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Neste artigo, o autor demonstra como a crítica da razão utilitária processada pelo paradigma da dádiva contribui para uma reflexão radical nas escolhas metodológicas nas ciências sociais. O paradigma da dádiva desafia o vínculo social, ativando um nível de análise social adicional: as redes e as relações. O destino das ciências sociais está ligado ao do princípio de razão? o paradigma da dádiva busca uma redescrição complexa e multidimensional da ação social, apontando um caminho para superar as aporias derivadas dos racionalismos abstratos e dos relativismos pluralistas. A análise social pressupõe uma espécie de arqueologia da sociabilidade nas sociedades contemporâneas, localizando o 'ser social' sem se deixar enganar por qualquer tipo especial de 'substância'.
Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas
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A descoberta da contingência pela teoria social 309
Sociedade e Estado, Brasília, v. 17, n. 2, p. 283-308, jul./dez. 2002
Resumo. Neste artigo, procura-se demonstrar que a crítica da razão utilitária, processada pelo paradigma da dádiva contribui para uma reflexão radical das escolhas metodológicas no âmbito das ciências sociais. Ao buscar interrogar o vínculo social, o paradigma da dádiva aciona um terceiro nível de análise da ação social: o nível das redes e das relações. No âmbito ontológico, isso permite que as teorias sociológicas transcendam, simultaneamente, as aporias do holismo e do individualismo metodológico, abrindo novas vias de descrição, explicação, interpretação e avaliação do funcionamento das regras do social.
Palavras-chave: razão utilitária, ontologia, epistemologia das redes.
“Em que medida o destino das ciências sociais está ligado ao do princípio de razão?” Com esta questão aparentemente simples, o editor da Revue du M.A.U.S.S. , Alain Caillé (2001), coloca em cena um certo tipo de Aufhebung sociológica que serve para demarcar drasticamente os desafios teóricos e metodológicos enfrentados pelas ciências sociais nestes tempos de volatilidade do pensamento crítico. Ancorado nas chaves descritivas do que se convencionou chamar, na França, de “o terceiro paradigma”, construído a partir das
Sociedade e Estado, Brasília, v. 17, n. 2, p. 309-332, jul./dez. 2002
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contribuições fundantes de Marcel Mauss, o paradigma da troca de dádivas vem buscando uma redescrição complexa e multidimensional da ação social.
A crítica dos difusores do “paradigma do dom” assume um tom drástico em relação às tradições de pesquisa estabelecidas: a Sociologia estaria perdendo, simultaneamente, legitimidade científica e prestígio acadêmico por não conseguir se libertar dos “compromissos epistemológicos com a racionalidade instrumental que é a base do pensamento moderno de inspiração cartesiana” (Capes-Cofecube, 2002, p.03).
Colonizada pelo abstracionismo das grandes categorias, a Sociologia se veria marcada pela imprecisão na abordagem dos fenômenos sociais concretos, e mais especificamente na explicação dos motivos práticos dos sujeitos sociais.
Essa situação estaria sendo motivada pela generalização, no interior das ciências sociais e humanas, em geral, e na Sociologia, em particular, de um certo imaginário utilitarista. Entendendo-se por utilitarismo a confluência de dois postulados inter-conectados: um postulado teórico que afirma que as ações sociais são motivadas pelos cálculos racionais dos sujeitos interessados; e, um postulado normativo no qual a maximização da felicidade constitui o critério de justiça das ações, normas ou leis (Caillé, 2001, p. 32).
Nesse sentido, o paradigma da dádiva busca combater as antinomias da razão utilitária moderna, questionando-a nos âmbitos teórico, prático e normativo. Com isso, o paradigma desencadeia uma forma de problematização sui generis dos tipos de normatividade social e das formas de sociabilidade vigentes nos sistemas sociais contemporâneos.
Ao rejeitar simultaneamente a influência das metodologias individualistas e holistas, desenvolvidas nas ciências sociais e humanas, o paradigma da troca de dádivas redireciona o olhar da investigação para a natureza mesma do vínculo social, apontando um caminho sugestivo para se transcender, a um só tempo, tanto as aporias derivadas dos racionalismos abstratos, quanto dos relativismos pluralistas em vigor. Ou seja, introduz-se um outro (terceiro) nível de
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dar conta da essência da dádiva, dado que esta é justamente a procura de um para-lá do princípio da razão suficiente” (Caillé, 1997, p.143).
