade cabras para alimentá-las. Psamético pretendia, com isso, saber qual a primeira palavra que seria pronunciada pelas crianças quando deixassem de emitir sons inarticulados. Suas ordens foram rigorosamente cumpridas. Dois anos depois, o pastor começou a observar que, quando abria a porta e entrava na cabana, as crianças, arrastando-se para ele, punham-se a gritar ‘ becos ’, estendendo as mãos. A primeira vez que o pastor ouviu-as pronunciar tal palavra não deu importância; mas tendo notado que elas repetiam sempre o mesmo vocábulo quando entrava, levou o fato ao conhecimento do rei, exigindo este a presença das crianças. Depois de ouvi-las repetir o vocábulo, o soberano resolveu informar-se entre que povos tinha curso a palavra ‘ becos ’, vindo a saber que os Frígios denominavam assim o pão. Os egípcios consideraram-se vencidos e concluíram dessa experiência serem os Frígios mais antigos do que eles.”

cinema por François Truffaut (“ L’Enfant sauvage ”, 1969) - e mesmo até os dias de hoje.^5 Contudo, esses casos diferem qualitativamente de Kaspar, cujo contato com o ‘homem’ que o cuidava o humanizou, conferindo-lhe o acesso à escrita. Um caso que possui algumas similitudes com o de Kaspar foi o de Memmie Le Blanc, conhecida como a “Garota Selvagem de Champagne”. Encontrada em 1731 na vila de Songi, foi acolhida pelo Visconde d”Epinoy que se interessou pelo seu caso. Tendo sete ou oito anos, teria sido aprisionada, pintada de preto e vendida como escrava. Um naufrágio a fizera chegar à costa francesa, onde se mantivera escondida vivendo de modo selvagem. Supostamente tendo vindo das Índias Ocidentais, nunca ficou comprovada sua origem. (Newton, 2002). Mesmo não sabendo nada de francês por ocasião de seu aparecimento, em poucos anos aprendeu a escrever, tendo redigido uma auto-biografia, tal como Kaspar. Em que pesem as óbvias diferenças - Memmie não foi criada num calabouço -, o rápido acesso a uma escrita auto-referente, aproxima os dois casos.

3.2.2. A Carência do Imaginário

Supondo, então, a verdade histórica do relato de Kaspar Hauser e partindo dos elementos que dispomos, podemos empreender uma interpretação psicanalítica de alguns aspectos de seu caso, embasada nas formulações teóricas de Jacques Lacan sobre a tópica do imaginário e nas considerações de Françoise Dolto sobre essa temática. Kaspar, apesar de não ser estúpido ou insano, era quase totalmente desprovido de conceitos e palavras e mostrava total falta de familiaridade com os objetos cotidianos e os acontecimentos naturais, de tal forma que poderia ser tomado por “um habitante de outro planeta”. Durante seu aprisionamento, ele não tinha autoconsciência, não se via como algo separado de seus objetos. Depois, em Nuremberg, não sabia distinguir o tamanho dos objetos à distância e acreditava que os objetos possuíam vontade própria. A idéia de ‘cavalo’, em especial ‘cavalos de madeira’, tinha grande significado para ele e a palavra

(^5) “Um garoto de sete anos que foi criado por um cão foi encontrado na Sibéria. Policiais de Altai estavam em uma patrulha de rotina quando encontraram o menino na porta de uma casa abandonada com um cão ao lado. (...) Os oficiais achavam que o menino tinha três anos, mas exames médicos constataram que ele tinha sete anos. (...) O menino, chamado de Andrei, não sabe falar e ainda cheira seu alimento, como um cão, antes de comê-lo”. (AOL Notícias – 04/08/2004)

‘cavalo’ era a mais importante e mais constantemente repetida do seu repertório de cerca de doze palavras (ou cinqüenta, segundo o prefeito Binder). Nos primeiros dias de seu aparecimento, quando viu pela primeira vez a chama de uma vela, estendeu a mão de maneira inocente, queimando-se. Quando um espelho foi colocado na sua frente, ele tocou o seu reflexo na superfície polida e, então, “procurou pela pessoa [que ele acreditava estar] escondida atrás do mesmo”. (Feuerbach, 1996, pp.84-87) Kaspar não sabia diferenciar homens de mulheres, a não ser pelas suas roupas. Era atraído pelas roupas femininas – mais coloridas – e chegou a manifestar mais tarde o desejo de tornar-se uma garota para poder usar esse tipo de vestimenta (Feuerbach, 1996, p.90). Kaspar nunca tivera a chance de ver uma mulher nua e, dessa forma, não poderia reconhecer a diferença anatômica entre homens e mulheres. Quando estava preso na torre, o maior divertimento de Kaspar era desenhar e ele afixou com sua própria saliva vários desses desenhos às paredes de sua cela. Hiltel permitiu que ele participasse da rotina de sua casa, onde aprendeu a portar-se à mesa de maneira civilizada. Seu filho de onze anos, Julius, foi o primeiro a ensinar os rudimentos da linguagem a Kaspar. Foi durante sua estada com essa família que Kaspar começou a adquirir autoconsciência, a pensar e a refletir sobre seu estado (Feuerbach, 1996, pp.90- 92; Masson, 1996, p.152). A convivência com os filhos de Hiltel possibilitou a Kaspar Hauser realizar a distinção entre a imagem de si e a imagem do outro, propiciando um grande avanço em seu desenvolvimento psíquico. Mudando para a casa de Daumer, Kaspar ganhou sua primeira cama, à qual se apegou enormemente. Só aí começa a sonhar. Entretanto ele não reconhece seus sonhos como tais e quando acorda contava os eventos sonhados como se efetivamente tivessem acontecido. Só mais tarde ele faria distinção entre vida de vigília e atividade onírica. Possivelmente esses seus primeiros sonhos eram confusos e refletiam seu desajuste perceptivo. A função imaginária, primeiro exposta na atividade pictórica, começa a surgir como sonhos. Kaspar vivia numa situação sonambúlica em que sonho e realidade se misturavam. Sua vida de fantasia estava reduzida às brincadeiras com animais de madeira e depois pelos grafismos. O início da atividade onírica pode ser interpretado como a fixação da função imaginária, que começará a se desenvolver a partir desse momento. Seria de se esperar, que esses sonhos fossem sonhos infantis de realização