













Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
templo de Vesta, situado entre o Átrio de Vesta e a Régia, a sudoeste do Foro, que se encontra o fogo da cidade de Roma, cuidadosamente mantido pelas ...
Tipologia: Notas de estudo
1 / 21
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
A condição jurídicA dAs sAcerdotisAs de VestA
The legal STaTUTe oF VeSTal ViRginS
Eliane Maria Agati Madeira *
Resumo: o presente artigo tem por objetivo investigar a peculiaridade da condição jurídica das sacerdotisas Vestais que, em Roma, diferentemente das demais mulheres, não se submetiam à tutela e possuíam prerrogativas bastante amplas, como a capacidade testamentária. Palavras-chave: Vestal. Tutela feminina. Condição jurídica da mulher. Incestum e stuprum.
abstract: The purpose of this article is to examine the legal statute Vestal Virgins, which, in the ancient Rome, differently of other women, were not subject to the tutel and had very large prerogatives, like testamentary capacity. Keywords: Vestal Virgin. legal statute. Vow of chastity. Women´s guardianship.
a profunda inter-relação que se estabeleceu na antiguidade entre a religião e as instituições domésticas, sociais, jurídicas^1 e políticas^2 de Roma, torna extremamente frutífera a pesquisa que, partindo de um enfoque religioso, procure alcançar a repercussão de tal fenômeno nos demais âmbitos da vida romana. orientados por esta postura metodológica, que poderíamos denominar de “visão utilitária ou instrumental” da religião e movidos pelo interesse, já manifestado em diversos outros artigos^3 de nossa lavra, de
92 Eliane Maria Agati Madeira
desvendar a condição jurídica da mulher em Roma,^4 pareceu-nos oportuno investigar o estatuto jurídico das únicas sacerdotisas mulheres^5 naquela civilização, as Vestais. Desde a mais remota antiguidade, em Roma, conheciam-se práticas femininas de culto religioso. nestas imperava uma verdadeira segmentação de acordo com a “categoria” à qual cada mulher pertencesse. assim, a primeira distinção que se estabelecia para efeitos de práticas religiosas era entre mulheres virgens e casadas que cultuavam, respectivamente, a Fortuna virginalis e a Fortuna primigenia. Dentre as mulheres casadas, valorizavam-se aquelas que houvessem contraído apenas um matrimônio ( univirae ) às quais era reservado, dentre outros, o culto da Fortuna muliebris, da Pudicitia e da Bona dea. ^ Às prostitutas destinava-se o culto da Fortuna virilis que ocorria nos banhos masculinos.^7 no que diz respeito aos cultos em que participavam as Vestais, entretanto, observa-se um outro modo de participação feminina nos rituais, reservado exclusivamente àquelas sacerdotisas, as quais gozavam de reconhecimento público significativo. São elas, as Vestais, quem fazem os sacra^8 e não quem se beneficiam deles. Nesse sentido, interessante atentar para o elenco de sacra popularia relacionado por Festo e para as classificações de Labeão, no seu livro De iure Pontificali , que justamente levam em conta ora os sujeitos no interesse de quem são feitos os sacra ora os sujeitos que fazem os sacra.^9
Droits de l´antiquité, 2005 e publicado na Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo , São Paulo, v. 101, p.87-107, jan./dez. 200. (^4) Note-se que, de acordo com nossa concepção, não há propriamente como identificar, abstratamente, a condição jurídica da mulher em Roma. Tal fato deve-se a diversidade de papéis que as mulheres assumiram naquela sociedade ao longo dos séculos (de Viii a.C. até Vi d. C.) e à multiplicidade cultural daquela civilização. Assim, parece-nos mais adequado identificar a condição jurídica da mulher livre enquanto mãe (mater), filha (filia), esposa (uxor), religiosa, profissional, etc. nos diferentes períodos políticos vivenciados por Roma e levando em consideração, sempre que possível, seu status social e familiar. (^5) A despeito da existência de outras mulheres a participar de cultos religiosos romanos, ressalte-se que tais mulheres exerciam função meramente colaboradora, na qualidade de esposas de sacerdotes, como ocorre com a flaminica, esposa do flamen dialis (sacerdote de Júpiter), submetida, assim como seu marido, a algumas restrições relatadas por aulo gélio X, 15. (^) no que diz respeito ao Culto de Bona Dea (Cf. PiCCalUga, giulia. Bona Dea. Due contributi allo studio del suo culto. “Studi e materiali di storia delle religioni” 35, 194), ainda que bastante desconhecido de nós diversos de seus aspectos, sabe-se que dele participavam escravas, matronae e também as Vestais. os ritos em sua homenagem ocorriam em primeiro de maio, no templo sub saxo no aventino e, na noite entre 3 e 4 dezembro, no lar do supremo magistrado cum imperio , ocasião em que a esposa ou a mãe deste magistrado assumia posição de destaque na condução da cerimônia. os homens eram excluídos destas celebrações. (^7) CanTaRella, eva. L´ambiguo malanno. Milano: einaudi, 1995. p. 171-172. (^8) Cícero, de har. resp. 4, a propósito da participação das Vestais no culto de Bona Dea , relata: “... cum ibi in operto virgines pro populo Romano sacra facerent ....”. (^9) Cf. CaTalano, Pierangelo. Populus Romanus Quirites. Torino: giappichelli, 1974. p. 123.
