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A Difícil Tarefa de Consolidação dos Direitos Humanos Diante da Problemática do Linchamento na Redemocratização do Brasil, Manuais, Projetos, Pesquisas de Direitos Humanos

Este artigo trata do linchamento ocorrido no Guarujá-SP, em 2014, que vitimou uma mulher inocente, como desafio à consolidação dos direitos humanos. Observado esse fenômeno sob uma abordagem racional ou instrumental, a partir do método dedutivo e do procedimento bibliográfico, constatou-se que o linchamento questiona o valor único e irrepetível que se atribui à singularidade da vida humana, e surge como uma manifestação, legitimada pelos seus membros, de justiça popular.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2021

Compartilhado em 11/02/2021

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REVISTA DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA • Editora Unijuí • ano 5 • n. 10 • jul./dez. • 2017 • ISSN 2317-5389
Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu
em Direito da Unijuí
https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia
Revista Direitos Humanos e Democracia
A Difícil Tarefa de Consolidação
dos Direitos Humanos Diante
da Problemática do Linchamento
na Redemocratização do Brasil
José Welhinjton Cavalcante Rodrigues
Advogado pela OAB-PB. Especializando em Direito Penal
pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caja-
zeiras (FAFIC). E-mail: welhinjtoncavalcante@gmail.com.
Resumo
Este artigo trata do linchamento ocorrido no Guarujá-SP, em 2014, que vitimou uma mulher inocente,
como desafio à consolidação dos direitos humanos. Observado esse fenômeno sob uma abordagem
racional ou instrumental, a partir do método dedutivo e do procedimento bibliográfico, constatou-
-se que o linchamento questiona o valor único e irrepetível que se atribui à singularidade da vida
humana, e surge como uma manifestação, legitimada pelos seus membros, de justiça popular. Desse
atrito resultam graves violações de direitos humanos que obstaculizam a consolidação democrática
desses direitos. Em vista disso, surge a necessidade de ressignificação
de valores essenciais, como
a vida, a segurança e a liberdade, o que pode implicar a maior promoção dos direitos humanos e a
redução dos linchamentos
.
Palavras-chave: Redemocratização. Justiça popular. Direitos humanos.
p. 213-242
http://dx.doi.org/10.21527/2317-5389.2017.10.213-242
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REVISTA DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA • Editora Unijuí • ano 5 • n. 10 • jul./dez. • 2017 • ISSN 2317- Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia Revista Direitos Humanos e Democracia

A Difícil Tarefa de Consolidação

dos Direitos Humanos Diante

da Problemática do Linchamento

na Redemocratização do Brasil

José Welhinjton Cavalcante Rodrigues

Advogado pela OAB-PB. Especializando em Direito Penal pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caja- zeiras (FAFIC). E-mail: welhinjtoncavalcante@gmail.com. Resumo Este artigo trata do linchamento ocorrido no Guarujá-SP, em 2014, que vitimou uma mulher inocente, como desafio à consolidação dos direitos humanos. Observado esse fenômeno sob uma abordagem racional ou instrumental, a partir do método dedutivo e do procedimento bibliográfico, constatou- -se que o linchamento questiona o valor único e irrepetível que se atribui à singularidade da vida humana, e surge como uma manifestação, legitimada pelos seus membros, de justiça popular. Desse atrito resultam graves violações de direitos humanos que obstaculizam a consolidação democrática desses direitos. Em vista disso, surge a necessidade de ressignificação de valores essenciais, como a vida, a segurança e a liberdade, o que pode implicar a maior promoção dos direitos humanos e a redução dos linchamentos. Palavras-chave: Redemocratização. Justiça popular. Direitos humanos. p. 213- http://dx.doi.org/10.21527/2317-5389.2017.10.213-

