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A Criança e a Cultura Lúdica: O Jogo e a Criação de Significados, Notas de aula de Cultura

Este texto discute a relação entre a criança, a cultura e o jogo. Ele argumenta que o jogo é o local de emergência e enriquecimento de uma cultura lúdica específica, composta de esquemas, est梦ticas e conteúdos. A criança aprende a reconhecer essas estruturas através da interação social e dos objetos de jogo, produzindo novas significações. A cultura lúdica não é isolada da cultura geral e é influenciada por fontes externas, como a televisão e os brinquedos.

O que você vai aprender

  • Qual é a relação entre a criança, a cultura e o jogo?
  • Como a cultura lúdica é influenciada pela cultura geral?
  • O que é uma cultura lúdica?
  • Como a criança aprende as estruturas de uma cultura lúdica?
  • Qual é a importância dos objetos de jogo na aprendizagem de uma cultura lúdica?

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Nazario185
Nazario185 🇧🇷

4.7

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Dossiê
A CRIANÇA E
A
CULTURA LÚDICA
Gilles
Brougère*
1
INTRODUÇÃO
Toda uma escola de pensamento, retomando os grandes temas românticos
inaugurados por Jean-Paul Richter
e
E.
T.
A.
Hoffmann,
vê no
brincar
o
espaço
da
criação
cultural
por
excelência.
Deve-se
a
Winnicott
a
reativação
de um
pensamento
segundo
o
qual
o
espaço lúdico
vai
permitir
ao
indivíduo criar
e
entreter
uma
relação aberta
e
positiva
com a
cultura:
"Se
brincar
é
essencial
é
porque
é
brincando
que
o
paciente se mostra criativo"1 Brincar
é
visto
como
um
mecanismo psicológico
que garante
ao
sujeito manter
uma
certa distância
em
relação
ao
real, fiel,
na
concepção
de
Freud,
que vê no
brincar
o
modelo
do
princípio
de
prazer oposto
ao
princípio
de
realidade2. Brincar torna-se
o
arquétipo
de
toda atividade cultural
que,
como
a
arte,
o se
limita
a uma
relação simples
com o
real3.
* Professor da Universidade Paris-Nord.
Tradução de Ivone Mantoanelli e revisão de Tizuko Morchida Kishimoto.
1 Winnicott, Jeu
et
réalité,
tr.
fr.,
Paris
:
Gallimard, 1975, p. 26.
2 "Toda criança que brinca se comporta como um poeta, pelo fato de criar um mundo só seu, ou,
mais exatamente, por transpor as coisas do mundo em que vive para um universo novo em acordo
com suas conveniências." Sigmund Freud, "La création littéraire et
le
rêve
éveillé"
(1908),
in
Essais
de psychanalyse appliquée,
tr.
fr.,
Paris
:
Gallimard, 1973, p. 70.
3 O poeta age como a criança que
brinca;
cria um mundo imaginário que leva muito a
sério,
isto
é,
que
dota de grandes qualidades de
afetos,
sem deixar de distingui-lo claramente da realidade." Ibidem.
R. Fac Educ,o Paulo, v.24, n.2, p.l03-116, jul./dez. 1998 103
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Dossiê

A CRIANÇA E A CULTURA LÚDICA

Gilles Brougère*

1 INTRODUÇÃO

Toda uma escola de pensamento, retomando os grandes temas românticos inaugurados por Jean-Paul Richter e E. T. A. Hoffmann, vê no brincar o espaço da criação cultural por excelência. Deve-se a Winnicott a reativação de um pensamento segundo o qual o espaço lúdico vai permitir ao indivíduo criar e entreter u m a relação aberta e positiva com a cultura: "Se brincar é essencial é porque é brincando que o paciente se mostra criativo"^1 Brincar é visto c o m o um mecanismo psicológico que garante ao sujeito manter u m a certa distância e m relação ao real, fiel, na concepção de Freud, que vê no brincar o modelo do princípio de prazer oposto a o princípio de realidade^2. Brincar torna-se o arquétipo de toda atividade cultural que, c o m o a arte, não se limita a u m a relação simples c o m o real^3.

