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Este texto discute a experiência de enrico e rico, pais e filhos, na era da globalização e do trabalho a curto prazo. Enrico viveu uma vida linear e estruturada, enquanto rico enfrentou mudanças constantes e a falta de compromisso mútuo. O autor reflete sobre as implicações dessas mudanças no trabalho, na sociedade e na família.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de estudo
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Tradução de MARCOS SANTARRITA
133 EDIÇÃO
R I O DE J A N E I R O • S Ã O P A U L O
Deriva
Encontrei há pouco, num aeroporto, uma pessoa a quem não via há quinze anos. Eu tinha entrevistado o pai de Rico (como o chamarei) um quarto de século atrás, quando escre vi um livro sobre os trabalhadores nos Estados Unidos, The Hidden injuries of Class. O pai dele, Enrico, trabalhava então como faxineiro, e tinha grandes esperanças para o filho, que apenas entrava na adolescência, um garoto inteligente, bom nos esportes. Quando perdi contato com o pai, uma década atrás, o filho acabara de concluir a faculdade. No saguão do aeroporto, Rico parecia ter concretizado os sonhos do velho. Trazia um computador numa maleta de couro elegante, ves tia um terno que eu não podia pagar e exibia um anel de sinete com brasão. Quando nos conhecemos, Enrico já passara vinte anos limpando banheiros e lavando chãos num prédio comercial do centro. Fazia isso sem se queixar, mas também sem ne nhum entusiasmo com o Sonho Americano. Seu trabalho ti nha um objetivo único e perene, servir à família. Levara quin ze anos para economizar o dinheiro de uma casa, que com prara numa área residencial perto de Boston, cortando os laços com seu antigo bairro italiano, porque uma casa nos subúrbios era melhor para os filhos. Nessa época sua espo sa, Flavia, fora trabalhar como passadeira numa lavanderia
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Apesar de clara, a história da vida de Enrico não era sim ples. Fiquei particularmente impressionado ao ver como ele abarcava os mundos da antiga comunidade de imigrantes e da nova vida neutra suburbana- Entre os vizinhos suburbanos, vivia como um cidadão discreto, modesto; quando voltava ao velho bairro, porém, recebia muito mais atenção, como uma pessoa que vencera lá fora, um velho digno que voltava todo domingo para a missa, seguida de um almoço nos botecos de fofoca- Obtinha reconhecimento, como um ser humano dis tinto, daqueles que o conheciam há tempo suficiente para entender sua história; obtinha um tipo mais anônimo de res peito dos novos vizinhos, fazendo o que todos os demais fa ziam, mantendo a casa e o jardim em ordem, vivendo sem in cidentes. A densa textura da existência particular de Enrico estava no fato de que ele era reconhecido nos dois aspectos, dependendo de em qual comunidade andasse: duas identida des oriundas do mesmo uso disciplinado de seu tempo. Se o mundo fosse um lugar feliz e justo, os que desfrutam de respeito retribuiriam em igual medida a consideração que lhes foi concedida. Era a idéia de Fichte em “Os fundamentos da lei nacional”; ele falou do “efeito recíproco” do reconheci mento. Mas a vida real não procede de maneira tão generosa. Enrico antipatizava com os negros, embora houvesse tra balhado em paz por muitos anos com faxineiros negros; antipatizava com estrangeiros não italianos como os irlande ses, embora seu próprio pai mal soubesse falar inglês. Não reconhecia lutas afins; não tinha aliados de classe. Acima de tudo, porém, Enrico antipatizava com pessoas da classe mé dia. Dizia que nós o tratávamos como se fosse invisível, “como um zero” ; o ressentimento do faxineiro era agravado pelo receio de que, devido à sua falta de educação e sua condição de trabalhador braçal, tivéssemos um secreto direito de fazer isso. Aos seus poderes de resistência no tempo, opunha a
