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Este documento explora a relação entre a teoria psicanalítica de freud e a literatura de dostoiévski em relação à origem e natureza da culpa. Através da análise de cartas e obras de ambos os autores, o texto apresenta a interconexão entre o desejo de morte dirigido ao pai, a culpa e a necessidade de punição, e o conceito de superego em freud. Além disso, o documento discute a perspectiva de bakhtin sobre a leitura de freud de dostoiévski.
Tipologia: Slides
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A culpa na ficção Karamázov: entre o ato e a intenção
A culpa na ficção Karamázov:
entre o ato e a intenção
Dissertação apresentada ao Curso de Pós- Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito para a obtenção do título de Mestre em Literatura. Orientador: Dr. Marcos José Müller- Granzotto.
Para Alexandre
Este trabalho apresenta o conceito de culpa na teoria freudiana através do romance de Dostoiévski, Os irmãos Karamázovi. Parte-se do pressuposto de que a culpa está relacionada antes com a intenção do que com ato e que esta questão é comum aos dois autores apresentados: Freud e Dostoiévski. O ponto central desta dissertação é a leitura das principais personagens da obra do autor russo, os quatro irmãos Karamázovi, e de que maneira o parricídio é causa e efeito da culpa em cada um deles. Também se faz uma crítica da forma com que Freud se utilizou da literatura, enfatizando as limitações e excessos de suas interpretações, principalmente no texto Dostoievski e o parricídio. Contempla-se ainda uma breve leitura do principal teórico literário de Dostoiévski, Mikhail Bakhtin, traçando caminhos convergentes com as argumentações apresentadas a respeito das possibilidades oferecidas pela literatura para trabalhar com outras áreas do conhecimento.
Palavras-chave: psicanálise; literatura; culpa; ato e intenção; parricídio.
produção literária iniciada em 1846, com Pobre Gente , que já o fez famoso e reconhecido pela crítica a ponto de ser comparado a Gógol^5. Essa obra que trabalharemos foi a última escrita por Dostoiévski e tornou-se tão conhecida quanto Crime e castigo (1866), O idiota (1869) e Os demônios (1871), ainda que não tenha sido concluída. O seu objetivo era escrever “uma biografia e dois romances. O principal é o segundo, é a atividade de meu herói^6 em nossa época, no momento presente. O primeiro desenrola-se há treze anos, para dizer a verdade, é apenas um momento da primeira juventude do herói [...].”^7
Dostoiévski é um autor que parece oscilar entre a obediência e a rebeldia, entre o otimismo e a total impossibilidade de mudança, que exorta o sofrimento e “destrói o mito da felicidade ao denunciar núcleos de verdade de sua época. Ele desnuda o homem, a sua cultura e a sua sociedade; se nega a lhe oferecer alívio, o defronta com sua miséria.”^8 Não seria então esta a causa pela qual os psicanalistas encontram na vasta literatura deste escritor russo uma abertura profícua para o trabalho? “Dostoievski não disse coisas agradáveis nem se associou à promessa hipócrita do bem-estar ou ao pragmatismo das boas obras; ele expôs a céu aberto a desarmonia do sujeito consigo mesmo, com o próximo e com o parceiro sexual.” 9 Vemos então, que suas oscilações tanto na vida quanto na obra nos dão a real medida do inapreensível. Acreditamos que filósofos, historiadores, teólogos, entre tantos outros com diferentes argumentos também encontrem ali o seu sustento intelectual; portanto a psicanálise, enfatizemos, é um caminho, e a temática do parricídio e da culpa um recorte da obra Os Irmãos Karamázovi. Tentaremos mostrar a importância da ambivalência de sentimentos para com o pai na teoria freudiana e que, nas personagens de Dostoiévski, se repete e se traduz na ambivalência dos Karamázovi. Para Freud “[...] o amor intenso e o ódio intenso são, com tanta freqüência, encontrados juntos na mesma pessoa. A psicanálise acrescenta que esses