Nesse contexto, é importante reter o sentido que se está atribuindo, nesse texto, ao termo método. Segundo Sartori (1997, p. 5), para “saber pensar” nas ciências sociais e humanas não há técnica que baste, ou seja, “para saber pensar são necessários método e lógica, método lógico – em uma palavra metodologia”. Esse tipo de proposição implica, portanto, uma diferenciação no interior das discussões metodológicas, uma vez que é preciso distinguir
as posições epistemológicas (pressupostos sobre as bases do conhecimento) da metodologia de pesquisa (uma análise teórica que define um problema de pesquisa, e como a pesquisa deveria proceder) e esta, por sua vez, do método específico (ou seja, da estratégia ou técnica efetivamente adotada). (Henwood, 1996, p. 31)
Nessa perspectiva, a reflexão que se pretende fazer distancia- se claramente dos “tratados de metodologia” que se ocupam das técnicas de investigação e tratamento de dados, mas que em geral tendem a não distinguir o método da investigação do método da reflexão. Ao fazer essa delimitação não temos a intenção de desclassificar ou desconsiderar o valor daquele tipo de reflexão metodológica nas ciências sociais. Buscamos um outro tipo de enquadramento que visa, antes de tudo, analisar “as condições para a crença” em uma teoria e os limites para sua análise prática (Lacey, 1998). Justifica-se, assim, a ênfase dedicada à problemática ontológica enquanto cenário mais amplo para se pensar as escolhas metodológicas nas ciências sociais, em geral, e, na sociologia, em particular. A intenção é mostrar que, no estudo dos fatos sociais, a justificação de um método não pode prescindir de uma decisão ontológica.
O termo ontologia, na modernidade, assumiu o antigo objeto da metafísica: a questão do ser ou, mais especificamente, as determinações do ser (Castoriadis, 1999). Na tradição moderna, a
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compreensão do ser passou a ser deduzida formalmente de um conceito e não mais abstraído da experiência. 2 Essa diferenciação que está no centro mesmo do pensamento moderno gira em torno da seguinte questão: como é possível adquirir um conhecimento dos tipos de coisas que existem que seja digno de credibilidade? A resposta a esta questão deságua inevitavelmente na delimitação dos princípios metodológicos a serem seguidos na investigação científica. Situação que faz da ontologia um campo de reflexão de fundamental importância para as ciências sociais.
De acordo com Oliva (1999, p. 18), é cada vez mais evidente o fato de que as ciências sociais e humanas vêm há séculos disputando os critérios a partir dos quais devem ser identificados e hierarquizados os “seres” do mundo da vida social. Isso acontece porque o “ser das coisas sociais” não “depende de se poder ver aquilo a que se atribui existência”. As escolhas ontológicas jogam um papel central na apresentação dos resultados da observação em torno do que existe, pois “o que dizemos que existe, como existe, contraindo tal ou qual tipo de relação, não é função de atividade puramente constatativa”. Logo,
as teorias sociais estão infestadas de termos com Democracia, Exército, Nação, Culto, Revolução, Religião, Estado, Instituição, Cultura, etc. Em torno de que tipo de ente deve gravitar o estudo dos ‘fatos sociais’? Das partes, dos coletivos ou do Todo? Quando se promove o estudo comparativo entre os enfoques centrados nas unidades individuais e os baseados na concessão de vida autônoma a coletivos ou a totalidades facilmente se comprova que há fossos intransponíveis entre os diferentes estilos de teoria social produzidos pelas chamadas ciências sociais. Que tipo de teoria se mostra mais científica – a que se organiza como estudo de fenômenos localizados no plano da existência dos indivíduos ou a que privilegia fatores que pertencem a uma esfera da realidade supraindividual? (Oliva, 1999, p. 21-22)
As disputas ontológicas não se restringem ao terreno especulativo da filosofia política, interferindo ativamente no trabalho das ciências sociais. Uma discussão nem sempre óbvia para os que atuam nesse campo, mas que se revela de modo exemplar nas disputas em torno dos modelos de racionalidade que devem fundamentar os trabalhos produzidos nessa área.
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p. 7), não é condição suficiente para se construir um “modelo elegante” que seja capaz de mostrar como funciona o nosso mundo e que conhecimento podemos extrair desse conhecimento.
Explicitar os fundamentos ontológicos do “ser social” permanece como um desafio para as teorias sociológicas que objetivam descrever, explicar, interpretar e avaliar adequadamente a relação entre os modos de manifestação empírica da sociabilidade dos atores e o mundo das estruturas e funções.