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lamurienta autopiedade dos negros, a injusta intrusão dos estrangeiros e os imerecidos privilégios da burguesia* Embora sentisse que conquistara certo grau de honra so cial, dificilmente quereria que o filho Rico repetisse sua vida. Meu amigo era fortemente impelido pelo sonho americano de mobilidade ascendente para os filhos. — Eu não entendo patavina do que ele diz — gabou-se várias vezes comigo, quando Rico voltava da escola para casa e estudava matemática. Ouvi muitos outros pais de filhos e filhas como Rico di zerem coisa semelhante a “ Eu não o entendo” em tom mais duro, como se os jovens os houvessem abandonado. Todos nós violamos de algum modo o lugar que nos é atribuído no mito da família, mas a mobilidade ascendente dá a essa pas sagem um aspecto particular. Rico e outros jovens encami nhados para cima na escada social às vezes traíam vergonha pelo sotaque operário e as maneiras rudes dos pais, mas com mais freqüência se sentiam sufocados pelas infindáveis es tratégias sobre centavos e o cálculo do tempo em passos minúsculos. Esses filhos favorecidos queriam embarcar numa viagem mais folgada. Agora, muitos anos depois, graças ao encontro no aero porto, eu tinha a oportunidade de ver como se saíra o filho de Enrico. Devo confessar que, no saguão do aeroporto, não gostei muito do que vi. O terno caro de Rico talvez fosse ape nas a plumagem dos negócios, mas o anel de sinete com bra são — sinal de origem familiar nobre — parecia ao mesmo tempo uma mentira e uma traição ao pai. Contudo, as circuns tâncias nos juntaram, a Rico e a mim, num longo vôo. Ele e eu não tivemos uma daquelas viagens americanas em que um estranho despeja as tripas emocionais em cima da gente, pega bagagens mais tangíveis quando o avião pousa e desaparece para sempre. Sentei-me na poltrona junto dele sem ser convi-
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economia alcançaram o jovem. Enquanto Jeannette era pro movida, ele era demitido — sua empresa foi absorvida por outra, maior, que tinha seus próprios analistas. Assim, o casal fez a quarta mudança, de volta ao leste, para uma área resi dencial nos arredores de Nova York. Jeannette hoje dirige uma grande equipe de contadores, e ele abriu uma pequena empresa de consultoria. Por mais prósperos que estejam, no auge mesmo do casal adaptado, um apoiando o outro, marido e mulher muitas ve zes receiam estar a ponto de perder o controle de suas vidas. Esse medo está embutido em suas histórias de trabalho. No caso de Rico, o medo da perda de controle é direto: refere-se ao controle do tempo. Quando disse aos colegas que ia abrir sua própria empresa de consultoria, a maioria apro vou; a consultoria parece o caminho da independência. Mas, ao iniciar, viu-se mergulhado em muitas tarefas subalternas, como fazer suas próprias fotocópias, que antes tinha como certas. Viu-se mergulhado no puro fluxo das redes; todo te lefonema tinha de ser respondido, o menor conhecimento pessoal cavado. Para arranjar serviço, tomou-se subserviente aos horários de pessoas que não estão de maneira alguma obrigadas a lhe corresponder. Como outros consultores, quer trabalhar de acordo com contratos que estabeleçam exatamen te o que terá de fazer. Mas diz que esses contratos são em grande parte ficções. O consultor em geral tem de correr de um lado para o outro em resposta aos mutáveis caprichos ou idéias daqueles que pagam; Rico não tem um papel fixo que lhe permita dizer aos outros: “É isto que eu faço, é por isso que sou responsável.” A falta de controle de Jeannette é mais sutil. O pequeno grupo de contadores que hoje dirige se divide em pessoas que trabalham em casa, outras, no escritório, e uma falange de funcionários de nível inferior a milhares de quilômetros de