castigo, em russo. Logo já está no próprio nome o papel de Fiódor Pavlovitch. Estará sob o signo do que é manchado de negro, sujo, vilipendiado, agredido e, por isso, deverá ser punido, castigado”. Cf. ARBAN, D. Dostoievski. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, p. 13. Ainda de conformidade com Arban […] nome da família Karamázov nasceu evidentemente do nome Karakozov, o regicida que tentou, em 1866, assassinar o czar reinante (Ibid, p. 175). “Plural russo de Karamázov. Nome forjado, composto provavelmente do substantivo kara , castigo, punição, e do verbo mázat, sujar, pintar, não acertar. Seria, simbolicamente, aquele que com o seu comportamento desacertado provoca a própria punição.” Cf. DOSTOIÉVSKI, op. Cit. p. 495, vol. 4. Ressaltamos que o leitor encontrará o sobrenome Karamázov e Karamázovi, marcando o singular e o plural, respectivamente. 5 Nikolai Vassílievitch Gógol (1809-1852). Este escritor foi um marco para a história da literatura russa do século XIX. Segundo Dostoiévski “Todos nós saímos do ‘capote’ de Gógol.” Cf. Cadernos Entrelivros. Panorama da Literatura russa. 6 Duetto: São Paulo, n.2, p. 53. 7 O herói de Dostoiévski é Aliócha, como veremos adiante. 8 DOSTOIÉVSKI, op. Cit., p. 496, vol. 4. GÉREZ-AMBERTÍN, Marta. As vozes do supereu. Tradução de Stella Chesil. São Paulo: Cultura Editores Associados, Caxias do Sul, RS: EDUCS, 2003, p. 340. 9 Ibid, p. 340.
dois sentimentos opostos, não raramente têm como objeto a mesma pessoa.”^10 Encontramos na obra de Dostoiévski “uma natureza ampla, um Karamázov [...] capaz de reunir todos os contrastes e de contemplar ao mesmo tempo dois abismos, o do alto, o abismo dos sublimes ideais, e o de baixo, o abismo da mais ignóbil degradação.”^11
A razão de escolhermos o tema da culpa deve-se ao fato de sabermos que somente a partir dele podemos abrir outros questionamentos e asserções acerca da psicanálise. A gênese da culpa na teoria psicanalítica, e da própria psicanálise, estão imbricadas no desejo de morte dirigido ao pai, e que se sustenta e se traduz através das personagens dostoievskianas atormentadas pelo ódio a um pai tirano que, ao mesmo tempo em que é incapaz de amar os seus filhos, também ocupa um lugar impossível de ser destituído. E, através de Dostoiévski,
Sabia-se portanto, agora, o que significava para Freud a rebelião dos filhos. Sabia-se quem matara o pai, do que o filho se sentia culpado, quem era o mandatário do crime e quem era o culpado do ato assassino. Mas restava um enigma a resolver nesse sombrio caso de família. Quem é o pai? Por que é preciso condená-lo a morte? O que fazer desses seus despojos? 12
Então, como não poderia ser de outra forma, o lugar do pai será discutido de forma intensa. No entanto, devemos advertir que o leitor poderá encontrar muitas idéias e conceitos apresentados de forma condensada, mas acreditamos que poderemos ser seguidos e compreendidos. Porém, se o trabalho é condensado, a trajetória não é curta.
Iniciaremos apresentando algumas idéias sobre a relação entre psicanálise e literatura, e repensando por que a literatura desperta tanto interesse nos psicanalistas desde Freud, que apostamos ter sido não só o pioneiro, mas também o mais influente e produtivo psicanalista nesta área, ainda que com acertos e erros. Em seguida introduziremos uma discussão sobre Mikhail Bakhtin, o mais comentado teórico de Dostoiévski, que oferece uma importante contribuição à teoria literária. Por fim, faremos uma crítica da leitura de Freud sobre Dostoiévski, talvez subordinada a nossa própria insatisfação do quão pouco espaço a psicanálise dedicou a este autor.
No capítulo dois explanaremos alguns conceitos, além de apresentarmos alguns textos, como Totem e tabu e Mal-estar na civilização , e discutir um ponto nodal deste
(^10) FREUD, Sigmund. Reflexões para os tempos de guerra e morte. In: _______. Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, (1915) 1980, p. 318, vol. XIV. 11 12 DOSTOIÉVSKI, op. Cit., p. 1041, vol. 4. ROUDINESCO, Elisabeth. A família em desordem. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 81.
