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RESUMO: O presente artigo tem por objetivo analisar o conto “o jardim selvagem” sob a ótica da crítica literária feminista. A ideologia patriarcal vê como ...
Tipologia: Slides
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Márcia Hávila Mocci da Silva Costa^1 Lúcia Osana Zolin^2
RESUMO: O presente artigo tem por objetivo analisar o conto “o jardim selvagem” sob a ótica da crítica literária feminista. A ideologia patriarcal vê como “naturais” comportamentos e condutas que inferiorizam o papel social da mulher e, “naturalizando- os” acaba por reproduzi-los, perpetuando a cultura androcêntrica. A autora, no referido conto, constrói identidades femininas que, ora compactuam com o modelo patriarcal, ora rebelam-se e apresentam novas condutas que se contrapõem a esse modelo. PALAVRAS-CHAVE: Lygia Fagundes Telles. Papéis de gênero. Identidades femininas
ABSTRACT: The present article has for objective analyses the narrative “The wild garden”, of Lygia Fagundes Telles, sub the optics of the feminist literary criticism. How it is known, the social papers of the woman have been historically dictated by the patriarchal ideology, that see like "natural" behaviours and conducts that inferiority her; “naturalizing them”, finish reproduce them, perpetuating the androcêntrica culture. The author, in the above-mentioned narrative, builds feminine identities that, now compact with the patriarchal model, now it rebels, presenting new conducts that to put against this model. KEYWORDS: Lygia Fagundes Telles. Papers of gender. Feminine identities
Introdução
As tendências teóricas atuais estão fundadas no princípio de que o leitor, através de suas experiências pessoais e convívio social, atribui sentido aos textos; isso possibilita uma nova visão sobre as questões de gênero, uma vez que a construção social desse leitor influencia sua leitura e a condição da mulher, enquanto objeto de dominação, também se reflete na atribuição de sentidos. Vista sempre como refém de uma cultura centrada no androcentrismo, a situação social da mulher, a partir da década de 1960, com o advento do feminismo, começa a ser questionada, principalmente em relação aos papéis desempenhados na esfera social e doméstica. O sexo, até então, conhecido como “frágil” começa a reivindicar um papel mais ativo na construção da sociedade. O pensamento determinista que predominou no século XIX justificava a inferioridade feminina em virtude de fatores biológicos tais como a fragilidade física e intelectual da mulher, tomando como ponto de referência o padrão masculino de força e capacidade. Os estudos sobre a construção do gênero se opõem a essas idéias tidas como sendo da ordem da Natureza, ressaltando-lhes as ideologias subjacentes e, portanto, seu caráter de constructo social. Trata-se de promover o desnudamento do modo como as noções de
masculino e de feminino, relacionadas, respectivamente, às de opressor e oprimida, foram sendo construídas ao longo do tempo e vivenciadas e representadas na sociedade, que lhes legitima e lhes perpetua como se fossem inerentes a homens e a mulheres. A desigualdade entre os sexos, segundo Campos (1992, p. 115),
se radica sobre a distinção de papéis biológicos, ela o faz a preço de transformar o que é, tão somente, diferença, em diferença hierarquizada. Ao estabelecer-se como relação de poder, ela assim o passa à ordem da cultura. É o que ocorre na forma histórica do patriarcado, o que se viabiliza ao associar ideológica, arbitrariamente, a secundariedade ao feminino em vista de seu papel na reprodução. Sendo assim, a desigualdade não é uma condição natural e necessária às sociedades, mas se baseia unicamente em organizações de poder que, como tais, servem aos interesses de uma classe e, portanto, podem ser transformadas. A literatura de autoria feminina, desde meados do século XX, tem se empenhado na desconstrução desse status quo , procurando por a nu o modo como os atributos da superioridade e, portanto, da dominação, bem como o da inferioridade e, portanto, da submissão foram sendo conferidos paulatinamente a cada um dos sexos por meio de estratégias de poder.