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distância, ligados a ela por cabo de computador. Em sua atual empresa, regras severas e vigilância de telefones ee-mai] dis ciplinam a conduta dos contadores que trabalham na própria firma; para organizar o trabalho de empregados subalternos a milhares de quilômetros, ela não pode fazer julgamentos in loco, cara a cara, mas, ao contrário, tem de trabalhar com diretivas formais escritas. Jeannette não tem sentido menos burocracia nessa ordem de trabalho aparentemente flexível; na verdade, suas decisões contam menos que no tempo em que supervisionava trabalhadores agrupados o tempo todo no mesmo escritório. Como já disse, eu a princípio não me dispunha a derramar muitas lágrimas por esse casal do Sonho Americano. Mas quando serviram o jantar, em nosso vôo, e Rico passou a falar num tom mais pessoal, aumentaram as minhas simpatias. Fi quei sabendo que seu receio de perder o controle ia muito mais fundo que a preocupação com a perda de poder no tra- Q. Ele temia que as medidas que precisava tomar e a ma neira como tinha de viver para sobreviver na economia mo derna houvessem posto sua vida emocional, interior, à deriva. Rico me disse que ele e Jeannette fizeram amizade sobre tudo com pessoas que viam no trabalho, e perderam muitas delas nas mudanças dos últimos doze anos, “embora continue mos ‘em rede**. Ele busca nas comunicações eletrônicas o senso de comunidade que Enrico mais apreciava quando as sistia às reuniões do sindicato de faxineiros, mas o filho acha as comunicações on-line breves e apressadas. — E como com os filhos da gente: quando a gente não está presente, só recebe notícias passadas. Em cada uma de suas quatro mudanças, os novos vizinhos de Rico trataram seu advento como uma chegada que encer ra capítulos passados de sua vida; faziam-lhe perguntas sobre o Vale do Silício ou o shopping center no Missouri, mas, diz,
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E m bora ele se an im asse com isso , eu havia entendido m al. Eu já sabia que, em criança, Rico vivia sufocado sob a autoridade de Enrico; ele me disse então que se sentia esma gado pelas regras mesquinhas que governavam a vida do faxineiro. Agora que era ele próprio pai, perseguia-o o receio d a falta de disciplina ética, sobretudo o temor de os filhos se tornarem “pequenos ratos”, rondando ao léu pelos estacio namentos dos shopping centers^ à tarde, enquanto os pais per maneciam fora de alcance em seus escritórios. Por conseguinte, queria estabelecer para o filho e as filhas um exemplo de determinação e senso de obietivo. “mas não se pode simplesmente mandar que as crianças sejam assim” ; tinha de dar o exemplo. O exemplo de objetivo que poderia dar, a mobilidade ascendente, é coisa que eles tomam como natural, uma história do passado, não deles próprios, uma história que já acabou. Mas a mais profunda preocupação de Rico era que não podia oferecer aos filhos a substância de sua vida de trabalho como exemplo de como eles devem condu zir-se eticamente. As qualidades do bom trabalho não são as mesmas do bom caráter.
Como acabei entendendo mais tarde, a gravidade de seu medo vem do fosso que separa as gerações de Enrico e Rico. Os lí deres empresariais e os jornalistas enfatizam o mercado glo bal e o uso de novas tecnologias como as características dis tintivas do capitalismo de nossa época. Isso é verdade, sim, mas não vê outra dimensão da mudança: novas maneiras de organizar o tempo, sobretudo o tempo de trabalho. O sinal mais tangível dessa mudança talvez seja o lema “Não há longo prazo”. No trabalho, a carreira tradicional, que avança passo a passo pelos corredores de uma ou duas insti tuições, está fenecendo; e também a utilização de um único conjunto de qualificações no decorrer de uma vida de traba-
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lho. Hoje, um jovem americano com pelo menos dois anos de faculdade pode esperar mudar de emprego pelo menos onze vezes no curso do trabalho, e trocar sua aptidão básica pelo menos outras três durante os quarenta anos de trabalho. Um executivo da ATT observa que o lema “Não há longo prazo” está alterando o próprio sentido do trabalho:
Na ATT, temos de promover todo o conceito de que a força de trabalho é contingente, embora a maioria dos trabalhadores contingentes esteja dentro de nossas pare des “ Empregos” está sendo substituído por “ projetos” e “ campos de trabalho”.