94 Eliane Maria Agati Madeira
universo, em cujo centro, crêem os pitagóricos, localiza-se o fogo. A Terra, de acordo com tal concepção, giraria suspensa ao redor deste fogo. De acordo com a mitologia, Vesta, deusa do fogo doméstico, irmã de Juno e Ceres, é a terceira filha de Saturno e Ops.^17 Dentre os irmãos, embora cortejada por apolo e netuno, foi a única que se recusou a contrair matrimônio, mantendo-se casta e sedentária no olimpo. não é ela representada por qualquer imagem, mas apenas pelo fogo. os asnos eram os animais sagrados que lhes eram dedicados e que, por ocasião das Vestálias, em meados de junho, eram coroados de flores e dispensados de suas duras atividades laborativas. Segundo ovídio,^18 foram os zurros de um asno que teriam salvo a deusa Vesta do estupro de Príapo, daí a razão para serem tais animais reverenciados. Eram seis as Sacerdotisas de Vesta que, escolhidas pelo Pontífice Máximo entre os seis e dez anos de idade,^19 estavam incumbidas de zelar para que o público fogo sagrado não se apagasse. Cícero^20 assim nos esclarece a propósito de suas funções: Virgines Vestales custodiunto ignem foci publici sempiternum (Compete às virgens vestais proteger a chama inextinguível do lar público). Provinham as futuras sacerdotisas de todas as tribos romanas, conforme testemunha Festo. 21 o fogo do qual se ocupavam simbolizava as raízes e a própria identidade da cidade de Roma.^22 acreditava-se, de acordo com Cícero, 23 que: “ Salvo o Templo de Vesta com seu fogo sagrado, nós estaremos salvos ” e que o referido templo congregasse os cidadãos, como se fosse o “ lar sagrado da cidade ”.^24 além desta primordial tarefa, também a elas incumbia a confecção da mola salsa ,^25 espécie de bolo de farinha e de sal que tornava eficaz qualquer sacrifício público romano, garantindo-lhe a pureza, e que era colocado sobre a testa da vítima a ser imolada. outras cerimônias, sacras e secretas,^2 ^ também eram de sua competência.
(^17) ops é esposa de Saturno e deusa da abundância. Protetora da agricultura, fonte de fartura e de riquezas, cf. BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário Mítico-Etimológico da Mitologia e da Religião Romana. Petrópolis: edunb, 1993. (^18) oVÍDio. Fastos , Vi, 335-348. (^19) a tenra idade na qual as Vestais iniciavam sua função levou PiCCalUga, giulia. op. cit., p. 228 a considerá- las depositárias de um papel novicial e, portanto, iniciático. (^20) CÍCeRo, De leg. , 2,8. (^21) Fest. p. 51 l.: ... sex Vestae sacerdotes constitutae sunt ut populus pro sua quisque parte haberet ministram sacrorum, quia civitas romana in sex est distributa partes, in primos secundosque Titienses, Ramnes, luceres. (^22) SCHEID, John. Roma al femminile, Claudia la vestale. Bari: laterza, 1994. p. 11. (^23) CÍCeRo. Fil ., 11,10: “ Quo saluo, salui sumus futuri”. (^24) CÍCeRo. De leg., 2, 12: “Vesta quase focus urbis”. (^25) PlÍnio. hist. nat., XViii, 2,7-8. 2 (^) PlUTaRCo. numa, iX.
A condição jurídica das sacerdotisas de Vesta 95
em gélio^27 encontramos interessantes informações sobre diversos aspectos relativos à escolha das Vestais. De acordo com a tradição, o primeiro a ter escolhido uma Vestal teria sido o Rei numa.^28 Baseando-se o autor de noites Áticas nas informações trazidas por antístio labeão no seu liber de sacerdotibus de comentários ao direito pontifical, considerado por Aulo Gélio o mais exato de todos aqueles que se ocuparam deste tema, confirma o referido Autor que tais sacerdotisas eram escolhidas entre os seis e dez anos de idade. acrescenta ainda alguns requisitos indispensáveis à seleção de tais meninas: ter ambos os pais vivos, não ser gaga ou surda e não sofrer de qualquer enfermidade corporal. Quanto a seus pais, estes não poderiam ter sido emancipados, ter sido escravos ou exercer uma profissão vil ( sordida ). Segundo ateio Capitão, em sua obra De iure pontificio também citada por Gélio, somente a filha de um homem domiciliado na Itália poderia ser escolhida Vestal e aqueles casais que tivessem três filhos estariam assegurados de não terem alguma de suas filhas selecionada para tal nobre atividade. Feita a escolha, era a Vestal conduzida ao pórtico do templo de Vesta, à presença dos pontífices. a partir deste momento, sem que houvesse qualquer emancipação ou capitis deminutio , deixava de incidir sobre ela a patria potestas e adquiria a sacerdotisa o direito de testar. insiste aulo gélio no fato do processo de escolha da Vestal estar posteriormente regulamentado pela Lex Papia. Sabe-se que a Lex Papia de vestalium lectione limitou o direito do Pontífice Máximo à eleição das Vestais, permitindo que também o povo influísse ( sortitio in contione ) em tal decisão. É controverso se tal lei seja o produto de um plebiscito de C. Papius , tribuno em 5 a.C. , ou do tribuno Papius em 253 a.C, ano em que foi eleito o primeiro Pontífice Máximo plebeu Tiberius Coruncanius.^29 De acordo com os procedimentos determinados por esta lei^30 , o grande pontífice escolhia vinte meninas e, a seguir, diante de uma assembléia popular, sorteava uma delas, a qual era consagrada a Vesta. nos tempos de gélio, entretanto, o sorteio deixou de ser obrigatório, pois se um homem honesto procurasse o Pontífice Máximo e apresentasse
