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Este texto discute a relação entre a criança, a cultura e o jogo. Ele argumenta que o jogo é o local de emergência e enriquecimento de uma cultura lúdica específica, composta de esquemas, est梦ticas e conteúdos. A criança aprende a reconhecer essas estruturas através da interação social e dos objetos de jogo, produzindo novas significações. A cultura lúdica não é isolada da cultura geral e é influenciada por fontes externas, como a televisão e os brinquedos.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de aula
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Toda uma escola de pensamento, retomando os grandes temas românticos inaugurados por Jean-Paul Richter e E. T. A. Hoffmann, vê no brincar o espaço da criação cultural por excelência. Deve-se a Winnicott a reativação de um pensamento segundo o qual o espaço lúdico vai permitir ao indivíduo criar e entreter u m a relação aberta e positiva com a cultura: "Se brincar é essencial é porque é brincando que o paciente se mostra criativo"^1 Brincar é visto c o m o um mecanismo psicológico que garante ao sujeito manter u m a certa distância e m relação ao real, fiel, na concepção de Freud, que vê no brincar o modelo do princípio de prazer oposto a o princípio de realidade^2. Brincar torna-se o arquétipo de toda atividade cultural que, c o m o a arte, não se limita a u m a relação simples c o m o real^3.
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A criança e a cultura lúdica
A criança e a cultura lúdica
6 Pode-se certamente citar novamente Jerome Bruner, particularmente e m sua tão bela obra Child's talk: learnmg to use language, Oxford University Press, Oxford, 1983, que utilizei do ponto de v.sta de uma anal.se do ,ogo em Gilles Brougère, "How to change words into play", Communica- hon & Cogmtion, vol.27, n.3 (1994), p.273-86.
Gilles B R O U G È R E
Q u e tentam provar esses exemplos senão a idéia de que antes de ser um lugar de criação cultural, o jogo é um produto cultural, dotado de u m a certa autonomia? Conseqüentemente o primeiro efeito do jogo não é entrar na cultura de u m a forma geral, m a s aprender essa cultura particular que é a do jogo. Esquecemo-nos facilmente de que quando se brinca se aprende antes de tudo a brincar, a controlar um universo simbólico particular. Isso se torna evidente se pensarmos no jogo do xadrez ou nos esportes, em que o jogo é a ocasião de se progredir nas habilidades exigidas no próprio jogo. Isso não significa que não se possa transferi-las para outros campos, mas aprende-se primeiramente aquilo que se relaciona com o jogo para depois aplicar as competências adquiridas a outros terrenos não-lúdicos da vida. Por isso é necessário aprender a contar antes de participar de jogos que usam os números. O jogo supõe u m a cultura específica ao jogo, m a s também o que se costuma chamar de cultura geral: os pré-requisitos. A idéia que gostaríamos de propor e tratar a título de hipótese é a existência de u m a cultura lúdica, conjunto de regras e significações próprias do jogo que o jogador adquire e domina no contexto de seu jogo. Em vez de ver no jogo o lugar de desenvolvimento da cultura, é necessário ver nele simplesmente o lugar de emergência e de enriquecimento dessa cultura lúdica, essa m e s m a que torna o jogo possível e permite enriquecer progressivamente a atividade lúdica. O jogador precisa partilhar dessa cultura para poder jogar.
Tentaremos definir as características dessa cultura lúdica antes de examinar as relações que ela estabelece com o conjunto da cultura, e as conseqüências que isso pode ter sobre a relação da criança com a cultura n u m a perspectiva não mais psicológica, mas antropológica. A cultura lúdica é, antes de tudo, um conjunto de procedimentos que permitem tornar o jogo possível. C o m Bateson e Goffman^7 consideramos
7 Gregory Bateson, "A theory of play and fantasy", in Steps of an ecologv of mind, St.Albans, Herts, Al: Paladin, 1973. Erving Goffman, Frame Analysis - An Essay of the Organization of Experience, Nova York: Harper and Row, 1974.
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Gilles BROUGÈRE
observação da realidade social, hábitos de jogo e suportes materiais disponíveis. Da m e s m a forma, sistemas de oposições entre os mocinhos e bandidos constituem esquemas b e m gerais utilizáveis e m jogos muito diferentes. A cultura lúdica evolui com as transposições d o esquema de um tema para outro.
Finalmente a cultura lúdica compreende conteúdos mais precisos que vêm revestir essas estruturas gerais, sob a forma de um personagem (Superman ou qualquer outro) e produzem jogos particulares e m função dos interesses das crianças, das modas, da atualidade. A cultura lúdica se apodera de elementos da cultura d o meio-ambiente da criança para aclimatá-la a o jogo. Essa cultura diversifica-se segundo numerosos critérios. Evidentemente, e m primeiro lugar, a cultura e m que está inserida a criança e sua cultura lúdica. As culturas lúdicas não são (ainda?) idênticas no Japão e nos Estados Unidos. Elas se diversificam também conforme o meio social, a cidade e mais ainda o sexo da criança. E evidente que não se pode ter a m e s m a cultura lúdica aos 4 e aos 1 2 anos, m a s é interessante observar que a. cultura lúdica das meninas e dos meninos é ainda hoje marcada por grandes diferenças, embora possam ter alguns elementos e m comum. Pode-se analisar nossa época destacando as especificidades da cultura lúdica contemporânea, ligadas às características da experiência lúdica e m relação, entre outras, c o m o meio-ambiente e os suportes de que a criança dispõe. Assim desenvolveram-se formas solitárias de jogos, na realidade interações sociais diferidas através de objetos portadores de ações e de significações. U m a das características de nosso tempo é a multiplicação dos brinquedos^8 Podem-se evocar alguns exemplos c o m o a importância que adquiriram os bonecos, freqüentemente ligados a universos imaginários, valorizando o jogo de projeção num m u n d o de miniatura. Esse tipo de jogo não é novo, entretanto a cultura lúdica contemporânea enriqueceu e aumentou a importância dessa estrutura lúdica. N ã o podemos deixar de citar os video-games: u m a nova técnica cria novas experiências lúdicas que
8 Sobre a análise do brinquedo moderno pode-se consultar Gilles Brougère (dir.), Lejouet, Autrement, n. 133, novembro de 1992, Brian Sutton-Smirh, Toys as culture, Nova York : Gardner Press, 1986, Stephen Kline, Out ofthe garden - Toys and childrens culture in the age of TV marketing, Toronto Garamond Press, London: verso, 1993.