  • Professor da Universidade Paris-Nord. Tradução de Ivone Mantoanelli e revisão de Tizuko Morchida Kishimoto. 1 Winnicott, Jeu et réalité, tr. fr., Paris : Gallimard, 1975, p. 26. 2 "Toda criança que brinca se comporta c o m o um poeta, pelo fato de criar u m m u n d o só seu, ou, mais exatamente, por transpor as coisas do m u n d o e m que vive para um universo novo e m acordo com suas conveniências." Sigmund Freud, "La création littéraire et le rêve éveillé" (1908), in Essais de psychanalyse appliquée, tr. fr., Paris : Gallimard, 1973, p. 70. 3 O poeta age c o m o a criança que brinca; cria um mundo imaginário que leva muito a sério, isto é, que dota de grandes qualidades de afetos, sem deixar de distingui-lo claramente da realidade." Ibidem.

R. F a c Educ, São Paulo, v.24, n.2, p.l03-116, jul./dez. 1 9 9 8 103

A criança e a cultura lúdica

M a s numa concepção como essa o paradoxo é que o lugar de emergência

e de enriquecimento da cultura é pensado fora de toda cultura c o m o expressão

por excelência da subjetividade livre de qualquer restrição, pois esta é ligada

à realidade. A cultura nasceria de u m a instância e de um lugar marcados pela

independência em face de qualquer outra instância, sob a égide de uma

criatividade que poderia desabrochar sem obstáculos. O retrato é, sem dúvida,

exagerado, mas traduz a psicologização contemporânea do brincar, que faz

dele u m a instância do indivíduo isolado das influências do mundo, pelo menos

quando a brincadeira real se mostra fiel a essa idéia, recusando, por exemplo,

qualquer ligação objetiva muito impositiva, caso do brinquedo concebido

exteriormente ao ato de brincar. Encontramos aqui de volta o mito romântico

tão bem ilustrado em Uenfant étranger, tle Hoffmann, onde o brinquedo se

opõe ao verdadeiro ato de brincar. Alguns autores negam a qualquer construção

cultural estável até m e s m o o termo "brincadeira", "jogo" Seriam uma

apropriação do "brincar", essa dinâmica essencial ao ser humano.

Concepções c o m o essas apresentam o defeito de não levar em conta a

dimensão social da atividade h u m a n a que o jogo, tanto quanto outros

comportamentos, não pode descartar. Brincar não é u m a dinâmica interna do

indivíduo, mas u m a atividade dotada de u m a significação social precisa que,

c o m o outras, necessita de aprendizagem. Desejaríamos, nesta comunicação,

explorar as conseqüências desse ponto de vista e dele extrair um modelo de

análise da atividade lúdica.

  1. O ENRAIZAMENTO SOCIAL DO JOGO

Brincar supõe, de início, que no conjunto das atividades humanas, algumas

sejam repertoriadas e designadas como "brincar" a partir de um processo de

designação e de interpretação complexo. N ã o é objetivo desta comunicação

mostrar que esse processo de designação varia no tempo de acordo com as

diferentes culturas. O ludus latino não é idêntico ao brincar francês. C a d a cultura,

em função de analogias que estabelece, vai construir u m a esfera delimitada (de

maneira mais vaga que precisa) aquilo que numa determinada cultura é designável

104 R. Fac Educ, São Paulo, v.24, n.2, p.l03-116, jul./dez. 1998

A criança e a cultura lúdica

u m a atividade seja um jogo é necessário então que seja tomada e interpretada

c o m o tal pelos atores sociais em função da imagem que têm dessa atividade.

Essa não é a única relação do jogo com u m a cultura preexistente, não é

a única que invalida a idéia de ver na atividade lúdica a fonte da cultura. O

segundo ponto que gostaríamos de salientar tem seu fundamento na literatura

psicológica que atualmente insiste no processo de aprendizagem que torna

possível o ato de brincar^6. Parece que a criança, longe de saber brincar, deve

aprender a brincar, e que as brincadeiras chamadas de brincadeiras de bebês

entre a m ã e e a criança são indiscutivelmente um dos lugares essenciais dessa

aprendizagem. A criança começa por inserir-se no jogo preexistente da mãe

mais c o m o um brinquedo do que c o m o u m a parceira, antes de desempenhar

um papel mais ativo pelas manifestações de contentamento que vão incitar a

m ã e a continuar brincando. A seguir ela vai poder tornar-se um parceiro,

assumindo, por sua vez, o m e s m o papel da m ã e , ainda que de forma

desajeitada, c o m o nas brincadeiras de esconder u m a parte do corpo. A criança