(^27) aUlo gÉlio, i,12,1. este romano letrado nasceu por volta de 130 d. C. e estudou em atenas onde começou a redigir anotações que lhes seriam úteis em suas célebres noites Áticas, na qual discorre, em vinte livros, sobre gramática, história, literatura, filosofia, direito e geometria, Cf. HUMBERT, Jules. Histoire illustrée de la littérature latine : précis méthodique. Paris/Toulouse: h. Didier, 1932. (^28) Cf. BRANDÃO, Junito de Souza. op. cit., p. 308, o mito, no entanto, “fixa a criação do colégio das Vestais num período que antecede a fundação de Roma, uma vez que amúlio obrigara sua sobrinha Réia Sílvia, a futura mãe de Rômulo e Remo, a tornar-se sacerdotisa da deusa do fogo sagrado, mas uma variante outorga ao rei numa a honra de haver introduzido na Urbe o culto à chama que não podia extinguir-se”. (^29) RoTonDi, giovanni. Leges publicae populi romani. hildeshei: olms, 19. p. 37-377. (^30) SaCChi, osvaldo. Il privilegio dell´esenzione dalla tutela per le Vestali (Gai.1.145). Revue Internationale des Droits de L’antiquité , liège, v. 3, n. 50, p. 317-359, 2003, p. 341 ressalta que a “ Lex papia de vestalium electione constituisce uma sicura testemonianza del prevalere del potere politico su quello sacerdotale nella direzione della formazione di un culto statale”.
A condição jurídica das sacerdotisas de Vesta 97
Se, por ventura, o fogo fosse extinto, relata o referido autor que este deveria ser reacendido, segundo um preciso e minucioso ritual que previa a utilização de raios puros do sol incidindo em um determinado vaso que contivesse qualquer matéria leve e seca, o qual funcionaria como um espelho. o tempo transcorrido no sacerdócio era dedicado ao aprendizado, realização ( facere sacra ) e ensinamento ( docere ) 34 dos rituais religiosos. assim, nos primeiros dez anos de vida religiosa, as Vestais faziam tirocínio como sacerdotisas, em seguida punham em prática o aprendizado e nos dez anos restantes ensinavam as novatas. Decorrido este tempo, aquelas que desejassem se afastar teriam licença para casarem-se e dedicarem-se a uma nova vida. Mas, segundo Plutarco,^35 foram poucas as que assim teriam procedido, pois o sentimento de arrependimento de algumas egressas teria incutido supersticioso temor nas demais de modo que muitas delas mantinham a virgindade até a morte e velhice. De acordo com aulo gélio^3 , a primeira Vestal a ter recebido permissão para iniciar-se na vida profana após seu sacerdócio, na idade de quarenta anos, teria sido Caia Tarrácia. esta sacerdotisa recebeu tal privilégio, e outros que serão analisados mais adiante ao discorrermos sobre a condição jurídica das Vestais, como recompensa aos serviços prestados ao povo romano, notadamente pela concessão do Campo Tiberino ou de Marte aos romanos. Em decorrência desta doação, como público reconhecimento da grandiosidade deste gesto e em agradecimento, mandou-se que uma estátua fosse erigida em sua homenagem, fato inusual, conforme testemunho de Plínio, transcrito a seguir.
Plínio, história natural, XXXiV, Xi (5)
eu considero que foi concedida uma estátua à virgem vestal Caia Tarácia, com a permisssão de erigi-la onde esta desejasse, privilégio que não é menos honorável para ela que aquele de ter recebido, embora mulher, uma estátua em sua homenagem. aqui estão, nos próprios termos dos anais, porque ela obteve este privilégio: “por ter presenteado ao povo o Campo Tiberino”. a grande Vesta ( Maxima Virgo ) é quem preside as demais Vestais. Todas usavam véu e veste branca,^37 debruada de púrpura. Consideradas símbolo da castitas e da pudicitia , ao iniciarem a vida sacerdotal lhes era cortado o cabelo de um modo especial e deveriam sempre fazer uso de um penteado denominado seni crines , que também era
(^34) no que diz respeito à típica atividade sacerdotal e suas semelhanças com as tarefas de um jurista romano, remetemos o leitor ao aludido fragmento de Ulpiano em D.1.1.1.1. (^35) PlUTaRCo. Numa , X. 3 (^) aUlo gÉlio. Noites Áticas , Vii, 7, 4. (^37) BoRneCQUe, henri; MoRneT, Daniel. op. cit., p. 7.
