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Neste ensaio, analisamos a relação entre os amantes dentro da poesia lírica de joão de deus, reunida em campo de flores, para evidenciar os traços de medievalidade presentes. Dedicamos o primeiro tópico ao impacto brasileiro na crítica da obra de joão de deus, e no capítulo seguinte, explicamos os conceitos de imaginário, mentalidade, resíduo, hibridação cultural e cristalização. Finalmente, no terceiro capítulo, analisamos alguns poemas de joão de deus: 'amor', 'saudade', 'deliciosa cruz', 'adoração', 'foges?', 'amores, amores' e 'desalento'.
Tipologia: Notas de estudo
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José William Craveiro Torres'
Introdução
Para um estudioso em Filosofia, em Artes e/ou em Literatura, o termo romântico pode lhe trazer à mente muitas imagens, haja vista o caráter plural do Romantismo. No entanto, para leigos, para pessoas que pouco se debruçaram sobre o Romantismo, com o intuito de estu-
questão geralmente traz consigo a imagem de um casal apaixonado e/ou a do sofrimento de um homem ou de uma mulher por amor: costuma ser assim porque essas foram, desde sempre, ou seja, desde quando o movimento surgiu, na EscócialInglaterra e na Prússia (Alemanha), as imagens mais representativas do imaginário romântico. Neste ensaio, como se pôde notar pelo seu título, não tratare- mos do idilio amoroso, ou das dificuldades encontradas pelos amantes para a realização desse idilio, dentro do movimento romântico portu- guês; tampouco trataremos disso dentro da estética romântica em ge- ral: abordaremos, neste trabalho, a relação entre os amantes somente dentro da Poesia lírica de João de Deus, reunida em Campo de Flores, pois pretendemos evidenciar, em tal relação, os traços de medievalidade nela presentes. Conforme teremos a oportunidade de mostrar adiante,
1 Mestre em Literatura Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará - UFC. Doutorado em Literatura de Língua Portuguesa I Investigação e Ensino) pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra - FLUC. Bolsista de Doutorado Pleno no Exterior da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES. Colaborador do Centro de Literatura Portuguesa daFLUC.
os resíduos mediévicos, na obra lírica de João de Deus, apresentam-se da mais variadas formas. Diferente do que percebemos com relação à crítica portuguesa a brasileira parece ter evidenciado, há muito tempo e de forma bastante sistemática, as filiações da Poesia lírica de João de Deus; notadamente a sua matriz medieva. Entre esses estudiosos brasileiros estão: Massaud
de Sousa Ribeiro. Dedicaremos o primeiro tópico do nosso ensaio para tratar dessas contribuições brasileiras à fortuna crítica de João de Deus; principalmente para que possamos mostrar o que disseram os pesquisa- dores acerca do medievalismo presente na obra do poeta. Em seu ensaio, Linhares Filho disse:
Procuramos com muito esforço a originalidade, difícil no exame de uma obra sem segredos marcantes e já es- tudada por competentes estudiosos do fato literário em geral e da Literatura Portuguesa em particular. Presu- mimos que pelo menos o tipo de abordagem aplicada ao autor ofereça ao leitor uma quota de novidade (LI- NHARES FILHO, 1981,p.13-14).
De fato, pensamos como o mestre cearense: é mesmo difícil apontar algo novo, ao estudarmos a Poesia de João de Deus; alguma novidade só poderá vir à tona, mesmo, a partir da forma de abordagem. Assim, pretendemos analisar o medievalismo da obra de João de Deus a partir dos conceitos de imaginário e mentalidade, da École des Annales; resíduo, de Raymond Williams; residualidade, hibridação cultural e cris- talização, de Roberto Pontes. Assim, dedicaremos o segundo capítulo deste trabalho à elucidação de tais conceitos, para que a aplicação de cada um deles, no capítulo seguinte, o da análise de poemas, possa ser melhor compreendida.