As empresas também distribuíram muitas das tarefas que an tes faziam permanentemente em suas instalações por peque- nas firmas e indivíduos empregados com contratos de curto prazo. O setor da força de trabalho americana que mais rápi do cresce, por exemplo, é o das pessoas que trabalham para agências de emprego temporário. “As pessoas estão famintas [de mudança]” , afirma o guru da administração, James Champy, porque “o mercado pode ser ‘motivado pelo consumidor’ como nunca antes na histó ria.”3 O mercado, nessa visão, é dinâmico demais para permi tir que se façam as coisas do mesmo jeito ano após ano, ou que se faça a mesma coisa. O economista Bennett Harrison acredita que a origem dessa fome de mudança é o “capital impaciente”, o desejo de rápido retorno; por exemplo, ojpfc ríodo médio de tempo que os investidores seguram suas ações nas bolsas britânicas e americanas caiu_60 por cento nos ÚitT mos quinze anos. O mercado acredita que o rápido retorno é mais bem gerado pela rápida mudança institucional. A ordem de “longo prazo” sob a mira do novo regime, deve- se dizer, teve ela mesma vida curta — as décadas que abran-
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de dados, a área em que trabalham Jeannette e Rico; o compu tador é usado em praticamente todos os serviços, de muitas formas, por pessoas de todas as categorias. (Ver Tabelas 1 e 7 no Apêndice, para ter um retrato estatístico.) Por todos esses motivos, a experiência de Enrico, de tem po a longo prazo, narrativo, em canais fixos, tornou-se dis- funcional. O que Rico tentava me explicar — e talvez a si mesmo — é que as mudanças materiais englobadas no lema *N ão há longo prazo” se tornaram disfuncionais também para ele, mas como diretivas para o caráter pessoal, sobretudo em relação à sua vida familiar. Vejam a questão do compromisso e lealdade. “Não há lon go prazo” é um princípio que corrói a confiança, a lealdade e o compromisso mútuo. A confiança pode, claro, ser uma ques tão puramente formal, como quando as pessoas concordam numa transação comercial ou dependem de que as outras observem as regras de um jogo. Mas em geral as experiências mais profundas de confiança são mais informais, como quan do as pessoas aprendem em quem podem confiar ou com quem podem contar ao receberem uma tarefa difícil ou impossível. Esses laços sociais levam tempo para surgir, enraizando-se devagar nas fendas e brechas das instituições. O esquema de curto prazo das instituiçôesjn q d em a s li mita o amadurecimento da confiança informal. Uma violação particularmente flagrante do compromisso mútuo muitas ve zes ocorre quando novas empresas são vendidas pela primei ra vez. Nas empresas que estão começando, exigem-se lon gas horas e intenso esforço de todos; quando a empresa abre o capital — quer dizer, oferece ações publicamente negocia das — os fundadores podem vender e pegar o dinheiro, dei xando atrás os empregados de níveis inferiores. Se uma orga nização, nova ou velha, opera como uma estrutura de rede flexível, frouxa, e não com um rígido comando de cima para
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baixo, a rede também pode afrouxar os laços sociais. O soció logo Mark Granovetter diz que as redes institucionais moder nas se caracterizam pela “força de laços fracos” com o que quer dizer, em parte, que as formas passageiras de associação são mais úteis às pessoas que as ligações de longo prazo, e em parte que fortes laços sociais como a lealdade deixaram de ser atraentes.6 Esses laços fracos se concretizam no trabalho de equipe, em que a equipe passa de tarefa em tarefa e muda de pessoal no caminho. Os laços fortes, em contraste, dependem da associação a longo prazo. E, mais pessoalmente, da disposição de estabe lecer compromissos com outros. Em vista dos laços fracos tipicamente curtos nas instituições hoje, John Kotter, profes sor da Escola de Comércio de Harvard, aconselha os jovens a trabalhar “mais fora que dentro” das organizações. Ele defen de a consultoria, em vez de “enredar-se” no emprego a longo prazo; a lealdade institucional é uma armadilha, numa eco nomia em que “conceitos comerciais, projetos de produtos, informação sobre concorrentes, equipamento