Em outras palavras, para que a teoria social não seja uma obra de ficção interpretativa, ela não pode se abster de problematizar os fundamentos da sociedade, sob o risco de tornar estéril o campo de interrogações que a alimenta: o que há no mundo da vida social? Um primeiro desafio, nesse caso, consiste em identificar o método que aborde a existência da sociedade, ultrapassando os modelos essencialistas e fenomenistas de objetivação do “dado” social. Pois, enquanto o primeiro modelo, opera com definições essenciais ancoradas em deduções sistemáticas que visam instalar um discurso absoluto com base no princípio da suficiência lógica das proposições e na determinação exaustiva do objeto investigado, manifestando assim um modelo axiomático a partir do qual o conhecimento emergiria absoluto e verdadeiro, porque completamente imune à contradição; o modelo fenomenista, ancorando-se na física e no método matemático-experimental, instala o problema da fundação do conhecimento válido a partir dos dados oriundos da experiência. Uma experiência quase transcendental porque transparente ao espírito e homogênea à coisa. 5
Articulados, esses dois modelos, contribuem para provocar um deslocamento do “ser social” ora para o plano da exterioridade, ora para o plano da interioridade. Nos dois casos, a investigação da existência social se vê obstruída por ontologias redutoras (de corte marcadamente holista ou individualista) incapazes de captar os traços fundamentais dos mecanismos da sociabilidade. Essas ontologias naturalizadas emergem do paradigma mentalista da razão utilitária moderna que pensa a subjetividade desde o enfoque idealizador de uma consciência transmutada em espelho da “realidade”. Na interpretação neopragmatista de Richard Rorty (1994), trata-se da
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subsunção da ontologia pela epistemologia, fazendo com que a natureza do conhecimento seja atrelada ao modo pelo qual a mente é capaz de construir representações verdadeiras sobre o que está fora da mente.
Entre as questões principais que a epistemologia buscaria responder estariam as seguintes: o que é o conhecimento? Como nós o alcançamos? A definição padrão, no primeiro caso, é a de que o conhecimento seria crença verdadeira justificada.
Esta definição parece plausível porque, ao menos, dá a impressão de que para conhecer algo alguém deve acreditar nele, que a crença deve ser verdadeira, e que a razão de alguém para acreditar deve ser satisfatória à luz de algum critério, pois alguém não poderia dizer conhecer algo se sua razão para acreditar fosse arbitrária ou aleatória. (Grayling, 2002, p. 1)
Todavia, essa definição de conhecimento deve ser entendida ainda como uma análise do conhecimento no sentido proposicional, pois ela é obtida perguntando que condições têm de ser satisfeitas quando queremos descrever alguém como conhecendo algo. Ou seja, ao dar a definição, enunciamos o que esperamos que sejam as condições necessárias e suficientes para a verdade da afirmação “S sabe que p ”, onde “S” é o sujeito epistêmico, o suposto conhecedor, e “ p ” a proposição. 6
O passo seguinte, para responder à segunda questão, teve muito a dever ao duelo do mecanicismo materialista baseado na clareza e evidência das ciências matemáticas com o subjetivismo do pensamento racional autônomo. O vetor paradigmático, aqui, seria a crítica kantiana da razão, uma vez que na sua Crítica da Razão Pura , Kant teria levado essa discussão às últimas conseqüências, substituindo “o conceito substancial da razão da tradição metafísica pelo conceito da razão cindida nos seus momentos e cuja unidade não é mais que formal. Mas (que) desempenha também o papel de um juiz supremo, mesmo perante a cultura como um todo” (Habermas, 1990, p. 29).
Não obstante, sua eficácia auto-legitimadora, a razão kantiana passou da condição de inquiridora para inquirida, pois com o avanço da modernidade ganharia relevo uma nova antropologia do homem
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jurídicas e das idéias políticas. No programa marxiano, o trabalho (enquanto atividade orientada que modifica o em-si da coisa, dando- lhe forma e conteúdo) emerge como condição natural da qual os homens não podem escapar, haja vista a mediação das relações entre o homem e a natureza na busca de satisfação das suas necessidades. Canalizando essa atividade, os instrumentos de trabalho estabeleceriam um laço entre o movimento teleológico do trabalho e o determinismo da natureza.