à análise de alguns poemas de João de Deus: ''Amor'', "Saudade", "Deliciosa
Sua poesia biparte-se em lírico-amorosa e satírica, con- forme os dois volumes de Campo de Flores [... ]. O Amor é o motivo permanente na poesia de João de Deus [... ]. João de Deus dá um tiro de misericórdia no Ultra-Ro- mantismo [... ] e retoma a tradição lírica esquecida, mal-compreendida ou desprezada durante a hegemonia romântica: o lirismo trovadoresco, ou o que dele ficara vivo no curso do tempo, e a poesia lírico-amorosa de Camões (MOI SÉS, 2007, p. 152-153, passim).
Poesia da sedução, da corte ou da comunicação duma experiência amorosa já realizada ou por realizar [... ]. Nesses poemas, corre um sentimento lírico-amoroso que pressupõe sempre um forte idealismo a conduzir a mente de João de Deus. Tal idealismo, onde ressoa a voz do Camões lírico e o platonismo renascentista, dirige- -se no sentido da mulher e do Amor [... ]. Visão espiri- tualista da bem-amada, não poucas vezes transformada numa verdadeira atitude mística [ ]. A expectação mística lembra o lirismo medieval [ ]: o espiritualis- mo completa-se com a presença de notas eróticas sub- terrâneas (MOI SÉS, 2007, p. 153,passim).
Em A Literatura Portuguesa através dos Textos, Massaud Moisés analisou três poemas de Campo de Flores: "?", "Encanto" e "Ventura". Em tal análise, o crítico apontou, mais uma vez, as matrizes da Poesia de João de Deus: a trovadoresca (ou medieval), a camoniana (ou renascen- tista) e a garrettiana (ou romântica).
Nota-se, pelas composições, o quanto João de Deus difere dos poetas imediatamente anteriores, posto que semelhe ter alguma dívida para com Garrett. Seu li- rismo amoroso caracteriza-se pela simplicidade, pela
espontaneidade e pela musicalidade, que, antes de vi- rem por contágio de predecessores oitocentistas, lem- bram logo Camões e a poesia trovadoresca. Com efeito, vê-se que o poeta parece em serviço amoroso, como se fosse um trovador medieval: a Mulher (não a mulher) passava "como rainha", e ele tinha a sensação de sus- tentar-se "no ar em êxtase, absorto ... ". Entende-se claramente, por via desse medievalismo, que o poeta assumisse perante a mulher-amada uma atitude místi- ca, manifesta no poema "Encanto". Daí para a saudade mortificante, que confessa em "Ventura", é um passo. O gosto de sofrer ("C2.!.teeu seja o único a sofrer, penar!") completaria o quadro não fosse ainda a presença duma nota sensualista embutida nesse espiritualismo platoni- zante: atente-se para o final de "Ventura". Mas mesmo o contraponto entre idealismo e erotismo corresponde à equação existente na lírica camoniana e nas cantigas de amor (MOI SÉS, 1969, p. 293).
b. As palavras de Cleonice Berardinelli
No prefácio que escreveu à antologia de João de Deus, publicada pela editora AGIR, Cleonice Berardinelli tratou, sobretudo, das carac- terísticas românticas da obra do poeta, enfatizando o "sentimentalismo menos exacerbado", o "subjetivismo menos confidencial", a "sensuali- dade graciosa" e os "variadíssimos metros" de seus versos. Em seu bre- ve "Estudo Crítico", Berardinelli também teceu algumas considerações acerca das origens do lirismo presente na Poesia de João de Deus. Para ela, as fontes de tal lirismo seriam as cantigas trovadorescas (de Amor e de Amigo) e os poemas de Camões:
Tem sido frequentemente notada a influência e a per- duração do lirismo medieval e camoniano em João de
PERGAMUM 177 UFC/BCCE
João de Deus veio salvar mais os valores românticos, com uma poesia de certa contenção sentimental [... ]. E [... ] exprimiu, em grande parte, pela espontaneidade do sentimento amoroso e sofrido, o tradicional, imutável e essencial modo de ser do povo lusitano, aquela heran- ça advinda do Medievalismo (LINHARES FILHO, 1981, p. 27,passim).