de capital e todo tipo de conhecimento têm períodos de vida dignos de crédito mais curtos” .7 Um consultor que administrou um recente enxugamento de funcionários na IBM declara que, tão logo os empregados “compreendem que não podem contar com a empresa, são negociáveis”.8 O distanciamento e a coope- ratividade superficial são uma blindagem melhor para lidar com as atuais realidades que o comportamento baseado em valores de lealdade e serviço. E a dimensão do tempo do novo capitalismo, e não a trans missão de dados high-tech, os mercados de ação globais ou o livre comércio, que mais diretamente afeta a vida emocional das pessoas fora do local de trabalho. Transposto para a área fami liar, “Não há longo prazo” significa mudar, não se comprome ter e não se sacrificar. Rico de repente explodiu no avião:
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ria- Por isso perguntei-lhe no avião se também construía pa rábolas ou mesmo extraía regras éticas de sua experiência no trabalho. Ele primeiro evitou responder diretamente — “A TV não passa muito esse tipo de coisa” — e depois disse: — Bem, não, eu não falo desse jeito. O comportamento que traz o sucesso ou mesmo apenas a sobrevivência no trabalho, portanto, pouco dá a Rico para oferecer como modelo paterno. Na verdade, para esse casal moderno, o problema é exatamente o contrário: como podem eles evitar que as relações familiares sucumbam ao compor tamento a curto prazo, ao espírito de reunião, e acima de tudo à fraqueza da lealdade e do compromisso mútuo que assina lam o moderno local de trabalho? Em lugar dos valores de camaleão da nova economia, a família — como Rico a vê — deve enfatizar, ao contrário, a obrigação formal, a confiança, o compromisso mútuo e o senso de objetivo. Todas essas são virtudes de longo prazo. Esse conflito entre família e trabalho impõe algumas ques tões sobre a própria experiência adulta. Como se podem bus car objetivos de longo prazo numa sociedade de curto prazo? Como se podem manter relações sociais duráveis? Como pode um ser humano desenvolver uma narrativa de identidade e história de vida numa sociedade composta de episódios e frag mentos? As condições da nova economia alimentam, ao con trário, a experiência com a deriva no tempo, de lugar em lu gar, de emprego em emprego. Se eu fosse explicar mais am plamente o dilema de Rico, diria que o capitalismo de curto prazo corrói o caráter dele, sobretudo aquelas qualidades de caráter que ligam os seres humanos uns aos outros, e dão a cada um deles um senso de identidade sustentável.
No fim do jantar, estávamos os dois mergulhados em nossos pensamentos. Eu imaginara, um quarto de século atrás, que o
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capitalismo tardio conseguira alguma coisa semelhante a uma consumação final; se havia maior liberdade de mercado, me nor controle do governo, o “sistema” ainda entrava na expe riência cotidiana das pessoas como sempre fizera, com suces so e fracasso, dominação e submissão, alienação e consumo. As questões de cultura e caráter, para mim, encaixavam-se nessas categorias conhecidas. Mas agora não se podia captar a experiência de nenhuma pessoa jovem com esses velhos hábitos de pensamento. A conversa de Rico sobre a família também o fizera, evi dentemente, pensar em seus valores éticos. Quando nos reti ramos para fumar no fundo da cabine, ele me observou que antes era liberal, no generoso sentido americano de se preo cupar com os pobres e agir de maneira correta com as mino rias, como os negros e homossexuais. A intolerância de Enrico com os negros e estrangeiros envergonhava o filho. Mas dis se que, desde que fora trabalhar, se tornara “conservador cul tural”. Como a maioria de seus pares, detesta os parasitas so ciais, para ele encarnados na figura da mãe que vive da pre vidência e gasta os cheques que recebe do governo em bebida e drogas. Também se tornou um crente dos padrões de com portamento comunal fixos, draconianos, em oposição aos valores de “paternidade liberal”, que apenas reproduzem aque las reuniões que não chegam a nada no trabalho. Como exem plo desse ideal comunal, disse-me que aprova a proposta atual, em alguns círculos conservadores, de tomar as crianças dos maus pais e pô-las em orfanatos. Fiquei revoltado e debatemos furiosamente, a fumaça pai rando acima de nós como uma nuvem. Atropelávamo-nos um ao outro. (E quando revejo minhas anotações, percebo que Rico também gostou um pouco de me provocar.) Ele sabe que seu conservadorismo é apenas isso — uma comunidade sim bólica idealizada. Não tem verdadeira expectativa de trancar