1.1 A literatura no desejo da psicanálise
É que, do mesmo modo que, não o desejo de se tornar célebre, mas o hábito de trabalhar que nos permite produzir uma obra, não é a alegria do momento presente, mas as sábias reflexões do passado, que nos auxiliam a preservar o futuro.^13 Qualquer idéia que valha tão-somente um tostão é reconhecível e medida pela qualidade da resposta que suscita. Pois bem, se a literatura tem alguma função social, talvez seja a de mostrar ao homem seus parâmetros extremos... Quanto a mim, o que eu fiz foi somente empurrar até o extremo, em minha vida, o que vocês só têm coragem de empurrar até a metade.^14 Eu disse uma vez que escrever é uma maldição. [...]. Hoje repito: é uma maldição, mas uma maldição que salva.^15
Parece haver um acordo ao afirmarmos que a psicanálise influenciou vários campos, como a arte, a psicologia e a literatura. Aliás, não é sem conseqüências que a teoria criada por Freud circula por nossa cultura e faz com que sem pensar falemos em Complexo de Édipo, ambivalência, repressão e resistência.
Deste último conceito, Freud afirma que qualquer coisa que perturbe o avanço do trabalho é uma resistência e é a partir daí que podemos nos implicar. Falar em psicanálise exige implicação. Então, não podemos negar que nos últimos anos alguns psicanalistas têm se autorizado a psicanalizar qualquer coisa e a literatura tem resistido a isso. E por que não o faria? A resistência não está nela (a literatura), como acusam alguns psicanalistas, mas neles, que acreditam que podem dar a ela o que lhe falta. Lacan^16 , de forma precisa, diz:
Para a psicanálise, que ela esteja pendurada ao Édipo, ao Édipo do mito, não a qualifica em nada a se reconhecer no texto de Sófocles. Não é a mesma coisa. A evocação por Freud de um texto de Dostoiewsky não basta para dizer que a crítica de texto, até aqui, exclusividade do discurso universitário, tenha recebido mais ar de psicanálise.
(^13) PROUST, Marcel. À sombra das moças em flor. In: Em busca do tempo perdido. Tradução de Fernando Py. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 616. 14 15 DOSTOIÉVSKI, Fiodor. In:^ Revista Cult Especial Biografias.^ São Paulo: Bregantini, n. 4, p. 22, s.d. 16 LISPECTOR, Clarice.^ Aprendendo a viver.^ Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p. 179. LACAN, Jacques. Lituraterre. Tradução de Telma Corrêa da Nóbrega Queiroz. Lição 7 de 12 de maio de 1971, pp. 109-10.
Vemos então que a crítica está no uso que os psicanalistas têm feito da literatura e não do lugar que a psicanálise, enquanto campo do conhecimento, dá a ela. Neste impasse Dante M Leite^17 pensa que:
Aplicadas às criações literárias, a análise tenderia a ver, em todas elas, as motivações e os conflitos infantis. Portanto, seríamos levados a admitir que todas as obras literárias têm o mesmo conteúdo, e não teríamos recursos para explicar ou descrever a sua diversidade.
Se por um lado reconhecemos nesse comentário de Leite a intenção de preservar a literatura da ânsia por interpretação de alguns psicanalistas, também precisamos esclarecer que, na visão que a psicanálise empreende, todas as obras literárias têm o mesmo conteúdo, no sentido de que as perguntas são sempre as mesmas, são pelos fantasmas originais^18 : cena primária, castração, sedução, romance familiar e retorno ao seio materno. Isto não impede de nenhuma maneira a diversidade, porque cada um tenta dar uma resposta diferente aos seus enigmas. Acrescentaríamos ainda o que diz Freud^19 : “Se a psicanálise é compelida - e é, na realidade, obrigada, a colocar toda a ênfase numa determinada fonte, isto não significa que esteja alegando ser essa fonte a única ou que ela ocupe o primeiro lugar entre os numerosos fatores contribuintes.”