A autora e sua obra
A obra de Lygia Fagundes Telles destaca-se no cenário da literatura brasileira das últimas décadas pela temática da liberação da mulher em relação aos modelos tidos como padrões pela sociedade tradicional, marcados pela dominação masculina. Em suas narrativas, ela engendra personagens femininas construindo sua própria história e vivenciando experiências que antes eram incompatíveis com a condição de seu sexo. De maneira ao mesmo tempo simples e profunda, a autora constrói suas personagens femininas de modo a lhes por a nu a alma e lhes traduzir (as) angústias e aspirações. De acordo com Lemaire (1994, p. 65), as “obras de um autor [...] não são produtos de um gênio autônomo e autoconsciente, mas expressões de conflitos inconscientes, temores e desejos não admitidos abertamente [...]”; muitos desses conflitos estão arraigados ao inconsciente feminino de toda uma coletividade, pois aí foram plantados pela ideologia patriarcal; o/a escritor/a apenas os descreve. Um dos temas preferidos por Telles é o casamento, visto não mais como a realização máxima na vida da mulher, mas como fonte constante de conflitos e de perda de individualidade; as mulheres que retrata são “reais”: algumas fortes, autoritárias, egoístas,
Na contramão da dominação masculina, de que fala Bourdieu nesse fragmento, desde sempre arraigada às práticas sociais, Lygia Fagundes Telles constrói personagens que representam o perfil da classe média, por trás do qual se escondem grandes conflitos comuns a todos os seres humanos, delineando o jogo de poder existente entre homens e mulheres. As personagens femininas representam importância capital para o desenvolvimento dos textos, através de atitudes que contrariam as regras sociais. O conto “O jardim selvagem” tem como narradora a personagem Ducha, uma adolescente de não mais de quinze anos, que vive com sua tia Pombinha, uma mulher sem vaidades e totalmente devotada à família, em especial ao irmão caçula Ed, que ela ajudou a educar após a morte da mãe. Esse irmão casa-se repentinamente com Daniela, uma mulher da qual nada se sabe, que usa uma luva constantemente em apenas uma das mãos e que foge aos padrões de conduta da época, pois é emancipada e faz o que quer, sem se preocupar com a opinião alheia. Após alguns meses de casamento, Ed é acometido por uma súbita doença e acaba se suicidando. O/a leitor/a, através da visão da menina Ducha, é levado a se interrogar sobre a participação de Daniela nessa morte. A linguagem utilizada pela autora é concisa e objetiva, fato que proporciona um caráter ágil à narrativa; os diálogos vão construindo e caracterizando as personagens, informando ao leitor sobre a evolução do enredo. “O jardim selvagem” é um texto narrado em primeira pessoa, sob o ponto de vista de uma pré-adolescente em cujas inserções se revelam os comportamentos e as opiniões das demais personagens acerca da matéria narrada, bem como suas concepções de vida, relacionadas, sobretudo, aos papéis de gênero. Ducha, a narradora, se vê exposta a modelos de identidades femininas a partir dos quais ensaia possíveis formas de se tornar mulher. Apresentam-se a ela pelo menos duas formas distintas de comportamento feminino: o da tia Pombinha, uma mulher arraigada às práticas da sociedade patriarcal, criada num enquadramento social em que a mulher não tem visibilidade, ofuscada que é pela presença dominante masculina, e dotada do sentimento maternal em detrimento do individual; e Daniela, a esposa do tio Ed, que ela só conhece de ouvir falar; uma mulher ousada, elegante, forte, não afeita às convenções, totalmente liberada e com modos e costumes destoantes para a sociedade da época; enfim, uma mulher “selvagem” se tomarmos como referências as figuras femininas “domadas” pela ideologia dominante, essencialmente marcada pela dominação masculina, a quem Ducha passa a admirar.