Nessa perspectiva, Marx constitui o trabalho como uma pura positividade econômica, um a priori histórico, condição transcendental de toda forma de sociabilidade possível entre os humanos. Ele tornou a própria representação do trabalho como “valor” algo extrínseco à história. O modelo de sociabilidade implicado no paradigma da produção perde conteúdo normativo, uma vez que não consegue relacionar o “tipo paradigmático de atividade do trabalho ou da elaboração de produtos e o conjunto de todas as formas restantes de exteriorização cultural dos sujeitos capazes de agir e falar” (Habermas, 2000, p. 114). Ao instalar o ponto de ancoragem da história em uma instância determinada (a esfera econômica), esse programa deixou-se imobilizar pelo movimento identitário do ser- valor-representação, subsumindo o fato do social comportar uma espessura ontológica não redutível à coisa e seus atributos fenomênicos, quer dizer, materiais.
Os objetos sociais não são coisas, em sentido estrito, mas relações que podem estar sendo mediatizadas pelas coisas, mas também pelas representações e por toda sorte de fantasmagorias. Para conferir à necessidade do trabalho a forma da lei (universal e necessária), o materialismo histórico precisou reportá-la a falta originária que acomete as sociedades dos homens e ao seu modo próprio de responder a esta falta constitutiva. Resposta que, como ressalta Domingues (1991, p. 309), é contingente já que para sua determinação não basta “aferrar-se ao esquema das forças produtivas e isolar aquelas notas gerais que em sua universalidade qualificam o trabalho e são válidas para todas as sociedades históricas possíveis, mas (seria) preciso acrescentar os princípios de sua variação e as notas particulares afetas a cada uma, elas próprias variáveis”.
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A ontologia marxista permaneceu, portanto, tributária da normatividade da ontologia herdada da modernidade. A ontologia herdada, diz Castoriadis (1982), só consegue vislumbrar a ontologia como determinação, onde o real existe como algo determinado e esta determinação só pode ser compreendida mediante uma apreensão lógica do existente. A visão do real como algo determinado, leva fatalmente a conclusão de que o real se explica no racional, e o racional se manifestaria como real. 9 Porém, é possível questionar essa forma de abordar à dimensão da ontologia.
Nesse contexto, o ser humano antes de pensar logicamente as coisas, as imagina. A pessoa e o social-histórico, de forma motivada, selecionam determinadas imagens e as instituem de um sentido específico. Este é propriamente o sentido ontológico. Esse é o pano de fundo que permite compreender que uma condicionalidade propicia uma dada forma, mas essa condicionalidade é sempre parcial. As determinações (descrições nascidas a partir da sociedade que se institui sobre o estrato natural) revelam sempre uma decisão ontológica sobre aquilo que é e também sobre como é. Desse modo, a sociedade se auto-institui mediante um julgamento e uma escolha. Julgamento e escolha que aparece, do ponto de vista político, ou seja, de um projeto de democracia radical, como uma questão vital (Caillé, 2002).
Por conseguinte, a análise da validade dos condicionantes do fato social exige, dentre outras coisas, assumir a incondicionalidade ontológica da história vista como uma totalidade acêntrica ou, se se preferir, de múltiplos centros. Ou seja, exige pensar o social como um conjunto de relações, tanto físicas como intelectuais, com a natureza, com os objetos e com as outras pessoas.
Esse tipo de fundamentação ontológica dessubstancializa o “ser social”, pois o social é uma criação permanente, uma criação que se dá a partir de certos elementos estáveis e até invariantes, de modos básicos de com-vivência. Como argumenta Oliva (1999, p. 221), “quando se ingressa em redes de convivência não há, de um lado, um meu e, de outro, a realidade social. O que há é um tipo especial de referência que faço a mim mesmo: refiro-me a mim mesmo na perspectiva do outro, da instituição, ou refiro-me ao outro, à instituição, sob a ótica do que consigo neles ver”.