Não negamos que essa celeuma entre psicanálise e literatura talvez seja uma das heranças deixadas pelo próprio Freud, mas não invalida e muito menos reduz os encontros possíveis entre estas duas áreas do conhecimento. Sabemos que Freud estava construindo seus conceitos e a literatura foi um dos seus maiores auxílios, não sem tropeços, se é que assim podemos classificar alguns de seus textos, como a Gradiva de Jensen e Dostoievski e o parricídio.^20
(^17) LEITE, Dante M. Psicologia e literatura. São Paulo: UNESP, 2002, p. 188. (^18) O fantasma é que sustenta e constrói o sujeito, é a sua resposta ao mundo. São sempre os mesmos enigmas sobre o nascimento, sexo e morte, e em torno deles se articula o desejo, uma vez que cada um busca uma resposta diferente que possa dar conta do que nunca se saberá. 19 FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. In: _______. Obras psicológicas completas de Freud. Rio de Janeiro: Imago (1913 [1912-1913]) 1980, p. 125, vol. XIII. 20 Em nossa opinião esses textos são dois exemplos de excessos cometidos por Freud na interpretação do autor e da obra, embora não neguemos o seu valor. “Absolutamente impávido, porém Freud entrou com coragem nesse pântano, com seu fascinante estudo sobre a Gradiva de Jensen. Ele redigiu, disse a Jung, ‘em dias ensolarados’, e o texto lhe deu ‘muito prazer. É verdade que não nos traz nada de novo, mas acredito que nos permite desfrutar de nossa riqueza’. A análise de Freud ilustra belamente o que essa espécie de Psicanálise literária pode realizar e os riscos com que se depara”. In: GAY, P. Freud: uma vida para nosso tempo. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 298. Sobre o texto Dostoievski e o parricídio falaremos adiante.
justapor sobre o texto da obra. Podem ser cruciais, por exemplo, na análise de pensamento de um autor ou na discussão das maneiras pelas quais uma obra poderia ter complicado ou subvertido uma visão ou uma intenção anunciada. 26
Numa mesma corrente de opinião, Wellek e Warren fazem um importante comentário sobre as possibilidades de interpretação, generosidade e abertura de novas perspectivas que a literatura pode oferecer:
E, ainda que conseguíssemos reconstituir o significado que Hamlet oferecia aos espectadores seus contemporâneos, apenas estaríamos a empobrecê-lo. Suprimíramos os significados legítimos que as gerações posteriores acharam no Hamlet. E baniríamos as possibilidades de uma nova interpretação. Isto não é a defesa de leituras de impressões erradas, arbitrárias e subjectivas: o problema de uma distinção entre impressões “correctas” e levianas manter-se-á, e necessitará de uma solução para cada caso específico. 27
Em face disso, sustentamos a posição de um trabalho que não nega a realidade histórica e social do autor e da obra, mas se mantém fiel ao discurso, daquilo que emerge pela leitura, sem limitá-lo a uma única intenção. Em poucas palavras, Martendal confirma:
A questão nodal é dizer acerca do como , de que modo um texto opera, de como produz sentido. Não se trata aí daquilo que o texto quer dizer (o sentido dado de nada vale), nem de se contextualizar para melhor entender, mas sim da relação do sujeito com o texto e daquilo que se produz a partir disso.^28
Sob esse aspecto, Culler^29 comenta que “o sentido é uma noção inescapável porque não é algo simples ou simplesmente determinado. É simultaneamente uma experiência de um sujeito e uma propriedade de um texto.” Para ilustrar essa idéia podemos utilizar uma figura topológica^30 , denominada Banda de Moebius, em que se tem uma continuidade entre as superfícies dentro/fora, onde “o uso comum do ‘cara ou coroa’ fica, aqui, subvertido. O direito e o avesso estão contidos um no outro.”^31 Neste trabalho, essas superfícies estão entre uma busca de sentidos na obra de Dostoiévski e uma inferência neles, trazendo à luz
(^26) Ibid, p. 69. (^27) WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria Literária .Tradução de José Palla e Carmo. Lisboa: Publicações Europa América, 1955, p. 53. 28 29 MARTENDAL, Adriano.^ A escrita no limiar do sentido.^ São Paulo: Escuta, 2007, p. 38. 30 CULLER, op. Cit., p. 69. A topologia é um ramo da matemática utilizado por Lacan para trabalhar conceitos psicanalíticos. Ele recorreu à Banda de Moebius, toro, cross -cap e garrafa de Klein para “explicar o que implica para o sujeito humano ser um sujeito falante: na qualidade de falante ele se constitui no lugar do Outro, (...). O sujeito é ele próprio uma superfície sobre a qual opera o significante.” (KAUFMANN, Pierre. Dicionário enciclopédico de psicanálise : o legado de Freud e Lacan. Tradução de Vera Ribeiro e Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, pp. 527-28). 31 GRANON-LAFONT, Jeanne. A topologia de Jacques Lacan. Tradução de Luiz Carlos Miranda e Evany Cardoso. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 25.
interpretações e conceitos freudianos nas personagens; é o que caracterizamos por fim, como “nossa oscilação” entre uma leitura aditiva e extrativa, tal como apresenta Villari.