98 Eliane Maria Agati Madeira
utilizado pelas mulheres casadas. em suas aparições públicas utilizavam um véu que lhes cobria a cabeça e que lhes caía até os ombros, denominado suffibulum. no templo de Vesta há um quarto secreto onde são conservadas relíquias, como o palladium ,^38 velha estátua de madeira que representava Minerva e que teria sido trazida de Tróia por enéias. De acordo com a tradição, o palladium garantiria o poder daquele que o possuísse e todos que ousassem olhar para esta estátua perderiam a visão.^39
as fontes que nos informam acerca do estatuto jurídico das Vestais são esparsas. Todas contribuem para demonstrar a especificidade das regras que disciplinam a condição jurídica destas sacerdotisas e que constituem, de acordo com nosso entendimento, verdadeiro ius singulare. Certamente o prestígio de que gozavam as sacerdotisas de Vesta contribuiu para tal diferenciação. horácio,^40 por exemplo, ressalta a santidade das Vestais, designando- as virgines sanctae , virgens sagradas. Cícero 41 considera a missão de uma Vestal como um sacerdócio santíssimo, sanctissimum sacerdotium. as prerrogativas das Vestais dizem respeito a dois aspectos: sociais e jurídicos. no que concerne ao primeiro aspecto, todas ocupam lugar de honra nas festas e na rua. Quando saem do Atrium Vestae são precedidas pelos lictores ,^42 que conduzem o cortejo. além disso, possuíam o privilégio de utilizar carruagem ( vehiculum ) nas ruas de Roma.^43 o poder e a autoridade das Vestais era considerado tão grandioso que acreditava-se que com uma simples oração pudessem elas impedir a fuga de um escravo 44 e se, por acaso, encontrassem em seu caminho um condenado à morte, poderiam decidir
(^38) TiTo lÍVio. XXVi, 27, 14 discorre sobre a perversidade dos campanianos que “haviam tentado atingir o templo de Vesta, seu fogo eterno e o penhor ( palladium ) dado pelo destino ao império romano”. (^39) BoRneCQUe, henri; MoRneT, Daniel. op. cit., p. 7. (^40) hoRÁCio. Odes , 1,2,27. (^41) CÍCeRo. Pro Domo , 53. (^42) os lictores carregavam os fasces (feixe de varas em torno de um machado), símbolo do poder de Roma, e acompanhavam o rei e os magistrados nas cerimônias públicas. Foi apenas Tarquínio Prisco, quinto rei romano, quem introduziu tal uso. (^43) Ser conduzido por vehiculum era privilégio reservado a apenas alguns, pois o caráter tortuoso das ruas romanas impedia que tal transporte fosse utilizado freqüentemente. era de liteira que as pessoas em geral circulavam. em 395 a.C., entretanto, como recompensa às matronas pela doação de ouro efetuada ao erário por ocasião das dificuldades provocadas pelas Guerras Púnicas, o Senado Romano autorizou que estas pudessem também circular por Roma utilizando vehiculum. Mais tarde, em 215 a.C. a Lex Oppia proibirá a utilização do iunctum vehiculum pelas mulheres, disposição esta que será revogada em 195 a.C. a propósito, veja-se MaDeiRa, eliane Maria agati. La Lex Oppia et la condition juridique de la femme dans la Rome Républicaine, cit., p. 90. (^44) PlÍnio. História Natural , XXViii,3.
100 Eliane Maria Agati Madeira
se. A dificuldade em compreender tal situação reside no fato de nela não estarem presentes as tradicionais razões jurídicas que provocam a extinção da patria potestas e, conseqüentemente, o rompimento da agnação: emancipação ou capitis deminutio. esta parece ser, aliás, a essência do ius singulare que, conforme conceituado por Paulo, em D.1.3.1, “ é aquele que foi introduzido pela autoridade dos que o constituíram, contra a coerência da razão, por causa de alguma utilidade ”. De qualquer forma, as Vestais, ao deixarem de estar submetidas à patria potestas, adquirem imediatamente a capacidade testamentária ( testamenti factio activa ). 49 Para exercitá-la, por óbvio, é necessário dispor de bens. Tais bens, como tivemos ocasião de verificar, não são provenientes de sucessão ab intestato , mas de doações 50 ou de aquisições decorrentes de sua testamenti factio passiva. esta situação parece contribuir para a preservação do patrimônio familiar, princípio que norteou diversas das regras relativas ao direito sucessório romano. 51 o pater familias , assim, tem total autonomia para decidir se contemplará ou-não sua descendente com alguns bens. Sabe-se que costumeiramente o pater familias , assim que sua filha adentrasse na vida religiosa, conferia-lhe alguns bens a título de pecúlio.^52 Para a compreensão da importância da capacidade testamentária das Vestais, é oportuno ressaltar que foi considerada absoluta a incapacidade de testar daquelas mulheres que não se dedicavam à vida religiosa, exceto daquelas que houvessem sofrido a capitis deminutio mínima. Segundo gide, 53 a explicação de tal fato deve-se ao seguinte: os atos inter vivos podem ser necessários ou úteis à mulher que pode praticá-los mediante a autorização de seu tutor, ainda que possam acarretar à família um prejuízo indireto. ao contrário, o testamento não representa para a mulher qualquer benefício e tem por única finalidade a privação do patrimônio familiar. Ora, o tutor protege a família e não a mulher. nesse sentido, é visto como guardião dos interesses da família. Dessa forma, com relação à mulher que sofreu a capitis deminutio e, conseqüentemente, ingressou em uma