The Difficult Task of the Human Rights Consolidation Within the Lynching Problematic in the Brazil’s Re-Democratization Abstract This article deals with the lynching happened in Guarujá-SP, in 2014, that had victimized an innocent woman, as a challenge to the consolidation of the human rights. Reviewing this phenomenon through a rational or an instrumental perspective, using a deductive and bibliographical procedure methods, it was found that lynching questions the unique and unrepeatable value attributed to the singularity of the human life, and comes as a manifestation, legitimized by its members, of popular justice. This friction results in several gross human rights violations that hinders the consolidation of those rights. Therefore, it comes the necessity of a re-signification of essential values, such as the life, the security and the freedom, what might provide a higher human rights promotion and fewer cases of lynching. Keywords: Re-democratization. Popular justice. Human rights. Recebido em: 7/7/ Revisões requeridas em: 26/4/ Aceito em: 2/5/ Sumário 1 Introdução. 2 Os direitos humanos. 2.1 O conceito de direitos humanos. 2.2 A evolução dos direitos humanos. 2.3 A precarização dos direitos civis no Brasil. 3 A (des)legitimidade da justiça popular. 4 As características do linchamento no Brasil. 5 O caso do Guarujá – São Paulo (2014). 6 Considerações finais. 7 Referências.

JOSÉ WELHINJTON CAVALCANTE RODRIGUES 216 ano 5 • n. 10 • jul./dez. • 2017 lógica de funcionamento. Nesse sentido, merece destaque a abordagem sociológica de Oliveira (2010) e Sinhoretto (2001, 2009), amplamente dis- cutida neste artigo. Não apenas na literatura sociológica que o linchamento é um pro- blema difícil de ser tratado, mas representa também um desafio dos mais difíceis para o ideário dos direitos humanos, por que existem aqueles que condenam a prática pela brutalidade utilizada e por violar bens jurídicos tão prezados pela comunidade humana, apesar de haver outros, especial- mente os linchadores, que enxergam o linchamento como uma forma eficaz de resolução de conflitos, não sendo poucas as vozes que anunciam seus bons resultados no restabelecimento da paz e da ordem no bairro. Nesse sentido, o presente estudo põe em pauta a reflexão sobre os linchamentos acontecidos no Brasil durante sua redemocratização, notadamente por meio da análise do caso que ocorreu no Guarujá-SP, em 2014, tomando o compromisso internacional do Estado brasileiro com o respeito e a promoção dos direitos humanos dentro do seu território como parâmetro. Para viabilizar essa meta, o linchamento é tratado sob uma abordagem racional ou instrumental. A partir da compreensão do aumento dos linchamentos como uma herança da ditadura militar que o país vivenciou (1964-1985), apesar de se saber que não é um fenômeno que acontece unicamente desde esse período, visa-se a identificar suas causas, de modo a buscar soluções por meio de ações que levem os direitos humanos a sério. Os desafios para pesquisar sobre os linchamentos são amplos. Pri- meiro, por que as fontes de pesquisa são bem restritas, mesmo com o progresso tecnológico que tem possibilitado o registro de várias ações coletivas violentas, por exemplo, mediante o uso de aparelhos celula- res, câmeras fotográficas, etc. Depois, devido aos registros policiais que acabam por classificar os linchamentos como homicídios ou tentativas de homicídio.

A DIFÍCIL TAREFA DE CONSOLIDAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DIANTE DA PROBLEMÁTICA DO LINCHAMENTO NA REDEMOCRATIZAÇÃO DO BRASIL REVISTA DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA 217 Os dados utilizados nesta pesquisa são derivados dos noticiários dos jornais impressos e/ou virtuais. Isso ocorre devido ao fato de ser esta a principal fonte sistemática disponível, em âmbito doméstico. Não obstante, o caso do linchamento no Guarujá-SP foi gravado por um dos linchadores, com o vídeo sendo facilmente localizado no YouTube , no qual, por meio da busca das palavras “linchamento de Fabiane Maria”, é possível alcançar 118 resultados sobre o assunto. 2 OS DIREITOS HUMANOS A ideia de relacionar os direitos humanos com o linchamento pode soar como algo subversivo quando se busca racionalizar a prática dos atores sociais envolvidos nesse fenômeno. Reforça essa percepção o fato de, nas últimas décadas, grupos oprimidos terem feito uso dos desses direitos como ferramenta de transformação da ordem dominante, o que esclarece o porquê do esforço de alguns grupos conservadores em asso- ciar a causa dos direitos humanos à mera proteção de indivíduos que praticaram um crime (RABENHORST, 2014). Esse argumento, todavia, não se sustenta, pois os direitos humanos vão além da esfera penal e têm em sua pauta de reivindicações questões relacionadas aos direitos ambientais, aos direitos de minorias, aos direi- tos dos índios, a redução das desigualdades sociais e econômicas, etc., nos espaços democráticos brasileiros. Mesmo assim vale lembrar que até as pessoas que praticaram um crime grave têm direitos essenciais que devem ser respeitados. O indivíduo que pratica um crime pode vir a perder sua liberdade, mas jamais sua dignidade (RABENHORST, 2014). Então, os direitos humanos podem servir como um poderoso antídoto contra estruturas de dominação, favorecendo o respeito pela dignidade de grupos vulneráveis.