aprende assim a reconhecer certas características essenciais do jogo: o aspecto

fictício, pois o corpo não desaparece de verdade, trata-se de um faz-de-conta;

a inversão dos papéis; a repetição que mostra que a brincadeira não modifica

a realidade, já que se pode sempre voltar ao início; a necessidade de um

acordo entre parceiros, m e s m o que a criança não consiga aceitar u m a recusa

do parceiro e m continuar brincando. Há, portanto, estruturas preexistentes que

definem a atividade lúdica em geral e cada brincadeira e m particular, e a

criança as apreende antes de utilizá-las e m novos contextos, sozinha, em

brincadeiras solitárias, ou então com outras crianças. N ã o se trata aqui de

expor a gênese do jogo na criança, mas de considerar a presença de uma

cultura preexistente que define o jogo, torna-o possível e faz dele, m e s m o em

suas formas solitárias, u m a atividade cultural que supõe a aquisição de estruturas

que a criança vai assimilar de maneira mais ou menos personalizada para

cada nova atividade lúdica.

6 Pode-se certamente citar novamente Jerome Bruner, particularmente e m sua tão bela obra Child's talk: learnmg to use language, Oxford University Press, Oxford, 1983, que utilizei do ponto de v.sta de uma anal.se do ,ogo em Gilles Brougère, "How to change words into play", Communica- hon & Cogmtion, vol.27, n.3 (1994), p.273-86.

Gilles B R O U G È R E

Q u e tentam provar esses exemplos senão a idéia de que antes de ser um lugar de criação cultural, o jogo é um produto cultural, dotado de u m a certa autonomia? Conseqüentemente o primeiro efeito do jogo não é entrar na cultura de u m a forma geral, m a s aprender essa cultura particular que é a do jogo. Esquecemo-nos facilmente de que quando se brinca se aprende antes de tudo a brincar, a controlar um universo simbólico particular. Isso se torna evidente se pensarmos no jogo do xadrez ou nos esportes, em que o jogo é a ocasião de se progredir nas habilidades exigidas no próprio jogo. Isso não significa que não se possa transferi-las para outros campos, mas aprende-se primeiramente aquilo que se relaciona com o jogo para depois aplicar as competências adquiridas a outros terrenos não-lúdicos da vida. Por isso é necessário aprender a contar antes de participar de jogos que usam os números. O jogo supõe u m a cultura específica ao jogo, m a s também o que se costuma chamar de cultura geral: os pré-requisitos. A idéia que gostaríamos de propor e tratar a título de hipótese é a existência de u m a cultura lúdica, conjunto de regras e significações próprias do jogo que o jogador adquire e domina no contexto de seu jogo. Em vez de ver no jogo o lugar de desenvolvimento da cultura, é necessário ver nele simplesmente o lugar de emergência e de enriquecimento dessa cultura lúdica, essa m e s m a que torna o jogo possível e permite enriquecer progressivamente a atividade lúdica. O jogador precisa partilhar dessa cultura para poder jogar.

  1. TENTATIVA DE DESCRIÇÃO DA CULTURA LÚDICA

Tentaremos definir as características dessa cultura lúdica antes de examinar as relações que ela estabelece com o conjunto da cultura, e as conseqüências que isso pode ter sobre a relação da criança com a cultura n u m a perspectiva não mais psicológica, mas antropológica. A cultura lúdica é, antes de tudo, um conjunto de procedimentos que permitem tornar o jogo possível. C o m Bateson e Goffman^7 consideramos

7 Gregory Bateson, "A theory of play and fantasy", in Steps of an ecologv of mind, St.Albans, Herts, Al: Paladin, 1973. Erving Goffman, Frame Analysis - An Essay of the Organization of Experience, Nova York: Harper and Row, 1974.

R. Fac Educ, São Paulo, v.24, n.2, p.l03-116, jul./dez. 1998 107

Gilles BROUGÈRE

observação da realidade social, hábitos de jogo e suportes materiais disponíveis. Da m e s m a forma, sistemas de oposições entre os mocinhos e bandidos constituem esquemas b e m gerais utilizáveis e m jogos muito diferentes. A cultura lúdica evolui com as transposições d o esquema de um tema para outro.