(^49) a esse propósito, VolTeRRa, edoardo. Istituzioni di Diritto Romano. Roma: 191. p. 108 n.1 acentua que as Vestais não podem ser consideradas sui iuris pois deixam de estar submetidas ao poder de seu pater familias para se sujeitarem à autoridade do Sumo Pontífice. (^50) Ressalte-se, outrossim, que Lívio 1.20.3 faz referência à instituição, pelo rei Numa, de um público estipêndio para que as Vestais pudessem dedicar-se exclusivamente à vida sacerdotal. Além disso, fontes epigráficas (CIL .10848) atestam que a soma proveniente de multas sepulcrais era entregue às Vestais. (^51) nesse sentido, CanTaRella, eva. op. cit., p. , ao discorrer sobre a admissão feminina à sucessão no patrimônio familiar enfatiza que a necessidade do tutor mulierum representou um modo de tornar a mulher “detentrici provvisorie del patrimonio familiare”, posto que a tutela, ao menos em época arcaica, não era um instituto protetor, mas potestativo. Servia, assim, para impedir que a mulher dissipasse o patrimônio familiar. (^52) MoMMSen,Teodoro. Derecho Penal Romano. Tradução do original alemão Römisches Strafrecht , leipzig, 1899 por Pedro Dorado Montero. Madrid: Temis, 1999. p. 1 fala em pecúlio “equiparado ao patrimônio”. Estes bens podiam ser eventualmente apropriados por ordem do Pontífice Máximo como forma de sanção aplicada às Vestais. (^53) giDe. Étude sur la condition privée de la femme. Paris: larose et Forcel, 1885. p. 109-110.
A condição jurídica das sacerdotisas de Vesta 101
nova família, o que provocou o rompimento do parentesco com sua família de origem e a privação de seus antigos agnados da tutela e de participação em sua sucessão, permitir-lhe testar significa possibilitar que tais agnados, que não são mais seus herdeiros presuntivos, possam, por testamento, ter participação em seus bens. Ressalte-se que a capitis deminutio feminina não necessariamente é decorrente de um casamento cum manu. Poderia ser obtida por meio de uma coemptio fiduciaria , descrita por gaio,^54 pela qual se submetia a mulher à manus de um estranho com o qual houvera sido estabelecido, por meio de um pacto de fidúcia, a obrigação de emancipá-la. Trata-se da fiduciaria coemptio testamenti faciendi gratia. observa-se, assim, que a capacidade feminina para redigir testamento está subordinada à auctoritas de seu tutor. Trata-se de uma regra do ius commune. e aí se encontra outro ponto distintivo da condição jurídica das Vestais, as quais não estavam submetidas a tal tutela. o jurista gaio, nas célebres institutas (gai. i,145), atribui a dispensa da tutela mulierum , que segundo ele já estava expressa nas Xii Tábuas, 55 à reverência ( in honorem sacerdotii ) que os antigos ( veteres ) prestavam ao sacerdócio de Vesta. :
gai. 1.145:
Loquimur autem exceptis virginibus Vestalibus, quas etiam veteres in honorem sacerdotii liberas esse voluerunt, itaque etiam lege XII tabularum cautum est. Do que dizemos, porém, se excetuam as virgens Vestais, que os antigos quiseram livres em honra do sacerdócio, o que foi, aliás, ordenado pela lei das Xii Tábuas. Plutarco,^5 ^ por sua vez, atribui ao Rei numa Pompílio a dispensa da tutela das Vestais o que não indica, necessariamente, divergência em relação à posição de Gaio, posto que o jurista do século ii d.C. já atribuía aos veteres tal orientação. É ainda na obra do historiador grego Plutarco que encontramos preciosas informações a respeito dos diversos privilégios outorgados às Vestais pelo Rei numa
(^54) gai. i, 115. (^55) SolaZZi, Siro. la liberazione delle vestali dalla tutela in gai. 1.145. Studia et Documenta Historiae et Juris , Roma, v. 9, 1943, p. 113 e ss. apud SaCChi, osvaldo. Il privilegio dell´esenzione dalla tutela per le Vestali (Gai.1.145). cit., p. 32 entende ser interpolado este texto gaiano. gUiZZi, Francesco. Aspetti giuridici del sacerdozio romano. p.18 e 19 por sua vez, acredita que o termo veteres seja uma referência à jurisprudência pontifical pré-decenviral e que se possa atribuir aos mores maiorum a dispensa da tutela das Vestais. Quanto à possível existência, na Lei das XII Tábuas, desta determinação legal, SACCHI, cit., p.334 entende tratar-se de uma referência de Gaio não ao texto específico da lei, mas ao resultado de uma interpretação extensiva de uma norma das Xii Tábuas efetuada pelos juristas que a incorporam ao texto da lei, tal qual expresso em D.50.1.120. 5 (^) PlUTaRCo. Numa , X.