A DIFÍCIL TAREFA DE CONSOLIDAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DIANTE DA PROBLEMÁTICA DO LINCHAMENTO NA REDEMOCRATIZAÇÃO DO BRASIL REVISTA DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA 219 maneira arbitrária, como é o caso do linchamento, se está a violar a sua dignidade e, consequentemente, a desrespeitar seus direitos humanos e fundamentais. 2.1 O Conceito de Direitos Humanos Os direitos humanos representam uma ideia profundamente revolu- cionária, pois resultam de muitos sacrifícios. Para que ela fosse alcançada, a História registrou os horrores da violência, como “Milhões de negros africanos capturados, traficados e transformados em escravos por toda a América. Milhões de índios dizimados por guerras e doenças trazidas pelos colonizadores. Milhões de judeus mortos pelos nazistas em campos de concentração” (RABENHORST, 2014, p. 5). Sem embargo, os direitos humanos equivalem aos direitos relativos à dignidade dos seres humanos. São direitos que cada indivíduo tem pelo simples fato de ser humano, e que buscam resguardar seus possuidores contra qualquer forma de aviltamento (COMPARATO, 2007). Essa nova mentalidade impede a coisificação da pessoa humana e a supressão dos seus direitos essenciais, inclusive por meio da violência. Tratados por Dworkin (2011) como “trunfos”, aquelas cartas que nos jogos de baralho têm um valor especial, podendo ganhar de quaisquer outras, os direitos humanos exercem papel valioso no plano jurídico. Isso porque [...] o Estado poderia desejar matar todos os suspeitos de cometerem delitos em nome da redução da criminalidade. Contudo, caso isso viesse a acontecer, poderíamos evocar em nossa defesa a existência de valores mais importantes, tais como a vida e a integridade física dos seres humanos. Na metáfora de um jogo que estaríamos a jogar contra o Estado, tais valores funcionariam como trunfos ou coringas (RABENHORST, 2014, p. 5).

JOSÉ WELHINJTON CAVALCANTE RODRIGUES 220 ano 5 • n. 10 • jul./dez. • 2017 O mesmo raciocínio não valeria para as outras pessoas? Acertada- mente, pode-se concluir que sim. A violação de direitos humanos acontece não apenas por parte daqueles que detêm o poder estatal. A violência empregada com o fito de pôr fim à vida de outra pessoa vai de encontro a qualquer noção básica de direitos humanos, mesmo que praticada por aqueles que não têm o poder estatal, de modo que esses direitos poderiam ser invocados como trunfos para reclamar do Estado a tutela da segurança pública e a proteção do direito à vida daqueles que estão sob sua guarda. Mesmo considerando os direitos humanos como trunfos, isso não significa que esses direitos sejam absolutos, no sentido de que devem ser observados incondicionalmente. Por exemplo, o direito à liberdade de expressão não permite que um indivíduo ofenda outras pessoas, uma vez que estas têm direito à honra e à vida privada. Assim, todo direito precisa ser ponderado para que seja avaliado seu peso ou importância, bem como sua compatibilidade com o interesse coletivo (RABENHORST, 2014). 2.2 A Evolução dos Direitos Humanos Não nascem todos juntos, e não permanecem para sempre, ao con- trário, os direitos humanos são construídos e reconstruídos ao longo do tempo, já lembravam Bobbio (1988) e Arendt (1989). A história de expan- são dos direitos humanos, apesar de sistematizá-los em gerações, não implica a hierarquização desses valores, mas apenas situá-los em determi- nado momento histórico e em ordenamentos jurídicos específicos. No século 18 surgem os primeiros direitos humanos denominados de direitos de primeira geração, são os direitos civis e políticos. Eles repre- sentam a emancipação do indivíduo que sempre se submeteu a grupos sociais como a família, o Estado, a religião, etc. (COMPARATO, 2007). Assim, esses direitos referem-se às liberdades individuais, isto os tornou conhecidos como “direitos-liberdade”.