Uma vez que já marcamos a forma com que conduziremos este trabalho, podemos seguir apresentando alguns referenciais teóricos dados por Culler para discutir a natureza da literatura, ressaltando a linguagem como ponto convergente com a concepção psicanalítica.
A literatura é o ruído da cultura assim como sua informação. É uma força entrópica assim como um capital cultural. É uma escrita que exige uma leitura e envolve os leitores no problema do sentido. A literatura é uma instituição paradoxal porque criar literatura é escrever de acordo com fórmulas existentes [...] mas é também zombar dessas convenções, ir além delas. A literatura é uma instituição que vive de expor e criticar seus próprios limites, de testar o que acontecerá se escrevermos de modo diferente. Assim, a literatura é ao mesmo tempo o nome do absolutamente convencional [...] e do absolutamente demolidor [...]. Refletir sobre a literariedade é manter diante de nós, como recursos de análises desses discursos, práticas de leitura trazidas à luz pela literatura: a suspensão da exigência de inteligibilidade imediata, a reflexão sobre as implicações dos meios de expressão e a atenção em como o sentido se faz e o prazer que produz. 32
A literatura psicanalítica apresenta textos que, além de definirem conceitos, introduzem também experiência e reflexão para o leitor, e, por meio de uma série de abordagens, impasses e avanços, fazem falar. Sabemos que Freud era um médico neurologista, com forte sensibilidade estética literária; ele era minucioso ao escrever seus historiais clínicos, os apresentando não como uma descrição de caso a ser estudado e dissecado, mas com um cuidado engenhoso com a forma. Será que leríamos Freud da mesma maneira, com o mesmo prazer, por mais de um século, se os seus textos não fossem tão belos?
Segundo Pedro Tavares: O estético aparece em Freud como um recurso à teorização. Sua opção pelo literário, que se manifesta seja nas numerosas epígrafes, citações ou analogias de suas construções teóricas com autores cuja obra se articula à instituição do estético, ou mesmo em seu estilo próprio de exposição de suas idéias, poderia ser observado como uma forma de travestir o discurso teórico [...].^33
Na opinião de Roudinesco: Se Freud tivesse continuado tributário de um modelo neurofisiológico, nunca teria conseguido atualizar os grandes mitos da literatura para construir uma teoria dos comportamentos humanos. Em outras palavras, sem a reinterpretação freudiana das narrativas fundadoras, Édipo seria apenas um personagem de ficção, e não um
(^32) CULLER, op. Cit., p. 47. (^33) TAVARES, Pedro Heliodoro M. B. Freud e Schnittzler: sonho sujeito ao olhar. São Paulo: Annablume, 2007, p. 99.