O foco narrativo permite que o ponto de vista expresso seja o da menina, tanto em relação ao conceito que faz de Pombinha quanto ao que faz de Daniela, fazendo com que o/a leitor se identifique com ela e tenda a assumir seu ponto de vista sobre as demais personagens, especialmente em relação à Daniela, transgressora dos estereótipos previamente determinados pela sociedade patriarcal da época. A escolha dessa forma de narrar permite legitimar os sentimentos e opiniões da personagem através da voz narrativa. O leitor só conhece a figura de Daniela através da forma como Ducha a enxerga; para formar uma idéia mais específica sobre ela, ele teria que lançar mão de estratégias interpretativas, e estas, segundo Jauss (1994), na vertente teórica da estética da recepção, variam de acordo com as experiências pessoais e construções sociais de cada leitor/a. O fato de o/a leitor conhecer internamente a menina, além de possibilitar-lhe identificar-se com ela, faz com que se decepcione e se revolte com o comportamento de Daniela, vendo-a como transgressora de regras sociais e morais. O fato da personagem Pombinha, engendrada segundo os padrões tradicionais, relacionar-se com Ed a partir de um conjunto de práticas que a aproximam da figura materna, parece reforçar a ideologia que confere à mulher papéis sociais que a definem essencialmente como mãe e esposa. Como afirma Lauretis (1994, p. 230), “a psicanálise não aborda e não pode abordar, a complexa e contraditória relação entre mulheres e Mulher, o que passa então a definir como uma simples equação: mulheres = Mulher = Mãe”. Segundo essa concepção, todas as mulheres possuem o instinto maternal e, convenientemente são educadas para desenvolvê-lo em detrimento de outras habilidades socialmente reconhecidas. A figura de Ed, a única masculina na narrativa, aparece para Ducha de forma infantilizada, mediada que está pelo olhar de Pombinha, predisposto a ver nele um menino indefeso, carente da atenção materna:
Tinha muito medo do escuro e só queria dormir de luz acesa. Papai proibiu essa história de luz e não me deixou mais ir lá fazer companhia, achava que eu poderia estragá-lo com muito mimo. Mas uma noite não resisti e entrei escondida no quarto. Estava acordado sentado na cama. Quer que eu fique aqui até você dormir? Perguntei. Pode ir embora, disse. Já não me importo mais de ficar no escuro. Ele me abraçou [...] querendo confessar que estava com medo. Mas sem coragem de confessar. (TELLES, 1999, p.45) O fato de Pombinha “pressentir” a mesma fragilidade acima referida no olhar de Ed quando do comunicado do casamento dele com Daniela – “era como se quisesse me dizer qualquer coisa e não tivesse coragem, senti isso com tanta força que meu coração até
chegar o dia em que viria anunciar que sonhara com alguma coisa que prestasse.” (p.44); também adjetiva a tia como “sovina” (p.44) e ridiculariza seu modo de ser:
Quando minha tia anunciava uma história importante, na certa vinha alguma bobagem sem importância nenhuma. De resto, tia Pombinha tinha a mania de ver mistério em tudo, até no nosso limoeiro que dava às vezes uns limões adocicados. Não passava um dia sem falar nos tais pressentimentos. (TELLES, 1999, p.45) Pombinha encarna a figurativização da mulher oprimida, fraca, dependente, que vive em função do lar, da família. Ela admira a beleza e a elegância de Daniela, embora apresente (, segundo as palavras da narradora,) um estilo totalmente diferente, sem vaidade, sem qualquer glamour:
Ela abriu nos joelhos as mãos ossudas, de unhas onduladas, cortadas rente. Passei a língua na palma das minhas mãos para umedecê-las. Sempre que olhava as mãos dela, assim secas como se tivessem lidado com giz, precisava molhar as minhas. (TELLES, 1999, p.46) Em outro trecho, mais uma demonstração de que a figura da tia inspira, inclusive, uma idéia cômica segundo o olhar da narradora: “Fiquei olhando para as pernas finas de tia Pombinha com as meias murchas cor de cenoura.” ( p.47) Contrapondo-se ao conceito que faz da tia, é visível o encantamento de Ducha pelo perfil sedutor e misterioso de Daniela, numa clara oposição entre o novo, o comportamento que rompe com os padrões estabelecidos pela sociedade patriarcal e o modelo que reforça esse padrão de dominação masculina, materializado na figura de Pombinha. Paradoxalmente, a visão que Ducha tem de Ed, mediada pelo discurso de Pombinha, é a de um homem “fraco”, com características não masculinas de fragilidade e submissão, atípico para a sociedade patriarcal da época. Aparentemente ocupa sempre a posição de dominado, primeiramente pela irmã mais velha e depois pela esposa. Até seu próprio nome, colocado no texto como uma abreviação, parece nos dar a idéia de menor importância e de certa infantilização. Ed praticamente não tem voz na narrativa, em sua única fala presente no texto, ele descreve sua mulher e compara-a a um “jardim selvagem”, como se essa mistura de beleza (jardim) e selvageria o atraísse muito, evidenciando características que ele admira justamente por não possuir. Seu comportamento e seus medos nos são apresentados pela tia, a partir da narração de Ducha; portanto, tudo o que sabemos dele nada mais é do que o