A criança e a cultura lúdica
9 Referimo-nos de maneira implícita à corrente do interacionismo simbólico, tal c o m o vem definido em Herbert Blumer, Symbolic Interactionism Perspective and Method, [1969], Berkeley : Univer- sity of Califórnia Press, 1986.
A criança e a cultura lúdica
Gilles B R O U G È R E
sociedade adulta, pelas restrições materiais impostas à criança. Ela é igualmente a reação da criança a o conjunto das propostas culturais, das interações que lhe são mais ou menos impostas. Daí advém a riqueza, mas também a complexidade de u m a cultura e m que se encontram tanto as marcas das concepções adultas quanto a forma c o m o a criança se adapta a elas. O s analistas acentuam, então, uns, o condicionamento, outros, a inventividade, a criação infantil. M a s o interessante é justamente poder considerar os dois aspectos presentes num processo complexo de produção de significações pelas crianças. E claro que o jogo é controlado pelos adultos por diferentes meios, mas há na interação lúdica, solitária e coletiva, algo d e irredutível aos constrangimentos e suportes iniciais: é a reformulação disso pela interpretação da criança, a abertura à produção de significações inassimiláveis às condições preliminares.
Que conseqüências extrair desta rápida análise que tinha por objetivo fornecer um quadro de referências a u m a interpretação sócio-antropológica do jogo? O jogo é antes de tudo o lugar de construção (ou de criação, m a s esta palavra é, às vezes, perigosa!) de u m a cultura lúdica. Ver nele a invenção da cultura geral falta ainda ser provado. Existe realmente u m a relação profunda entre jogo e cultura, jogo e produção de significações, mas no sentido de que o jogo produz a cultura que ele próprio requer para existir. E u m a cultura rica, complexa e diversificada. M a s esse jogo, longe de ser a expressão livre de u m a subjetividade, é o produto de múltiplas interações sociais, e isso desde a sua emergência na criança. É necessária a existência do social, de significações a partilhar, de possibilidades de interpretação, portanto, de cultura, para haver jogo. Isso supõe encontrar u m a definição mais restritiva que o habitual para a palavra jogo, e separá-lo, c o m o fazem cada vez mais os pesquisadores^11 , da exploração-comportamento
1 1 Ver, por exemplo, S. John Hutt et ai., Play exploration and learning-A natural history of pre pre- school, London : Routledge, 1989
Gilles BROUGÈRE
nível pessoal, sem que isso signifique u m a criação da humanidade tomada globalmente. Reservar a criatividade à aparição de um enunciado absolutamente novo na história da humanidade seria reduzi-la à exceção. O romantismo sobrevalorizou a noção de criatividade, associando-a estreitamente à arte, e isso no contexto de u m a nova visão da atividade artística de que somos os herdeiros. A arte torna-se o exemplo privilegiado da criatividade e, e m troca, não há verdadeira criatividade fora da arte. Assim, o poder criador da linguagem só se expressaria realmente na poesia. Para Schlegel, a língua c o m u m é u m a forma de arte primordial, mas só a poesia revela as potencialidades criativas da língua. N ã o há verdadeiramente criação e imaginação se não houver poesia. Além do mais, a criança e o poeta estão e m relação estreita. Relativamente à análise do jogo, é preciso voltar a u m a noção não "romantizada" da criatividade. Trata-se de abordar a dimensão criativa do jogo, conferindo a essa noção o sentido chomskyano da criatividade, aceitando as semelhanças entre jogo e linguagem. Aceitemos a banalidade da criatividade. Segundo esse modelo, quem brinca se serve de elementos culturais heterogêneos para construir sua própria cultura lúdica com significações individualizadas. Resta u m a última questão, a de saber se o jogo poderia ser um meio privilegiado de acesso à cultura. E indiscutível que a cultura lúdica participa do processo de socialização da criança. Deve-se considerar que sua contribuição é essencial? Parece-me difícil de provar. O s que defendem esse ponto de vista parecem movidos mais pelo interesse pelo jogo do que por resultados científicos. M a s dizer que o jogo e a cultura lúdica contribuem para a socialização nada significa, na medida em que se pode dizer o m e s m o de todas as experiências da criança. A título de hipótese pode-se ir mais longe. A importância das diferenças sexuais na cultura lúdica pode indicar- nos o papel que ela pode representar na construção da identidade sexual^13 M a s parece-me interessante ressaltar um outro aspecto mais estrutural. O processo usado na construção da cultura lúdica tem todos os aspectos mais complexos da construção de significações pelo ser h u m a n o (papel da
13 Sobre esse assunto, cf. Pierre Tap, Masculin et féminin chez l'enfant, Toulouse: Privar, 1985.
A criança e a cultura lúdica
(Recebido em 27 de outubro de 1998; aprovado em 19 de novembro de 1998.)