Com relação aos temas trabalhados por João de Deus, em sua obra lírica, Linhares Filho citou: a Amada, a Natureza e Deus. A Ama- da seria o maior e o mais constante dos três; a Natureza, importante, porque seria o cenário do Amor; e Deus, ponto de convergência entre aquele tema e este, mas secundário, para o poeta.
A figura da Mulher Amada é o grande, o constante tema da poesia de João de Deus. Enaltece-a extraor- dinariamente, diviniza-a. Chama-lhe de "anjo tutelar" e utiliza com abundância elementos encantatórios da Natureza em metáforas ou comparações claras para exaltar as qualidades femininas (LINHARES FILHO, 1981, p. 15).
Na lírica de João de Deus a Natureza exerce um papel da mais alta importância: é o cenário do amor; presta- -se, com os seus elementos encantatórios, a exaltar a Amada [... ] e é tomada, ainda, como exemplo de vir- tude, notadamente de doação amorosa (LINHARES FILHO, 1981, p. 24,passim).
análise, da temática da Mulher Amada e da Natureza, embora não seja a mais frequente preocupação do autor.
[... ] Na Natureza via Deus num como panteísmo, mas via Deus sobretudo na Mulher, para o poeta a obra mai_ perfeita da criação UNHARES FILHO, 1981, p. 24. passim).
Vale salientar que esse enaltecimento, que essa divinização da Mulher, comparando-a com um anjo ou com "elementos encantatórios da Natureza", como a lua, por exemplo, estava já presente em Garrett, basta que nos lembremos de como o eu lírico garrettiano dirigia-se ao
etc. Massaud Moisés certamente se lembrou disso, quando analisou os três poemas de Campo de Flores aos quais nos referimos, no subtópico anterior. Da mesma forma como Moisés, Linhares Filho também pres- tou atenção às "notas eróticas subterrâneas" presentes na Poesia de João de Deus. Tais notas, na visão do autor deA Literatura Portuguesa, encon- tram suas origens nas Cantigas de Amor. Vejamos o que disse Linhares Filho:
Mas, algumas vezes, a poesia que é habitualmente de um sensualismo, digamos, casto, pela reserva, pela la- tência, alimentado por anseios solitários, dúvidas de amor, adorações à distância, louvores cavalheirescos ao porte físico e às qualidades morais da Amada, rompe os freios da contenção pu dica (UNHARES FILHO, 1981, p. 17).
d. As palavras de Raquel de Sousa Ribeiro
Ao tratar mais especificamente da produção lírica de João de Deus, Raquel de Sousa Ribeiro enfatizou a distância insuperável que parecia existir entre os amantes, o platonismo presente em Campo de
o obscurecimento da relação com o transcendente e a consequente opção pelo terreno mostra-se ainda sob um ângulo mais ameno: a dor decorrente da consciên- cia da solidão e da impotência coexiste com o carpe diem, com o incitamento para aproveitar o momento presente, como na espécie de cantiga de amigo em que se constitui ''Amores, amores", e com a "poesia de sedu- ção, de corte" (RlBEIRO, 1994, p. 90).
Considerações em torno dos termos imaginário, mentalidade, resíduo, residual idade, bibridaçâo, cristalização e intertextualidade
Podemos entender por imaginário o conjunto de imagens que um determinado grupo de certa época faz de si e de tudo o que está à sua volta; ou seja, imaginário vem a ser o modo como um grupo social enxerga o mundo e a si mesmo. Cada época tem, portanto, o seu pró- prio imaginário. Também é possível falar em imaginários dentro de um imaginário; ou seja, temos um imaginário medieval, que comporta todas as imagens relacionadas à Idade Média, mas temos, dentro deste imagi- nário, outros tantos: o imaginário em torno do cavaleiro medieval (uma espécie de imaginário cavaleiresco), o imaginário em torno da Mulher medieval etc. Já mentalidade, grosso modo, seria o modo de agir, de pensar e de sentir que teria se originado ainda na Pré- História e se mantido, ao longo da cadeia evolutiva do Homem, praticamente o mesmo, até os dias de hoje: algo atemporal, portanto. O imaginário seria a forma como a mentalidade apresentar-se-ia em cada momento histórico. Quanto ao conceito de resíduo, retiramo-lo do livro Marxismo e Literatura, de Raymond Williams. O residual seria tudo aquilo for- mado no passado, mas passível de ser constantemente retomado, de forma inconsciente, por indivíduos de um grupo ou camada social, de modo a ser tido como algo próprio mesmo das épocas posteriores ao seu surgimento.