que falam a seu respeito, e isso contribui para que ele seja fragilizado e enfraquecido em meio à trama. O que se percebe, portanto, é uma completa inversão dos papéis masculino e feminino, uma vez que Ed não corresponde ao protótipo do homem da sociedade patriarcal, sempre visto como dominante, desempenhando um papel ativo; também Daniela não corresponde ao protótipo feminino dessa sociedade, pois não é, de forma alguma, passiva, mas emancipada e atuante. Sobre as representações tradicionais dos sexos, Lauretis (1994, p. 223) salienta: A polaridade masculino/feminino tem sido e ainda é um dos temas centrais de quase todas as representações da sexualidade. Dentro do “senso comum”, as sexualidades masculina e feminina aparecem como distintas: a sexualidade masculina é considerada ativa, espontânea (...), enquanto a sexualidade feminina é vista em termos de sua relação com a sexualidade masculina, como sendo basicamente expressiva e responsiva à masculina. Certamente que as opções de Lygia Fagundes Telles, seguindo na trilha da tradição literária de autoria feminina inaugurada com Clarice Lispector nos anos 1944, caminham em outra direção, qual seja, a da contestação desse status quo e a da representação das relações de gênero calcada em novas possibilidades, diferentes daquelas edificadas pela ideologia patriarcal. Exemplo disso é o suicídio de Ed. Não podendo suportar o sofrimento causado pela doença, ele tira a própria vida num último acesso de impotência diante da situação de que é vitimado. Parece uma forma de demonstrar que, se o sujeito masculino não é capaz de fazer imperar sua força e poder, sua existência não se justifica. Num certo sentido, o modo de construção dessa personagem masculina, parece consistir em uma estratégia utilizada pela autora para salientar as características tão marcadamente fortes e impositivas das personagens femininas, ao mesmo tempo em que convida o/a leitor/a para uma revisão dos valores que historicamente vêm regulando as ideologias subjacentes às relações de gênero. A própria caracterização que o marido faz de Daniela – “jardim selvagem” – remete a essa revisão dos papéis/valores de gênero. Quando pensamos em “jardim”, remetemo- nos a espaços idealizados, produzidos e cultivados pelo homem; o adjetivo “selvagem”, todavia, destoa totalmente do substantivo que vem determinando pela idéia oposta que apresenta: selvagem é algo intocado pelo homem e que não se deixa dominar por ele. Por analogia, a definição “jardim selvagem”, atribuída à Daniela pelo marido remete à sua
conduzir o leitor a vários questionamentos, inclusive o de um zelo excessivo para evitar suspeitas de um possível assassinato. Boa parte da descrição de Daniela vem à tona a partir de uma outra personagem: a cozinheira do casal, que traz à menina Ducha, informações sobre ela. Na verdade, essa personagem tem assaz importância na medida em que faz descrições mais “palpáveis” sobre a esposa de Ed, e suas considerações influenciam a narradora, que vai construindo uma imagem romantizada dela:
__Mas não combina com dona Daniela. Fazer aquilo com o pobre do cachorro, não me conformo! __Que cachorro? __O Kleber, lá da chácara. Um cachorro tão engraçadinho, coitado. Só porque ficou doente e ela achou que estava sofrendo...Tem cabimento fazer isso com um cachorro? __Mas o que foi que ela fez? __Deu um tiro nele. __Um tiro? __Bem na cabeça. Encostou o revólver na orelha e pum! Matou assim como se fosse uma brincadeira... (TELLES, p. 48) A forma como a cozinheira descreve o cachorro e sua morte, a indignação diante do motivo que Daniela apresentou para tal ação, demonstram que há um olhar de desaprovação da empregada pela atitude a que assistiu; ela reprova o ato da patroa, apesar de considerá-la tão fina, tão boa, e chama a atenção para a falta de enquadramento de Daniela às normas sociais de conduta esperadas, tidas como “naturais” para uma mulher naquele contexto. Ela procura demonstrar (em seu diálogo com Ducha) que a postura “selvagem”, “ousada”, “desmedida” de Daniela a incomoda profundamente, ao ponto de não querê-la mais como patroa.