Finalmente a cultura lúdica compreende conteúdos mais precisos que vêm revestir essas estruturas gerais, sob a forma de um personagem (Superman ou qualquer outro) e produzem jogos particulares e m função dos interesses das crianças, das modas, da atualidade. A cultura lúdica se apodera de elementos da cultura d o meio-ambiente da criança para aclimatá-la a o jogo. Essa cultura diversifica-se segundo numerosos critérios. Evidentemente, e m primeiro lugar, a cultura e m que está inserida a criança e sua cultura lúdica. As culturas lúdicas não são (ainda?) idênticas no Japão e nos Estados Unidos. Elas se diversificam também conforme o meio social, a cidade e mais ainda o sexo da criança. E evidente que não se pode ter a m e s m a cultura lúdica aos 4 e aos 1 2 anos, m a s é interessante observar que a. cultura lúdica das meninas e dos meninos é ainda hoje marcada por grandes diferenças, embora possam ter alguns elementos e m comum. Pode-se analisar nossa época destacando as especificidades da cultura lúdica contemporânea, ligadas às características da experiência lúdica e m relação, entre outras, c o m o meio-ambiente e os suportes de que a criança dispõe. Assim desenvolveram-se formas solitárias de jogos, na realidade interações sociais diferidas através de objetos portadores de ações e de significações. U m a das características de nosso tempo é a multiplicação dos brinquedos^8 Podem-se evocar alguns exemplos c o m o a importância que adquiriram os bonecos, freqüentemente ligados a universos imaginários, valorizando o jogo de projeção num m u n d o de miniatura. Esse tipo de jogo não é novo, entretanto a cultura lúdica contemporânea enriqueceu e aumentou a importância dessa estrutura lúdica. N ã o podemos deixar de citar os video-games: u m a nova técnica cria novas experiências lúdicas que

8 Sobre a análise do brinquedo moderno pode-se consultar Gilles Brougère (dir.), Lejouet, Autrement, n. 133, novembro de 1992, Brian Sutton-Smirh, Toys as culture, Nova York : Gardner Press, 1986, Stephen Kline, Out ofthe garden - Toys and childrens culture in the age of TV marketing, Toronto Garamond Press, London: verso, 1993.

A criança e a cultura lúdica

transformam a cultura lúdica de muitas crianças. Tudo isso mostra a importância

do objeto na constituição da cultura lúdica contemporânea.

  1. A PRODUÇÃO DA CULTURA LÚDICA

Seria interessante tentar levantar hipóteses sobre a produção dessa cultura

lúdica. N a realidade, c o m o qualquer cultura, ela não existe pairando acima de

nossas cabeças, mas é produzida pelos indivíduos que dela participam. Existe

na medida e m que é ativada por operações concretas que são as próprias

atividades lúdicas. Pode-se dizer que é produzida por um duplo movimento interno

e externo. A criança adquire, constrói sua cultura lúdica brincando. E o conjunto

de sua experiência lúdica acumulada, começando pelas primeiras brincadeiras

de bebê, evocadas anteriormente, que constitui sua cultura lúdica. Essa experiência

é adquirida pela participação e m jogos com os companheiros, pela observação

de outras crianças (podemos ver no recreio os pequenos olhando os mais velhos

antes de se lançarem por sua vez na m e s m a brincadeira), pela manipulação

cada vez maior de objetos de jogo. Essa experiência permite o enriquecimento

do jogo e m função evidentemente das competências da criança, e é nesse nível

que o substrato biológico e psicológico intervém para determinar do que a criança

é capaz.. O s jogos de ficção supõem a aquisição da capacidade de simbolização

para existirem. O desenvolvimento da criança determina as experiências possíveis,

mas não produz por si m e s m o a cultura lúdica. Esta, origina-se das interações

sociais, do contato direto ou indireto (manipulação do brinquedo: quem o

concebeu não está presente, mas trata-se realmente de u m a interação social). A

cultura lúdica c o m o toda cultura é o produto da interação social^9 que lança suas

raízes, c o m o já foi dito, na interação precoce entre a m ã e e o bebê.