Foi com base nesses e em outros conceitos, como o de bibridação cultural e o de cristalização, que Roberto Pontes pensou a Teoria da Re- sidualidade: "Na Cultura e na Literatura nada é original; tudo é residual'. Com ela, quis ele primeiramente enfatizar (sobretudo na Literatura) que certos aspectos comportamentais e culturais "vivos" e tidos como pertencentes a um dado momento histórico são, na verdade, traços ca- racterísticos duma era passada, retomados, por uma pessoa ou por um determinado grupo, de forma consciente ou inconsciente. O conceito de cristalização remonta aos estudos dos cristais. a Química, este termo relaciona-se ao refino de um elemento natural, como acontece ao melaço de cana ao se transformar em açúcar, ou então à simples transformação de um elemento em outro. Assim, a cristali- zação, conforme pensado por Pontes, deve ser vista como um processo constante de transformação, de refino, a partir do qual um elemento cul- tural, um objeto de arte, transforma-se (ou é levado a se transformar) em outro, mas sem perder as suas características essenciais. Roberto Pontes também preferiu o termo hibridação, em vez de hibridismo, pelo fato de o sufixo do primeiro vocábulo transmitir melhor a ideia de ação, de di- namismo, de algo em constante mudança, em andamento, em processo, como de fato acontece com elementos das mais diversas culturas a todo o momento. Este tópico não poderia ser finalizado sem que falássemos, an- tes, da relação entre intertextualidade e residualidade. São fenômenos distintos, mas interdependentes. O primeiro, conforme palavras de Ví- tor Manuel de Aguiar e Silva, só ocorre quando um texto, em seu con- eúdo, alude a outro texto ou ao conteúdo de outro texto, no todo ou em parte, por meio de um sintagma, de uma frase, de uma oração ou de um período, de modo a corroborar ou a contestar algo. Para que o fenômeno intertextual se estabeleça entre dois ou mais textos, Aguiar e Silva cha- ma a atenção para o fato de que o aspecto estrutural se faz tão ou mais importante que o conteudístico, ou seja, dois textos que giram em torno o mesmo assunto não permitem que se fale em intertextualidade, pois
Não vês como eu sigo Teus passos, não vês? O cão do mendigo Não é mais amigo Do dono talvez! [...] Eu amo-te, e sigo Teus passos, bem vês! O cão do mendigo Não é mais amigo Do dono talvez! (DEUS, s/d, p. 01-03,passim)
Eu se em ti caio, E me acolheste, Torno-me um raio De luz celeste! [...] Quando se ausenta A boa amiga, Ah! que o sustenta E que o abriga! [...] Esse é que sabe O meu tormento Mal se me acabe Aquelle alento! [...] Tu és o norte Que me desvias De ir dar á morte Todos os dias; [...] Jt quem eu amo, E quem adoro, E por quem chamo, E por quem choro! (DEUS, s/d, p.36-39,passim)
Luz de íntima influência, Oh fugitiva luz, Luz cuja eterna ausência E minha eterna cruz!
Converte-me este inferno Em azulado céo, Ou quebra o laço eterno Que a tua luz me deu!
Em cinza, em terra, em nada Meu ser converte, Ó luz! Mas sempre, sempre amada, Deliciosa cruz! (DEUS, s/d, p.68-69,passim)
Atrae, e não me atrevo A contemplá-lo bem; Porque espalha o teu rosto uma luz santa, Uma luz que me prende e que me encanta N'aquelle santo enlevo De um filho em sua mãe!