A condição jurídica das sacerdotisas de Vesta 103
Tendo em conta que a primitiva forma de testamento praticada pelos romanos, qual seja, aquela realizada diante dos comícios por cúrias, não era acessível às mulheres pelo fato destas não poderem participar dos referidos comícios e que o testamento per aes et libram que permitiu às mulheres em geral exercer a testamenti factio activa mediante a intervenção e consentimento ( auctoritas ) de seu tutor foi somente introduzido entre a segunda metade do século iV e a primeira metade do iii século antes de Cristo, atribuir às vestais a testamenti factio activa antes da incorporação daquela forma de testamento privado ao Direito Romano significa: a) admitir sua participação nos comícios (fato este não-comprovado pelas fontes) ou b) admitir que houvesse um tipo específico de testamento a elas reservado. Com relação à capacidade das Vestais de herdar, a primeira Vestal a ter recebido esta prerrogativa foi Caia Tarrácia.^2 a Lex Horatia de Taracia virgine vestali concedeu, especialmente pelo fato desta haver doado ao povo romano o Campus Tiberinus , insignes prerrogativas a esta Vestal, que depois foram estendidas às demais Vestais, como o direito de depor em justiça, de exercer o papel de testemunha em atos solenes e de ser testabilis. a data e o conteúdo desta lei do cônsul Horatius são legendários,^3 mas acredita- se que tal lei tenha sido promulgada em 449 a.C.
os romanos denominavam incestum a prática de relações sexuais entre pessoas unidas por vínculo de parentesco ou afinidade, assim como a violação do voto de castidade das sacerdotisas Vestais. Trata-se de um delito sexual caracterizado pela violação das obrigações religiosas dos cidadãos ou de uma Vestal, posto que o direito sacro considerava impura ( incestus ) uma união sexual desta natureza.^4 o termo stuprum , por sua vez, designava em Roma a prática de relações sexuais ilícitas, ou seja, com mulheres honradas e não-casadas ( virgo vel vidua ).^5 as fontes, ocasionalmente, utilizam esta palavra para indicar o ato sexual responsável pelo rompimento do voto de castidade das Vestais. Diferentemente do significado moderno não se refere o estupro ( stuprum ) à prática de relações sexuais não-consentidas. As conseqüências relacionadas ao rompimento do voto de castidade das Vestais vêm relatadas por Plutarco^ de modo bastante minucioso.
(^2) aUlo gÉlio. Vii,7,4. (^3) RoTonDi, giovanni. op. cit., p. 20. (^4) MoMMSen, Teodoro. op. cit., p. 427. (^5) Cf. Di SalVo. Stuprum. in: Dizionario giuridico romano. napoli: Simone, 2000. (^) PlUTaRCo. Vidas Paralelas , Numa , X.
104 Eliane Maria Agati Madeira
a Vestal que eventualmente perdesse a virgindade era sepultada viva junto à Porta Colina.^7 na parte inferior da extensa porção de terra adjacente à Porta, construía- se uma pequena caverna que pudesse ser acessada do alto. nela colocavam-se uma cama com coberta, luz e um pouco de alimento: pão, água, leite e óleo. Apenas o suficiente para que a Vestal a ser inserida naquele local não morresse imediatamente de fome. a condenada era amarrada sobre uma liteira e conduzida à presença do Pontífice Máximo. Atravessavam então a praça, na qual uma multidão entristecida, em grande silêncio, a tudo assistia. Plutarco enfatiza ser este um “espetáculo horrível” e ressalta que a cidade não tem outro dia mais dolente. estando a liteira à beira da entrada da caverna, são rompidas as amarras e o Pontífice Máximo, com as mãos alçadas ao céu, realiza algumas orações secretas. em seguida, é a jovem colocada sobre a escada que conduz à caverna e, nesse momento, o Pontífice se retira com os demais sacerdotes. Descida a Vestal, suspende-se a escada e, com muita terra se recobre a abertura. Plutarco^8 também nos informa que aquele que se esconder sob o leito de uma Vestal será condenado à morte. além disso, a prática de infrações menores pelas sacerdotisas confere ao Pontífice Máximo o direito de fustigá-las nuas em local escuro, no qual era instalada uma cortina diante da Vestal para ocultar sua nudez.
4.1 notícias de alguns processos republicanos envolvendo Vestais. Uma breve análise
A apuração da desobediência ao dever de castidade de uma Vestal despertava grande comoção pública, provável razão da presença, nas fontes, de diversas notícias desta natureza. Com o intuito de examinar o procedimento penal ao qual tais processos estavam submetidos, selecionamos alguns dos mais expressivos episódios desta espécie que se desenrolaram no período republicano.^9
(^7) a Porta Colina era uma das portas da Muralha Serviana, a mais antiga muralha urbana de Roma, que conduzia à Via Salaria. De acordo com a tradição, tal muralha foi construída pelo rei Sérvio Túlio. (^8) PlUTaRCo. Vidas Paralelas , Numa , X. (^9) Uma relação completa de todos os processos envolvendo Vestais pode ser encontrada em giannelli, giullio. Il sacerdozio delle Vestali romane. Firenze: galetti e Cocci, 1889. 913, p. 81 n.5. nesta sede nos restringimos àqueles individualizados por PePPe, leo. op. cit., p. 118 e seg., considerados os mais expressivos.