JOSÉ WELHINJTON CAVALCANTE RODRIGUES 222 ano 5 • n. 10 • jul./dez. • 2017 solidação da democracia e a explosão de conflitos nas relações intersub- jetivas, mais especificamente conflitos de vizinhança que frequentemente são direcionados para desfechos fatais (ADORNO, 2002). Essas tendências relacionam-se entre si, apesar de não ser possível afirmar que surgem de causas comuns. A violência tornou-se um fenômeno corriqueiro, que se deve, entre outros fatores, ao rápido e desorganizado crescimento das cidades brasilei- ras que se urbanizaram em pouco tempo. Se em 1960, a população da área rural ainda superava a urbana, nos anos 2000 esse quadro se reverteu, uma vez que 81% da população brasileira já ocupava áreas urbanas. Com as grandes cidades, aumentaram o desemprego, o trabalho informal e o tráfico de drogas, que combinados, favoreceram a proliferação da violên- cia, sobretudo na forma de homicídios dolosos (CARVALHO, 2006). Os direitos humanos civis, que correspondem aos direitos à vida, à liberdade e à igualdade, são atingidos gravemente nesse contexto. O medo e a insegurança têm sido emoções que acompanham os cidadãos brasilei- ros nos mais diferentes espaços democráticos. Impedidos de frequentar determinados lugares, de sair de casa depois de um horário específico, o direito de ir e vir ganhou uma ressignificação cultural para pessoas que moram em bairros pobres, fazendo parecer mais um privilégio. Uma cida- dania limitada é o que sobrou para os “cidadãos simples”.^3 (^3) A expressão “cidadãos simples” evoca a divisão em classes lançada por Carvalho (2006), e se refere aos cidadãos de segunda classe que estão submetidos aos rigores e benefícios da lei. São pessoas que frequentemente não têm noção exata dos seus direitos, e quando a têm, não dispõem dos meios suficientes para exigi-los. Ainda nesse sentido, há os “elementos” que ocupam os noticiários policiais. Essas pessoas são a grande população marginal das grandes cidades e têm seus direitos civis constantemente desrespeitados por outros cidadãos, pelo governo e pela polícia. Não é de se estranhar que os “elementos” receiem, por isso, o contato com autoridades legais.

A DIFÍCIL TAREFA DE CONSOLIDAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DIANTE DA PROBLEMÁTICA DO LINCHAMENTO NA REDEMOCRATIZAÇÃO DO BRASIL REVISTA DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA 223 A falta de garantias eficazes dos direitos civis traz implicação com a maneira como a população busca resolver seus conflitos. Em 1988, 4, milhões de pessoas maiores de 18 anos envolveram-se em conflitos. Desse número, apenas 62% buscaram socorro na Justiça para solucioná-los, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em estudo mais recente sobre vitimização e acesso à Justiça, consta na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), de 2009, que 12, milhões de pessoas, também maiores de idade, vivenciaram situações de conflito, e dessas pessoas que viveram conflitos no âmbito criminal somente 52,4% recorreram aos tribunais e Juizados. Isto é, as pessoas têm confiado cada vez menos na Justiça formal para resolver seus litígios. O problema da ausência de garantias eficazes dos direitos civis é ainda mais agravado quando se verifica o profundo hiato entre a expansão da violência e o desempenho da Justiça criminal, o que resulta na impuni- dade penal. No Brasil, tudo indica que os crimes que mais permanecem impunes são aqueles em que ocorrem graves violações de direitos huma- nos, como acontece com os homicídios consumados durante linchamentos (ADORNO, 2002). Os direitos civis são particularmente importantes, por que sua garantia baseia-se na existência de uma Justiça eficiente, barata e acessível a todas as pessoas. Como ficou demonstrado, a Justiça criminal brasileira tem sérias dificuldades de atender a base da garantia desses direitos, não apenas pela impunidade penal, mas também por não dar conta do cresci- mento da criminalidade, o que gera insegurança e indignação. Essas informações reforçam um dado seríssimo: a população bra- sileira, notadamente a que habita bairros pobres, vê cada vez menos as instituições oficiais de Justiça como uma alternativa para solucionar seus conflitos. Tomar as rédeas da própria vida envolve, nesse contexto, a busca