Isso significa que essa experiência não é transferida para o indivíduo. Ele

é um co-construtor. Toda interação supõe efetivamente u m a interpretação das

significações dadas aos objetos dessa interação (indivíduos, ações, objetos

9 Referimo-nos de maneira implícita à corrente do interacionismo simbólico, tal c o m o vem definido em Herbert Blumer, Symbolic Interactionism Perspective and Method, [1969], Berkeley : Univer- sity of Califórnia Press, 1986.

A criança e a cultura lúdica

N a realidade, há jogo quando a criança dispõe de significações, de

esquemas e m estruturas que ela constrói no contexto de interações sociais que

lhe dão acesso a eles. Assim ela co-produz sua cultura lúdica, diversificada

conforme os indivíduos, o sexo, a idade, o meio social. Efetivamente, de acordo

com essas categorias, as experiências e as interações serão diferentes. Meninas

e meninos não farão as mesmas experiências e as interações (como com os

brinquedos que ganham) não serão as mesmas. Então, portadores de uma

experiência lúdica acumulada, o uso que farão dos mesmos brinquedos será

diferente. Observamos meninas e meninos brincando com bonecos fantásticos

idênticos (da série He-Man, Mestres do Universo) O s meninos inventavam jogos

de guerra bastante semelhantes a outros jogos com outros objetos, já as meninas,

em numerosos casos, utilizavam os bonecos para reproduzir os atos essenciais

da vida quotidiana (comer, dormir), reproduzindo os esquemas de ação usados

com as bonecas. Descobre-se assim u m a combinação, u m a negociação entre

as significações veiculadas pelos objetos lúdicos e as de que as crianças dispõem

graças à experiência lúdica anterior.

Evidentemente deve-se desconfiar das palavras que usamos e evitar que

a cultura lúdica se constitua em substância: ela só existe potencialmente-trata-

se do conjunto de elementos de que u m a criança pode valer-se para seus jogos.

Da m e s m a maneira que a linguagem com suas regras e palavras, ela existe

apenas c o m o virtualidade.

M a s o jogo deixa menos marcas que a linguagem, e há os que pensam

que ele só pode ser associado à subjetividade de um indivíduo que obedece

ao princípio do prazer. Trata-se de fato de um ato social que produz uma

cultura (um conjunto de significações) específica e, ao m e s m o tempo, é produzido

por u m a cultura.

Limitamo-nos à cultura lúdica infantil, mas existe também u m a cultura lúdica

adulta, e é preciso igualmente situá-la dentro da cultura infantil, isto é, no interior

de um conjunto de significações produzidas para e pela criança. A sociedade

propõe numerosos produtos (livros, filmes, brinquedos) às crianças. Esses produtos

integram as representações que os adultos fazem das crianças, bem como os

conhecimentos sobre a criança disponíveis numa determinada época. M a s o

que caracteriza a cultura lúdica é que apenas e m parte ela é u m a produção da

Gilles B R O U G È R E

sociedade adulta, pelas restrições materiais impostas à criança. Ela é igualmente a reação da criança a o conjunto das propostas culturais, das interações que lhe são mais ou menos impostas. Daí advém a riqueza, mas também a complexidade de u m a cultura e m que se encontram tanto as marcas das concepções adultas quanto a forma c o m o a criança se adapta a elas. O s analistas acentuam, então, uns, o condicionamento, outros, a inventividade, a criação infantil. M a s o interessante é justamente poder considerar os dois aspectos presentes num processo complexo de produção de significações pelas crianças. E claro que o jogo é controlado pelos adultos por diferentes meios, mas há na interação lúdica, solitária e coletiva, algo d e irredutível aos constrangimentos e suportes iniciais: é a reformulação disso pela interpretação da criança, a abertura à produção de significações inassimiláveis às condições preliminares.