10 Eliane Maria Agati Madeira
pontífices pelo testemunho de um escravo. Os pontífices, por um decreto, ordenaram-lhe que se abstivesse do exercício dos ritos sacros e que deixasse os servos sobre a sua potestate. Realizado o julgamento, a vestal foi enterrada viva perto da porta Colina, à direita da rua pavimentada no Campo Celerado, assim chamado, creio, por causa do crime de incesto da vestal. em 337 a.C., a Vestal Minúcia é condenada apud pontifices e sepultada viva junto à Porta Colina, por incesto. O processo iniciou-se a partir da denúncia de um escravo, o que confirma a tese de que o sistema da punição doméstico era inquisitivo e a interposição da ação se dava mediante denúncia.^71 novamente, a utilização de trajes mundanos pela Vestal levantou suspeita quanto a sua honestidade. a Vestal, sabe-se, embora permanecesse a maior parte do tempo enclausurada, no desempenho de suas funções sagradas, saía deste ambiente para assistir às cerimônias públicas e espetáculos.^72 Certamente, são nestas ocasiões que suas vestimentas podem ser observadas e, embora houvesse um “traje padrão” para tais mulheres, alguns detalhes poderiam ser acrescentados às suas vestimentas que chamassem indevidamente a atenção alheia. observe-se que durante o desenrolar deste processo, a Vestal, suspeita de incestum , manteve-se afastada de suas funções sacramentais. além disso, recebeu a ordem de manter seus servos sob a potestate ( familiamque in potestate habere ) do Sumo Pontífice. Tal determinação tem por objetivo evitar que a Vestal manumitasse tais escravos que, desse modo, deixariam de ser torturados para declararem a verdade sobre os fatos. além disso, evita-se o risco dos escravos, mantendo-se junto da Vestal, se predisporem em seu favor.^73 Isso nos revela três aspectos importantes. Um, de natureza patrimonial, comprovando que a Vestal tem bens próprios, nesse caso específico, escravos. Outro, de natureza penal: a admissão da prática de tortura em relação aos escravos. Por fim, nota-se que, no que diz respeito à condição jurídica do escravo, era reconhecida sua capacidade de ser testemunha, também confirmada por um texto de Valério Máximo (III,7,9), exposto adiante.
(^71) MoMMSen,Teodoro. Derecho Penal Romano. Tradução do original alemão Römisches Strafrecht , leipzig, 1899 por Pedro Dorado Montero. Madrid: Temis, 1999. p. 17. (^72) CÍCeRo. Pro Murena , 35.73 expõe que a Vestal licínia, em 3 a.C., cede seu lugar de honra nos espetáculos de gladiadores a licínio Murena, candidato ao consulado. (^73) Cf. MoReSChini, notas à obra de TiTo lÍVio. Storia di Roma dalla sua fundazione. Milano: Rizzoli,
A condição jurídica das sacerdotisas de Vesta 107
quod duae vestales eo anno, opimia atque floronia, stupri compertae et altera sub terra, uti mos et, ad portam collinam necata fuerat, altera sibimet ipsa mortem consciverat; l. cantilius scriba pontificius, quos nunc minores pontifices apellant, qui cum floronia stuprum fecerat , a pontifice maximo eo usque virgis in comitio caesus erat ut inter verbera exspiraret.
além de tamanhos desastres, o que provocou pânico foi a circunstância de, nesse ano, além de outros prodígios, as vestais opímia e Florônia terem sido assinaladas de stuprum : segundo o costume uma foi enterrada viva junto à Porta Colina, a outra se matou. lúcio Cantílio, escriba pontifício (dos que hoje se chamam “pequenos pontífices”) que praticou o stuprum com Florônia, sofreu no comício flagelação por mão do pontífice máximo até expirar sob os golpes. em 21 a.C., as Vestais opímia e Florônia são condenadas por stuprum. opímia é sepultada viva junto à Porta Colina e Florônia comete suicídio. o escriba pontifical L. Cantílio, cúmplice de Florônia, é fustigado até a morte por ordem do Pontífice Máximo. Veja-se que o desvio de comportamento das Vestais provocava pânico na sociedade, pois se acreditava que a harmonia de Roma e sua proteção dos deuses estivessem relacionadas à manutenção da honra e do respeito destas sacerdotisas. o rompimento da castidade de uma Vestal é interpretado, assim, como assunto de natureza coletiva e pública. Tais acontecimentos se relacionaram, ainda, a uma época de grande instabilidade política, no decorrer da Segunda Guerra Púnica e, especificamente, foram associados à sucessão de prodígios que se multiplicavam.