Tremo, apenas presinto A tua apparição; E se me aproximasse mais, bastava Pôr os olhos nos teus, ajoelhava!
E uma adoração! (DEUS, s/d, p. 83-84,passim)
Mulher, foges-me? Espera! Eu nunca te fiz mal! Tu és a primavera D'este profundo val1e! A ti que te afugenta? A dor que me atormenta? Mas essa dor augmenta Uma affeição leal! (DEUS, s/d, p.89)
Não sou eu tão tola, Que caia em casar; Mulher não é rola, Qpe tenha um só par: Eu tenho um moreno, Tenho um de outra cor, Tenho um mais pequeno, Tenho outro maior.
nha eterna cruz!" ("Deliciosa cruz"); "A ti que te afugenta?/ A dor que me atormenta?" ("Foges?"). O próprio título do poema "Deliciosa cruz", aliás, sugere já essa coita amorosa, ou seja, esse amor sofredor. Para finalizar a análise desses poemas, resta -nos falar, ainda, da fidelidade do eu lírico com relação à mulher amada. Nos poemas de João de Deus ocorre algo semelhante à vassalagem amorosa trovadoresca, a partir da qual o trovador dedicava-se, única e exclusivamente, a uma dama, justamente àquela para quem ele iria dirigir seus elogios e suas súplicas; trata-se de uma espécie de lealdade amorosa: "O cão do men- digo/ Não é mais amigo/ Do dono talvez!" (''Amor''); "Ou quebra o laço eterno/ Que a tua luz me deu" ("Deliciosa cruz"); "Mas essa dor aug- mental Uma afeição leal" ("Foges?"). Por tudo o que dissemos até agora, podemos perceber, claramente, que o imaginário em torno do eu poé- tico de Campo de Flores, ou seja, os modos como ele age, pensa e sente, como ele se mostra aos leitores, assemelha-se imenso ao imaginário que o Medievo nos deu do trovador. Nesse sentido, podemos falar mesmo de resíduos mediévicos na obra de João de Deus. Só não podemos afirmar, com exatidão, se tais resíduos se deram de forma consciente ou incons- ciente; ou seja, se o poeta foi buscar mesmo inspiração no Trovadorismo ou se, simplesmente, os poemas saíram-lhe dessa forma, sem que ele tivesse dado por isso. Também não podemos esquecer de que há muito do Trovadorismo dentro do Romantismo: isso é um fato. Conheçamos trechos dos poemas ''Amores, amores" e "Desalen- to", de João de Deus:
Que mal faz um beijo Se apenas o dou, Desfaz-se-me o pejo, E o gosto ficou? Um d'eles por graça Deu-me um, e depois, Gostei da chalaça, Paguei-lhe com dois. (DEUS, s/d, p. 30)
Trago uma scisma commigo: Não torna o meu terno amigo! Triste de mim, que farei! Cabelo, já não te ligo ... Nunca mais te ligarei!
Lá se finou em Castela ... Vêde que desgraça aquela! Ou lá m'o detém el rei! Toucas da Serra da Estrela, Já nunca mais vos porei!
Se um ar alegre assemelho, Ai amigas, sem conselho, Nem juizo, que farei! Já me não assomo ao espelho ... Nem jámais me assomarei! (DEUS, s/d, p. 62)
Nessas passagens, podemos perceber, claramente, que a voz do eu poético é feminina, exatamente como nas Cantigas de Amigo. O poeta - João de Deus, no caso - projetou-se no íntimo da alma femi- nina, procurando sondar-lhe, mostrar-lhe os desejos mais íntimos, e o fez por meio da criação de um eu lírico feminino. ''Amores, amores" exemplifica muito bem o aspecto real (e não "ideal") da relação amorosa tal como esta se apresenta nas Cantigas de Amigo: ela de fato acon- tece ("Um d'eles por graça! Deu-me um [beijo], e depois,! Gostei da
transformação das cantigas trovadorescas. Exatamente por isso pode- mos falar em Neotrovadorismo, ao nos referirmos à Poesia lírica de João de Deus.
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