fundamentalmente isso que todos pedem, os revolucionários mais impetuosos tão apaixonadamente quanto os crentes devotos mais conformistas. 39
Quiçá a literatura, então, ofereça um ponto de conforto a mais, por isso ainda recorremos metonimicamente às obras literárias, numa insistência pelo encontro sempre adiado, numa ânsia pelo prazer, vislumbrado por um trabalho incessante e
constitui resultado inevitável de tudo isso que passemos a procurar no mundo da ficção, na literatura e no teatro a compensação pelo que se perdeu na vida. Ali encontraremos pessoas que sabem morrer- que conseguem inclusive matar alguém. Também só ali pode ser preenchida a condição que possibilita nossa reconciliação com a morte: a saber, que por detrás de todas as vicissitudes da vida devemos ainda ser capazes de preservar intacta uma vida, pois é realmente muito triste que tudo na vida deva ser como um jogo de xadrez, onde um movimento em falso pode forçar- nos a desistir dele, com a diferença, porém, de que não podemos começar uma segunda partida, uma revanche.^40 No literário encontramos a possibilidade de gerar estes novos efeitos, onde o sentido não é reduzido a um único saber, mas sim, é algo que marca, autoriza, também claudica, e por isso mesmo, produz trabalho “impulsionado pelo desejo”. Culler resume:
O prazer da narrativa se vincula ao desejo. Os enredos falam do desejo e do que acontece com ele, mas o movimento da própria narrativa é impulsionado pelo desejo sob a forma de “epistemofilia”, um desejo de saber: queremos descobrir segredos, saber o final, encontrar a verdade. Se o que impulsiona a narrativa é a ânsia “masculina” de domínio, o desejo de desvelar a verdade (“a verdade nua”), então que tal o conhecimento que a narrativa nos oferece para satisfazer esse desejo? Esse conhecimento é ele próprio um efeito do desejo? Os teóricos fazem essas perguntas sobre os vínculos entre desejos, histórias e conhecimento.^41
Mas qual é o desejo que a obra de Dostoiévski desencadeia no seio da psicanálise? Talvez seja o talento deste autor para fazer verter, nas personagens ficcionais, algo de universal que habita o coração de todos os homens. Mas em que medida uma personagem haveria de carregar em si algo da humanidade? Em que sentido a literatura é capaz de nos fornecer algo além dela mesma? Esta foi a aposta de Freud, que não estava sozinho nessa forma de compreender a literatura. Com ele, mas não ao lado dele, podemos recorrer a Mikhail Mikhailovitch Bakhtin. Este pensador é reconhecido como um dos principais críticos de Dostoiévski, sendo Problemas da poética de Dostoiévski (1929) leitura obrigatória para aqueles interessados na teoria bakhtiniana e na literatura dostoievskiana. Entretanto, já expomos que usaremos o referencial psicanalítico para trabalharmos a obra Os Irmãos Karamázovi e temos claro que estamos fazendo um recorte do que consideramos como os
(^39) FREUD apud GAY, op. Cit., pp. 499-500. (^40) FREUD, Sigmund. Reflexões para os tempos de Guerra e morte. In: _______, op. Cit., (1915) 1980, p. 329, vol. XIV.
temas principais da obra: o parricídio e a culpa. Dessa maneira, encontrar em Bakhtin a afirmação de que este romance tem um “enfoque extremamente aprofundado e universalizado do tema do parricídio”^42 , é significante e encorajador. No entanto, não podemos negar que a teoria bakhtiniana não sustenta os nossos argumentos, assim como nossos argumentos provavelmente ruiriam diante dela. Assim, se não estamos em um campo de luta, também nos vemos impossibilitados de uma fusão teórica.
1.2 Bakhtin leitor de Dostoiévski
O nosso discurso da vida prática está cheio de palavras de outros.^43 Pensar implica interrogar e ouvir, experimentar posicionamentos, combinando uns e desmascarando outros.^44 Antes de partirmos para uma discussão sobre o conceito de culpa em Freud e a obra de Dostoiévski, e depois dos esforços iniciais no sentido de melhor entendermos a relação entre a psicanálise e a literatura, achamos imprescindível fazer esta referência a Bakhtin. Talvez ele nos ajude a responder uma questão: por que continuamos lendo Dostoiévski?
Fazendo uma aproximação com a literatura brasileira poderemos encontrar uma resposta em Machado de Assis e introduzir a nossa breve leitura do russo M. Bakhtin.
Em Machado e Dostoiévski temos um tipo de escrita que não se fecha a uma única interpretação, nos lançando diante de enigmas indecifráveis e de uma leitura por concluir. Para Bakhtin^45 :
Nas obras de Dostoiévski não há discurso definitivo, concluído, determinante de uma vez por todas. Daí não haver tampouco uma imagem sólida do herói que responda à pergunta: “quem é ele?”. Aqui há apenas as perguntas: “quem sou eu?” e “quem és tu?”. Mas essas perguntas também soam no diálogo interior contínuo e inacabado. A palavra do herói e a palavra sobre o herói são determinadas pela atitude dialógica aberta face a si mesmo e ao outro.
(^41) CULLER, op. Cit., pp. 92-3. (^42) BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 2005, p. 174. 43 44 Ibid, p. 195. 45 Ibid, p. 95. Ibid, p. 256.