  1. ALGUMAS CONSEQÜÊNCIAS DE NOSSA ANÁLISE

Que conseqüências extrair desta rápida análise que tinha por objetivo fornecer um quadro de referências a u m a interpretação sócio-antropológica do jogo? O jogo é antes de tudo o lugar de construção (ou de criação, m a s esta palavra é, às vezes, perigosa!) de u m a cultura lúdica. Ver nele a invenção da cultura geral falta ainda ser provado. Existe realmente u m a relação profunda entre jogo e cultura, jogo e produção de significações, mas no sentido de que o jogo produz a cultura que ele próprio requer para existir. E u m a cultura rica, complexa e diversificada. M a s esse jogo, longe de ser a expressão livre de u m a subjetividade, é o produto de múltiplas interações sociais, e isso desde a sua emergência na criança. É necessária a existência do social, de significações a partilhar, de possibilidades de interpretação, portanto, de cultura, para haver jogo. Isso supõe encontrar u m a definição mais restritiva que o habitual para a palavra jogo, e separá-lo, c o m o fazem cada vez mais os pesquisadores^11 , da exploração-comportamento

1 1 Ver, por exemplo, S. John Hutt et ai., Play exploration and learning-A natural history of pre pre- school, London : Routledge, 1989

Gilles BROUGÈRE

nível pessoal, sem que isso signifique u m a criação da humanidade tomada globalmente. Reservar a criatividade à aparição de um enunciado absolutamente novo na história da humanidade seria reduzi-la à exceção. O romantismo sobrevalorizou a noção de criatividade, associando-a estreitamente à arte, e isso no contexto de u m a nova visão da atividade artística de que somos os herdeiros. A arte torna-se o exemplo privilegiado da criatividade e, e m troca, não há verdadeira criatividade fora da arte. Assim, o poder criador da linguagem só se expressaria realmente na poesia. Para Schlegel, a língua c o m u m é u m a forma de arte primordial, mas só a poesia revela as potencialidades criativas da língua. N ã o há verdadeiramente criação e imaginação se não houver poesia. Além do mais, a criança e o poeta estão e m relação estreita. Relativamente à análise do jogo, é preciso voltar a u m a noção não "romantizada" da criatividade. Trata-se de abordar a dimensão criativa do jogo, conferindo a essa noção o sentido chomskyano da criatividade, aceitando as semelhanças entre jogo e linguagem. Aceitemos a banalidade da criatividade. Segundo esse modelo, quem brinca se serve de elementos culturais heterogêneos para construir sua própria cultura lúdica com significações individualizadas. Resta u m a última questão, a de saber se o jogo poderia ser um meio privilegiado de acesso à cultura. E indiscutível que a cultura lúdica participa do processo de socialização da criança. Deve-se considerar que sua contribuição é essencial? Parece-me difícil de provar. O s que defendem esse ponto de vista parecem movidos mais pelo interesse pelo jogo do que por resultados científicos. M a s dizer que o jogo e a cultura lúdica contribuem para a socialização nada significa, na medida em que se pode dizer o m e s m o de todas as experiências da criança. A título de hipótese pode-se ir mais longe. A importância das diferenças sexuais na cultura lúdica pode indicar- nos o papel que ela pode representar na construção da identidade sexual^13 M a s parece-me interessante ressaltar um outro aspecto mais estrutural. O processo usado na construção da cultura lúdica tem todos os aspectos mais complexos da construção de significações pelo ser h u m a n o (papel da

13 Sobre esse assunto, cf. Pierre Tap, Masculin et féminin chez l'enfant, Toulouse: Privar, 1985.

A criança e a cultura lúdica

experiência, aprendizagem progressiva, elementos heterogêneos provenientes

de fontes diversas, importância da interação, da interpretação, diversificação

da cultura conforme diferentes critérios, importância da criatividade no sentido

chomskyano), e não é por acaso que o jogo freqüentemente é tomado como

modelo de funcionamento social pelos sociólogos. Pode-se então considerar

que através do jogo a criança faz a experiência do processo cultural, da

interação simbólica e m toda a sua complexidade. Daí a tentação de considerá-

lo sob diversas formas c o m o origem da cultura. Pode-se imaginar que isso

não pode ocorrer sem produzir aprendizagens nesse campo, o que coloca o

problema delicado da transferenciabilidade. Seja c o m o for, a experiência

lúdica aparece c o m o um processo cultural suficientemente rico em si mesmo

para merecer ser analisado m e s m o que não tivesse influência sobre outros

processos culturais mais amplos.

(Recebido em 27 de outubro de 1998; aprovado em 19 de novembro de 1998.)