E montar em pêlo como monta, feito índio, e tomar banho sem roupa... Uma noite a mesa do jantar virou inteira. O doutor disse que foi ele que esbarrou no pé da mesa, pra não cair, agarrou a toalha e veio tudo pro chão. Mas ninguém me tira da cabeça que quem virou a mesa foi ela. (TELLES, p.49) Está claro que, na visão da cozinheira, Daniela rompe com os padrões pré- estabelecidos da postura da mulher na sociedade. Em consonância com os pressupostos de Bourdieu (2005, p. 22-23), parece que a cozinheira absorve passivamente a “ordem masculina do mundo”, agindo de acordo com seus preceitos, como se estivesse em parceria com os próprios dominadores. Ela se refere à patroa dizendo que “Quando fica brava... A gente tem vontade até de entrar num buraco” (p. 49), enquanto sobre Ed declara: “Seu tio é muito bom, coitado. Gosto demais dele [...]” (p.48), como se o “coitado” se devesse ao
fato de ele ter uma mulher assim, com voz e vez. Está desenhada aí a inversão dos papéis para a qual a narrativa chama a atenção, um homem pacato, sem voz e uma mulher emancipada, destemida. Um estado de coisas que destoa da convenção soberana e que a cozinheira, Pombinha e mesmo Ducha sentem e “pressentem”, cada qual a seu modo. O fato de Ducha receber com perturbação a notícia de que Ed está doente e associar sua doença à do cachorro, consequentemente, à hipótese de assassinato, pode remeter à possibilidade de ela estar incorporando o modelo de feminilidade adotado pela tia, marcado pelos “pressentimentos” e pela aparência das coisas em detrimento de sua essência. Passados alguns episódios aparentemente desabonadores, como o assassinato do cão e o possível assassinato do tio, a curiosa figura de tia Daniela já não mais atrai a menina Ducha; ao contrário, a confunde, deixando-a propensa a adotar os padrões de comportamento peculiares à ideologia patriarcal. No entanto, há que se considerar que, tanto Ed quanto Daniela são focalizados por meio do ponto de vista das demais personagens, e isso implica a possibilidade do predomínio de impressões pessoais, idealizações e repetições de clichês. Tendo em vista o foco narrativo do conto, a possibilidade de Daniela ser uma assassina fria e calculista é a mesma de se tratar simplesmente de uma mulher elegante, moderna, atenciosa, além de temperamental.
Considerações finais Antes de intencionar apontar mocinhos/as e bandidos/as no grande palco das relações sociais, o texto intenta convidar o/a leitor/a a refletir sobre a relatividade dos fatos, das verdades instituídas e, sobretudo, acerca do modo sutil com que as ideologias dominantes, como a patriarcal, são perpetuadas a cada nova geração. Falar sobre gênero, de acordo com Bourdieu (2005) é falar de algo social, sobre representações tradicionais do que seja o feminino e o masculino, interpretando que homens e mulheres são produzidos socialmente por um discurso ideológico, assim como pelas representações e determinismos das diferentes culturas. Tais questões “estão ligadas às estruturas dos inconscientes masculinos e femininos, contribuem fortemente para a perpetuação das relações sociais de dominação entre os sexos”. (BOURDIEU, 2005, p. 138-139) A partir da leitura do conto “O jardim selvagem” podemos identificar e analisar diferentes protótipos de figuras femininas, ora representando e ratificando a ideologia da dominação masculina, ora criando oposições e novos padrões de comportamento. Em meio a essas contradições encontra-se a personagem Ducha, que, numa fase de transição,