Conserva-se a oração recitada pela Vestal Túcia que, acusada de incesto, carrega consigo, em uma peneira, água proveniente do Tibre, no ano de Roma de 09. Sobre o mesmo episódio, Valério Máximo Viii. 1.5, ao tratar dos processos públicos insignes que culminaram, por razões diversas, com a absolvição dos réus ( De iudiciis publicis insignibus quibus absoluti ) informa:
Eodem auxilii genere Tucciae, virginis Vestalis, incesti criminis reae, castitas infamiae nube obscurata emersit: quae conscientia certae sinceritatis suae, spem salutis ancipiti argumento ausa petere est; arrepto enim cribro, “Vesta, inquit, si sacris tuis castas semper admovi manus, effice, ut hoc hauriam e Tiberi aquam, et in aedem tuam
A condição jurídica das sacerdotisas de Vesta 109
Vestalium ,^77 plebiscito do tribuno Sesto Pedúceo que instituiu uma quaestio extraordinaria de incestu para renovar o processo contra as Vestais emília, Márcia e lícínia.^78 Valério Máximo (iii,7,9) relata que o célebre orador M. antonio, tendo partido na qualidade de questor para a Ásia foi acusado de incesto diante da quaestio presidida por l. Cassius e, estando ainda em Brindisi , opta por retornar a Roma e comparecer, sendo imediatamente provada sua inocência, apesar de poder ter invocado o benefício da Lex Memmia que proibia que acusações fossem impostas contra qualquer cidadão ausente a serviço da República. ainda em Valério Máximo (Vi,8,1) retoma-se este tema para ressaltar a fidelidade do escravo de M. Antonio que, embora duramente torturado durante o julgamento (os acusadores de M. Antonio afirmavam que o escravo, com uma lanterna à mão, havia acompanhado seu dono ao encontro com a Vestal), negou a participação de seu senhor no alegado crime. Segundo Peppe, 79 “si trata di um episodio di portata rivolucionaria”. Afirma ainda o referido autor que este episódio demonstra que, diante de certas circunstâncias, a prerrogativa consuetudinária da exclusividade da jurisdição pontifical em matéria de incestus das Vestais e de seus cúmplices pode vir a ser afastada, especialmente em casos de grande relevância política e constitucional e de menor valor religioso. Talvez tenha contribuído para a relevância do episódio o fato de ter sido acusado como cúmplice de uma Vestal um questor. De qualquer modo, a absolvição pela jurisdição pontifical não era obstáculo para que se pudesse intentar um processo criminal público.^80 no que diz respeito à pena capital, não há menção, nas fontes de oposições por parte dos condenados, à jurisdição pontifical. Isso, entretanto, não nos autoriza a concluir que houve proibição de provocatio e exclusividade da jurisdição pontifical, mas tão-somente que era costume privilegiar a jurisdição pontifical.^81 além disso, ainda segundo Peppe,^82 dada a natureza do incestum das Vestais, sempre há cúmplices masculinos, os quais eram também condenados à morte, o que leva este autor a concluir que se houve na antiguidade a proibição de provocatio ou de intercessio , esta era ratione criminis e não em decorrência do sexo. Curioso observar que enquanto a punição doméstica exercida em relação às mulheres sofreu atenuações no período Republicano, por conta da denominada
(^77) Referências a esta lei em CÍCERO. De natura deorum , iii, 30, 74 e MaCRÓBio. Saturnálias 1.10. (^78) RoTonDi, giovanni. op. cit., p. 321. (^79) PePPe, leo. op. cit., p. 12-127. (^80) MoMMSen,Teodoro. op. cit., p. 17. (^81) PePPe, leo. op. cit., p. 128. (^82) id. ibid., p. 128.
110 Eliane Maria Agati Madeira
“emancipação feminina”, tal punição relativamente às Vestais, diferentemente, exacerbou- se, pois foi cada vez maior o medo que os romanos nutriam dos deuses.^83
assim como Cantarella,^84 considero que as conclusões “hanno sempre un’aria un po’ imperiosa. le conclusioni vere sono quelle che ciascuno trae per suo conto”. Por isso passo a expor apenas algumas considerações finais, que poderão, quiçá, ser objeto de múltiplas reflexões pessoais. a condição jurídica das Vestais apresentou diversas nuances ao longo da história romana, todas elas, entretanto, marcadas pela generalizada visão da sacerdotisa de Vesta como alguém responsável por um sanctissimum sacerdotium. Desta forma, poder- se-ia dizer que a evolução do status das Vestais trilhou um percurso, cujo ponto originário está representado pelos mores maiorum e pelas controversas leis régias até a existência de regras formais e específicas, proporcionais à importância que, gradualmente, assume o culto nacional, do qual o Culto à Vesta constitui um dos aspectos. a sacerdotisa Vestal, ao assumir “privilégios”, não os está adquirindo como apanágios que a colocam na situação de mulher emancipada. Tais prerrogativas constituem meios de reforçar a aura de divindade de que estão cercadas e, na medida em que facilitam o exercício de suas funções, trazem consigo uma utilidade pública. Tudo confirmando a tese, segundo a qual publicum ius in sacris, in sacerdotibus, in magistratibus constitit (D.1.1.1.2) isso parece explicar o fato da deusa Vesta ser, ordinariamente, representada por uma sacerdotisa vestal. Esta é a própria corporificação daquela e como tal deve expressar alguns valores caros aos romanos, como a simplicidade, a moderação, a discrição, a pudicitia.
São Paulo, setembro de 2008.
Referências
BoRneCQUe, henri; MoRneT, Daniel. Roma e os romanos : literatura, história, antiguidades. São Paulo: eDUSP, 1977.
BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário Mítico-Etimológico da Mitologia e da Religião Romana. Petrópolis: edunb, 1993.
(^83) MoMMSen,Teodoro. op. cit., p.1. (^84) CanTaRella, eva. op. cit., p. 133.