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se ancorar as representações do mundo social, não se confunde com estas. A realidade social-histórica não é, ela mesma, uma representação, e, portanto, não pode ser captada como pura causação ou puro encadeamento de sentido (como querem os positivistas/ funcionalistas e os estruturalistas). O simbolismo se enraíza, simultaneamente, no natural, no histórico e no racional. Mais: o simbolismo pressupõe a capacidade de criação, por excelência, do social. Como lembra Burity, a diferença da postulação do caráter simbolicamente construído de toda ordem social, em relação às análises tradicionais, reside na “insistência” em manter juntos o “real racional” e o “simbólico discursivo”, chamando a atenção para
o vínculo entre cultura e condições sócio-históricas, por um lado, entre crenças e práticas mediadas culturalmente, por outro, é um objeto de análise e não um a priori indiscutível. Isto impede de se recair na mera dedução de práticas sociais a partir da estrutura analiticamente delimitada (mas dotada de uma objetividade e uma autonomia externas à análise), de se postular uma relação puramente reflexa entre as práticas culturais e as condições materiais existentes, bem como de assumir um voluntarismo analítico, para o qual não existem estruturas ou condicionantes da ação senão o permanente estado de fluxo incontido e avesso a qualquer regularidade. (Burity, 2002, p. 37-38)
Esquecer essa questão, dizem os maussianos, é estabelecer uma multiplicidade de práticas articulatórias como “fatos brutos”, quer dizer, fatos sobre os quais não haveria nada a dizer (e menos ainda a fazer), eliminando-se a questão histórica por excelência: a própria gênese de novos sistemas de significação que se cristalizam. 10 O uso de uma noção radical de simbolismo funciona como uma espécie de matriz para um rigoroso sistema conceitual capaz de levar às últimas conseqüências a natureza da investigação sociológica, já que a descoberta da coextensividade entre o simbólico e o sistema social da dádiva “faz cair” as oposições clássicas entre o sociológico e o psicológico, entre o social e o individual (Caillé, 1998). Seguindo Mauss, o paradigma insiste na imbricação entre as dimensões utilitárias e simbólicas, propondo uma análise ancorada na gradação e na tradução recíproca entre o social e o individual, uma vez que os simbolismos constitutivos de um plano são passíveis de tradução nos do outro.
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Dessa forma, é possível distinguir três níveis de análise na explicitação da gênese do laço social:
o nível microssociológico da aliança (ad-liança) entre as pessoas, o nível mesossociológico da aliança das pessoas com grupos ou destes com outros grupos, e o nível macrossociológico, o da relação das pessoas e dos grupos, e grupos de grupos, com a totalidade simbólica que forma. O operador do primeiro é o dom, o do segundo aquilo que se poderia designar como ad-sociação, e o registro próprio do terceiro que é o do político. (Caillé, 2002, p. 252-253)
Mas é importante reter a idéia da indissociabilidade desses níveis, uma vez que cada um funciona como uma espécie de interpretador dos outros. Essa é a chave da dimensão simbólica no paradigma da dádiva. A compreensão de que os símbolos só têm vida e significação enquanto “metaforizam” o dom, a associação e o político em um esquema complexo e indeterminado de retradução recíproca. 11
Isso acontece porque, no sistema de prestação de dádivas, os bens que circulam no espaço social são sempre bens qualitativamente singulares, valorizados segundo padrões anti-econômicos, ou para ser mais exato: segundo padrões simbólicos. Os interesses e as estratégias dos agentes sociais não se reduzem aos valores prevalecentes no campo econômico, uma vez que a troca de dádivas se constitui como um fluxo inter e intracultural, através de um regime de valorização distinto do praticado na esfera estritamente mercantil.
Do ponto de vista metodológico, isso significa que os fatos sociais não podem ser considerados como “coisas”. Os fatos sociais tornam-se totais. Um fato social total atravessa todas as esferas da prática. Por isso,
esse princípio não tem um alcance apenas metodológico, mas sócio- ontológico. Não mais se dirá que se deve tratar os fatos sociais ‘como se fossem coisas’, subentendendo ‘quando sabemos perfeitamente que não o são’, e sim que se deve tratar os fatos sociais como símbolos, porque sabemos perfeitamente que é essa, na verdade, a sua natureza. (Caillé, 1998, p. 5)
Disso decorre uma concepção da causalidade social, que denominamos de “metametodológica”, porque não se deixa enredar
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significações das práticas (nos termos weberianos). A interpretabilidade retoma a capacidade de interpretação crítica da imaginação sociológica (Mills) e de retradução dos fenômenos sociais (Ricouer). E, por fim, a praticidade articula a crítica social com os imperativos políticos e normativos da emancipação social (Martins, 2002, p. 3).
Nesse sentido, pensar a prática social não significa, nesse paradigma, reduzi-la aos seus acontecimentos empíricos, não obstante exista também a necessidade de se partir dos dados empíricos para se produzir uma reflexão sociológica efetiva.