A DIFÍCIL TAREFA DE CONSOLIDAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DIANTE DA PROBLEMÁTICA DO LINCHAMENTO NA REDEMOCRATIZAÇÃO DO BRASIL REVISTA DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA 225 De uma leitura dworkiana extrai-se que “uma coisa é intrinseca- mente valiosa, [...], se seu valor for independente daquilo que as pes- soas apreciam, desejam ou necessitam, ou do que é bom para elas” (DWORKIN, 2003, p. 99). Logo, o linchamento manifesta-se como um fenômeno moralmente problemático na medida em que destruir uma coisa que vale por si mesma representa uma terrível profanação. 3 A (DES)LEGITIMIDADE DA JUSTIÇA POPULAR O linchamento é uma ação de protesto e reivindicação que pode surgir de um meio comunitário instável, no qual se busca expurgar do seu convívio aquele(s) que transgride(m) regras moralmente aceitas quase que hegemonicamente pela comunidade, aplicando-lhe(s) uma punição sem intermediações (SINHORETTO, 1998). A ação coletiva de execução sumária é revestida pelo anseio dos participantes de alcançarem outra forma de justiça, cuja prática segue códigos diferentes das ações tomadas pelas instituições estatais. Acontece que a justiça formal é vista como ine- ficaz no atendimento de demandas punitivas (OLIVEIRA, 2010), caracteri- zando um descompasso entre a ideia de justiça praticada pelos linchadores daquela adotada pelo Estado. A ação particular torna-se uma solução possível e de resultados sentidos pela população (SINHORETTO, 2009). A esse respeito, note-se o depoimento de um popular entrevistado quando diz: “Porque a gente não deseja o mal para os outros, mas no caso, o que aconteceu... a gente não deseja o mal, mas também... sei lá, foi bom, no caso foi bom porque limpou o lugar, né?” (SINHORETTO, 1998). Assim sendo, mesmo discordando do emprego da violência, os cidadãos acabam por legitimar o linchamento, devido aos seus efeitos concretos para a manutenção da ordem e da paz na comunidade, argumento este utilizado para promover a ideia de que a criminalidade deve ser combatida de maneira arbitrária e violenta.

JOSÉ WELHINJTON CAVALCANTE RODRIGUES 226 ano 5 • n. 10 • jul./dez. • 2017 Encontra-se, com isso, instaurado o conflito entre a forma popular e a maneira legal de se fazer justiça. Para entender as origens e mecanismos que engendram a discussão sobre justiça popular, ora dialoga-se com a concepção de Foucault (1992) a respeito do assunto desenvolvida durante um debate com ativistas maoístas, quando tratou da criação de tribunais populares para realizar o julgamento de crimes de polícia. Durante o debate, Foucault explica que o tribunal não pode ser uma manifestação da justiça popular, uma vez que esta é caracterizada exata- mente por ser antijudiciária. Isso tem sua razão de ser no fato de o tribunal representar essencialmente o aparelho de Estado da Justiça moderna, sendo, portanto, a figura do poder de uma classe. Dessa forma, uma Jus- tiça que pretende ser popular e libertadora não pode utilizar como meio para alcançar suas metas, uma instituição que por excelência pertence ao Estado e tem por objetivo controlar a “plebe”. É importante destacar que para fundamentar seu argumento, Foucault (1992) apresenta alguns dados históricos. Continua o mencionado autor ressaltando que um tribunal é um embrião criado pelo Estado, porque supõe uma terceira parte neutra que não tem interesse direto no conflito instalado e que, portanto, não parti- cipa dos conflitos de classe. Esta terceira parte é quem determina o que se entende por certo e errado, bem como sobre quem é o culpado, e isso vai de encontro à reivindicação principal da justiça popular, que consiste no direito de decidir por si próprio (FOUCAULT, 1992). Logo, as ações de justiça popular são marcadamente antijudiciárias e diferem da forma do tribunal na medida em que reconhecem neste uma ferramenta do Estado e um meio de expressão do poder de classe. Em raciocínio oposto, uma ação pode ser caracterizada como manifestação de justiça popular quando seus objetivos e resultados guardam harmonia