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pio, não gosta da locução “fui demitido”; em vez disso, quan do esse fato desfez sua vida no shopping center no Missouri, ele declarou: — Enfrentei uma crise e tive de tomar uma decisão. — E, sobre essa crise, disse: — Fiz minhas próprias opções; assu mo toda a responsabilidade por tantas mudanças. Parecia seu pai: “Assumir responsabilidade por si mesmo” era a expressão mais importante do léxico de Enrico. Mas Rico não via como agir com base nisso. Perguntei-lhe: — Quando você foi demitido no Missouri, por que não protestou, por que não resistiu? — Claro, eu fiquei furioso, mas isso não adianta nada. Não havia nada de injusto no fato de a empresa enxugar suas ope rações. O que quer que tenha acontecido, eu tinha de lidar com as conseqüências. Ia pedir a Jeannette, mais uma vez, que se mudasse por minha causa? Devia pedir a ela? A quem de veria escrever uma carta reclamando? Não podia tomar medida alguma. Mesmo assim, sente-se responsável por esse fato, que transcendeu o seu controle; toma-o a si literalmente, como um fardo. Mas o que significa “assumir responsabilidade”? Os filhos aceitam a mobilidade como uma realidade do mundo; a esposa está na verdade agra decida pelo fato de ele ter-se disposto a mudar-se por sua causa. Mas a afirmação “ Eu assumo a responsabilidade por tantas mudanças” sai de Rico como um desafio. Aquela altura de nossa viagem, compreendi que a última coisa que eu devia responder a esse desafio era: “ Como você pôde se julgar res ponsável?” Seria uma pergunta razoável e um insulto — você na verdade não conta. Enrico tinha um senso meio fatalista, estilo velho mundo, de que as pessoas nasciam numa determinada classe ou con dição de vida, e fazia o melhor possível dentro desses limites.
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Coisas aJém do seu controle, como dispensa do trabalho, lhe aconteciam; aí ele enfrentava. Como deixa claro essa discus são que acabei de citar, o senso de responsabilidade de Rico é mais absoluto. O que ele chama a atenção é para sua inflexí vel disposição de ser responsabilizado por essa qualidade de caráter, e não por um determinado curso de ação. A flexibili dade forçou-o a afirmar a pura força de vontade como a es sência de seu próprio caráter ético. Assumir responsabilidade por fatos fora de nosso contro le pode parecer uma conhecida amiga nossa — a culpa —, mas isso caracterizaria Rico de uma maneira errada, pelo menos ao que me pareceu. Não é do tipo que se entrega à auto-acu sação. Tampouco perdeu a coragem, diante de uma socieda de que lhe parece toda fragmentada. As regras que estabelece para o que uma pessoa de bom caráter deve fazer podem pa recer simplistas ou infantis, mas também neste caso isso seria julgá-lo de maneira errada. Ele é, de certa forma, realista; de fato, não faria sentido escrever uma carta aos patrões sobre o estrago que haviam causado em sua família. Assim, Rico se concentra em sua pura determinação de resistir; não vai ficar à deriva. Quer resistir sobretudo à ácida erosão daquelas qua lidades de caráter, como lealdade, compromisso, propósito e resolução, que são de longo prazo na natureza. Afirma valo res atemporais que caracterizam quem ele é — para sempre, permanentemente, essencialmente. Tornou-se estático; está encurralado na pura e simples afirmação de valores. O que falta entre os pólos opostos de experiência de deri va e afirmação estática é uma narrativa que organize essa conduta. As narrativas são mais simples que as crônicas dos fatos; dão forma ao movimento adiante do tempo, sugerindo motivos pelos quais tudo acontece, mostrando suas conseqüên cias. Enrico tinha uma narrativa para a sua vida, linear e cu mulativa, uma narrativa que fazia sentido num mundo alta