O que deve ser enfatizado, no trabalho de resgate das memórias culturais, das significações simbólicas e das lógicas institucionais, é a tentativa de ir além das oposições binárias, pois essas oposições são impeditivas de uma melhor apreensão das redes de práticas que organizam a ação social. Ao invés de opor a objetividade das estruturas e a subjetividade das representações, a teoria da dádiva busca articular as diversas modalidades da relação ao mundo social que (de)marcam a existência das redes sociais que vinculam os atores entre si e entre estes e as instituições. Com isso, descartam-se as antigas concepções correspondentistas da verdade enquanto representação do real.
Dessa forma, o uso de determinados instrumentos de pesquisa não assume, no paradigma da dádiva, um caráter meramente técnico. Mas, encontra-se associado aos próprios objetivos da investigação que se pretende levar a termo, uma vez que não há aqui nenhuma pretensão de alimentar mais um fantasma dicotômico presente nas ciências sociais: a infeliz distinção entre métodos quantitativos e qualitativos. A teoria da troca de dádivas tem o mérito de deixar mais claro o uso que fazemos de determinadas categorias, nas nossas práticas investigativas, para organizar, classificar e explicar/ compreender o mundo social.
Como o próprio “dado” (quantitativo ou qualitativo) é tratado como uma representação simbólica, assimilado pelo imaginário social como a memória de uma articulação (entre representação e realidade) que envolve um complexo dinamismo associativo, ele funciona como uma estratégia de classificação e ordenamento dos fenômenos, fixando-se em premissas ontológicas e instrumentalizando o
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reconhecimento do evento. Assim, mais do que conferir um caráter de objetivação à observação, a ênfase reside na identificação dos condicionantes (a solidariedade do dom, o interesse mercantil ou a obrigação burocrático-racional) da rede que está sendo objeto de estudo (Martins, 2003).
Ao reconhecer o caráter simbolicamente construído de toda ordem social, torna-se possível lidar, metodologicamente, com a indeterminação relativa das ordens e dos contextos que configuram a existência do social (Caillé, 1997). As categorias analíticas são conceitualizadas como categorias práticas, podendo ser utilizadas conforme o eixo de análise priorizado na investigação: a instituição, o indivíduo, os grupos, os sistemas de poderes, etc., deslocando assim o debate epistemológico entre validade e sentido na construção do conhecimento social. Reconhece-se, então, que
o sentido, a significação, a idealidade são criadas para a sociedade; a validade também. A distinção sentido/validade é constitutiva da instituição da sociedade. Ela é o pressuposto das distinções correto/ incorreto, lícito/proibido, etc. (...) Mas essa distinção é totalmente insuficiente. Uma outra questão, muito mais grave, surge a partir do momento em que reconhecemos, como somos obrigados a fazer, que cada sociedade cria, não somente o que para ela tem sentido, mas também o que para ela é validade e válido. (Castoriadis, 1999, p. 44)
Logo, no plano normativo, as categorias analíticas tendem a funcionar como indicadores provisórios para validar e avaliar os resultados dos processos sociais investigados. Elas permitem entrever, por um lado, a lógica identitária do instituído e, por outro, os processos instituintes da ação social dos atores, ou, nos termos defendidos por Martins (2003), identificar os tipos e o grau de interatividade da dádiva nos sistemas sociais complexos.
O que podemos, enfim, extrair de uma sociologia da prática social inspirada na troca de dádivas? Acima de tudo, a idéia de que não precisamos abandonar uma fundamentação ontológica para o “ser social”. Pois, não se pode exercer o pensamento, principalmente o
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1 Assim como Heidegger insiste na idéia de uma metaontologia que visa a analítica da temporalidade do ser (Erber, 2003, p.33), cujo caráter constitutivo é sua determinação como “ser-com”, a defesa de uma metametodologia para captar o “ser social” não marca uma recaída na busca de um princípio universal metafísico, estruturando-se antes ao nível da (in)determinação ontológica do político em seu acontecer concreto nas várias modalidades associativas que engendram o vínculo social.
2 A proposta de Kant consistia exatamente em estabelecer a metafísica como ciência: ciência do ser, ou seja, investigação última do que existe. Para isso, ela não poderia se identificar com investigações empíricas. Ela deveria formular proposições cujo conteúdo de verdade fossem independentes do que o mundo é (não passíveis de verificação empírica). Proposições (sintéticas e a priori ) que fossem, elas mesmas, condições do conhecimento empírico (Oliveira, 1996).