JOSÉ WELHINJTON CAVALCANTE RODRIGUES 228 ano 5 • n. 10 • jul./dez. • 2017 cação entre as discutidas formas de Justiça. Enquanto a Justiça legal não atende às demandas comunitárias, é o agir por conta própria um instru- mento de realização da Justiça. 4 AS CARACTERÍSTICAS DO LINCHAMENTO NO BRASIL Algumas pesquisas em torno dos linchamentos, notadamente os estudos de Benevides (1982, 1983), Rios (1988) e Martins (1996) trazem evidências no sentido de rotular a decisão que resulta no linchamento e o ato em si, como irracional e patológico. Por outro lado, as pesquisas recentes da Sinhoretto (2009) e Oliveira (2010) analisam essa ação coletiva como componente de um meio cultural que lhe atribui uma racionalidade, lhe preenche de sentido, bem como lhe expõe uma lógica de funciona- mento. O linchamento no Brasil manifesta-se com características bem deli- mitadas em diferentes situações, repetindo-se caracteres peculiares dos variados tipos de localidades (áreas metropolitanas, urbanas não metropo- litanas e rurais) (MARTINS, 1996). De tal sorte que os estudos realizados em torno da temática permitiram uma sistematização em torno de um padrão acerca dos perfis dos linchados e dos linchadores, além da moti- vação e de onde ocorrem. No Brasil os linchamentos constantemente são definidos como ações coletivas de execução sumária de pessoas, acusadas ou suposta- mente acusadas de transgredirem a ordem comunitária, observam Bene- vides (1982), Benevides e Ferreira (1983) e Sinhoretto (2009). Em estudo anterior, no entanto, Benevides (1982) considerou o linchamento como resultado de uma “revolta popular”. Divergências à parte, a característica principal dessa prática é a “(...) ação única: o grupo linchador se forma em torno de uma vítima e, após a ação, se dissolve” (SINHORETTO, 2009).

A DIFÍCIL TAREFA DE CONSOLIDAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DIANTE DA PROBLEMÁTICA DO LINCHAMENTO NA REDEMOCRATIZAÇÃO DO BRASIL REVISTA DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA 229 Decorre então que essas ações são frequentemente abordadas como espontâneas e sem anterior preparo, iniciando-se de forma inesperada. Não obstante isso os participantes podem ter planejado, organizado e até previsto o resultado. Em um estudo feito por Martins (1996) foram condensados apro- ximadamente 677 casos de linchamentos consumados e tentados que ocorreram durante um período de 20 anos. Desta pesquisa desdobram- -se quatro categorias de linchadores, que contemplam (A) “parentes e amigos de alguém que tenha sido vítima do linchado”, (B) “vizinhos e moradores da localidade de moradia de alguém que tenha sido vítima”, (C) grupos corporativos de trabalhadores (especificamente motoristas de táxi e trabalhadores da mesma empresa em que trabalha ou trabalhava alguém vitimado) e (D) grupos ocasionais (especialmente multidões da rua, transeuntes, passageiros de trens e ônibus, torcedores de futebol). Assim sendo, os linchadores, geralmente, habitam o mesmo espaço comu- nitário e são “conhecidos de vista” (MARTINS, 1996). Observa-se constantemente que os linchamentos funcionam como “rituais de desumanização” daqueles que infringem normas comunitárias, consubstanciados na eliminação simbólica da vítima. O linchado é sub- metido à expiação e suplício reais, por meio de mutilação, queimaduras, castração, esquartejamento, ou ainda de corpos arrastados pelas ruas e jogados no lixo, etc. (SOUZA, 1999). Diante disso, destaca-se um segundo centro da ação, que revela os linchamentos como agravamento da violên- cia pelo sofrimento do corpo do outro. Não são alvos de linchamento somente aqueles que cometem crimes de grande repúdio social, como estupro a crianças e adolescentes, homicídios, etc., mas também crimes contra o patrimônio, como furto, roubo, entre outros (RIOS, 1988). Sendo assim, o argumento de que o linchamento ocorre apenas em virtude de um crime que provoca ojeriza na comunidade é falacioso. Na verdade, as motivações que determinam o lin-

A DIFÍCIL TAREFA DE CONSOLIDAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DIANTE DA PROBLEMÁTICA DO LINCHAMENTO NA REDEMOCRATIZAÇÃO DO BRASIL REVISTA DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA 231 são fenômenos predominantemente urbanos, isso porque Martins (1996) atribui a concentração dessas práticas violentas em áreas urbanas a um processo social denominado de urbanização insuficiente e inconclusa, no qual há uma verdadeira privação no entendimento da lógica peculiar da vida urbana e civilizada. Não obstante, há também linchamentos em áreas rurais. Os linchamentos, portanto, ocorrem, em sua maioria, em regiões periféricas, em bairros pobres ou de classe média baixa, ainda em cidades pequenas e, em sua minoria, em áreas rurais. A partir do exposto, Martins (1989, 1996) apresentou um perfil dual: os linchamentos de cidades pequenas que revelam uma percepção anti-iluminista, que contavam com a participação da classe média e a con- testação expressa às instituições judiciárias e policiais, com base conser- vadora e repressiva; por outro lado os linchamentos das periferias urbanas são praticados por obreiros pobres, guardando forte motivação no anseio de justiça perante o acontecimento de crimes graves. Outra classificação dual foi fornecida por Benevides e Ferreira (1983) e corresponde a linchamentos anônimos e comunitários. O tipo anônimo é aquele em que transeuntes de bairros de classe média que não foram diretamente atingidos pelo dissidente agregam-se a um linchamento mesmo sem conhecer sua origem, motivados pela invocação de “pega ladrão”. Em contrapartida, os linchamentos comunitários são aqueles em que uma comunidade, diante da possibilidade de ter seus indivíduos iden- tificados em razão de todos se mobilizarem para o acontecimento, sente-se diretamente atingida pela conduta criminosa de um delinquente conhe- cido. As ações do perfil comunitário são comuns em cidades pequenas e bairros populares das periferias das metrópoles. O linchamento ocorrido na primeira quinzena de maio de 2014, em Guarujá-SP, ora objeto da presente pesquisa, apresenta melhor subsunção nesta última classificação, por ter acontecido em um bairro popular. No caso em tela foi possível observar a mobilização da comunidade em torno

JOSÉ WELHINJTON CAVALCANTE RODRIGUES 232 ano 5 • n. 10 • jul./dez. • 2017 da organização do linchamento, ora por meio dos limites territoriais do bairro, ora por intermédio dos recursos virtuais disponíveis. Ainda pode- -se constatar o linchamento como revolta popular com contornos maiores do que a simples execução de uma suposta infratora. Assim, a execução vincula-se à reivindicação de segurança, ao reconhecimento político, etc. (SINHORETTO, 2009). 5 O CASO DO GUARUJÁ – SÃO PAULO (2014) O linchamento aconteceu em um bairro do Guarujá de recente ocu- pação, marcado por um processo de urbanização lento e difícil, mas que originalmente possuía uma proposta restauradora para a região. Ocorre que a criação do bairro de Morrinhos surgiu como tentativa da prefeitura local de efetivar um programa de redução das 42 favelas existentes na cidade na década de 80. O bairro de Morrinhos pretendia abrigar 2.500 famílias vindas das Vilas Sônia, Julia e Baiana, em uma área de 665.840 m². O terreno, con- tudo, foi sendo gradativamente ocupado irregularmente, mesmo não tendo iluminação pública, quaisquer condições sanitárias, transporte público, etc. (NASCIMENTO, 2008). À época eram comuns denúncias de aquisição de lotes para revenda supostamente permitido pela prefeitura, motivo pelo qual alguns tentaram, sem êxito, instalar uma Comissão de Inquérito contra a administração pública local para apurar possíveis irregularidades, o que revela aspec- tos de corrupção e segregação nas relações de poder existentes entre as diversas instituições. Apesar dos esforços desenvolvidos para efetivação do programa de desfavelamento, o bairro de Morrinhos tornou-se uma nova favela, espaço público propício para a desagregação e a exclusão social. Assim,