3 Em um trabalho anterior, tentei argumentar que ao apontar para a tensão entre ontologia e ciência é possível compreender, dentre outras coisas, o debate recente entre naturalistas e anti-naturalistas, bem como as divergências sobre a adoção de determinados modelos explanatórios na explicação dos processos sociais (Freitas, 2002).
4 Não temos a intenção, neste trabalho, de problematizar a questão relativa ao estatuto da “pós-modernidade”, ou seja, não pretendemos discutir se estamos na presença de uma descontinuidade radical, ou se simplesmente teríamos uma forma neoconservadora de dissolução do sujeito social e epistêmico pela atomização dos jogos de linguagem tecidos em variadas colchas de retalhos remendados no contexto localizado de cada ciência particularizada. Sobre esse aspecto, veja-se o trabalho de H. Bhabha (2001), principalmente o capítulo I – O Compromisso com a Teoria – e o capítulo IX – O Pós-Colonial e o Pós-Moderno: A Questão da Agência.
5 Presente nos diferentes projetos positivistas que acompanharam a trajetória da episteme moderna, de A. Comte a S. Mill, esse modelo ajudou a introduzir a figura de um sujeito intervencionista capaz de sintetizar os “fatos brutos” da experiência, antes de toda interpretação, fazendo com que o real passasse a ser reduzido destas duas “empiricidades”, a riqueza e o estado. Ambas compreendidas, exemplarmente, no homo oeconomicus de A. Smith e no homo politicus de Montesquieu (Oliveira, 1999).
6 Entretanto, é possível inferir algumas dificuldades com essa idéia, particularmente no que se refere à natureza da justificação requerida para
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a crença verdadeira equivaler a conhecimento também verdadeiro. Ela nos diz que S pode justificar sua crença em p somente quanto a possibilidade da falsidade de p estiver excluída. O problema é precisamente saber que a justificação de alguém para acreditar que p não conecta com a verdade de p de um modo correto. O que é preciso, então, é um quadro claro de “crença justificada”; e nesse percurso mostrar a conexão entre justificação, de um lado, e crença e verdade, de outro (Grayling, 2002, p. 1-segs.).
7 Influência marcante nessa “dobra” da cadeia da natureza ao tempo foi dada, sem dúvidas, pela ruptura com o princípio da constância do ser ( fixismo ), por Darwin e Lamarck, substituindo as categorias mecanicistas pelas categorias orgânicas.
8 As primeiras tentativas de fornecer uma solução plausível para esses problemas assumiram feições distintas no pensamento de Hegel e Marx (dialética), Dilthey (hermenêutica da compreensão) e Nietzsche (genealogia).
9 Para Castoriadis, a visão do ser como algo determinado, ou como ele prefere chamar a “ontologia da determinação”, ela mesma uma criação social e histórica derivada da tradição greco-ocidental. A lógica e a ontologia da determinação manifestam-se de forma paradigmática na teoria dos conjuntos, onde os objetos são definidos e suas relações surgem a partir de uma gama combinatória possível e delimitada. Ou seja, a teoria dos conjuntos pressupõe a constituição prévia de um conjunto de operações (lógicas) específicas para definir objetos (não importa qual seja a sua natureza): distinguir, separar, juntar, contar. Daí ele denominar essa forma de operar de lógica conjuntista-identitária, pois ela pensa o objeto enquanto definido por seus atributos. O elemento fica definido por aquilo que se considera essencial para pertencer a um determinado conjunto. De forma concomitante, se exclui aquilo que resulta acidental e portanto prescindível para sua pertença em um conjunto determinado. O ser da realidade, nesse contexto, estaria contido na essência inerente a cada ente concreto. Teríamos, assim, a expressão da lógica de identidade. Nela o conceito constitui a revelação da essência, fazendo do pensar um reflexo do ser. Essa lógica da identidade (e sua respectiva ontologia) balizou, de uma forma quase hegemônica, a reflexão sobre o ser na história do pensamento ocidental, pressupondo um conjunto amplo de categorias que serviram para determinar o ser em geral e os entes em particular, tais como: totalidade, unidade, realidade, necessidade. Todas essas categorias passaram a delimitar o princípio material e o princípio formal do ser, enquanto elementos constitutivos da substância. Nesse sentido, na lógica